Entrevista com Lais Myrrha.pdf
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Entrevista com Lais Myrrha Leandro Muniz
Acho que seria legal começar falando da sua formação e das pessoas que
você tinha contato e que continuaram trabalhando, se você ainda vê
alguma interlocução entre os trabalhos...
Essa coisa de formação já é uma questão. O que é o período de formação de
um artista? A faculdade? O período que ele foi assistente de uma pessoa ou de
outra? Enfim. Mas, claro, que dentro desse período bem inicial quando eu
comecei a me envolver com arte, comecei a estudar arte em 1998, eu tinha
mais ou menos 23 anos, e eu já tinha feito algumas coisas: comecei um curso
de psicologia e abandonei, depois comecei um curso de comunicação social e
parei também e depois eu fui fazer artes plásticas e fiquei. Mas eu comecei
meio sem ter certeza se eu ia continuar de qualquer forma.
Do ponto de vista dos trabalhos, só dois ou três trabalhos que eu considero
dentro da minha produção, ainda um pouco ligados ao período em que eu
estava na universidade, mas eram mais do final. Tem que pensar uma coisa
que é engraçada, mas que faz muita diferença, mas na época em que eu
comecei a estudar artes plásticas não tinha nem e-mail direito. Tinha e-mail,
mas era precário, todo mundo tinha Hotmail, internet discada, tinha aquele
barulhinho... Então as informações eram bem mais lentas, por incrível que
pareça, porque não tem tanto tempo assim, tem menos de 20 anos. E
realmente acho que é uma diferença muito grande...
Belo Horizonte não é uma cidade que tem museus, tem museus, mas assim:
museu de arte sacra, museu de artes e ofícios, tem o museu mineiro... Mas não
tem um museu de arte. Tem o museu da Pampulha, mas ele não tem um
acervo permanente em exposição, a coleção dele foi formada de um jeito muito
aleatório, foi por meio de doações a maioria, não tinha um projeto curatorial
que desse um conceito, um formato, um contorno pra coleção, o que é
importante, no caso dos museus.
Por outro lado o Museu da Pampulha teve um papel muito importante na minha
formação em função da Bolsa Pampulha.
Foi a primeira edição, a que você participou.
Foi a primeira edição. E naquele momento, foi muito interessante no museu, já
fazia uns anos, começou a ter uma destinação do museu da Pampulha pra
trabalhos que pudessem lidar com a fisicalidade do museu. Não é que todos os
trabalhos que foram mostrados lá eram site-specifc. Não. Teve exposição da
Beatriz Milhazes, mesmo a da Rosângela Rennó não era tanto sobre a questão
do museu em si. Mas sempre montar uma exposição lá considerava isso. O
Adriano Pedrosa foi curador lá por um tempo e foi na época em que foi criada a
bolsa Pampulha. O Rodrigo Moura na época era assistente dele, e foi um
projeto que na época ele se envolveu, talvez tenha sido um pouco ideia dele a
coisa da bolsa...
Mas era um projeto que era muito caro ao Rodrigo, que acabou ficando no
lugar do Adriano quando ele saiu. Belo Horizonte não é uma cidade fácil...
Aquele momento foi muito produtivo porque realmente nosso grupo da bolsa
Pampulha teve uma conexão muito forte. Os artistas que participaram tiveram
uma troca muito efetiva entre eles. Claro que ali dentro um ou outro se
identificava mais, alguns com outros... Mas a gente fazia coisas juntos, desde
festa até outras coisas.
Eu fiquei muito amiga do Pedro Motta, por exemplo, a Sara [Ramo] ficou muito
próxima da Laura Belém... Tinham essas afinidades isoladas, mas no que me
concerne, eu, a Marilá [Dardot], a Sara, o Rodrigo Matheus, a gente se
configurou como um grupo de amigos e de interlocutores e a gente segue isso
até hoje, essa troca de experiência.
A gente vai fazer uma exposição esse ano sobre isso, lá no Pivô. E a gente foi
oferecer essa exposição pra elas e elas falaram “gente, que coisa louca, a
gente vai abrir uma exposição da Casa7”. E elas ficaram super animadas
porque tinha tudo a ver com o programa e foi completamente coincidência.
Pensando nesse acidental diálogo entre essa exposição que vocês vão
fazer e a exposição agora do Casa7, eu fiquei me perguntando, quando
estava vendo alguns trabalhos seus e estava pensando neles, se você
chegou a ter algum tipo de interlocução com a Rosângela [Rennó] e com
a Rivane [Neuenschwander].
As duas são de Belo Horizonte.
Com a Rosângela é mais evidente, talvez...
Você acha que é mais evidente? Não sou a entrevistadora, mas: por quê?
Achei curioso.
