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Entrevista com Lais Myrrha Leandro Muniz Acho que seria legal começar falando da sua formação e das pessoas que você tinha contato e que continuaram trabalhando, se você ainda vê alguma interlocução entre os trabalhos... Essa coisa de formação já é uma questão. O que é o período de formação de um artista? A faculdade? O período que ele foi assistente de uma pessoa ou de outra? Enfim. Mas, claro, que dentro desse período bem inicial quando eu comecei a me envolver com arte, comecei a estudar arte em 1998, eu tinha mais ou menos 23 anos, e eu já tinha feito algumas coisas: comecei um curso de psicologia e abandonei, depois comecei um curso de comunicação social e parei também e depois eu fui fazer artes plásticas e fiquei. Mas eu comecei meio sem ter certeza se eu ia continuar de qualquer forma. Do ponto de vista dos trabalhos, só dois ou três trabalhos que eu considero dentro da minha produção, ainda um pouco ligados ao período em que eu estava na universidade, mas eram mais do final. Tem que pensar uma coisa que é engraçada, mas que faz muita diferença, mas na época em que eu comecei a estudar artes plásticas não tinha nem e-mail direito. Tinha e-mail, mas era precário, todo mundo tinha Hotmail, internet discada, tinha aquele barulhinho... Então as informações eram bem mais lentas, por incrível que pareça, porque não tem tanto tempo assim, tem menos de 20 anos. E realmente acho que é uma diferença muito grande... Belo Horizonte não é uma cidade que tem museus, tem museus, mas assim: museu de arte sacra, museu de artes e ofícios, tem o museu mineiro... Mas não tem um museu de arte. Tem o museu da Pampulha, mas ele não tem um acervo permanente em exposição, a coleção dele foi formada de um jeito muito aleatório, foi por meio de doações a maioria, não tinha um projeto curatorial que desse um conceito, um formato, um contorno pra coleção, o que é importante, no caso dos museus. Por outro lado o Museu da Pampulha teve um papel muito importante na minha formação em função da Bolsa Pampulha.

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Entrevista com Lais Myrrha Leandro Muniz

Acho que seria legal começar falando da sua formação e das pessoas que

você tinha contato e que continuaram trabalhando, se você ainda vê

alguma interlocução entre os trabalhos...

Essa coisa de formação já é uma questão. O que é o período de formação de

um artista? A faculdade? O período que ele foi assistente de uma pessoa ou de

outra? Enfim. Mas, claro, que dentro desse período bem inicial quando eu

comecei a me envolver com arte, comecei a estudar arte em 1998, eu tinha

mais ou menos 23 anos, e eu já tinha feito algumas coisas: comecei um curso

de psicologia e abandonei, depois comecei um curso de comunicação social e

parei também e depois eu fui fazer artes plásticas e fiquei. Mas eu comecei

meio sem ter certeza se eu ia continuar de qualquer forma.

Do ponto de vista dos trabalhos, só dois ou três trabalhos que eu considero

dentro da minha produção, ainda um pouco ligados ao período em que eu

estava na universidade, mas eram mais do final. Tem que pensar uma coisa

que é engraçada, mas que faz muita diferença, mas na época em que eu

comecei a estudar artes plásticas não tinha nem e-mail direito. Tinha e-mail,

mas era precário, todo mundo tinha Hotmail, internet discada, tinha aquele

barulhinho... Então as informações eram bem mais lentas, por incrível que

pareça, porque não tem tanto tempo assim, tem menos de 20 anos. E

realmente acho que é uma diferença muito grande...

Belo Horizonte não é uma cidade que tem museus, tem museus, mas assim:

museu de arte sacra, museu de artes e ofícios, tem o museu mineiro... Mas não

tem um museu de arte. Tem o museu da Pampulha, mas ele não tem um

acervo permanente em exposição, a coleção dele foi formada de um jeito muito

aleatório, foi por meio de doações a maioria, não tinha um projeto curatorial

que desse um conceito, um formato, um contorno pra coleção, o que é

importante, no caso dos museus.

Por outro lado o Museu da Pampulha teve um papel muito importante na minha

formação em função da Bolsa Pampulha.

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Foi a primeira edição, a que você participou.

Foi a primeira edição. E naquele momento, foi muito interessante no museu, já

fazia uns anos, começou a ter uma destinação do museu da Pampulha pra

trabalhos que pudessem lidar com a fisicalidade do museu. Não é que todos os

trabalhos que foram mostrados lá eram site-specifc. Não. Teve exposição da

Beatriz Milhazes, mesmo a da Rosângela Rennó não era tanto sobre a questão

do museu em si. Mas sempre montar uma exposição lá considerava isso. O

Adriano Pedrosa foi curador lá por um tempo e foi na época em que foi criada a

bolsa Pampulha. O Rodrigo Moura na época era assistente dele, e foi um

projeto que na época ele se envolveu, talvez tenha sido um pouco ideia dele a

coisa da bolsa...

Mas era um projeto que era muito caro ao Rodrigo, que acabou ficando no

lugar do Adriano quando ele saiu. Belo Horizonte não é uma cidade fácil...

