Entrevista com Mindlin

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Uma Vida entre Livros - entrevista com José Mindlin 1 “Uma Vida entre Livros” Bibliófilo quer dizer amante de livros. Bibliófilo quer dizer José Mindlin. A escolha do título “Uma Vida entre Livros” (Edusp/Companhia das Letras, 2001) não poderia ter sido me- lhor para o relato de próprio punho do bibliófilo brasileiro José Mindlin sobre sua relação com a leitura. Recém- eleito membro da Academia Brasileira de Letras, Mindlin, 91, é dono de uma das mais imponentes bibliotecas brasileiras, dotada de 38 mil títulos, grande parte deles raridades como a primeira edição de “Os Lusíadas” (Luís de Camões, 1572) e as primeiras edições autografadas de autores clássicos como Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio de Azevedo e tantos outros.Foi nesse ambiente de conhecimento, situado na casa em que Min- dlin vive desde 1948, no bairro paulistano do Brooklin, que o também jornalista, advogado, empresário e patri- arca recebeu o Ação & Participação para esta entrevista, concedida em agosto de 2006. Feliz entre pratelei- ras sem fim, ele conta como acumulou livros, histórias e a leitura de mais de cem títulos por ano ao longo de toda a vida. Ação & Participação – Como o senhor adquiriu o hábito de ler? José Mindlin – Eu tive a sorte de crescer num ambiente de interesse cultural, onde se lia muito. Nos primei- ros anos, minha mãe lia para mim, depois eu lia para a minha mãe. Ela me agüentou na leitura de Julio Verne com muita paciência, porque, além de gostar de ler, eu gostava de ler em voz alta. Eu acho que isso é uma coisa que falta nas escolas: professores que leiam em voz alta, que incentivem os alunos a ler em voz alta também e a discutir o que lêem. Esse programa de transformar São Paulo num Estado leitor adotou essa idéia, criando uma hora extracurricular, informal, de incentivo à leitura através do contato dos professores de escolas públicas com os alunos, virando colega dos alunos. De certa forma, eles lêem, os alunos lêem, eles dicutem as idéias, como uma espécie de segundo recreio, sem notas, absolutamente informal. Mas o grande problema, evidentemente, é encontrar professores que saibam conduzir um processo desses. Então tem de haver, em paralelo com a insti- tuição dessa medida, a formação de professores que, por força da degeneração do sistema escolar, ganham um absurdo de salário, têm de trabalhar em mais de uma escola para poder completar a sua renda. A maior parte não lê sob a alegação de que não tem tempo, mas isso é só uma razão parcial.Tempo a gente arranja quan- do quer ler. Eu li desde criança, mas aprendi a ler com quase sete anos. Um pouco tarde, especialmente para os concei- tos de hoje. Na época, seis anos era a média. Menos de seis era exceção. Eu aprendi a ler de seis para sete anos e desde então li a vida inteira, numa média de sete, oito livros por mês, dependendo evidentemente do volume. Um livro de 600 páginas teria levado a semana inteira. Eu lia uma média de cem, cento e poucos livros por ano. A&P – Antes de aprender a ler propriamente, o senhor já manuseava livros? Havia livros infantis dis- poníveis naquela época, livros ilustrados para crianças? JM – Sim. A Melhoramentos tinha uma coleção de livros ilustrados excelente. Não sei se você chegou a ver algum desses volumes. Eram livros pequenos, com uma porção de histórias e com ilustração. Mas houve um episódio engraçado: eu tinha uns cinco anos, peguei um livro na biblioteca e comecei a fazer de conta que es- tava lendo, murmurando assim, como se estivesse lendo em voz alta. Aí meu pai entrou na sala onde eu es- tava lendo, chegou perto e disse: “Olha, o livro está de cabeça para baixo”. Mas eu estava querendo dar a im- pressão de que já estava lendo. Depois, na geração em que eu era o pai, houve uma coisa interessante tam- bém. Nós tínhamos (na ocasião) três filhos: duas meninas e um menino, o caçula, uns dois anos de diferença entre cada um. E nós costumávamos, minha mulher e eu, sentar aqui, depois do jantar, nós dois e as duas me-

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Entrevista com José Mindlin, pensador e filósofo.

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Uma Vida entre Livros - entrevista com José Mindlin • 1

“Uma Vida entre Livros”

Bibliófilo quer dizer amante de livros. Bibliófilo quer dizer José Mindlin.