Acho que tem um tipo de postura do que é ser artista que é parecida. É o
extremo oposto do que foi a Casa7, por exemplo, do artista expressivo.
Acho que tem uma vontade de mudança, uma vontade de inserção, que,
de um jeito cifrado, aparece.
Talvez sim. Eu sou amiga da Rivane. Ela é uma artista que vem de uma
geração imediatamente anterior a minha, e é uma pessoa que era próxima. E
claro que era um tipo de trabalho que me interessava, a gente se encontrava e
conversa e tal.
Mas a Rosângela, mais especificamente, eu tive uma pesquisa mais intensa, já
trabalhei em montagem de exposição dela. Eu conheço ela porque uma pessoa
que foi muito importante pra mim, até hoje, foi a Piti, a Maria Angélica Melendi,
foi minha professora na Guignard. Ela trabalha com teoria da arte, mas ela
também é artista, hoje em dia ela não produz mais. Ela ficou bem envolvida
com a parte de teoria. Todos nós passamos de alguma forma pela Piti. O
Matheus [Rocha Pitta] foi assistente da Rosângela, a Marilá [Dardot] foi
assistente da Rosângela. Eu não cheguei a ser porque ela morava no Rio. E
ela é muito amiga da Piti, a Piti escreveu vários textos sobre o trabalho dela,
inclusive tem um texto sobre a Bibliotheca e outros.
Ela [Rosângela] é uma pessoa com quem eu tive um contato bem estreito. E
ela é uma pessoa muito generosa, a Rivane também é. Quando o Adriano saiu,
ela [Rosângela] que fez a última visita com os artistas, porque tinham visitas
mensais, a ideia era que tivesse duas visitas com cada pessoa do júri no ano.
Na segunda entrevista do Adriano ele não estava mais no museu e quem fez
foi a Rosângela. E a Rosângela é uma pessoa muito perspicaz, muito
inteligente. E esse lado reflexivo que ela tem como artista. O trabalho dela é
muito sobre a fotografia, ela foi levando isso a um patamar. O trabalho tem uma
reflexão muito potente sobre a natureza da fotografia, da imagem, como é isso
no contexto contemporâneo. Ela é uma artista que fez doutorado, na USP.
Então ela é uma artista que tem um interesse pela teoria que me concerne, eu
estou fazendo doutorado agora.
O que é interessante é pensar que a gente ainda é um ser em formação. Eu
não tenho o mínimo interesse que o meu trabalho se consolide. “Esse trabalho
é isso!”. Isso foi uma coisa muito deliberada pra mim: eu nunca quis que meu
trabalho fosse identificado com uma forma específica. Se você olhar meus
trabalhos e começar a perceber eles por outro tipo de aproximação que não é
só no reconhecimento imediato da forma... Claro que você vê e “esse trabalho
podia ser da Lais” e tal. Mas não é o aspecto formal que cria o reconhecimento,
não tem muito jeito de reconhecer o trabalho prontamente.
Mas tem questões recorrentes. Eu separei algumas que me interessam
particularmente. A primeira é sobre como o trabalho aborda questões
relativas à modernidade e ao modernismo. Talvez, pelo menos desde os
anos 80 pra cá, muita gente tem se interessado por isso, rediscutir, rever
falhas, mas talvez hoje, eu sinto que as vezes esses termos são usados
de um jeito um pouco indiferenciado. E a gente sabe que são diferentes,
como foi no século XIX, no século XX, no Brasil, nos Estados Unidos...
Tinha uma menina italiana que fazia mestrado na Federal que era de uma
cidade, não era uma cidade grande, era menor e onde ela estudava, eles
consideram arte moderna a partir do Renascimento, um pouco posterior, talvez.
Eles consideram que quando a pintura passa a ser feita em tela, já é arte
moderna. Porque ela já tem a ideia de circulação do objeto de arte. Ali já está
toda a origem do que vai acontecer depois. Bom, é um ponto de vista.
E mesmo os historiadores, o que é o mundo moderno? Onde ele começa?
Porque é um conjunto de fenômenos, é igual o quadro psiquiátrico. Não tem
um exame que fala “fulano é isso, aquilo”, é um conjunto de coisas que
acontecem ao mesmo tempo. Acho que é isso que acontece com a ideia de
moderno.
O modernismo acho que é um pouco diferente porque ele é mais enquadrado,
especificamente. Tinham os manifestos, muitas vezes os próprios artistas se
autodeclaravam...
Acho que o mais ambíguo é essa coisa do moderno. Eu costumo pensar o
moderno um pouco da Revolução Francesa pra frente, eu vou um pouco pela
linha do Argan. Como história, eu parto dessa consideração, com o surgimento
dos museus, que é um pouco antes, na verdade.