Aquele momento foi muito produtivo porque realmente nosso grupo da bolsa

Pampulha teve uma conexão muito forte. Os artistas que participaram tiveram

uma troca muito efetiva entre eles. Claro que ali dentro um ou outro se

identificava mais, alguns com outros... Mas a gente fazia coisas juntos, desde

festa até outras coisas.

Eu fiquei muito amiga do Pedro Motta, por exemplo, a Sara [Ramo] ficou muito

próxima da Laura Belém... Tinham essas afinidades isoladas, mas no que me

concerne, eu, a Marilá [Dardot], a Sara, o Rodrigo Matheus, a gente se

configurou como um grupo de amigos e de interlocutores e a gente segue isso

até hoje, essa troca de experiência.

A gente vai fazer uma exposição esse ano sobre isso, lá no Pivô. E a gente foi

oferecer essa exposição pra elas e elas falaram “gente, que coisa louca, a

gente vai abrir uma exposição da Casa7”. E elas ficaram super animadas

porque tinha tudo a ver com o programa e foi completamente coincidência.

Pensando nesse acidental diálogo entre essa exposição que vocês vão

fazer e a exposição agora do Casa7, eu fiquei me perguntando, quando

estava vendo alguns trabalhos seus e estava pensando neles, se você

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chegou a ter algum tipo de interlocução com a Rosângela [Rennó] e com

a Rivane [Neuenschwander].

As duas são de Belo Horizonte.

Com a Rosângela é mais evidente, talvez...

Você acha que é mais evidente? Não sou a entrevistadora, mas: por quê?

Achei curioso.

Acho que tem um tipo de postura do que é ser artista que é parecida. É o

extremo oposto do que foi a Casa7, por exemplo, do artista expressivo.

Acho que tem uma vontade de mudança, uma vontade de inserção, que,

de um jeito cifrado, aparece.

Talvez sim. Eu sou amiga da Rivane. Ela é uma artista que vem de uma

geração imediatamente anterior a minha, e é uma pessoa que era próxima. E

claro que era um tipo de trabalho que me interessava, a gente se encontrava e

conversa e tal.

Mas a Rosângela, mais especificamente, eu tive uma pesquisa mais intensa, já

trabalhei em montagem de exposição dela. Eu conheço ela porque uma pessoa

que foi muito importante pra mim, até hoje, foi a Piti, a Maria Angélica Melendi,

foi minha professora na Guignard. Ela trabalha com teoria da arte, mas ela

também é artista, hoje em dia ela não produz mais. Ela ficou bem envolvida

com a parte de teoria. Todos nós passamos de alguma forma pela Piti. O

Matheus [Rocha Pitta] foi assistente da Rosângela, a Marilá [Dardot] foi

assistente da Rosângela. Eu não cheguei a ser porque ela morava no Rio. E

ela é muito amiga da Piti, a Piti escreveu vários textos sobre o trabalho dela,

inclusive tem um texto sobre a Bibliotheca e outros.

Ela [Rosângela] é uma pessoa com quem eu tive um contato bem estreito. E

ela é uma pessoa muito generosa, a Rivane também é. Quando o Adriano saiu,

ela [Rosângela] que fez a última visita com os artistas, porque tinham visitas

mensais, a ideia era que tivesse duas visitas com cada pessoa do júri no ano.

Na segunda entrevista do Adriano ele não estava mais no museu e quem fez

foi a Rosângela. E a Rosângela é uma pessoa muito perspicaz, muito

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inteligente. E esse lado reflexivo que ela tem como artista. O trabalho dela é

muito sobre a fotografia, ela foi levando isso a um patamar. O trabalho tem uma

reflexão muito potente sobre a natureza da fotografia, da imagem, como é isso

no contexto contemporâneo. Ela é uma artista que fez doutorado, na USP.

Então ela é uma artista que tem um interesse pela teoria que me concerne, eu

estou fazendo doutorado agora.

O que é interessante é pensar que a gente ainda é um ser em formação. Eu

não tenho o mínimo interesse que o meu trabalho se consolide. “Esse trabalho

é isso!”. Isso foi uma coisa muito deliberada pra mim: eu nunca quis que meu

trabalho fosse identificado com uma forma específica. Se você olhar meus

trabalhos e começar a perceber eles por outro tipo de aproximação que não é

só no reconhecimento imediato da forma... Claro que você vê e “esse trabalho

podia ser da Lais” e tal. Mas não é o aspecto formal que cria o reconhecimento,

não tem muito jeito de reconhecer o trabalho prontamente.

Mas tem questões recorrentes. Eu separei algumas que me interessam

particularmente. A primeira é sobre como o trabalho aborda questões

relativas à modernidade e ao modernismo. Talvez, pelo menos desde os

anos 80 pra cá, muita gente tem se interessado por isso, rediscutir, rever

falhas, mas talvez hoje, eu sinto que as vezes esses termos são usados

de um jeito um pouco indiferenciado. E a gente sabe que são diferentes,

como foi no século XIX, no século XX, no Brasil, nos Estados Unidos...

