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carosamigos.com.br Entrevista com Tom Zé 16 min read • original NÃO FAÇO MÚSICA, FAÇO REBELDIA Entrevista publicada na edição 167 / fevereiro de 2011 Em seu apartamento, em São Paulo, Tom Zé dá show de versatilidade. Mais uma vez a revista Caros Amigos faz entrevista com o músico, compositor, arranjador e cantor Tom Zé, considerado um dos mais criativos e originais da música popular brasileira. Nascido em Irará, interior da Bahia, integrante do movimento Tropicália, radicado em São Paulo há muitos anos, Tom Zé mantém uma fértil e excelente produção musical, está em plena forma artística aos 74 anos de idade e arrasta um grande público – especialmente entre os jovens. Nesta entrevista, divertida, irreverente e instigante, ele impressiona pela sagacidade e profundidade de suas análises. Fiquem com a arte, a cultura e a rebeldia de Tom Zé.

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Entrevista com Tom Zé

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NÃO FAÇO MÚSICA, FAÇO REBELDIA

Entrevista publicada na edição 167 / fevereiro de 2011

Em seu apartamento, em São Paulo, Tom Zé dá show de versatilidade.

Mais uma vez a revista Caros Amigos faz entrevista com o músico,compositor, arranjador e cantor Tom Zé, considerado um dos maiscriativos e originais da música popular brasileira. Nascido em Irará,interior da Bahia, integrante do movimento Tropicália, radicado emSão Paulo há muitos anos, Tom Zé mantém uma fértil e excelenteprodução musical, está em plena forma artística aos 74 anos de idadee arrasta um grande público – especialmente entre os jovens. Nestaentrevista, divertida, irreverente e instigante, ele impressiona pelasagacidade e profundidade de suas análises. Fiquem com a arte, acultura e a rebeldia de Tom Zé.

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Cecília Luedemann – Você poderia começar falando do seutrabalho atual.

Tom Zé – Eu queria pedir uma coisa a vocês. Como a minha práxis nãoé o discurso... Eu e a Neusa somos assinantes da Caros Amigos e lemosapaixonadamente tudo. Aí, eu falei com Neusa:

“Nossa, se eu pudesse dar uma entrevista, não como se eu fosse umprofessor, como eu fosse o maluco que eu sou, mas que tivesse acapacidade de uma pessoa cuja a práxis é o discurso.” Isso não é o meu

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métier.  Então, eu vou pedir a vocês que entremos num barato deseguir um certo leitmotiv e, nessa coisa, todas as inteligências aquisomam para tornar isso fácil para o leitor. Porque eu me preparei. Foia única vez na minha vida que eu me preparei para umaentrevista. Ontem, eu estava trabalhando, parei para dizer: “Eupreciso ter uma coisa pelo menos organizada. E, aí, a gente poderentregar, honestamente, a essas pessoas que leem - vocês, como nós -,uma coisa razoável.”

Cecília Luedemann – Como é a experiência de criação da suamúsica de raiz brasileira com o diálogo universal?

Olha, você acabou de falar uma coisa que é o que eu aprendi comNeusa [esposa e empresária de Tom Zé] e com David Byrne, umcompositor e multiartista, que tem certa sensibilidade internacional:“Para a sua música poder tocar no exterior,você precisa fazer músicabrasileira, mesmo.” Eles não compram o que eles já tocam bem. Elesnão compram imitações. Tem um episódio que explica isso de umamaneira bem fácil. Nós estávamos em Londres para fazer o Barbican eo rapaz da Trama, o Kid Vinil, disse assim: “Puxa, vida, vocês sabem oque eles fizeram? Pagaram o dinheiro todo e mandaram embora.” Elesouviam falar em DJs brasileiros. É claro que eles pensaram assim:“Puxa, DJs do Brasil. Aquele país onde a música é tão rica quanto dosEstados Unidos.” Porque hoje eles dizem isso na Inglaterra: “Olha,deve ser uma coisa curiosa.” Então, eles pegaram os DJs econtrataram para fazer quatro shows ali naquelas cidades, perto deRoma. Justamente o Kid Vinil chegou para gente e disse: “Eles viram oprimeiro show, pagaram os quatro shows e mandaram embora.” Porque? Por que os DJs estavam tocando uma versão mais diluída do queeles mesmos fazem. Isso é uma coisa incrível. Eles esperavam que osDJs fossem brasileiros e os DJs imitavam o americano e o inglês. Paramim, não foi dito diretamente. Mas a Neusa sempre dizia: “Isso querdizer que você para poder tocar lá tem que ser brasi-lei-ro.” Esse é umdos segredos. Agora, isso puxa um assunto que a Neusa e eu

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calculamos como ia ser esta entrevista. {Risos} Tudo é possível dealguma forma. A gente calculou que vocês iam começar perguntandosobre o começo.