Mas você falou de sintoma, acho bom você usar esse termo. Sem dúvida
boa parte dos seus trabalhos tem discutido esse período, e as
ressonâncias disso na vida de hoje. Alguns trabalhos trazem a tona
questões que estavam latentes, mas que a história oficial não tenha
discutido tanto.
Como o que?
O trabalho sobre a Gameleira, por exemplo. Claro que tem uma série de
pessoas que estão pensando fissuras, que as construções do Niemeyer
tiveram, por exemplo, e são questões que ajudam a gente a tornar a
compreensão desse período mais complexa. E de como isso ainda
repercute na gente hoje.
Acho que tem duas coisas aí. Tem o trabalho da Gameleira, Projeto Gameleira
1971, que é uma coisa muito específica e muito precisa na minha produção. Se
você pensar no corpo dos meus trabalhos como um todo, pensando outros
trabalhos, por exemplo Mitos de origem, vários outros. São mais genéricos,
eles são menos ligados a fatos específicos históricos, como o Projeto da
Gameleira. Eu acho que os outros trabalhos estão ligados a um tipo de
pensamento, racionalidade, ou ethos, que são próprios desse mundo, talvez
moderno ocidental. Não sei se ocidental é uma palavra boa. Estão dentro
dessa chave dessa racionalidade.
O meu trabalho é muito sobre a cultura, eu acho. As formas de construir e
também de aprisionar o pensamento. É muito sobre colocar uma lupa sobre as
convenções, de algumas convenções que a gente naturaliza, mas que não são
coisas naturais. Tem uma série de trabalhos com mapas, representações
geográficas, globo, coordenadas...
Tem um trabalho em que eu uso o Almanaque Abril, que é um jeito de criar
um...
Uma classificação do mundo?
Não uma classificação, um resumo de tudo que aconteceu no mundo desde a
pré história até hoje. O Almanaque Abril é muito louco, é a história do mundo
em cinco segundos. E eu trabalho com essas formas de representação, de
como o mundo é representado e com os mecanismos que a gente usa pra
medir o tempo, pra esquadrinhar o espaço.
Então dentro dessa ideia, e claro que isso implica de certa forma a construção
de uma forma ou de um conjunto de coisas que participam desse pensamento
moderno do mundo. Eu trabalho com a ampulheta, a ampulheta é uma forma
antiga, mas eu crio uma transformação que o tempo está sempre no devir, não
é que está estrangulada, a ampulheta, é que tem um ímã. Quer dizer, é o
tempo do futuro, uma antigravidade. É uma imagem metafórica também.
Chama O tempo corre pro norte, então o título do trabalho aponta também pra
essa hegemonia...
Do norte.
Claro. Porque eu estou falando do norte magnético, mas também do norte. É
uma coisa ambígua esse título. Que pode ser tanto essa ideia do correr do
tempo, esse tempo que vai e não volta mais, o tempo linear. Tem uma coisa
complexa. As noções de construções do tempo, é uma questão recorrente no
meu trabalho.
Mas quando eu faço um trabalho feito o Gameleira, que eu fiz vários trabalhos
nesses últimos tempos que estão em torno dessa ideia da ruína, que não é só
a ruína do moderno, porque começou com o livro Desmanches, que tem a ver
com a minha reflexão sobre o tempo e aí aos poucos foi entrando algum
interesse ligado a dimensão da arquitetura. Me interessam também as
convenções e os símbolos. Então, pra mim, a questão Niemeyer, ele é uma
espécie de generalidade no trabalho. Ele mesmo é um tipo de representação
de um gênero de coisa, que é a ideia de um arquiteto oficial, um arquiteto
demiurgo, sabe, aquela ideia do grande arquiteto. Então quando eu fiz esse
trabalho tinham algumas razões: uma que desde a época da bolsa Pampulha
que eu queria fazer um trabalho sobre esse acidente. Minha questão era muito
mais relacionada ao apagamento dessa história no tempo do que precisamente
o modernismo em si. Mas claro, que a questão do moderno, como tem a ver
com o prédio do Niemeyer, como tem aquela coisa do concreto armado, das
vigas, claro que eu evoco isso como uma camada. Mas o ponto de partida
desse trabalho é muito mais como criar um lugar de memória pra esse evento
no espectador. Porque como era uma exposição efêmera, eu queria criar uma
exposição que tivesse essa potência de inscrever essa memória
corporalmente. Então por isso que ela começa muito física e ela vai ficando
discursiva. Mas também não é uma discursividade maçante.
Porque aí tem essa questão na arquitetura e na arte, o moderno e o
modernismo...
São concepções diferentes.
E não dá pra equivaler. Eu estou lendo agora aquele novo do Hal Foster, O
complexo arte arquitetura, é interessante. Então assim, o Niemeyer é um tipo
de artista que eles dão até um nome pra isso, eu fiquei muito triste com esse
nome porque é muito perigoso que é o de herói cultural. É uma barbaridade
esse nome, mas ele existe.