Tinha uma menina italiana que fazia mestrado na Federal que era de uma

cidade, não era uma cidade grande, era menor e onde ela estudava, eles

consideram arte moderna a partir do Renascimento, um pouco posterior, talvez.

Eles consideram que quando a pintura passa a ser feita em tela, já é arte

moderna. Porque ela já tem a ideia de circulação do objeto de arte. Ali já está

toda a origem do que vai acontecer depois. Bom, é um ponto de vista.

E mesmo os historiadores, o que é o mundo moderno? Onde ele começa?

Porque é um conjunto de fenômenos, é igual o quadro psiquiátrico. Não tem

um exame que fala “fulano é isso, aquilo”, é um conjunto de coisas que

acontecem ao mesmo tempo. Acho que é isso que acontece com a ideia de

moderno.

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O modernismo acho que é um pouco diferente porque ele é mais enquadrado,

especificamente. Tinham os manifestos, muitas vezes os próprios artistas se

autodeclaravam...

Acho que o mais ambíguo é essa coisa do moderno. Eu costumo pensar o

moderno um pouco da Revolução Francesa pra frente, eu vou um pouco pela

linha do Argan. Como história, eu parto dessa consideração, com o surgimento

dos museus, que é um pouco antes, na verdade.

Mas você falou de sintoma, acho bom você usar esse termo. Sem dúvida

boa parte dos seus trabalhos tem discutido esse período, e as

ressonâncias disso na vida de hoje. Alguns trabalhos trazem a tona

questões que estavam latentes, mas que a história oficial não tenha

discutido tanto.

Como o que?

O trabalho sobre a Gameleira, por exemplo. Claro que tem uma série de

pessoas que estão pensando fissuras, que as construções do Niemeyer

tiveram, por exemplo, e são questões que ajudam a gente a tornar a

compreensão desse período mais complexa. E de como isso ainda

repercute na gente hoje.

Acho que tem duas coisas aí. Tem o trabalho da Gameleira, Projeto Gameleira

1971, que é uma coisa muito específica e muito precisa na minha produção. Se

você pensar no corpo dos meus trabalhos como um todo, pensando outros

trabalhos, por exemplo Mitos de origem, vários outros. São mais genéricos,

eles são menos ligados a fatos específicos históricos, como o Projeto da

Gameleira. Eu acho que os outros trabalhos estão ligados a um tipo de

pensamento, racionalidade, ou ethos, que são próprios desse mundo, talvez

moderno ocidental. Não sei se ocidental é uma palavra boa. Estão dentro

dessa chave dessa racionalidade.

O meu trabalho é muito sobre a cultura, eu acho. As formas de construir e

também de aprisionar o pensamento. É muito sobre colocar uma lupa sobre as

convenções, de algumas convenções que a gente naturaliza, mas que não são

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coisas naturais. Tem uma série de trabalhos com mapas, representações

geográficas, globo, coordenadas...

Tem um trabalho em que eu uso o Almanaque Abril, que é um jeito de criar

um...

Uma classificação do mundo?

Não uma classificação, um resumo de tudo que aconteceu no mundo desde a

pré história até hoje. O Almanaque Abril é muito louco, é a história do mundo

em cinco segundos. E eu trabalho com essas formas de representação, de

como o mundo é representado e com os mecanismos que a gente usa pra

medir o tempo, pra esquadrinhar o espaço.

Então dentro dessa ideia, e claro que isso implica de certa forma a construção

de uma forma ou de um conjunto de coisas que participam desse pensamento

moderno do mundo. Eu trabalho com a ampulheta, a ampulheta é uma forma

antiga, mas eu crio uma transformação que o tempo está sempre no devir, não

é que está estrangulada, a ampulheta, é que tem um ímã. Quer dizer, é o

tempo do futuro, uma antigravidade. É uma imagem metafórica também.

Chama O tempo corre pro norte, então o título do trabalho aponta também pra

essa hegemonia...

Do norte.

Claro. Porque eu estou falando do norte magnético, mas também do norte. É

uma coisa ambígua esse título. Que pode ser tanto essa ideia do correr do

tempo, esse tempo que vai e não volta mais, o tempo linear. Tem uma coisa

complexa. As noções de construções do tempo, é uma questão recorrente no

meu trabalho.