Neusa Santos – É por causa das entrevistas que vocês fazem.

Hamilton Octavio de Souza – As entrevistas da Caros Amigos sãoassim...

Mas, no meu caso, o começo é o fim. Eu tô eternamente no começo.Então, eu queria propor uma ideia, se vocês toparem. É uma ideia queeu ponho na mesa. Se vocês aceitarem, apontem as antenas para essaideia, porque vai ser uma coisa boa. Como se fosse um time de futebol.

Hamilton Octavio de Souza – Qual é a proposta?

A proposta é a seguinte. Como o meu começo é o meu fim, quando euestou aqui no começo, eu estou aqui no fim. Toda hora que meu fim éposto em cheque, eu vou no começo saber o que tem de errado. Porqueeu sou “vítima”... E é um episódio que, se eu conseguir tratar, vaimostrar como a música brasileira foi trabalhadora emdesenvolvimento da virulência do país. Rapaz, só para dar uma pitadado que vai acontecer. Eu tava lá. Eu tava na Idade Média. Eu nasci em1936, num lugar que era Idade Média, do ponto de vista deprocedimento e tempo. As relações metafísicas, as relações religiosas,as relações de amor, as relações de trabalho, as relações de família, asrelações de brincar, as relações de estudar. Tava tudo,metafisicamente, moçarebe, que é o tipo de infância dos nossos avós.Alain Resnais, um cineasta francês, diz que de 0 a 2 anos de idade é afase em que a criatura humana, nós, carne e osso, cabeça, destino etudo, mais aprendemos. Nunca se aprende com tanta intensidade nemcom tantos dados que de 0 a 2 anos de idade. A gente é mais rápido queum computador de 0 a 2 anos de idade. O cineasta francês AlainResnais fez um filme para provar isso, porque de 0 a 2 anos de idade aplaca mental está completamente virgem. Qualquer coisa que bata ali

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faz um sinal, grava, e aí você pega um combustível que dificilmente vaiser deteriorado para o resto da vida. Rapazes e meninas, e eu com 0 a 2anos de idade tive uma sorte. Eu, Caetano,Gil, Torquato Neto, GlauberRocha. Olha o lugar que a gente nasceu.

Cecília Luedemann – A creche tropicalista.

Pode ser creche de tudo, mas como a presença da gente no mundo foichamada de “tropicalista”... Pode ser creche de tudo. Veja bem, agoraeu explico isso. Berçário dos “analfatóteles”. Nós fomos criados de 0 a2 anos de idade sem Aristóteles.Meus senhores, vocês não podempensar o que é uma educação sem Aristóteles. É outra concepção demundo. Aristóteles é uma maravilha, fez tudo o que a gente pratica atéhoje, mas a gente foi educado num universo sem Aristóteles. Olha, édifícil você partilhar. Se a gente for ver, Aristóteles está aqui, assim ó,em cima da gente, está em cima, está por dentro e está por fora, paratirar não dá mais. Esses donos dessa outra concepção do mundo, emnosso caso foram os árabes. Olha, como nós temos cara de árabe ejudeu, cristão novo.Com 0 anos de idade. Eu, filho de seu Everton e deDona Helena, em 1936, tinha um amigo chamado Antonio José, cujoapelido era Toinzé. Como não se botava apelido como agora se botanos filhos das pessoas, eles botaram Antonio José para chamar deToinzé. Então, nasço eu lá. No meu tempo, a criança ficava no berço de0 a 2 anos de idade. Quanto menos chorasse, melhor. Entretanto, agente tinha uma roda de professores que circulavam entre nós,jogando no nosso ouvido atento todas essas coisas que estão aqui, essabanca de preceptores babás. Quem eram os professores? Oscamaradas do nordeste. Quem me ensinou isto foi [Câmara] Cascudo.A gente nunca sabe as coisas direito. cascudo, o escritor riograndense-do-norte, me ensinou sobre os cantadores. O que a gente ouvia doscantadores de 0 a 2 anos de idade? A gente ouvia sobre Ética, eraassunto de todo dia na nossa vida, porque a gente era 3 mil almas hácento e tantos anos. Irará, população 3 mil habitantes, ano 1840,1900...sempre 3 mil almas. Quando morria um, chegava outro no lugar.

