Entrevista Juan Pablo Meneses - Sábado - Portugal

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28 8 AGOSTO 2013 D urante dois anos, Juan Pablo Me- neses percorreu 74 mil quilóme- tros em nove países da América Latina, assistiu a 134 jogos de fu- tebol e 89 horas de gravação. Queria tor- nar-se empresário de uma jovem promes- sa de futebol como parte da sua investiga- ção para depois escrever um livro. Acabou por comprar Milo, de 11 anos, ao seu avô (e sim, o verbo correcto é comprar, apesar de se falar em direitos de representação, como afirmou o jornalista ao telefone, do Chile, com a SÁBADO). Escreveu em Niños Futbolistas (crianças-futebolistas), editado em Espanha, que cada vez mais pessoas querem descobrir o novo Messi e “ganhar a lotaria”. Comprou um rapaz-futebolista para o trazerpara Espanha. Porque escolheu este país? Porque é um lugar onde muitos meninos latino-americanos sonham jogar. Pergun- tava-lhes onde gostariam de jogar e ne- nhum dizia clubes dos seus países. E não lhe falavam de nenhum clube português? A maioria dos rapazes não falava de clubes em Portugal nem em França, Alemanha ou Inglaterra. Falavam basicamente de Barce- lona e Real Madrid, e mais do Barcelona, pelo Messi e pelo Neymar. São duas histó- rias muito fortes que mudaram o mercado do futebol. Para estes rapazes há dois ído- los fortes: Messi e Cristiano Ronaldo. Ahis- tória de Cristiano não é tão de telenovela como a de Messi, que é da América Latina e viajou quando era muito pequeno. Perguntei-lhe se tinha comprado um rapaz. Com- prar é o verbo correcto? Comprar é o verbo correcto, que se usa no futebol. Todos sabemos que o Barcelona comprou Neymar. Algumas pessoas dizem que aquilo que se tem é um direito de re- presentação ou uma tutoria sobre estes ra- pazes, mas no fundo é comprar. Comprou o Milo ao avô por cerca de 200 euros? Esses são os preços por que se pode conse- guir um rapaz dessa idade que ainda não tenha assinado um contrato. Mas cada vez é mais difícil encontrar algum com 12 anos Todos os filhos têm um preço Entrevista Juan Pablo Meneses Jornalista chileno, 44anos, tornou-se empresário de um menorpor200 euros para escreverum livro sobre a venda de futebolistas para a Europa. Texto: Sara Capelo D.R.

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28 8 AGOSTO 2013

Durante dois anos, JuanPablo Me-neses percorreu 74mil quilóme-tros em nove países da AméricaLatina, assistiua134jogos de fu-

tebol e 89 horas de gravação. Queria tor-nar-se empresário de uma jovem promes-sa de futebol como parte da sua investiga-ção para depois escrever um livro. Acaboupor comprar Milo, de 11 anos, ao seu avô(e sim, o verbo correcto é comprar, apesarde se falar em direitos de representação,como afirmou o jornalista ao telefone, doChile, com a SÁBADO). Escreveu em NiñosFutbolistas (crianças-futebolistas), editadoem Espanha, que cada vez mais pessoasquerem descobrir o novo Messi e “ganhara lotaria”.

Comprou um rapaz-futebolista para otrazerparaEspanha. Porque escolheu este país?Porque é um lugar onde muitos meninoslatino-americanos sonham jogar. Pergun-tava-lhes onde gostariam de jogar e ne-nhum dizia clubes dos seus países.

E não lhe falavam de nenhum clube português?A maioria dos rapazes não falava de clubesem Portugal nem em França, AlemanhaouInglaterra. Falavam basicamente de Barce-lona e Real Madrid, e mais do Barcelona,pelo Messi e pelo Neymar. São duas histó-rias muito fortes que mudaram o mercadodo futebol. Para estes rapazes há dois ído-los fortes: Messie Cristiano Ronaldo. Ahis-tória de Cristiano não é tão de telenovela

como a de Messi, que é da América Latinae viajou quando era muito pequeno.

Perguntei-lhesetinha compradoum rapaz. Com-prar é o verbo correcto?Comprar é o verbo correcto, que se usa nofutebol. Todos sabemos que o BarcelonacomprouNeymar. Algumas pessoas dizemque aquilo que se tem é um direito de re-presentação ou uma tutoria sobre estes ra-pazes, mas no fundo é comprar.