Mas quando eu faço um trabalho feito o Gameleira, que eu fiz vários trabalhos

nesses últimos tempos que estão em torno dessa ideia da ruína, que não é só

a ruína do moderno, porque começou com o livro Desmanches, que tem a ver

com a minha reflexão sobre o tempo e aí aos poucos foi entrando algum

interesse ligado a dimensão da arquitetura. Me interessam também as

convenções e os símbolos. Então, pra mim, a questão Niemeyer, ele é uma

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espécie de generalidade no trabalho. Ele mesmo é um tipo de representação

de um gênero de coisa, que é a ideia de um arquiteto oficial, um arquiteto

demiurgo, sabe, aquela ideia do grande arquiteto. Então quando eu fiz esse

trabalho tinham algumas razões: uma que desde a época da bolsa Pampulha

que eu queria fazer um trabalho sobre esse acidente. Minha questão era muito

mais relacionada ao apagamento dessa história no tempo do que precisamente

o modernismo em si. Mas claro, que a questão do moderno, como tem a ver

com o prédio do Niemeyer, como tem aquela coisa do concreto armado, das

vigas, claro que eu evoco isso como uma camada. Mas o ponto de partida

desse trabalho é muito mais como criar um lugar de memória pra esse evento

no espectador. Porque como era uma exposição efêmera, eu queria criar uma

exposição que tivesse essa potência de inscrever essa memória

corporalmente. Então por isso que ela começa muito física e ela vai ficando

discursiva. Mas também não é uma discursividade maçante.

Porque aí tem essa questão na arquitetura e na arte, o moderno e o

modernismo...

São concepções diferentes.

E não dá pra equivaler. Eu estou lendo agora aquele novo do Hal Foster, O

complexo arte arquitetura, é interessante. Então assim, o Niemeyer é um tipo

de artista que eles dão até um nome pra isso, eu fiquei muito triste com esse

nome porque é muito perigoso que é o de herói cultural. É uma barbaridade

esse nome, mas ele existe.

Mas claro que essa crítica tem. A figura do Niemeyer, como essa figura do

século XX... Ele é arquiteto desde a época da regulamentação da profissão de

arquiteto no Brasil, porque quem regulamentou a profissão de arquiteto foi

Getúlio Vargas. E ele trabalhou na construção do prédio do Gustavo

Capanema, que é onde é a Funarte hoje. Até agora, que ele morreu outro dia,

ele viveu todo esse período. É um legado absurdo. E a arquitetura tem uma

diferença em relação às artes plásticas, visuais, enfim. Muitos dos projetos do

Niemeyer ou são museus, ou é um prédio ligado ao governo de alguma

maneira. Então ele tem essa força do estado.

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É uma arquitetura ligada ao poder estatal principalmente.

E óbvio que essa questão, que é uma questão moderna, me interessa. Porque

essa questão do Estado-nação, que traz implicadas figuras desse tipo, como é

o caso do Niemeyer, claro que isso entra no trabalho. Mas ele também entra

como uma espécie de generalidade. O difícil é falar dessa generalidade sendo

que ele é uma figura tão autoral. Algumas pessoas pensaram como uma

espécie de ataque pessoal, mas não era isso. Primeiro que ele parte de uma

ideia de um apagamento da história, que era sempre o que me causava

espanto. E eu perguntei pra muita gente, e muita gente que nunca tinha ouvido

falar disso. E eu não conseguia entender que tipo de mecanismo cria essa

invisibilidade. Como que um acidente que foi ligado ao nome de uma pessoa

que era tão importante na constituição simbólica do país, nos últimos anos

talvez um pouco menos, mas não tem como... A sede do poder no Brasil é uma

cidade construída por ele e pelo Lucio Costa, começada, porque depois a

cidade vai se modificando. Mas como isso era um evento tão absurdamente

esquecido.

Isso, por exemplo, eu acho que tem uma conexão muito forte com o tipo de

pergunta que a Rosângela se faz. Talvez esse trabalho é onde tem um ponto

de contato mais evidente com ela, mas com outros também. Tem uma

dimensão do arquivo, mas a exposição não é uma exposição arquivista.

Isso é um dado. Os trabalhos não são de colecionismo.

Mas isso pra mim era já um ponto de partida. Eu não queria isso.

Não só nessa exposição, mas em vários outros trabalhos que poderiam

se resolver como arquivo, como mostra de documento, de coleção, mas

não é uma prática.

No fim, eu acho que eu sou uma artista mais pra síntese. A Rosângela, por

exemplo, ela tem uma eleição muito precisa quando ela trabalha com arquivo.

O jeito como ela trabalha com arquivo é sintético. Agora, mostrar um monte de

documento, com um monte de gente falando, não sei o que, você olha pra

mesa e vira um monte de desenho. Então não tem a eficácia. Eu ainda acredito

que existem algumas coisas que são importantes dentro de toda essa coisa da

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diversidade de trabalhos e de poéticas, de discursos, de concepções, mas pra

mim, pra minha forma de produção, a minha ideia é criar um tipo de síntese

que não seria possível de outro jeito. Por exemplo, a escrita te permite

vizinhanças e relações e saltos que é muito difícil reproduzir como um trabalho

de artes visuais. Você pode trabalhar isso e criar isso de outra forma. Mas é

diferente, você não tem o peso da matéria. E nas artes visuais, por mais que

você possa ter a desmaterialização da obra de arte, por mais que possa ter

virado um conceito, ou tudo isso, ou nada disso, eu acho que o interessante é

poder construir alguma coisa que tenha um aspecto que cria uma espécie de

atração. E que permita que aquilo vá se desdobrando em pensamentos, em

ação. É uma espécie de esforço de condensação. Condensar o máximo de

significados possíveis no mínimo de elementos possíveis. Não é minimalismo,

não é “menos é mais”. O máximo com o mínimo de elementos mesmo. Por

exemplo, o Pódio pra ninguém, que acho que é importante falar dele já que a

gente está falando dessa ideia do modernismo.