Mas claro que essa crítica tem. A figura do Niemeyer, como essa figura do
século XX... Ele é arquiteto desde a época da regulamentação da profissão de
arquiteto no Brasil, porque quem regulamentou a profissão de arquiteto foi
Getúlio Vargas. E ele trabalhou na construção do prédio do Gustavo
Capanema, que é onde é a Funarte hoje. Até agora, que ele morreu outro dia,
ele viveu todo esse período. É um legado absurdo. E a arquitetura tem uma
diferença em relação às artes plásticas, visuais, enfim. Muitos dos projetos do
Niemeyer ou são museus, ou é um prédio ligado ao governo de alguma
maneira. Então ele tem essa força do estado.
É uma arquitetura ligada ao poder estatal principalmente.
E óbvio que essa questão, que é uma questão moderna, me interessa. Porque
essa questão do Estado-nação, que traz implicadas figuras desse tipo, como é
o caso do Niemeyer, claro que isso entra no trabalho. Mas ele também entra
como uma espécie de generalidade. O difícil é falar dessa generalidade sendo
que ele é uma figura tão autoral. Algumas pessoas pensaram como uma
espécie de ataque pessoal, mas não era isso. Primeiro que ele parte de uma
ideia de um apagamento da história, que era sempre o que me causava
espanto. E eu perguntei pra muita gente, e muita gente que nunca tinha ouvido
falar disso. E eu não conseguia entender que tipo de mecanismo cria essa
invisibilidade. Como que um acidente que foi ligado ao nome de uma pessoa
que era tão importante na constituição simbólica do país, nos últimos anos
talvez um pouco menos, mas não tem como... A sede do poder no Brasil é uma
cidade construída por ele e pelo Lucio Costa, começada, porque depois a
cidade vai se modificando. Mas como isso era um evento tão absurdamente
esquecido.
Isso, por exemplo, eu acho que tem uma conexão muito forte com o tipo de
pergunta que a Rosângela se faz. Talvez esse trabalho é onde tem um ponto
de contato mais evidente com ela, mas com outros também. Tem uma
dimensão do arquivo, mas a exposição não é uma exposição arquivista.
Isso é um dado. Os trabalhos não são de colecionismo.
Mas isso pra mim era já um ponto de partida. Eu não queria isso.
Não só nessa exposição, mas em vários outros trabalhos que poderiam
se resolver como arquivo, como mostra de documento, de coleção, mas
não é uma prática.
No fim, eu acho que eu sou uma artista mais pra síntese. A Rosângela, por
exemplo, ela tem uma eleição muito precisa quando ela trabalha com arquivo.
O jeito como ela trabalha com arquivo é sintético. Agora, mostrar um monte de
documento, com um monte de gente falando, não sei o que, você olha pra
mesa e vira um monte de desenho. Então não tem a eficácia. Eu ainda acredito
que existem algumas coisas que são importantes dentro de toda essa coisa da
diversidade de trabalhos e de poéticas, de discursos, de concepções, mas pra
mim, pra minha forma de produção, a minha ideia é criar um tipo de síntese
que não seria possível de outro jeito. Por exemplo, a escrita te permite
vizinhanças e relações e saltos que é muito difícil reproduzir como um trabalho
de artes visuais. Você pode trabalhar isso e criar isso de outra forma. Mas é
diferente, você não tem o peso da matéria. E nas artes visuais, por mais que
você possa ter a desmaterialização da obra de arte, por mais que possa ter
virado um conceito, ou tudo isso, ou nada disso, eu acho que o interessante é
poder construir alguma coisa que tenha um aspecto que cria uma espécie de
atração. E que permita que aquilo vá se desdobrando em pensamentos, em
ação. É uma espécie de esforço de condensação. Condensar o máximo de
significados possíveis no mínimo de elementos possíveis. Não é minimalismo,
não é “menos é mais”. O máximo com o mínimo de elementos mesmo. Por
exemplo, o Pódio pra ninguém, que acho que é importante falar dele já que a
gente está falando dessa ideia do modernismo.
No caso da Gameleira é muito evidente, mas eu fico pensando dentro dessa
ideia de generalidade. Quando eu mostrei o Pódio, em Brasília, na exposição
da Caixa Cultural, a Júlia [Rebouças] que era curadora levou uma pessoa que
participou de uma banca, eu esqueci o nome, sei que ele é engenheiro, mais
velho, chegou até a trabalhar na época da construção de Brasília, e ela falou
que quando ele viu o Pódio ele falou “esse trabalho é sobre Brasília”.
Tem um procedimento no Pódio e que é recorrente, nisso dos trabalhos
serem diferentes, mas naquilo que eles têm em comum, que é uma
espécie de desfazimento. Muitos trabalhos acontecem não por uma
adição, mas quando a forma se desfaz, o Moderno Atlas Geográfico é o
mapa apagado ou mesmo a Coluna infinita.