A escolha do título “Uma Vida entre Livros” (Edusp/Companhia das Letras, 2001) não poderia ter sido me-

lhor para o relato de próprio punho do bibliófilo brasileiro José Mindlin sobre sua relação com a leitura. Recém-

eleito membro da Academia Brasileira de Letras, Mindlin, 91, é dono de uma das mais imponentes bibliotecas

brasileiras, dotada de 38 mil títulos, grande parte deles raridades como a primeira edição de “Os Lusíadas” (Luís

de Camões, 1572) e as primeiras edições autografadas de autores clássicos como Machado de Assis, José de

Alencar, Aluísio de Azevedo e tantos outros. Foi nesse ambiente de conhecimento, situado na casa em que Min-

dlin vive desde 1948, no bairro paulistano do Brooklin, que o também jornalista, advogado, empresário e patri-

arca recebeu o Ação & Participação para esta entrevista, concedida em agosto de 2006. Feliz entre pratelei-

ras sem fim, ele conta como acumulou livros, histórias e a leitura de mais de cem títulos por ano ao longo de

toda a vida.

Ação & Participação – Como o senhor adquiriu o hábito de ler?

José Mindlin – Eu tive a sorte de crescer num ambiente de interesse cultural, onde se lia muito. Nos primei-

ros anos, minha mãe lia para mim, depois eu lia para a minha mãe. Ela me agüentou na leitura de Julio Verne

com muita paciência, porque, além de gostar de ler, eu gostava de ler em voz alta. Eu acho que isso é uma coisa

que falta nas escolas: professores que leiam em voz alta, que incentivem os alunos a ler em voz alta também e

a discutir o que lêem. Esse programa de transformar São Paulo num Estado leitor adotou essa idéia, criando uma

hora extracurricular, informal, de incentivo à leitura através do contato dos professores de escolas públicas com

os alunos, virando colega dos alunos. De certa forma, eles lêem, os alunos lêem, eles dicutem as idéias, como

uma espécie de segundo recreio, sem notas, absolutamente informal. Mas o grande problema, evidentemente, é

encontrar professores que saibam conduzir um processo desses. Então tem de haver, em paralelo com a insti-

tuição dessa medida, a formação de professores que, por força da degeneração do sistema escolar, ganham um

absurdo de salário, têm de trabalhar em mais de uma escola para poder completar a sua renda. A maior parte

não lê sob a alegação de que não tem tempo, mas isso é só uma razão parcial. Tempo a gente arranja quan-

do quer ler.

Eu li desde criança, mas aprendi a ler com quase sete anos. Um pouco tarde, especialmente para os concei-

tos de hoje. Na época, seis anos era a média. Menos de seis era exceção. Eu aprendi a ler de seis para sete anos

e desde então li a vida inteira, numa média de sete, oito livros por mês, dependendo evidentemente do volume.

Um livro de 600 páginas teria levado a semana inteira. Eu lia uma média de cem, cento e poucos livros por ano.

A&P – Antes de aprender a ler propriamente, o senhor já manuseava livros? Havia livros infantis dis-

poníveis naquela época, livros ilustrados para crianças?

JM – Sim. A Melhoramentos tinha uma coleção de livros ilustrados excelente. Não sei se você chegou a ver

algum desses volumes. Eram livros pequenos, com uma porção de histórias e com ilustração. Mas houve um

episódio engraçado: eu tinha uns cinco anos, peguei um livro na biblioteca e comecei a fazer de conta que es-

tava lendo, murmurando assim, como se estivesse lendo em voz alta. Aí meu pai entrou na sala onde eu es-

tava lendo, chegou perto e disse: “Olha, o livro está de cabeça para baixo”. Mas eu estava querendo dar a im-

pressão de que já estava lendo. Depois, na geração em que eu era o pai, houve uma coisa interessante tam-

bém. Nós tínhamos (na ocasião) três filhos: duas meninas e um menino, o caçula, uns dois anos de diferença

entre cada um. E nós costumávamos, minha mulher e eu, sentar aqui, depois do jantar, nós dois e as duas me-

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ninas, cada um com o seu livro. E as meninas eram muito elogiadas pela família toda, pelo fato de estarem

lendo. E aí o caçula um dia explodiu, porque ele ficava de fora disso tudo, dizendo: “Eu também gosto de ler, só

que eu não sei!”. Depois ele aprendeu a ler e passou a ser um leitor também.

A&P – Nisso que idade ele tinha?

JM – Cinco anos.

A&P – Quer dizer que havia uma certa ‘pressão’ pela leitura?

JM – Sim, havia uma pressão do elogio às irmãs, de uma coisa que ele só não fazia porque não sabia. Então

a leitura em casa foi um hábito desde a infância, dentro da minha infância e depois na de meus filhos e netos.

Em maior ou menor grau, todos lêem.

A&P – O senhor nasceu no Brasil?