No caso da Gameleira é muito evidente, mas eu fico pensando dentro dessa

ideia de generalidade. Quando eu mostrei o Pódio, em Brasília, na exposição

da Caixa Cultural, a Júlia [Rebouças] que era curadora levou uma pessoa que

participou de uma banca, eu esqueci o nome, sei que ele é engenheiro, mais

velho, chegou até a trabalhar na época da construção de Brasília, e ela falou

que quando ele viu o Pódio ele falou “esse trabalho é sobre Brasília”.

Tem um procedimento no Pódio e que é recorrente, nisso dos trabalhos

serem diferentes, mas naquilo que eles têm em comum, que é uma

espécie de desfazimento. Muitos trabalhos acontecem não por uma

adição, mas quando a forma se desfaz, o Moderno Atlas Geográfico é o

mapa apagado ou mesmo a Coluna infinita.

Vários. O Compensação dos erros, Teoria das bordas, Memorial do

esquecimento. O apagamento está no meu trabalho quase inteiro. A

dissolução.

Às vezes aparece claramente como apagamento não só simbólico, mas

físico, mas no caso do Teoria das bordas talvez dissolução seja uma

palavra mais adequada.

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É que ele não dissolve, ele mistura mesmo. E como é grão, um material

granular, é uma mistura que é ótica também. Os pontos pretos continuam

pretos e os pontos brancos continuam brancos. Mas eles adquirem uma

convivência de campo que cria o cinza.

E eles nem são absolutamente pretos e absolutamente brancos.

Não são. É um branco de pedra, um preto de pedra, uma areia de pedra. O que

resta da trituração da pedra. Então ela não tem esse branco branco. Talvez na

neve ou o branco sintético, feito, porque um branco puro, nem o Quadrado

branco sobre fundo branco do Malevich é mais. Ele é meio amarelinho já, o que

é lindo. É aquela coisa que a pureza é um mito, esse absoluto é um mito. Eu

acho que dentro dessa ideia genérica de modernismo, é um pouco um jeito de

criar uma espécie de corrosão da ideia de absoluto. Ou de íntegro.

Tem um trabalho que está no MAC agora, que é o Dicionário do impossível, ele

fala muito de todas essas coisas. É muito difícil de ler também. E como aquela

edição é de um colecionador, ela está começando a se desfazer também, o

próprio texto está começando a ser corroído pelo tempo.

Esse dado da impossibilidade também é um dado importante. No

Compensação de erros é bem claro, esse corpo que quer acompanhar a

máquina e nunca consegue, mas tem uma impossibilidade que aparece

em alguns dos trabalhos em que você usa os nomes das pessoas que me

deixou intrigado. Porque ali tem uma tensão grande entre querer lembrar,

querer guardar ou evidenciar o nome da pessoa comum, o passante, ou,

no caso do Em memória ao silêncio do arquiteto, tinha uma vontade de

mostrar pessoas que estavam simbólica e fisicamente soterradas na

arquitetura. Mas os trabalhos com nomes também sempre anunciam uma

impossibilidade. É tensionado. Querer guardar todo mundo e acabar

esquecendo todo mundo, escrever os nomes de todas as pessoas em

pedras e acabar que eles se perdem.

Tem uma coisa de serem sujeitos anônimos. Os memoriais, os monumentos

eles têm nomes de pessoas que estão associadas a um evento, pessoas que

morreram num desastre, ou que foram pra guerra e não voltaram, não são

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nomes de heróis propriamente ditos ou de figuras que a gente distingue e

reconhece e por isso você pode lembrar. Eu acho até que o Em memória ao

silêncio do arquiteto ele funciona mais como um memorial bem tradicional. Tem

lá todos os nomes escritos em ordem alfabética, mas a impossibilidade de você

se lembrar de um ou de outro nome, é a mesma do Memorial do esquecimento.

Não é só porque ficou branco que você não vai lembrar, você não vai lembrar

porque aquele nome vai ter que te dizer alguma coisa, porque ele no fim acaba

entrando como uma espécie de somatória. Cada nome ali compõe um corpo,

você vai lembrar desse corpo e não de cada individualidade que está ali

representada, acumulada, no caso do Memorial do esquecimento. Mas que

aquela individualidade pessoal, faz menos diferença do que o montante. É um

pouco a ideia das pinturas de datas do On Kawara. É esse acúmulo dos dias.

Não é um quadrinho da data, é sobre um corpo. É sobre dar corpo e dar uma

espécie de volume, paradoxalmente, porque o nome é uma coisa muito plana,

se você não tem nada que te associe aquele nome. José da Silva, Maria da

Conceição... Mas por que que eu lembro desses nomes? Porque eles também

dizem de uma generalidade.