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A cidade nunca crescia uma casa. Era preciso haver uma solidariedadeabsoluta para essas 3 mil almas não diminuírem. É uma coisa intuitivada coletividade. Outra coisa: lá era dois anos de seca e dois anos dechuva. Na seca...

Hamilton Octavio de Souza - Qual é a região?

Entrada da região do Conselheiro, Irará, recôncavo,começo do sertão,perto de Feira de Santana e de Alagoinha, mais de 20 Km. Naqueletempo gastava meio dia para ir para Feira de Santana ou Alagoinha acavalo nas estradas terríveis que tínhamos. Hoje, vai em 15 minutos.

Hamilton Octavio de Souza - E sua família era de classe média?

Naquele tempo, que classe média? Minha família era chamada de rica.No nordeste não tem rico, tem remediado. Até o folclore cantava:“Você me chama de rico, mas rico é Benjamin. Na feira, Seu JoãoMarinho, no Irará Seu Pompiu”. Meu avô. “Serrinha que é pontogrande, só se fala no coronel Nenenzinho.” Meu avô era chamado derico até pelo folclore. O que é que ele tinha? Lá não tem latifúndio. Eletinha uma fazendinha ainda dentro de Irará e outra perto. Hoje, para oque se chama de latifúndio, a fazenda dele era um roçado,mas erachamado de fazendeiro.

Neusa Santos - O que se chama de fazenda lá, na Bahia, aqui échamado de chácara.

É gozado informar isso. Lá também, um dos maiores municípios dointerior do país, em tudo quantoé canto todo mundo tem “duastarefas” de terra, de seu fulano, de seu sicrano, de seu beltrano.Plantam mandioca, feijão, para comer e plantam fumo para vender nofim do ano. Isso no meu tempo, agora mudou a monocultura. Plantamfumo, o produto que ia exportar, que era para o dinheiro da festa, odinheiro da compra grande e para tudo. Então, quando tinha seca,estava tudo esturricado.A loja de meu pai também estaria

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esturricada.Os negócios todos caíam 60%. Chegava a família para acompra anual. Essa loja foi onde eu frequentei a universidade maissofisticada da minha vida, onde eu aprendi a falar a língua da roça. Eunão sei mais falar a língua da roça agora, mas é importante quando agente conhece duas línguas, porque a capacidade de raciocínio ficatipificada. Todo mundo fala isso.

Hamilton Octavio de Souza - Você tinha tudo para ter viradocoronel lá? O Renan Calheiros de Irará?

Não, não dava. Minha família se dividia no seguinte. Meu avô, 12filhos, 10 vingaram. Naquele tempo, vingar 10 já era uma maravilha.40% era comunista. Uma coisa que ninguém esperava que fosseaparecer naquele lugar. 40%  era católico e uns ficavam lá e cá. E nós,crianças, assistíamos uma coisa maravilhosa: a discussão de todasessas correntes. O mundo sem televisão, sem luz elétrica, sem rádio,pouquíssimo rádio na cidade. Depois do jantar, na casa de meu avô,ficavam, como nós estamos aqui nesse prazeroso momento. Ascrianças não falam nada. Criança não se metia em conversa. Podeestar em qualquer lugar que ninguém liga, contanto que esteja quieto ecalado. E na mesa se falava de tudo. Na mesa tinha um cara qualquerque tinha vindo do leste europeu para fazer alguma coisa no Brasil eque falava alguma coisa de português. Estava uma semana na mesa.Um comunista que estava viajando escondido de não sei aonde e queveio para fazer uma conferência na Faculdade de Direito de Salvadortava na mesa. O vaqueiro de meu avô – para ver como as coisas eram –tava na mesa.E, naquele universo, todo mundo tinha que prestarcontas do mundo através da palavra. Em Irará, praticamente nãohavia dinheiro. Muita coisa era no escambo, mas é claro que dinheirotinha. Mas a moeda importante que circulava no coração e no seio dopovo era a PALAVRA!  A palavra era a riqueza!

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Hamilton Octavio de Souza - Você diz que está no fim e nocomeço, e que sempre volta à origem. O que você faz de trabalhohoje que tem a ver com a sua origem?