JM – Sim, mas meus pais são originários da Rússia, são imigrantes. Eles se conheciam em Odessa, eram

amigos. Em 1905, eles saíram da Rússia, por uma série de problemas. Havia um grande anti-semitismo na-

quela época e o serviço militar obrigatório era uma verdadeira escravidão, de modo que os jovens, quando po-

diam sair do país, escapavam. Aliás, também, mudando de nome, para dificultar a convocação. Mas meus pais

se perderam de vista. Saíram e foram por caminhos diferentes. Em 1910, se encontraram em Nova York. Casa-

ram e vieram para o Brasil. Nós todos nascemos aqui. Éramos quatro irmãos, infelizmente eu sou o único so-

brevivente. Meus pais tiveram a sabedoria de que a língua em casa fosse o português. Nós aprendemos em

paralelo o francês com uma governanta russa que falava um francês perfeito, sem sotaque, porque o sotaque

russo em francês é terrível. E o francês ficou sendo a nossa segunda língua. E aí, quando eu devia ter uns seis

anos, veio um irmão de papai da Rússia com a família. Eu tinha três primos que aprenderam português conosco

e nós aprendemos o russo com eles. Eles liam menos, mesmo através da vida não liam tanto quanto nós. Eu,

meus irmãos, todos líamos muito. Eu tinha uma ligação muito forte com meu irmão Henrique, quatro anos mais

velho que eu, e eu era uma espécie de sombra dele. Íamos juntos a uma porção de lugares, visitávamos livra-

rias e, como conseqüência, eu lia aos 12 coisas que ele lia aos 16. Com 12 anos li as “Lendas e Narrativas” e

outras obras de Alexandre Herculano. Li uma obra de um sábio francês, Salomon Reinach, que era um grande

erudito e publicou “Orpheus – Histoire Générale des Religions” e “Apollo – Histoire Générale des Arts Plasti-

ques”. Eu li isso aos 12 anos, em francês. Francês ficou sendo uma segunda língua. Eu lia tanto em português

quanto em francês. E a gente vivia uma época de grande influência cultural francesa, que só decaiu antes da

Segunda Guerra, por causa da influência americana.

A&P – E qual era a ocupação dos seus pais?

JM – Meu pai era dentista prático nos Estados Unidos; lá não se exigia, em Nova York, o curso universitá-

rio. Então ele aprendeu Odontologia, que era uma forma rápida de ganhar a vida, mas ele gostava de arte. Ele

foi, provavelmente, o melhor dentista de São Paulo do seu tempo. Mas ele não era feliz com a profissão, ele

gostava era de Artes Plásticas. E tinha uma biblioteca bastante grande, principalmente de literatura e história.

Muita coisa em inglês, que ele trouxe dos Estados Unidos junto com o hábito de ler em inglês, mas sem qual-

quer preocupação de colecionar, de ter livros raros. Eram edições correntes. Nesse ambiente foi que eu real-

mente comecei a ler.

A&P – E a sua mãe?

JM – Mamãe cuidava da casa, acompanhava meu pai na questão de procura de arte. Havia muitas ocasi-

ões em que o quadro comprometia o orçamento doméstico, mas ela era companheira e papai formou uma co-

leção de arte acadêmica. Como autodidata, ele procurava bons quadros acadêmicos. Ele morreu muito moço,

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52 anos, de modo que não chegou ao Modernismo. Da arte acadêmica, ele passou a se interessar profunda-

mente pelos flamengos e holandeses do século XVII, e daí ao Modernismo ele teria chegado certamente se ti-

vesse vivido mais tempo. Nós, também, evidentemente no início nosso interesse era dirigido para a pintura aca-

dêmica. Mas conseguimos superar essa parte, embora na área acadêmica haja muito boa pintura, mas com

menos criação, que veio depois no Impressionismo, no Expressionismo e, mais tarde, no Modernismo. Tanto

que é curioso que a família do Lasar Segall e a nossa eram amigas, mas o Segall não chegou a conseguir con-

vencer meu pai do significado do Modernismo. Segall, Mário de Andrade e todas as pessoas das décadas de

20 e 30 eram considerados, com um certo exagero, meio malucos. Eu me lembro de uma vez que o Segall con-

seguiu convencer o papai a conversar com o Mário de Andrade, que foi lá em casa. Eu era menino, devia ter

uns 10 ou 12 anos, fiquei num cantinho ouvindo a conversa que me interessou muito.

A&P – E o senhor já sabia quem era Mário de Andrade?

JM – Sim, já sabia. Eu tinha essa precocidade pela influência do meu irmão, que se tornou um arquiteto da

primeira geração de arquitetura moderna do Brasil, ao lado dos irmãos Roberto e logo, logo Oscar Niemeyer.

Mas ao mesmo tempo em que Niemeyer e Lúcio Costa fizeram o Ministério da Educação, já os irmãos Roberto,

no Rio, Vital Brasil e uma série de arquitetos formaram um grupo do qual meu irmão fazia parte. Meu irmão se

formou aqui em São Paulo, no Mackenzie, que tinha um curso de arquitetura essencialmente acadêmico, mas

ele evoluiu rapidamente e chegou ao Modernismo. Nós também fomos evoluindo, e artistas que nos pareciam

totalmente desconhecidos nos anos 20 e começo dos anos 30 a gente passou a apreciar. Chagall e Matisse,

curiosamente, eu sempre apreciei, mesmo no tempo da pintura acadêmica. Picasso, então, nem se fala. Eu só

consegui apreciar Picasso depois de ver uma retrospectiva dele em Paris, em 1966, da qual eu saí muito im-

pressionado, vendo que ele era um gênio que dominava a técnica e tinha por aí o direito de fazer o que qui-

sesse. Bem, acho que dei uma resposta um pouco longa para a sua primeira pergunta, mas acredito, se você

não se importar, que não precisamos fazer uma entrevista linear.