Agora não tem mais, mas quando eu era nova tinha lista de telefone e tinham

páginas e páginas com Maria, com José, com da Silva. E eles dizem dessa

figura. O anônimo é uma figura. E essa ideia de anônimo é uma ideia moderna.

Porque ela só é possível com a ideia de multidão e porque tem a ideia de

cidade moderna. Onde você tem um grupo de pessoas que estão na rua, você

transita por lugares nos quais você já não tem familiaridade com aquelas

pessoas, tem um texto do Benjamin que fala disso, está naquele Charles

Baudelaire – Um lírico no auge do capitalismo. Ele fala que quando teve a

haussmanização de Paris e depois teve uma mudança ligada aos correios, ou

coisa parecida, que as casas passaram a ser identificadas por números e que

isso causou uma comoção, as pessoas ficaram completamente indignadas.

Como assim que elas iam ser distinguidas por um número? Pra elas era o

cúmulo da despersonalização. Aí tem aquela coisa do Edgar Allan Poe, de um

homem na multidão, todo rosto pode ser o rosto de um criminoso...

Então eu acho que o mundo moderno ele é esse mundo anônimo, da multidão

também. Do Estado por um lado, desse poder que também é um poder

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despersonalizado, num certo sentido. Apesar de você ter tido figuras de

ditadores, presidentes, mas em tese o cargo vem antes do nome, existe um

cargo: presidente. Ele é um lugar pelo qual passam pessoas. É muito diferente

do que é a ideia de um rei, por exemplo, que tem uma continuação, tem um

ideia de sucessão óbvia. Então essa ideia do anônimo é uma ideia muito ligada

a ideia da modernidade. Meu trabalho está muito ligado a essas questões, da

construção do pensamento, coisas que são muito mais genéricas e muito mais

abstratas em relações ao moderno. Claro que o Niemeyer é uma relação muito

direta com um modernismo específico e muito localizado, recortado no tempo e

no espaço.

Muito icônico.

É mais particular. Essa dimensão do pensamento do mundo moderno, isso

está espalhado no meu trabalho inteiro.

E não é só uma relação com o modernismo no século XX, que tem sido

uma crítica recorrente ultimamente.

Tem uma questão que vários trabalhos desde o começo têm colocado de

algum jeito que é uma dúvida ou questionamento sobre a estetização da

ruína, do desastre e em última instância, talvez, da precariedade. Mas não

só em trabalhos recentes, como essa série de fotos que chama Estado

transitório, mas, por exemplo, naquele trabalho O auditório.

Na Biblioteca [para Dibutade]...

O Desmanches e, evidentemente, o Ensaio de orquestra, que você fez o

ano passado.

Mas você acha que eles são o que?

Acho que é um problema que os trabalhos têm articulado.

Uma crítica à ruína? À destruição?

No Desmanches uma crítica direta disso, em alguns momentos eu tenho a

impressão de que, no Auditório, por exemplo, o trabalho antes de tudo se

questiona de estar fotografando aquele espaço em ruína, nessa inversão

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dos títulos. [O auditório é um díptico em que a fotografia do lugar

palestrante se chama O público e a fotografia do lugar público se chama

O palestrante]

Tem três trabalhos que acho que são complementares: O auditório, A biblioteca

[para Dibutade] e o número 3 dessa série [Estado transitório], que é um quadro

negro. Eles foram todos feitos no mesmo espaço. Então eles dizem todos de

um lugar que alinhava o poder e o saber, a biblioteca, o auditório, a sala de

aula. Eu usei ela em dois trabalhos, ela participa dessa série, mas ela também

é o primeiro trabalho que participa do Estados transitivos, que é aquele que

estava no final da exposição da Gameleira, do lado da foto usada como

referência pra instalação. Aquela série tem três trabalhos e são todos em torno

de coisas que se relacionaram à Gameleira ou de coisas que se relacionaram à

ela, e às pessoas. Tem a primeira, que é a única que é colorida, que é a do

quadro negro, tem aquela que estava lá e essa aí, do cartaz.

Essa questão da ruína, da destruição, que está ligada a construção e a

desconstrução, é uma coisa muito difícil de você se decidir. Meu trabalho não é

propriamente uma apologia da ruína. Nem um elogio, nem nada disso. Ele é

mais uma constatação. Na minha exposição na [Galeria] Jaqueline [Martins],

acho que vou entrar muito nesse universo, da coisa da destruição. Como

conceber essa ideia de destruição?

Você tem textos como O caráter destrutivo, do Benjamin, A casa do homem

ruiu, da Lina, que eles veem nessa condição de ruína e da destruição talvez

uma possibilidade, uma potência, onde podem surgir outras coisas, abrir

caminho de outro tipo de vida. No caso eles estão falando de um tipo de vida

burguesa que estava sedimentado na Europa até aquele momento da guerra, o

interior burguês que o Benjamin fala. O texto do Benjamin é talvez anterior ao

fim da Guerra e o da Lina é de 1947, depois da guerra.