Comprou o Milo ao avô porcerca de 200 euros?Esses são os preços por que se pode conse-guir um rapaz dessa idade que ainda nãotenha assinado um contrato. Mas cada vezé mais difícilencontraralgumcom12 anos

Todos osfilhos têmum preço

Entrevista

Juan Pablo MenesesJornalista chileno, 44anos, tornou-seempresáriodeum menorpor200eurospara escreverum livrosobrea venda defutebolistaspara a Europa. Texto: Sara Capelo

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nessas condições. Imagine como é naAmé-rica Latina, onde o futuro desses meninospode significar o desenvolvimento econó-mico das famílias. É muito forte.

Quando perguntou ao Milo o que faria com odinheiro, caso tivesse a sorte de se tornar umfutebolista, ele respondeu que compraria pro-dutos de mercearia, como açúcar.Sim. Perguntei-lhe também a pensar queele me iria dizer um carro grande, despor-tivo parasair e estar com modelos. Mas eledizia-me que queria um automóvel bompara o usar para trabalhar. E isso demons-traque se vê o futebol como umaformadesairdapobrezae pagaras necessidades mí-nimas. E não se tem consciência dos mi-

lhões que se pode ganhar. Estes rapazessão, no fundo, uns trabalhadores que porvezes se traficam de um continente paraoutro como escravos, mas que no fundonão deixam de ser rapazes que estão a jo-gar futebol.

Diz que apenas 1% dos rapazes têm sorte e porissoacha queoMiloéum em centenas,ou milha-res. Mas e se ele tiver, o que fará o Juan Pablocom o dinheiro?Amaioriadestes rapazes, paranão dizerto-dos, não chegam [a ser bons jogadores].Digo-lhe que não vai triunfar, porque é oque dizem as estatísticas. Seria como ga-nhar a lotaria. Esta é a ambição de empre-sários: “Podemos comprarrapazes baratos

e pode calhar-nos o novo Messi ou o novoCristiano Ronaldo, comprando-o barato.”O que me vai acontecer, caso ganhe a lota-ria, será tema para outro livro.

Falou com os pais de muitos rapazes, pergun-tando-lhes porquanto vendiam os filhos. Quaiseram as suas reacções?Amaioriados pais, se não forem todos, es-tão dispostos a escutar uma oferta. Por al-gum motivo vão aos treinos, seguem os fi-lhos [nas suas carreiras]. E paraos pais, to-dos os filhos têm um preço. Para os paisdos futebolistas, muito mais.

Em Portugal, há um jogador, Bruma, que se dizquepodesermuitobom. Eleassinou com oSpor- �

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ting quando tinha 13 anos e veio da Guiné. Ago-ra, com 18, está em litígio com o clube: o seuadvogado diz que o contrato que assinou não éválido e que, como é maior, está livre para umoutroclube. Encontrou problemassemelhantes?Há muitos casos como o de Bruma. Quan-do eu estavaafecharo contrato com o meujogador, recorri a um advogado e managerde jogadores. Ele explicou-me que cuida-dos se deve ter para que isso não aconteça.A compra de rapazes-futebolistas é muitoarriscadae umdos maiores perigos é acon-tecer o mesmo que ao Sporting.

Bruma tem um tutor que é praticamente comofamília para ele e é muito importante nas suasdecisões. Estes rapazes que viajam para a Euro-pa também vêm acompanhados de tutores?O tutor é uma peça-chave, porque é a figu-ra jurídica que se usa numa venda. Não seestáavender um rapaz de 10 anos. Ele pas-sa a estar a cargo do tutor. Todos os novoscontratos têm essa figura. E até eu sou um.

Com que idade se compram futebolistas? Creioque o Real Madrid contratou um com 7 anos,mas na Holanda há um caso com 18 meses.No livro mostro a obsessão por conseguiros jogadores cada vez mais baratos. Mara-donachegouàEuropacom22 anos, depoisSaviola com 17 anos. Messi aos 13. Agoraestão a chegar miúdos com 10 anos. E naHolanda contratou-se uma criança de 18meses. No futuro vão contratar-se rapazesantes de nascerem. Tal como no hipismo:[a escolha far-se-á] por questões de gené-tica. Na América Latina estão a instalar-semuitas escolas de futebol do Real Madridedo Barcelona. Um rapaz está nessa escola elevam-no logo para a Europa. É a típica re-lação comercial entre a Europa e a AméricaLatina: aquitem-se amatéria-primae aífaz-se valor com ela.