A&P – Não, está tudo ótimo. Agora conte para mim: qual o significado da leitura em sua vida?

JM – Ela foi fundamental. Toda a minha formação cultural veio da leitura. Eu tive a informação de meus pais

e de amigos, amigos que vinham em casa, mas a leitura foi se tornando parte da minha natureza. Ainda hoje

há gente que diz: “Seu hobby são os livros”. Não, os livros são meu interesse central de vida, não são um hobby,

estão muito longe de ser um hobby. E leitura muito variada também, mas o interesse maior é a ficção, biogra-

fia, viagens, fora a parte política que, à medida que eu cresci, foi surgindo. Porque também me aconteceu uma

coisa que... bem, eu posso falar de precocidade porque já deixei de ser precoce há muito tempo. Mas eu fui re-

dator de O Estado (O Estado de S. Paulo), eu entrei na redação de O Estado em maio de 1930 e completei 16

anos em setembro de 1930. Eu fui o redator mais jovem de O Estado. E lá havia muito contato com escritores

– Afonso Schmith, Léo Vaz, Alcântara Machado, que não era da redação mas a freqüentava. A redação de O

Estado era um pólo cultural e um pólo político de organização da Revolução de 30. Houve até um fato interes-

sante. Nessa altura eu já sabia inglês e o Júlio Mesquita Filho, que era o diretor do jornal, me chamava para a

sala dele para transmitir mensagens sobre a preparação da Revolução em inglês, para driblar a censura, que

era uma censura de escuta telefônica e os censores no máximo sabiam francês. Então, menino assim, fiquei

sabendo de assuntos ligados à conspiração, porque eu era o único que falava inglês na redação. Por isso, eu

também entrevistava as pessoas estrangeiras de língua inglesa que vinham ao Brasil. Então tudo isso foi se

aglutinando, uma coisa à outra, e daí resultou a minha formação, onde o livro tinha a sua função principal.

A&P – Desde o início até hoje, quando o senhor vai ao livro, que ímpeto se sacia?

JM – O livro é uma fonte de prazer. Eu não gosto de ler livro difícil, a não ser por obrigação. A obrigação

existe em parte da leitura, ela é inevitável no estudo ginasial, universitário etc. Mesmo que seja uma leitura di-

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fícil, você tem de passar por ela. Mas eu vejo a leitura como uma fonte de prazer, uma fonte de enriquecimento

intelectual, de uma visão de mundo muito mais ampla, um conhecimento de ambientes aos quais eu não tinha

acesso de maneira alguma, porque nem existiam no Brasil muitos dos ambientes descritos na literatura inglesa,

francesa ou russa. Eu acho que lendo a pessoa adquire um enriquecimento intelectual, daí a importância de

desenvolver a leitura para quem não lê e leva uma vida massificada.

A&P – A leitura lhe traz prazer, mas não só isso, às vezes traz desconforto...

JM – Claro que não traz só prazer. Tem todo o enriquecimento, e ela desperta a imaginação, coisa que sem

“Os Três Mosqueteiros” e “O Conde de Monte Cristo” (Alexandre Dumas) seria mais restrita, para dar um exem-

plo. Há muitos outros autores que têm o mesmo papel. De modo que não é só fonte de prazer, mas eu acho

que o prazer da leitura é o instrumento mais poderoso de incentivo.

A&P – Mesmo quando a leitura dói?

JM – Claro. Proust, por exemplo, é uma leitura difícil. Eu devo minha leitura de Proust ao Tristão de Athayde,

o Alceu Amoroso Lima. Eu era um rapaz de vinte e poucos anos, tinha tentado ler Proust e não estava conse-

guindo. Li parte do primeiro volume e o encontrei na casa de um amigo no Rio, Luiz Camilo de Oliveira Neto,

grande leitor também. Uma noite eu estava lá e veio o Tristão de Athayde. E Proust surgiu na conversa porque o

Tristão de Athayde foi um dos introdutores de Proust no Brasil. E eu, querendo bancar o espirituoso, coisa que em

geral não dá certo, disse que Proust descrevia o sono tão bem que a gente adormecia. Então o Tristão de Athayde

me disse: “Você está muito enganado, rapaz. Você tem de ler as primeiras 50 páginas de ‘Em busca do Tempo

Perdido’ com todo o esforço que seja necessário. Se você, depois de 50 páginas, não tiver penetrado no universo

de Proust, leia mais 50, com o mesmo esforço, que você não larga mais”. Eu segui o conselho e foi o que acon-

teceu. Eu sou um proustiano apaixonado. Já li ‘La Recherche’ cinco vezes, com intervalos de dez anos. Cada lei-

tura é diferente. O conhecimento da natureza humana, das emoções como se formam, tudo se encontra lá.