Vários. O Compensação dos erros, Teoria das bordas, Memorial do
esquecimento. O apagamento está no meu trabalho quase inteiro. A
dissolução.
Às vezes aparece claramente como apagamento não só simbólico, mas
físico, mas no caso do Teoria das bordas talvez dissolução seja uma
palavra mais adequada.
É que ele não dissolve, ele mistura mesmo. E como é grão, um material
granular, é uma mistura que é ótica também. Os pontos pretos continuam
pretos e os pontos brancos continuam brancos. Mas eles adquirem uma
convivência de campo que cria o cinza.
E eles nem são absolutamente pretos e absolutamente brancos.
Não são. É um branco de pedra, um preto de pedra, uma areia de pedra. O que
resta da trituração da pedra. Então ela não tem esse branco branco. Talvez na
neve ou o branco sintético, feito, porque um branco puro, nem o Quadrado
branco sobre fundo branco do Malevich é mais. Ele é meio amarelinho já, o que
é lindo. É aquela coisa que a pureza é um mito, esse absoluto é um mito. Eu
acho que dentro dessa ideia genérica de modernismo, é um pouco um jeito de
criar uma espécie de corrosão da ideia de absoluto. Ou de íntegro.
Tem um trabalho que está no MAC agora, que é o Dicionário do impossível, ele
fala muito de todas essas coisas. É muito difícil de ler também. E como aquela
edição é de um colecionador, ela está começando a se desfazer também, o
próprio texto está começando a ser corroído pelo tempo.
Esse dado da impossibilidade também é um dado importante. No
Compensação de erros é bem claro, esse corpo que quer acompanhar a
máquina e nunca consegue, mas tem uma impossibilidade que aparece
em alguns dos trabalhos em que você usa os nomes das pessoas que me
deixou intrigado. Porque ali tem uma tensão grande entre querer lembrar,
querer guardar ou evidenciar o nome da pessoa comum, o passante, ou,
no caso do Em memória ao silêncio do arquiteto, tinha uma vontade de
mostrar pessoas que estavam simbólica e fisicamente soterradas na
arquitetura. Mas os trabalhos com nomes também sempre anunciam uma
impossibilidade. É tensionado. Querer guardar todo mundo e acabar
esquecendo todo mundo, escrever os nomes de todas as pessoas em
pedras e acabar que eles se perdem.
Tem uma coisa de serem sujeitos anônimos. Os memoriais, os monumentos
eles têm nomes de pessoas que estão associadas a um evento, pessoas que
morreram num desastre, ou que foram pra guerra e não voltaram, não são
nomes de heróis propriamente ditos ou de figuras que a gente distingue e
reconhece e por isso você pode lembrar. Eu acho até que o Em memória ao
silêncio do arquiteto ele funciona mais como um memorial bem tradicional. Tem
lá todos os nomes escritos em ordem alfabética, mas a impossibilidade de você
se lembrar de um ou de outro nome, é a mesma do Memorial do esquecimento.
Não é só porque ficou branco que você não vai lembrar, você não vai lembrar
porque aquele nome vai ter que te dizer alguma coisa, porque ele no fim acaba
entrando como uma espécie de somatória. Cada nome ali compõe um corpo,
você vai lembrar desse corpo e não de cada individualidade que está ali
representada, acumulada, no caso do Memorial do esquecimento. Mas que
aquela individualidade pessoal, faz menos diferença do que o montante. É um
pouco a ideia das pinturas de datas do On Kawara. É esse acúmulo dos dias.
Não é um quadrinho da data, é sobre um corpo. É sobre dar corpo e dar uma
espécie de volume, paradoxalmente, porque o nome é uma coisa muito plana,
se você não tem nada que te associe aquele nome. José da Silva, Maria da
Conceição... Mas por que que eu lembro desses nomes? Porque eles também
dizem de uma generalidade.
Agora não tem mais, mas quando eu era nova tinha lista de telefone e tinham
páginas e páginas com Maria, com José, com da Silva. E eles dizem dessa
figura. O anônimo é uma figura. E essa ideia de anônimo é uma ideia moderna.
Porque ela só é possível com a ideia de multidão e porque tem a ideia de
cidade moderna. Onde você tem um grupo de pessoas que estão na rua, você
transita por lugares nos quais você já não tem familiaridade com aquelas
pessoas, tem um texto do Benjamin que fala disso, está naquele Charles
Baudelaire – Um lírico no auge do capitalismo. Ele fala que quando teve a
haussmanização de Paris e depois teve uma mudança ligada aos correios, ou
coisa parecida, que as casas passaram a ser identificadas por números e que
isso causou uma comoção, as pessoas ficaram completamente indignadas.