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Cecília Luedemann - Você vai beber lá?

É isso. A origem é Irará. Olha que coisa terrível aconteceu com a gente.Quando a gente era criança tinha uma banca de professores no berço.Comigo está Caetano, Torquato, Capinam, Gil, Glauber. Nossascidades, principalmente eu, Caetano e Gil, eram em linha reta 20 kmuma da outra. A educação era absolutamente igual. Um berço e acriança lá. Ninguém ia aporrinhar,ninguém dava brinquedo. Não tinhaporra de brinquedo nenhum. Criança era um futuro investimento dafamília para trabalhar, não era consumidor de brinquedo. Aí a genteestava lá deitado e passava uma empregada que falava muita coisa,uma concepção de mundo que tinha a Provença do século XI e doséculo XII. O que é a Provença do século XI e do século XII e como éque ela foi parar na minha vida?

Quando os árabes estavam nesse período, em Portugal e Espanha, coma tal cultura moçarabe, eles passaram a ser um aglutinador, porqueenquanto a Europa, o Império Romano tinha sido derrubado pelosbárbaros, a península ibérica estava sendo educada pelo povo maiseducado do momento, os árabes. Estavam inventando a pólvora, Deusque me perdoe, mas toda guerra ajudou muito a desenvolver a ciência,essa contradição terrível da vida humana. A loteria que tinhaacontecido com as nossas vidas, lá no berço com as professoras. Osárabes chegaram no século VII ou VIII, nessa hora o Império Romanotinha caído, a cultura tinha falido, e a Europa estava sendo educadapelo povo bárbaro cristão, godos, visigodos, germanos, povocompletamente chulo, não quer dizer que não tivesse uma força alidentro, mas naquele momento completamente analfabetos,ignorantes. E a Europa estava sendo educada por eles, mas a penínsulaibérica, que teve a felicidade de ser invadida pelos árabes, estavasendo educado pelo povo mais inteligente do planeta naquelemomento. Dizem que foram os indianos que inventaram o zero, masdizem também que foram os árabes.

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Agora, para, pensa, imagina o mundo sem o zero. Então, a empregadada minha casa era filha, neta, bisneta, tataraneta do povo que conviveucom os árabes e também se apaixonou pelos árabes. Então, ela, lá emcasa, falava muita coisa de Provença sem sentir. Primeiro, não eraaristotélica essa banca de preceptores babá, era no caso moçarabe.Por exemplo: “É um dia, é um dado, é um dedo, chapéu de dedo édedal.” Olha que povo para brincar com as palavras ! Isso, os poetasconcretos, aqui, cem anos depois viram que era uma coisa Provençal efalaram que isso influenciou a poesia deles. Aí dá para fazer da palavraum jogo, uma bola.

Tatiana Merlino – Como que essa banca de preceptores teinfluenciou e te transformou no artista que você é hoje?

Sim, sim. Eu, Caetano, Gil e todo mundo.

Hamilton Octavio de Souza - Você está falando do Tropicalismo?

Do Tropicalismo. Mudamos a política do nordeste do Brasil. É claroque isso é só uma tese. Aí acontecia uma coisa. Quando nósentrávamos na escola primária, tudo era Aristóteles. E nós éramos,Idade Média, Moçarabe. Aí o professor explicava uma coisaaristotelicamente. Aí vai mudar a política, aristotelicamente. A genteentendia. A gente era muito treinado em raciocinar. O mundo donordestino, conforme diz o Euclides [da Cunha] é muito treinado emraciocinar. Era assim: Isso eu aprendi em Aristóteles.

E como eu faria isso em moçarabe? Ah, muito bem. Mas, não dá oresultado completamente exato, dá uma sobrinha... Então, joga isso nohipotálamo. Tira isso do córtex, para não atrapalhar, porque a genteestá trabalhando aqui, e joga no hipotálamo. Certo? Veja bem, como éo ser humano. No ginásio, milhões de coisas aristotélicas. Nós éramos100% preparados para o mundo. Se não tivesse chegado Aristóteles,teríamos vivido sem ele. O hipotálamo vai ficando cheio de restos, desobras, de lixo lógico. E aí vai o lixo lógico aumentando, aumentando,

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aumentando. Um belo dia, depois da universidade, estamos aqui,tendo que dar opinião sobre o Brasil, sobre o nordeste, aí uma pancadaqualquer na cabeça de alguém, não foi na minha, bateu assim, aí o lixológico desavisadamente disparou para o córtex.  E a pessoa disseassim: “Não, eu sou muita coisa, você não é só Aristóteles, não.” Muitobem, aí essa pessoa falou com outra e essa outra imediatamente ligou,e nós começamos a ver o Brasil e o nordeste com uma visão que nãoera aristotélica dominadora, mas que era, por enquanto, apenasaquela política do diferente. O diferente já é uma política perigosa.