A&P – E o senhor precisou de 100 páginas ou de 50?

JM – Precisei das 100, mas valeu. Balzac eu li integralmente “A Comédia Humana”, porque Balzac é um

contraponto de Proust. Proust estuda a natureza humana e Balzac estuda a sociedade, descreve a sociedade

francesa. Tanto em Proust quanto em Balzac as duas coisas entram, mas o grau de estudo da natureza hu-

mana em Proust é muito maior do que em Balzac, que realmente está na sociedade. Proust descreve um setor

mais ou menos limitado da sociedade. São dois autores fundamentais.

A&P – O senhor é muito famoso por sua biblioteca. O senhor também coleciona gravuras, outros

bens além de livros?

JM – Na verdade, eu costumo dizer que não coleciono livros. Minha motivação na procura do livro é sempre

a leitura. Agora, dentro da biblioteca, vai se formando um interesse pela diagramação, pela ilustração, o mesmo

texto apresentado de formas diferentes. Daí você parte para a questão da raridade. Aí já tem um conteúdo pa-

tológico, algo que faz a gente sentir bem, não sentir mal, e eu descobri que é incurável, então não há motivo de

preocupação. Aí entra o que parece ser uma coleção, mas a motivação não foi colecionar. Eu li Machado de Assis

na edição Garnier comum, depois começaram a aparecer edições ilustradas, depois a gente se interessa em

saber como foi a primeira edição, se ela foi igual às demais ou se houve modificações. Aí vem o interesse pela

primeira edição, mas para conhecer a primeira edição, como é o texto, não simplesmente porque é a primeira

edição. Mas aí entra o conceito de raridade, porque para achar as primeiras edições de bons autores é preciso

garimpar. Compro livros desde os sete ou oito anos de idade, embora só em 1927 tenha começado a freqüen-

tar sebos. Meu irmão Henrique e eu íamos antes às livrarias do Centro (de São Paulo) e comprávamos livros in-

fantis, que infelizmente não guardei. Nos sebos deparei de início com um problema sério, que felizmente conse-

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gui resolver: não tinha dinheiro, pois não recebia mesada, e não queria pedir a meu pai dinheiro que nào fosse

para livros de estudo. No tempo de ginásio, como eu corria todas as tardes os sebos do Centro de São Paulo

–eram cerca de cinco sebos –, verifiquei que cada livreiro vivia na sua toca, sem conhecer o estoque do outro.

O que às vezes um vendia por cinco ou dez mil réis, o outro vendia por trinta. Eu percebi isso e passei a fazer o

seguinte: eu pegava o livro mais barato em um sebo, levava para o outro e dizia assim: “Olha, eu não quero di-

nheiro. Vou deixar isso aqui em consignação e, se você vender, tira a sua comissão e me credita o resto, que eu

vou gastar em livros”. Para isso, inicialmente tive de pedir algum apoio a meu pai, mas, depois de poucos meses,

eu tinha crédito nos vários sebos de São Paulo, para poder comprar o que eu queria sem desembolsar nada. Foi

assim que comecei a formar a minha biblioteca. Mas eu não sou escravo dos livros. Quando eu não consigo um

livro porque ele tem preço exagerado, não perco o sono por causa disso. Tenho um autocontrole. Mas quando o

interesse pelo livro é grande demais, mesmo sendo caro, procuro me lembrar de dois ou três livros que eu com-

prei por preço irrisório, somo o preço pedido com o que eu paguei, divido por três, tiro uma média e compro o

livro. A gente engana a si próprio (risos). Isso quando é possível, eu não vou fazer uma loucura. Às vezes a gente

vai mais longe do que pretendia, mas com essa história de preço médio fica mais fácil.

A&P – Qual o tamanho do seu acervo?

JM – Estamos no computador com 38 mil títulos, mas volumes eu não sei, porque o título pode ser um fo-

lheto, pode ser uma grande coleção. A revista do Instituto Histórico Brasileiro, são quase 400 volumes, mas é um

título. Não sei quantos títulos eu tenho, mas a biblioteca está quase toda catalogada. Esta (onde a entrevista foi

concedida) foi instalada em 1948, quando nós mudamos para esta casa. Nós moramos aqui há 57 anos. Houve

depois, em 1965, formação de pilhas de livros, então fizemos um pavilhão no jardim, pensando que com isso se

resolvia o problema de espaço. Mas em 1985 tivemos de fazer outro acréscimo grande. E o problema de espaço

sempre existe. Temos um apartamento do outro lado da rua que está cheio de livros também.

Mas eu comecei a formar a Brasiliana, e aos 13 anos eu li “História do Brasil” do Frei Vicente do Salvador

numa edição da Melhoramentos que eu ganhei de uma tia num aniversário – o que mostra que eu já gostava de

ler, porque o livro para mim era um presente satisfatório, não precisava procurar outra coisa. E eu li essa histó-

ria em uma edição comum da Melhoramentos, mas que tinha uma boa bibliografia, com notas, comentários.