Como assim que elas iam ser distinguidas por um número? Pra elas era o
cúmulo da despersonalização. Aí tem aquela coisa do Edgar Allan Poe, de um
homem na multidão, todo rosto pode ser o rosto de um criminoso...
Então eu acho que o mundo moderno ele é esse mundo anônimo, da multidão
também. Do Estado por um lado, desse poder que também é um poder
despersonalizado, num certo sentido. Apesar de você ter tido figuras de
ditadores, presidentes, mas em tese o cargo vem antes do nome, existe um
cargo: presidente. Ele é um lugar pelo qual passam pessoas. É muito diferente
do que é a ideia de um rei, por exemplo, que tem uma continuação, tem um
ideia de sucessão óbvia. Então essa ideia do anônimo é uma ideia muito ligada
a ideia da modernidade. Meu trabalho está muito ligado a essas questões, da
construção do pensamento, coisas que são muito mais genéricas e muito mais
abstratas em relações ao moderno. Claro que o Niemeyer é uma relação muito
direta com um modernismo específico e muito localizado, recortado no tempo e
no espaço.
Muito icônico.
É mais particular. Essa dimensão do pensamento do mundo moderno, isso
está espalhado no meu trabalho inteiro.
E não é só uma relação com o modernismo no século XX, que tem sido
uma crítica recorrente ultimamente.
Tem uma questão que vários trabalhos desde o começo têm colocado de
algum jeito que é uma dúvida ou questionamento sobre a estetização da
ruína, do desastre e em última instância, talvez, da precariedade. Mas não
só em trabalhos recentes, como essa série de fotos que chama Estado
transitório, mas, por exemplo, naquele trabalho O auditório.
Na Biblioteca [para Dibutade]...
O Desmanches e, evidentemente, o Ensaio de orquestra, que você fez o
ano passado.
Mas você acha que eles são o que?
Acho que é um problema que os trabalhos têm articulado.
Uma crítica à ruína? À destruição?
No Desmanches uma crítica direta disso, em alguns momentos eu tenho a
impressão de que, no Auditório, por exemplo, o trabalho antes de tudo se
questiona de estar fotografando aquele espaço em ruína, nessa inversão
dos títulos. [O auditório é um díptico em que a fotografia do lugar
palestrante se chama O público e a fotografia do lugar público se chama
O palestrante]
Tem três trabalhos que acho que são complementares: O auditório, A biblioteca
[para Dibutade] e o número 3 dessa série [Estado transitório], que é um quadro
negro. Eles foram todos feitos no mesmo espaço. Então eles dizem todos de
um lugar que alinhava o poder e o saber, a biblioteca, o auditório, a sala de
aula. Eu usei ela em dois trabalhos, ela participa dessa série, mas ela também
é o primeiro trabalho que participa do Estados transitivos, que é aquele que
estava no final da exposição da Gameleira, do lado da foto usada como
referência pra instalação. Aquela série tem três trabalhos e são todos em torno
de coisas que se relacionaram à Gameleira ou de coisas que se relacionaram à
ela, e às pessoas. Tem a primeira, que é a única que é colorida, que é a do
quadro negro, tem aquela que estava lá e essa aí, do cartaz.
Essa questão da ruína, da destruição, que está ligada a construção e a
desconstrução, é uma coisa muito difícil de você se decidir. Meu trabalho não é
propriamente uma apologia da ruína. Nem um elogio, nem nada disso. Ele é
mais uma constatação. Na minha exposição na [Galeria] Jaqueline [Martins],
acho que vou entrar muito nesse universo, da coisa da destruição. Como
conceber essa ideia de destruição?
Você tem textos como O caráter destrutivo, do Benjamin, A casa do homem
ruiu, da Lina, que eles veem nessa condição de ruína e da destruição talvez
uma possibilidade, uma potência, onde podem surgir outras coisas, abrir
caminho de outro tipo de vida. No caso eles estão falando de um tipo de vida
burguesa que estava sedimentado na Europa até aquele momento da guerra, o
interior burguês que o Benjamin fala. O texto do Benjamin é talvez anterior ao
fim da Guerra e o da Lina é de 1947, depois da guerra.
Mas hoje, vamos pensar no nosso contexto: a gente não está na Europa, a
gente não passou por essas guerras no nosso território, a gente não constituiu
uma história – claro que sim, mas também não. Se a gente pensar na nossa
história da arte, por exemplo, tirando Walter Zanini, ninguém se dedicou a fazer
um estudo sobre a história da arte brasileira, aquele “estudão”. Será por que?
