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OS DESLOCAMENTOS E AS PERTUBAÇÕES NO CINEMA DE KARIM AÏNOUZ Entrevistas Slideshow — 15 maio 2014 Karim Aïnouz © Joe Dilworth Doze anos depois de estrear em longas-metragens com “Madame Satã”, em 2002, exibido dentro da mostra Un Certain Regard, em Cannes, Karim Aïnouz chega, enfim, à considerada elite do cinema, competindo com seu quinto longa, “Praia do Futuro” (2014), dentro da seleção oficial do 64° Festival de Berlim, que ocorreu em fevereiro deste ano. No meio do caminho, o brasileiro, nascido em Fortaleza/CE, em 1966, dirigiu os longas “O Céu de Suely” (2006), “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo” (2009), em parceria com Marcelo Gomes, ambos selecionados para a Mostra Orizzonti, do Festival de Veneza, e “O Abismo Prateado” (2011), selecionado para a Quinzena dos Realizadores, de Cannes, além da série televisiva “Alice” (2008), feita ao lado de Sérgio Machado. Filho de mãe brasileira com pai argelino, neto de um dos fundadores da Frente de Libertação Nacional, grupo que comandou o processo de independência da Argélia, Karim saiu de casa cedo, aos 16 anos, e rodou o mundo. Morou em Brasília, Rio de Janeiro, Nova York, Paris etc. Graduado em Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de Brasília, mestre em Teoria e História do Cinema, pela New York University, Karim trabalhou como assistente de montagem e direção de longas como “Veneno” (1991), de Todd Haynes, “Swoon” (1992), de Tom Kalin, e “Arizona Dream” (1993), de Emir Kusturica, ao passo que começava a realizar seus primeiros curtas – “O Preso” (1992), “Seams” (1993), “Paixão Nacional” (1994) e “Hic Habitat Felicitas” (1996). Hoje, Karim fica entre Berlim, Fortaleza e São Paulo. Tal fator biográfico é forte em seu cinema: seus personagens estão sempre em deslocamento, em busca de algo que, muitas vezes, não sabem o que é. Em “Praia do Futuro”, não é

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OS DESLOCAMENTOS E AS PERTUBAES NO CINEMA DE KARIM ANOUZEntrevistasSlideshow 15 maio 2014

Karim Anouz Joe DilworthDoze anos depois de estrear em longas-metragens com Madame Sat, em 2002, exibido dentro da mostra Un Certain Regard, em Cannes, Karim Anouz chega, enfim, considerada elite do cinema, competindo com seu quinto longa, Praia do Futuro (2014), dentro da seleo oficial do 64 Festival de Berlim, que ocorreu em fevereiro deste ano. No meio do caminho, o brasileiro, nascido em Fortaleza/CE, em 1966, dirigiu os longas O Cu de Suely (2006), Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo (2009), em parceria com Marcelo Gomes, ambos selecionados para a Mostra Orizzonti, do Festival de Veneza, e O Abismo Prateado (2011), selecionado para a Quinzena dos Realizadores, de Cannes, alm da srie televisiva Alice (2008), feita ao lado de Srgio Machado.Filho de me brasileira com pai argelino, neto de um dos fundadores da Frente de Libertao Nacional, grupo que comandou o processo de independncia da Arglia, Karim saiu de casa cedo, aos 16 anos, e rodou o mundo. Morou em Braslia, Rio de Janeiro, Nova York, Paris etc. Graduado em Arquitetura e Urbanismo, na Universidade de Braslia, mestre em Teoria e Histria do Cinema, pela New York University, Karim trabalhou como assistente de montagem e direo de longas como Veneno (1991), de Todd Haynes, Swoon (1992), de Tom Kalin, e Arizona Dream (1993), de Emir Kusturica, ao passo que comeava a realizar seus primeiros curtas O Preso (1992), Seams (1993), Paixo Nacional (1994) e Hic Habitat Felicitas (1996).Hoje, Karim fica entre Berlim, Fortaleza e So Paulo. Tal fator biogrfico forte em seu cinema: seus personagens esto sempre em deslocamento, em busca de algo que, muitas vezes, no sabem o que . Em Praia do Futuro, no diferente. Donato (Wagner Moura) um salva-vidas da Praia do Futuro, em Fortaleza. Aps no conseguir salvar uma pessoa no mar e encontrando um novo amor, o alemo Konrad (Clemens Schick), Donato parte para Berlim, deixando para trs seu irmo Ayrton. Oito anos depois, Ayrton (Jesuta Barbosa) parte em busca de Donato.Em entrevista exclusiva para a Revista de CINEMA, diretamente de Berlim, Karim Anouz conta sobre o processo de criao de Praia do Futuro e sobre algumas caractersticas importantes e recorrentes em seu cinema.Revista de CINEMA Como surgiu a ideia para o Praia do Futuro?Karim Anouz Estava muito a fim de fazer um filme que tivesse mais ao e menos contemplao, o contrrio de meus filmes anteriores; queria brincar com um pouco mais de tenso. Queria me engajar com certos cdigos tradicionais do cinema, trabalhar com o melodrama. Tambm queria um personagem que tivesse uma profisso com uma questo de vida ou morte. O cinema, pra mim, sempre uma questo de vida ou morte, no pode ser simplesmente um desejo raso. Pensei, assim, num personagem salva-vidas, com questes que me interessam mais intimamente. Sempre tive essa imagem de um personagem que quer se mudar, mudar de vida, comear tudo de novo. Coisa que fiz muitas vezes na minha vida e que me tornou mais tolerante, com um repertrio maior. E a Praia do Futuro que meio que minha casa, frequentava muito l, lugar pra onde sempre volto traz o mar, coisa que sentia estar presente em todos os outros filmes. Nisso, pensei nesse personagem que ficava sempre olhando para o mar, que era uma coisa que eu fazia bastante quando jovem, em Fortaleza e tem a coisa da praia que olha para o norte, e no para o leste, como em boa parte do Brasil. Isso tudo muito abstrato, mas foi o ponto de partida do filme. Tinha vontade de fazer um filme sobre irmos nunca tive irmo e nem vou ter , dois irmos que se separam e depois se reencontram e fazem as pazes. Comeo pensando em tons, imagens, conceitos e depois isso vira uma histria. Essa histria dos irmos a histria de Berlim, dois irmos que esto juntos, se separam e depois se juntam novamente, para virar outra coisa que no sabemos direito o que .