Então eu comecei a escrever para várias livrarias pedindo obras constantes da bibliografia e que já eram raras

naquele tempo. Eu consegui uma obra apenas, a história do Brasil do (Robert) Southey, uma edição brasileira

de 1862 da história do Brasil de Southey, que foi poeta laureado da Inglaterra, mas que passou uma temporada

com um tio em Lisboa que tinha uma grande biblioteca. E ele escreveu uma história do Brasil cujo primeiro vo-

lume saiu em 1810, e os outros em 1817, só com base no material bibliográfico do tio – ele nunca esteve no Bra-

sil. Mas é um clássico da história do Brasil. E essa edição brasileira os meus pais me deram de presente. Eu me

lembro até hoje, a livraria Francisco Alves, no Rio, estava vendendo por 80 mil réis. Era dinheiro naquele tempo,

1927, era dinheiro. Aí começou a Brasiliana. E aí o interesse por livros sobre assuntos brasileiros por autores bra-

sileiros e estrangeiros. Especialmente no período colonial, eram sempre estrangeiros. E no século XIX, depois

da abertura dos portos, começaram a vir muitos autores e criou-se uma bibliografia muito importante de escritos

por ingleses, franceses, alemães. Do mundo inteiro vinha gente. E eu fui conseguindo esses livros.

Hoje a biblioteca Brasiliana é significativa. Todos aqueles livros que eu procurava em 1927, praticamente

todos eles estão aqui, formando o que chamo de conjunto indivisível. É um conjunto que, se fosse partilhar entre

os filhos, perderia muito do seu significado. Então nós ficamos com o problema – o que fazer com esse con-

junto indivisível? Nós dois, minha mulher e eu, e os quatro filhos resolvemos doar à Universidade de São Paulo

(USP) a Brasiliana integral. Isso está em andamento. Nós já fizemos a doação, mas a condição é a USP cons-

truir um prédio para receber a biblioteca, que a gente quer que seja uma instituição viva. Infelizmente, eu perdi

minha mulher há um mês e pouco, mas ela chegou a fazer a doação. Ela assinou a doação.

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A&P – Isso vai para alguma unidade em especial da USP?

JM – Não, isso é uma unidade – Centro de Estudos da Biblioteca Brasiliana de Guita e José Mindlin, em

conjunto com o IEB, o Instituto de Estudos Brasileiros. O projeto terminou e a construção deve começar em ou-

tubro. De um lado é a nossa biblioteca, de outro o Instituto de Estudos Brasileiros, com algumas áreas comuns

– auditórios, áreas de estar.

A&P – É uma doação de que porte?

JM – Deve ser algo em torno de 15 mil a 18 mil títulos. Se isso fosse disperso... A biblioteca completa este

ano 79 anos de formação. Os primeiros 11 eu fiz sozinho, mas depois fiz com minha mulher. Nós dois tínhamos

acervos juntos, construídos especialmente em viagem, comprando muita coisa nos antiquários europeus, de-

pois nos Estados Unidos. Os grandes livreiros na Alemanha, Suíça e Itália foram para os Estados Unidos com

a guerrra e com o anti-semitismo. Uma boa parte dos antiquários é judeu. De modo que hoje os Estados Uni-

dos são um mercado também onde se encontram coisas. Inglaterra e Portugal são duas fontes inesgotáveis.

Então a garimpagem é outra coisa que fascina. Eu diria até que o prazer da garimpagem é maior que o prazer

de ter o livro. Porque, quando você tem o livro, o coração já não bate mais forte. Agora, quando você encontra

um livro que procurou 50 anos, quando vê, é claro que o coração bate mais forte. E a gente aprende muito nos

catálogos dos antiquários. Porque, se você não tiver conhecimento, não forma biblioteca, você forma uma acu-

mulação de livros. Para selecionar o que você quer ter, precisa conhecer. E isso a leitura ajuda, a gente aprende

muita coisa nos livros e nos catálogos dos bons livreiros antiquários.

A&P – Essa biblioteca na USP permitirá a consulta aos livros ou será algo mais restrito?

JM – Claro. Bem, a parte de raridades é restrita a pesquisadores, mas com muito mais facilidade do que

aqui em casa. É raro um dia que não temos um ou dois pesquisadores trabalhando, mas lá vai ser muito mais.

E lá também vai ter um pouco de literatura contemporânea. No começo houve uma certa hesitação, para saber

se a literatura contemporânea entraria na doação ou não. E a gente concluiu que tem que entrar, pois estamos

falando da biblioteca Brasiliana no estado em que ela se encontra hoje. Se a gente tirar uma parte moderna,

daqui a 50 anos essa parte é inencontrável. Então desde já precisa ter todos os autores do Norte, Nordeste...