Será que tem que fazer mesmo? Não sei. Será que talvez isso não seja parte
de uma característica nossa? Será que isso é um sintoma de uma forma de
lidar com o tempo e com os acontecimentos própria nossa? Será que a gente é
um ser só pro acontecimento? Mesmo o projeto da Gameleira, como ele tem
uma dimensão que está ligada a uma questão política e social muito clara,
acho que sim, era necessário escrever a história nesse sentido.
Aí as pessoas ficam bravas que eles chamam a gente de não ocidentais.
Talvez isso não seja ruim.
(risos)
Eu acho que essa ideia da ruína pra mim, eu tento trazer uma ambiguidade que
essa noção tem. Eu não consigo dizer, como a Lina, que talvez toda essa
destruição tenha sido uma chance de começar um novo tipo de homem, de
humanidade, talvez um pouco mais despretensiosa, menos autoritária, menos
carregada. Eu não consigo ver isso, do meu ponto de vista. Quando eu penso
no texto O caráter destrutivo do Benjamin, eu acho que se a gente pegar no
nosso contexto, esse sentido da destruição, porque ruína quase não há, aqui
ela se dá de outro jeito, então é uma construção que sempre está em estado
intermediário.
Aquela frase de que aqui “tudo parece construção no entanto já é ruína”.
Essa [a foto da série Estados transitório] é uma construção, no entanto, a gente
nunca sabe se elas continuam ou não.
E elas demoram muito tempo.
Elas às vezes demoram muito, elas ficam inacabadas. E tem outras coisas. A
gente não tem muitas construções antigas no Brasil, tem algumas, uma igreja
ou outra, uma cidade... Essa rua aqui do lado, eles vão demolir quase todas as
casas. Vai virar um monte de prédio. Então o que isso representa? Essa
destruição do espaço urbano, que eu tenho observado. Eu cheguei a ver um
tempo em que lugares que ficaram muito tempo sem ter nada, de repente
foram completamente ocupados e agora eu estou vendo espaços que existem
há muito tempo, serem demolidos para dar lugar a outras coisas. Eu não
consigo imaginar um destino muito feliz e muito esperançoso. Esse tipo de
ruína que esse ideia de demolir e construir tem, não é uma abertura de uma
possibilidade. Na guerra a destruição é sempre causada pelo oponente, que vai
escolher, claro, coisas emblemáticas pra bombardear. Você não pode saber o
que vai acontecer, não existia um plano, ninguém queria que aquilo fosse
destruído. Agora, aqui, como a destruição é uma coisa meio programada, sabe-
se o que vai destruir e pra que. Então não há esse caminho. Esse caráter
destrutivo, aqui, ele é destrutivo do ponto de vista social, econômico, do ponto
de vista de bem estar da cidade. Eles vão construir nessa rua inteira, você
acha mesmo que todas essas pessoas vão usar só o metrô? Vai ser um inferno
de carro, não tem espaço pra isso. São ruas estreitas. Parece que vai ter
prédio que vai ter duzentos apartamentos. Esses prédios não têm preços
populares. Vamos supor que fosse barato, porque hoje é tudo um milhão,
vamos supor que fosse 500, 600 mil reais um apartamento, também não é um
preço popular. Quem pode pagar isso? Quem tem isso guardado? Você vai
financiar, vai ficar pagando até você ter noventa anos...
Então eu não consigo ser tão otimista. Eu estou pensando na potência desses
tempos e desses espaços dentro de um tempo e de um espaço específicos que
é o meu, o nosso.
Tem uma entrevista naquele livro da Bolsa Pampulha, são todos os
artistas que participaram e todos os curadores, críticos que organizaram.
E você lança uma dúvida...
Nem lembro!
(risos)
Mas você faz essa pergunta e ninguém te respondeu muito. E eu queria te
devolver essa dúvida, algum tempo depois.
Muito tempo depois. Dez anos.
Você tinha perguntado o que era o papel social do artista. Era uma
conversa sobre a experiência da bolsa e você comentou que acreditava
que aquele grupo de artistas reunidos tinha possibilidade de causar
pequenas transformações.
Eu perguntei isso? Não acredito. Eu não sei. Eu não sei se acredito nisso mais.
Desse jeito. Eu de fato ainda tenho alguma crença, hoje eu estava falando
nisso com um amigo do Texas que estava aqui, sobre essa situação. Eu
participei de uma mesa no Videobrasil com o Moacyr [dos Anjos] e mais dois
outros artistas, um deles era chinês e o outro não lembro. E a Gabriela Salgado
comentou sobre essa coisa de grandes artistas, artistas importantes estarem
indo montar seus ateliês na China para poder aproveitar essa situação de mão-
de-obra barata, reproduzindo, portanto, um tipo de comportamento das grandes
corporações, das multinacionais e o que seja. Eu acho realmente essa uma
coisa muito complicada, porque eu acho que a arte, pelo menos o tipo de arte
que me interessa mais, e que é um marco longo dentro da história, tem uma
espécie de injunção com as formas de produção simbólica, tem uma
peculiaridade. Me dá um pouco de espanto o artista fazer uma coisa dessas.