Hamilton Octavio de Souza - Qual a relação da cultura nordestinacom a política?

Eu não tô falando de outra coisa que não de política, de dominador ede explorador. Eu não to falando de outra coisa, só to com outraspalavras. É preciso que tenha aproche diferente. Eu não trabalho empolítica, eu trabalho em música. Se música não tiver de ircolateralmente com a exploração e tudo, a gente tá lenhado. Então,vocês viram esse negócio do lixo. Isso foi a ideia mais fantástica queeu tive em minha vida. Eu podia morrer só por causa dessa ideia. Agente chegava na escola, o professor explicava aristotelicamente, agente comparava com a educação da gente e quando chegava aqui,dizia: “É, dá certo, mas sobra aqui... Joga prá lá, porque a escola é queestá certa.” O ginásio joga uma porrada de coisa, o colégio joga umaporrada, a universidade joga tudo aqui. Aí um belo dia isso foi ficandotão pesado, feito uma aleijado, que a pessoa tem mais coisa nohipotálamo que no córtex. Aí deu uma pancada, pum, a coisa correupara o cérebro: “Peraí, mas o Brasil, naquele tempo, era visto pelaesquerda como um país que deveria permanecer bucólico. Isso éterrível.” Tem a capa da revista da Civilização Brasileira em queaparece um pescador de calça curta com peixe na mão, numa épocaem que o IBGE... Veja, bem como a esquerda pode ser filha da puta.Porque agora eu tenho que falar nome feio apenas para ser baiano.Não que filha da puta seja coisa demais, qualquer um está arriscado.

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Desculpem, mas eu preciso ser bem exato, agora, porque é a hora dogargalo. E isso precisa ficar claro. A minha profissão não é a artemaior, que é a política, a arte de trabalhar aonde vai o dinheiro, aondevai a administração. Não, eu trabalho colateralmente.

Os exploradores continuam explorando, mas a gente está destruindoele, porque tanto no nordeste quanto na cidade está acontecendo umnovo tipo de cabeça que não vai poder aceitar isso. Então, o lixo lógicoestá tentando pensar o Brasil. O que a gente achou do Brasil? A genteestava perto das esquerdas e, de repente, começou a dizer: “Isso nãopode estar certo.” Veja como era terrível nossa situação. Não era comoagora que tem a esquerda, a meia esquerda, o pensamentoindependente. Naquele tempo tinha a esquerda ou a ditadura. E foinaquele tempo que a gente teve que criar um terceiro canal. Aí é duro,meu compadre. Aí é preciso ter rabo. O que foi radicalmenteimportante na hora que o Tropicalismo surgia, no horizonte? Ora,minha gente, isso é bonito. No horizonte, surgia a segunda revoluçãoindustrial, que em cima de cada mesa havia uma máquinadatilográfica. Bom, mas o que vinha, principalmente aqui, oprocessamento de dados, linguagem do cartaz, TV. A televisão iainfluenciar a música. Vejam bem a grande política que aconteceu. Amúsica era feita por um povo teoricamente não politizado, emborafosse pobre. Pobre parece que já é bom na política, mas não é. Éservidor do chefão. Aqui, música era feita pelo boêmio e pelo homemdo morro. Ninguém de família nenhuma queria isso. Aquela moça quefazia música em 1910, Chiquinha Gonzaga, foi um escândalo, mas elaentrou na estirpe dos músicos. Era ser  pior do que prostituta, músiconão valia nada. Acontece que apareceu aqui um objeto político terrívelchamado TV. Isso era uma dominação de massa filho da mãe.

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Débora Prado - Pior que Aristóteles.