A&P – O senhor classifica a sua relação com os livros de apego ou de desapego?

JM – Bem, o livro raro muitas vezes é insubstituível. Ele pode ser consultado aqui em casa, mas é facultado

ao conhecimento. Há pessoas que escondem o que têm, o que é um absurdo, como um avarento. A gente está

completamente longe disso. Nós damos acesso aos livros raros aqui em casa. Na parte contemporânea é muito

comum emprestrar e não conseguir de volta, comprar outro, mas isso é o normal. É como eu lhe disse: não sou

escravo do livro, não temos o fetiche da propriedade. Se tivéssemos esse fetiche, não estaríamos fazendo essa

doação, que é uma doação importante, pois a parte de livros raros dificilmente seria recomposta se se desfi-

zesse. Agora, eu tenho apego, mas não sou escravo. E não tenho dúvida nenhuma de pegar um exemplar único

ou quase único conhecido e reproduzir para bibliotecas que querem, pedem um fac-símile ou uma cópia foto-

gráfica ou microfilmagem. Quer dizer, o fato de ser raro não é razão para ser exclusivo. Isso é um princípio tran-

qüilamente adotado aqui.

A&P – O senhor foi recentemente eleito membro da Academia Brasileira de Letras e me parece que

o senhor é o primeiro membro que não é autor consagrado...

JM – Não, o Nélson Pereira dos Santos, cineasta, foi eleito este ano. Eles estão elegendo pessoas de cul-

tura geral, que têm ligação com o livro. E, pelo estatuto, têm de ter um livro publicado. Eu publiquei em 1997

“Uma Vida Entre Livros”, eu não sei se você leu...

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Uma Vida entre Livros - entrevista com José Mindlin • 7

A&P – Não li, mas já vi.

JM – Então eu vou te oferecer esse livro, e ali você vai encontrar muita resposta do que você está procu-

rando saber.

A&P – Muito obrigada! E sobre a Academia, como o senhor recebeu o convite?

JM – Eu nunca tinha pensado em entrar para a Academia. Isso já tinha acontecido com a Academia Paulista

de Letras. Eu recebi uma visita do presidente da Academia, amigo meu, dizendo que tinha de me candidatar a

uma vaga. Eu já tinha recusado três vezes o convite, dizendo que era muito mais leitor que escritor. Mas ele in-

sistiu muito e acabei dizendo: “Eu aceitaria o convite para me candidatar se eu for convidado por um número su-

ficiente para ser eleito, porque eu não vou pedir voto”. Aí recebi uma carta assinada por 23 membros, então es-

tava eleito. Na Academia de Letras da Bahia a mesma coisa, eu não podia pedir votos. Recebi uma carta tam-

bém, a primeira assinatura até era do Jorge Amado me convidando para entrar. E agora foi a mesma coisa, ami-

gos meus de lá vieram para me convidar para a vaga do Josué Montello. E foi a mesma coisa. Eu dizendo: “Vocês

convidarem uma pessoa da minha idade que pode estar oferecendo uma vaga a curta prazo, não tem muito sen-

tido”. E eles disseram: “Não, imagina, o Barbosa Lima Sobrinho viveu até 103 anos...” No fim eu disse a mesma

coisa: “Olha, eu aceito o convite, mas não faço campanha”. E foi praticamente unânime a aprovação. E é uma

coisa agradável, porque é um reconhecimento do que representou a minha vida inteira em relação ao livro. Mas

eu não creio que, em si, o fato de ser acadêmico acrescente alguma coisa à minha natureza.

A&P – Como lhe parece o título de imortal?

JM – Pois é, eu brinquei até que eu trocaria tranqüilamente o título de imortal por mais dez anos de vida.

A&P – O senhor está com quantos anos agora?

JM – 91.

A&P – Está muito bem. O senhor mencionou o seu livro e eu gostaria de perguntar algo nesse sen-

tido. O senhor escreveu um outro livro também, não foi?

JM – Houve um outro livro menor, “Memórias Esparsas de Uma Biblioteca”, que eu fiz junto com a Cristina

Antunes, nossa bibliotecária. Eu escrevi “Memórias Esparsas” e ela escreveu “Memórias de Uma Guardadora

de Livros”, então ficou uma coisa interessante. E depois saiu este ano “Destaques da Biblioteca Indisciplinada

de Guita e José Mindlin”. Não foi fácil escrever destaques. Eu tinha pensado em 500 livros, acabou sendo uns

800, e ainda ficou muita coisa de fora, que poderia ser considerada destaque, mas aí ficaria um calhamaço

enorme. Então saiu uma obra em dois volumes, com 750 ilustrações.

A&P – Como é para o senhor a transição de leitor para escritor? A experiência de escritor lhe agradou?

JM – Não houve transição, não houve passar de uma coisa para outra. Meu primeiro livro, “Uma Vida Entre

Livros”, eu escrevi à mão, em cinco fins de semana. Depois eu fiz a revisão, cortei coisas, acrescentei outras.