Não que eu ache que o artista seja um cara bonzinho, politicamente correto,
não é isso não. Mas é uma via que dá pra ser um pouco diferente disso. Tudo
tem uma escala, um lugar.
Mas eu queria te ler um trecho que acho que é bom. Eu estava escrevendo um
texto sobre as lajes do Matheus [Rocha Pitta], porque eu acho que elas são
muito mal compreendidas. É uma citação de um texto do Hal Foster que chama
Este funeral é para o cadáver equivocado. Basicamente a ideia dele que a arte
contemporânea que vai mais interessar a ele, é um tipo de arte que considera,
bom, ele vai falar de um tipo de trabalho que é construído a partir de uma ideia
que ele vai chamar de seguir vivendo, living on. Traduziria por seguir vivendo?
Tem uma ideia de manutenção da vida, continuação.
Tem um coisa meio de empurrar com a barriga?
Um pouco, tem o sentido de fluxo, de não interromper um processo.
Ele vai falando da produção que é feita a partir do trauma, no caso da arte
contemporânea o trauma emblemático é a Segunda Guerra. Tem toda aquela
história de como narrar, como representar, como pensar o estatuto da arte
quando o choque com a realidade é tremendo a ponto que você não... É uma
situação traumática. A experiência do trauma só pode ser remontada depois, o
trauma ele mesmo não consegue ser vivido. É uma experiência tão intensa...
Que pra ser elaborado ele precisa de uma espécie de retorno.
E ele vai falando desse tipo de arte e ele vai definir a partir da ideia de living on,
que ele divide em quatro categorias: o traumático, o espectral, o incongruente e
o não sincrônico. Ele fala assim “Como estas categorias tendem a cruzar-se, a
taxonomia é artificial, diversos exemplos que incluem filmes e literatura ficcional
não pretendem ser exaustivos. Não obstante, talvez começam a evocar esta
condição de vir depois” – um trabalho feito que vem depois do trauma, no caso.
“ainda quando as experiências que tenho em mente tratam frequentemente os
gêneros e os meios dados como coisa acabada e não fazem com eles pastiche
histórico.” Ele odeia pastiche histórico. “Ao contrário, os destinam a
transformações formais sempre quando as transformações também digam algo
a preocupações extrínsecas”. Eu acho que essa é uma saída interessante.
“Assim essas práticas indicam uma semi autonomia de gênero e meio, mas de
um modo reflexivo que se abre a questões sociais, um mundo fechado aberto
ao mundo[...] é assim que com frequência desmentem as oposições entre
intrínseco e extrínseco, dentro e fora, através de transformações formais que
encaram também o compromisso social. Esse tipo de trabalho reestabelece
uma dimensão mnemônica na arte contemporânea e resiste a onipresença do
design na cultura de hoje”. Eu acho que hoje eu acredito mais nisso.
Seu trabalho não vai mudar o mundo, ninguém acha isso. A realidade tem uma
dimensão que naquele momento a gente discutia muito, a efetividade, o que
poderia ser efetivo num trabalho de arte. Isso é uma questão que eu nem me
pergunto mais, às vezes acontece. Por exemplo, o Projeto da Gameleira, o
trabalho teve uma efetividade no mundo que não é o mundo da arte, mas que
me surpreendeu, pra falar a verdade eu não esperava. Eu recebia e-mail de
filho de sobrevivente, de pessoas que trabalharam com essas famílias, um
professor que fez uma tese de doutorado sobre isso, na tese dele ele está
pleiteando um lugar de memória pra esse evento, que não existe. Ele veio de
Belo Horizonte até aqui ver a exposição. Ele tomou um susto porque eu citava
a tese dele no folder, faço um agradecimento à tese dele, a gente se
correspondeu um pouco. Me escreveu uma pessoa que fez a cobertura da TV,
chamava TV Vila Rica, na época. Mais de um filho de vítima me procurou e
ainda me procura até hoje. Médico de segurança do trabalho. Não acho que
mudou exatamente nada, mas acho que o fato de ter havido um trabalho que
lidou com essa memória, que criou um momento de memória pra esse evento,
mesmo que não tenha sido um memorial, não é uma coisa permanente. Mas
muitas dessas pessoas se sentiram efetivamente lembradas. Eu não esperava
isso, não esperava nem que elas fossem saber. Mas a exposição ganhou uma
repercussão que eu não esperava também que chegasse a tanto. E aí eu acho
que se eu tenho algum trabalho que criou algum tipo de contundência efetiva
no mundo social foi esse. Mas não foi porque eu achei que isso ia acontecer.
Aconteceu. Mas foi um acaso.
Junho de 2015