Mas hoje, vamos pensar no nosso contexto: a gente não está na Europa, a

gente não passou por essas guerras no nosso território, a gente não constituiu

uma história – claro que sim, mas também não. Se a gente pensar na nossa

história da arte, por exemplo, tirando Walter Zanini, ninguém se dedicou a fazer

um estudo sobre a história da arte brasileira, aquele “estudão”. Será por que?

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Será que tem que fazer mesmo? Não sei. Será que talvez isso não seja parte

de uma característica nossa? Será que isso é um sintoma de uma forma de

lidar com o tempo e com os acontecimentos própria nossa? Será que a gente é

um ser só pro acontecimento? Mesmo o projeto da Gameleira, como ele tem

uma dimensão que está ligada a uma questão política e social muito clara,

acho que sim, era necessário escrever a história nesse sentido.

Aí as pessoas ficam bravas que eles chamam a gente de não ocidentais.

Talvez isso não seja ruim.

(risos)

Eu acho que essa ideia da ruína pra mim, eu tento trazer uma ambiguidade que

essa noção tem. Eu não consigo dizer, como a Lina, que talvez toda essa

destruição tenha sido uma chance de começar um novo tipo de homem, de

humanidade, talvez um pouco mais despretensiosa, menos autoritária, menos

carregada. Eu não consigo ver isso, do meu ponto de vista. Quando eu penso

no texto O caráter destrutivo do Benjamin, eu acho que se a gente pegar no

nosso contexto, esse sentido da destruição, porque ruína quase não há, aqui

ela se dá de outro jeito, então é uma construção que sempre está em estado

intermediário.

Aquela frase de que aqui “tudo parece construção no entanto já é ruína”.

Essa [a foto da série Estados transitório] é uma construção, no entanto, a gente

nunca sabe se elas continuam ou não.

E elas demoram muito tempo.

Elas às vezes demoram muito, elas ficam inacabadas. E tem outras coisas. A

gente não tem muitas construções antigas no Brasil, tem algumas, uma igreja

ou outra, uma cidade... Essa rua aqui do lado, eles vão demolir quase todas as

casas. Vai virar um monte de prédio. Então o que isso representa? Essa

destruição do espaço urbano, que eu tenho observado. Eu cheguei a ver um

tempo em que lugares que ficaram muito tempo sem ter nada, de repente

foram completamente ocupados e agora eu estou vendo espaços que existem

há muito tempo, serem demolidos para dar lugar a outras coisas. Eu não

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consigo imaginar um destino muito feliz e muito esperançoso. Esse tipo de

ruína que esse ideia de demolir e construir tem, não é uma abertura de uma

possibilidade. Na guerra a destruição é sempre causada pelo oponente, que vai

escolher, claro, coisas emblemáticas pra bombardear. Você não pode saber o

que vai acontecer, não existia um plano, ninguém queria que aquilo fosse

destruído. Agora, aqui, como a destruição é uma coisa meio programada, sabe-

se o que vai destruir e pra que. Então não há esse caminho. Esse caráter

destrutivo, aqui, ele é destrutivo do ponto de vista social, econômico, do ponto

de vista de bem estar da cidade. Eles vão construir nessa rua inteira, você

acha mesmo que todas essas pessoas vão usar só o metrô? Vai ser um inferno

de carro, não tem espaço pra isso. São ruas estreitas. Parece que vai ter

prédio que vai ter duzentos apartamentos. Esses prédios não têm preços

populares. Vamos supor que fosse barato, porque hoje é tudo um milhão,

vamos supor que fosse 500, 600 mil reais um apartamento, também não é um

preço popular. Quem pode pagar isso? Quem tem isso guardado? Você vai

financiar, vai ficar pagando até você ter noventa anos...

Então eu não consigo ser tão otimista. Eu estou pensando na potência desses

tempos e desses espaços dentro de um tempo e de um espaço específicos que

é o meu, o nosso.

Tem uma entrevista naquele livro da Bolsa Pampulha, são todos os

artistas que participaram e todos os curadores, críticos que organizaram.

E você lança uma dúvida...

Nem lembro!

(risos)

Mas você faz essa pergunta e ninguém te respondeu muito. E eu queria te

devolver essa dúvida, algum tempo depois.

Muito tempo depois. Dez anos.

Você tinha perguntado o que era o papel social do artista. Era uma

conversa sobre a experiência da bolsa e você comentou que acreditava

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que aquele grupo de artistas reunidos tinha possibilidade de causar

pequenas transformações.

Eu perguntei isso? Não acredito. Eu não sei. Eu não sei se acredito nisso mais.

Desse jeito. Eu de fato ainda tenho alguma crença, hoje eu estava falando

nisso com um amigo do Texas que estava aqui, sobre essa situação. Eu

participei de uma mesa no Videobrasil com o Moacyr [dos Anjos] e mais dois

outros artistas, um deles era chinês e o outro não lembro. E a Gabriela Salgado

comentou sobre essa coisa de grandes artistas, artistas importantes estarem

indo montar seus ateliês na China para poder aproveitar essa situação de mão-

de-obra barata, reproduzindo, portanto, um tipo de comportamento das grandes

corporações, das multinacionais e o que seja. Eu acho realmente essa uma

coisa muito complicada, porque eu acho que a arte, pelo menos o tipo de arte

que me interessa mais, e que é um marco longo dentro da história, tem uma

espécie de injunção com as formas de produção simbólica, tem uma

peculiaridade. Me dá um pouco de espanto o artista fazer uma coisa dessas.