É, pior que Aristóteles. Aproveitando perfeitamente Aristóteles. Ele éimportante na fundação desse negócio. Aqui, aconteceu um processoque entra o caipira paulista e Antonio Cândido com o livro Parceirosdo Rio Bonito. Olha, veja como isso é bonito. O parceiro do Rio Bonitovem se equiparar ao nosso moçarabe. Aqui no interior de São Paulotinha uma cultura maravilhosa. Eu nunca estudei, a minha, eu sei queé moçarabe. Pode ser que fosse também. Um povo vivo. A inteligênciado Rio Bonito desencadeou em Roberto Carlos, em Erasmo Carlos eWanderlea. Elesparecem alienação, né? Não, eles foram a forçapolítica que criou uma possibilidade de rebeldia na juventude paraque viesse a aceitar o Tropicalismo. Então, foi o nascimento do poderda televisão.

Quem foi que sabotou a televisão a favor do povo? Roberto Carlos. Seele souber disso, ele chora. Ele nem sabe disso. E também o ErasmoCarlos. Agora, o Roberto Carlos só anda com o padre. Mas, ele fez: “Sevocê pensa que vai fazer de mim, o que faz com todo mundo que teama... Daqui pra frente, tudo vai ser diferente.” Ora, amor está sendo oassunto. Tudo vai ser diferente é universal. Quem é que dizia queamava a gente? Era o poder instituído, também. “Se você pensa que vaifazer de mim...” Quando entra na cabeça uma ideia, ela começa aconfrontar tudo o que está ao seu lado. “Daqui pra frente tudo vai serdiferente.” E outras coisas da ousadia da juventude. Tudo bem. Como,Roberto Carlos era engajado? É, sem saber. {Risos} Roberto Carlos éum lixo, mas acontece que além de ele ser lixo, ele estava aureoloadopelos parceiros do Rio Bonito. Um povo explorado...

Hamilton Octavio de Souza - Você acha que hoje temremanescentes do Tropicalismo ou já não existe mais, acabou?

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A ciência tem uma coisa para a gente não cometer bobagem com essetipo de pensamentoprotetor. A ciência tem uma coisa chamada Teoriados Quanta, de Max Planck. A ciência tem uma resposta calma e exatapara isso. As coisas acontecem na vida com quantuns de energia, quepor acaso se reúnem, ficam irritando uns aos outros e explodem, edepois tem uma certa placidez para ela reunir forças e ir para outrolugar fazer outra coisa. Nós não sabemos que outro lugar se fará outracoisa. Talvez não seja música. Por que música sempre vai ter oprivilégio?

Tatiana Merlino - Então, a gente está vivendo esse momento deplacidez?

A gente está fazendo um momento de repouso. Em alguns lugaresalguns continuam trabalhando. Eu, pelo menos, passo 12 horas pordia, aqui, trabalhando. Vocês veem a América do Norte...

Hamilton Octavio de Souza - Hoje, o que está agitando, que temenergia? Qual a tua avaliação da música?

Eu não sei, não sei. O que é isso? Você está pensando que eu sou o quê?

Neusa Santos - Por que você deu os CDs do grupo Rumo para eles[da Caros Amigos]?

Tatiana Merlino - O que você ouve, hoje?

Eu não ouço música. Tenho horror a música.

Neusa Santos - Mentira. Ele ouve música clássica o dia inteiro.

Não, eu tenho que dizer isso: “Eu tenho horror à música.”

Neusa Santos - Mas, como? Não é isso.

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Calma, calma. {Risos nossos.} Isso tem explicação. Neusa, deixe asminhas estratégias. Eu tenho horror à música. Sabe por que? Porqueeu sou um dos piores músicos que tem no mundo. Quando eu vou ouvirrádio, eu sempre ouço pessoas que estão tendo o privilégio de tocar emrádio. Eu não sou capaz de conseguir tocar em rádio. Então, eu tenhoódio deles. Para mim, eles são uns filhos da puta. A rádio, pior ainda.Eu tenho horror à música. Agora, eu trabalho em música o dia inteiro,é outra coisa de terror. Porque o gênio, no trabalho, chega assim e diz:“Oba, binberobarabá...” Esse binberobarabá vai encantar ocontemplativo das plateias durante um ano e meio e tem dinheirodentro de casa.

Hamilton Octavio de Souza - Quanto custa tocar nos programasde rádio e de TV?

Agora, eu vou lhe dar uma resposta formidável. Um dia nós fizemosum disco que nós pensamos que fosse popular. Eu quis pagar jabá.Mandaram dizer que o meu disco não servia.

Otávio Nagoya - Nem com jabá?

Hamilton Octavio de Souza - Nem pago?

O meu não toca nem pago. {Risos.}

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