Poderia ter sido publicado sem a minha edição, não sairia tão bem, mas, em todo o caso, estava tudo lá. E eu

fiz praticamente sem consultar a biblioteca, estava tudo na cabeça. Então não houve transição. Eu continuo

sendo leitor, não vou ler menos porque me tornei escritor. Na verdade, estou lendo menos porque estou com

um problema de visão. Tem gente que lê para mim, mas não é a mesma coisa. Comprei agora um aparelho que

focaliza no texto e projeta na televisão. Mas vou ter que treinar bastante, porque não tenho o hábito. Não há

nada que substitua o manuseio do livro. Mas, enfim, eu tenho prazer de estar na Academia, tenho muitos ami-

gos, quero levar a idéia de que o estímulo à leitura é uma das missões da Academia. Não basta reunir um grupo

que se autoconsidera a elite, é uma coisa que não é bem o caso, me parece. Mas a Academia Brasileira de Le-

tras faz muita coisa no campo de publicações, no campo de criação de uma memória literária no Brasil, de reu-

Page 8: Entrevista com Mindlin

Uma Vida entre Livros - entrevista com José Mindlin • 8

nir o maior número possível de escritores de mérito, toda a documentação sobre eles, originais, tudo o que

possa perpetuar a memória desses escritores. Então, a Academia Brasileira de Letras não é uma instituição

apenas de gente que se considera imortal. Há um trabalho de difusão de cultura. Pelo que eu conheço, e não

conheço tudo o que se faz lá, mas tenho a impressão de que um trabalho ativo de promoção da leitura não

existe, e é uma das coisas que eu vou batalhar para conseguir que seja feito.

A&P – Quando o senhor escreveu, nesses cinco fins de semana, o senhor se preocupou com o lei-

tor? Algo como “será que isso está bom”?

JM – Bem, eu me preocupei com que fosse uma coisa interessante. E hesitei muito para fazer esse livro,

porque eu tinha dado uma entrevista a um grupo de jornalistas jovens que publicavam a revista Bric A Brac

sobre a biblioteca e a minha relação com os livros. Eles chegaram aqui às 11h de um sábado e saíram às 6h

(18h). No começo fizeram a mesma pergunta que você fez, se eu me incomodava de gravar. E eu disse que

não, e às 6h, quando eles foram testar, não tinha gravado nada. Espero que isso não aconteça com você. Eu

disse: “Vocês estão desapontados, mas não foi mal, porque agora vocês conhecem a biblioteca, então vocês

me façam as perguntas que quiserem e eu responderei na medida do possível, coisa do meu próprio punho”.

Eu recebi perguntas que deram 15 páginas de resposta. Aí eles me fizeram mais perguntas, e no fim saiu uma

publicação bastante boa. Dois amigos – o Plínio Martins, da Edusp, e a Marisa Lajolo, uma professora muito

amiga nossa – disseram: “Olha, a entrevista está muito boa, mas você tem mais coisas para contar”. Eu disse:

“Bom, mas no fundo isso é uma coisa íntima, não sei se tem interesse para o grande público”. E eu levei três

anos resistindo à idéia de escrever o livro, mas no final a insistência foi grande, dizendo que o livro poderia ser-

vir de apoio para despertar o interesse pela leitura. Então, aquela entrevista serviu de base, e escrevi o livro

com a preocupação de ser uma coisa interessante para o leitor. Eu aprendi a escrever com simplicidade, com

clareza, no Estadão (o jornal O Estado de S. Paulo), e isso me valeu para o resto da vida.

A&P – E não é fácil, não é?

JM – Não, é mais difícil escrever com simplicidade do que empolado. De modo que eu acho que você tem

aí um material, não é? Se depois de transcrever isso, você quiser conversar de novo, estou à disposição.

A&P – Eu queria apenas que o senhor explorasse essa questão da desculpa de não ler por falta de tempo.

JM – Eu considero que quando a pessoa tem vontade, consegue ler. A minha leitura sempre foi a dos pe-

quenos períodos. É raro eu ter um tempo para ler.

A&P – Sim, o senhor sempre foi uma pessoa ocupada, não foi? Tinha uma empresa, foi jornalista...

JM – Muito ocupado. Advoguei por 15 anos... Mas eu sempre ando com um livro na mão. Andava. Agora não

estou fazendo isso por causa da visão. Então eu ando com aquele ipod, passei o Proust para o ipod, porque

minha filha me trouxe uma coleção de CDs de Proust para a sexta leitura. Assim, no ipod, quando estou no carro,

eu posso ouvir com facilidade. Mas sempre tendo um livro, com a soma dos pequenos períodos a gente conse-

gue ler muito. Eu lia quando levava os filhos para a escola. Chegava lá às 7h15, encostava o carro numa árvore

na rua Itambé e ficava lendo até a aula começar. Foi assim que fui somando aos poucos minhas leituras.