Como o filho do jogador do Manchester City KunAgüero e da filha de Maradona?Sim. Esse é o exemplo de um rapaz que an-tes de nascer já tinha um contrato.

Porque é que diz que Messi é um erro de amos-tra? O sonho de terfuturo na Europa não é real?O caso de Messi é único: de um rapaz quese compra por 13 mil euros e, em poucotempo, vale 130 milhões de euros. E quan-do é algo único, em termos estatísticos, éumerro de amostra. O problemaé que estecaso acordou a ambição dos empresáriospelo mercado das crianças-futebolistas. É

o primeiro jogadordo mundo que é BoladeOuro, levado de um continente a outro, eque foi separado da família aos 13 anos.Isso não é real. É muito difícil.

Também conta a história de Aimar Centeno, quehoje vende sodas para sobreviver.É umargentino que ganhouumreality showcujo prémio erajogarno RealMadrid. AAr-gentina vivia em plena crise económica e

aquele programade televisão procuravajo-vens menores de 14 anos que queriamtriunfar [no futebol]. Ele foi a Madrid. Es-teve no balneário com Figo, Zidane e foitreinar. Tinhatantavontade de triunfar, desairdapobrezaque, no seujogo dedemons-tração, correu muito e lesionou-se. E a suacarreira ficou por aí. Porque estes rapazes,tal como são baratos, também são muitodescartáveis. Se não funcionas para umjogo, arranja-se outro. Ele voltou à Argen-tina, esteve numclube daprimeiradivisão,mas estava muito mal psicologicamente.Foi para a segunda. Agora ainda é da idadede um futebolista no activo, 26, 27 anos, ejoganum clube de provínciade Buenos Ai-

res. É a demonstração clara de que isto écomprar e deitar para o caixote do lixo atéque algo resulte.

É verdade que outros rapazes foram contrata-dos e hoje são indigentes?E são muitos. Quando chegam, têm tudo.Quando fracassam, têm muito pouco. NaAméricaLatinahátrês países de onde se le-vammais crianças: os mais caros são os bra-sileiros; os uruguaios, que têmmelhorren-dimento porquepodemjogarbememqual-quer ambiente; e os argentinos, que saemem maior quantidade porque têm passa-portes europeus e são mais.

Disseram-lhe que é preferível que um jogadorvenha de um bairro difícil?Sim, todos me dizemisso. Porque isso mar-ca o temperamento desses jovens. No Mé-xico, com a guerra ao narcotráfico, ou naColômbia e no Peru, atribui-se um valormuito positivo à violência e precariedadeno futebol. Dizem: “Se este tipo pode sur-girdeste lugar, naEuropavaiserumêxito.”

Têm mais vontade?E força. Aqui usamos a expressão: “Tienenhambre!” [Têm fome]

Éverdadequealgunssupermercadostêm direi-tos sobre futebolistas?Sim. O Barcelonacomprouo Neymarpor53milhões de euros, dos quais apenas 20 mi-lhões foram para Neymar e o seu ex-clube.O restante foi para vários intermediários.Umaparte erade umacadeiade supermer-cados brasileira, outra de um grupo de in-vestimento russo, outra de um milionáriodasuacidade. Os jogadores e os rapazes-fu-tebolistas são verdadeiros fundos de inves-timento.

Porque é que diz que a contratação de Neymaré um fracasso para o Barcelona?O Messi custou 13 mil euros e este 53 mi-lhões. Nesse sentido é um fracasso, porquenão conseguiramtiraro novo Messidacar-tola. O Barcelona é a máquina perfeita: nãohá no mundo um rapaz de 14 ou 15 anos eque seja muito bom que já não tenha sidodetectado pelo Barcelona. Este clube temumandarcomjogadores de todo o mundo,daArábia, daÁsia, daAméricaLatina, quevi-vem longe da família. E o mais perfeito éque o fazia com uma camisola a dizer Uni-cef: amarcaqueestácontrao trabalho infan-til e a favor dos direitos das crianças. �

Na Holandacontratou-seuma criança

de 18 meses. No futurovão contratar-se rapazesantes de nascerem

ENTREVISTA�

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30 8 AGOSTO 2013 SÁBADO