Não que eu ache que o artista seja um cara bonzinho, politicamente correto,

não é isso não. Mas é uma via que dá pra ser um pouco diferente disso. Tudo

tem uma escala, um lugar.

Mas eu queria te ler um trecho que acho que é bom. Eu estava escrevendo um

texto sobre as lajes do Matheus [Rocha Pitta], porque eu acho que elas são

muito mal compreendidas. É uma citação de um texto do Hal Foster que chama

Este funeral é para o cadáver equivocado. Basicamente a ideia dele que a arte

contemporânea que vai mais interessar a ele, é um tipo de arte que considera,

bom, ele vai falar de um tipo de trabalho que é construído a partir de uma ideia

que ele vai chamar de seguir vivendo, living on. Traduziria por seguir vivendo?

Tem uma ideia de manutenção da vida, continuação.

Tem um coisa meio de empurrar com a barriga?

Um pouco, tem o sentido de fluxo, de não interromper um processo.

Ele vai falando da produção que é feita a partir do trauma, no caso da arte

contemporânea o trauma emblemático é a Segunda Guerra. Tem toda aquela

história de como narrar, como representar, como pensar o estatuto da arte

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quando o choque com a realidade é tremendo a ponto que você não... É uma

situação traumática. A experiência do trauma só pode ser remontada depois, o

trauma ele mesmo não consegue ser vivido. É uma experiência tão intensa...

Que pra ser elaborado ele precisa de uma espécie de retorno.

E ele vai falando desse tipo de arte e ele vai definir a partir da ideia de living on,

que ele divide em quatro categorias: o traumático, o espectral, o incongruente e

o não sincrônico. Ele fala assim “Como estas categorias tendem a cruzar-se, a

taxonomia é artificial, diversos exemplos que incluem filmes e literatura ficcional

não pretendem ser exaustivos. Não obstante, talvez começam a evocar esta

condição de vir depois” – um trabalho feito que vem depois do trauma, no caso.

“ainda quando as experiências que tenho em mente tratam frequentemente os

gêneros e os meios dados como coisa acabada e não fazem com eles pastiche

histórico.” Ele odeia pastiche histórico. “Ao contrário, os destinam a

transformações formais sempre quando as transformações também digam algo

a preocupações extrínsecas”. Eu acho que essa é uma saída interessante.

“Assim essas práticas indicam uma semi autonomia de gênero e meio, mas de

um modo reflexivo que se abre a questões sociais, um mundo fechado aberto

ao mundo[...] é assim que com frequência desmentem as oposições entre

intrínseco e extrínseco, dentro e fora, através de transformações formais que

encaram também o compromisso social. Esse tipo de trabalho reestabelece

uma dimensão mnemônica na arte contemporânea e resiste a onipresença do

design na cultura de hoje”. Eu acho que hoje eu acredito mais nisso.

Seu trabalho não vai mudar o mundo, ninguém acha isso. A realidade tem uma

dimensão que naquele momento a gente discutia muito, a efetividade, o que

poderia ser efetivo num trabalho de arte. Isso é uma questão que eu nem me

pergunto mais, às vezes acontece. Por exemplo, o Projeto da Gameleira, o

trabalho teve uma efetividade no mundo que não é o mundo da arte, mas que

me surpreendeu, pra falar a verdade eu não esperava. Eu recebia e-mail de

filho de sobrevivente, de pessoas que trabalharam com essas famílias, um

professor que fez uma tese de doutorado sobre isso, na tese dele ele está

pleiteando um lugar de memória pra esse evento, que não existe. Ele veio de

Belo Horizonte até aqui ver a exposição. Ele tomou um susto porque eu citava

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a tese dele no folder, faço um agradecimento à tese dele, a gente se

correspondeu um pouco. Me escreveu uma pessoa que fez a cobertura da TV,

chamava TV Vila Rica, na época. Mais de um filho de vítima me procurou e

ainda me procura até hoje. Médico de segurança do trabalho. Não acho que

mudou exatamente nada, mas acho que o fato de ter havido um trabalho que

lidou com essa memória, que criou um momento de memória pra esse evento,

mesmo que não tenha sido um memorial, não é uma coisa permanente. Mas

muitas dessas pessoas se sentiram efetivamente lembradas. Eu não esperava

isso, não esperava nem que elas fossem saber. Mas a exposição ganhou uma

repercussão que eu não esperava também que chegasse a tanto. E aí eu acho

que se eu tenho algum trabalho que criou algum tipo de contundência efetiva

no mundo social foi esse. Mas não foi porque eu achei que isso ia acontecer.

Aconteceu. Mas foi um acaso.

Junho de 2015