Os atores Clemens Schick, Wagner Moura e Jesuta Barbosa, em Praia do Futuro: relaes afetivas fazem a ligao entre Cear e Berlim. Alexandre ErmelRevista de CINEMA Essa percepo que teve sobre Berlim veio da vivncia na cidade?Karim Berlim sempre me encantou muito porque tem uma coisa muito singular nela: foi a nica cidade do mundo a ser capitalista e comunista ao mesmo tempo. No fao cinema s porque quero contar boas histrias. Cinema para falar do mundo tambm. uma maneira de pensar o mundo, seno fica pequeno. No tem nada disso no filme, mas ele parte desse lugar. Como um lugar que teve metade capitalista e metade comunista se entende depois? Isso est um pouco na histria dos dois irmos, que esto em pontos diferentes, se reencontram e vo para um lugar em que no sei onde . Isso algo que me interessava explorar no sentido ntimo: como contar uma histria que tambm a histria da cidade? Queria terminar o filme num tom potico, num lugar abstrato, desconhecido. Falo que numa praia no mar do norte, mas podia ser na lua. Tem um trabalho de som, inclusive, nada realista. O desejo de falar de uma experincia contempornea: para onde estamos indo? No que voc pense isso, mas reflete de onde veio a motivao para escrever o filme.Revista de CINEMA Voc j residia em Berlim quando escreveu Praia do Futuro?Karim O roteiro uma carta de saudade. Morei em Berlim em 2004 [por conta da bolsa Berliner Knstler Program do DAAD] e voltei para o Brasil, onde fiz O Cu de Suely, Alice e Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo. E fiquei com uma saudade enorme de Berlim, uma cidade que est tentando se achar meio como o Brasil. Em 2008/2009, me encontrei com a Gergia [Costa Arajo, produtora do filme], e contei que queria fazer um filme que se passasse na Praia do Futuro e um que se passasse em Berlim. Quando encontrei o Felipe [Bragana, corroteirista], chegamos a uma histria que se passava nos dois lugares, o que parecia meio absurdo, porque eram lugares muito distintos. Tentamos encontrar uma razo potica. Ento, o filme tem mais a ver com a saudade do lugar do que com o fato de estar aqui hoje. O filme encarnou essa vontade, tornou-a um objetivo concreto. Vim morar em Berlim entre 2009 e 2010, com o filme j em processo. Mas sempre voltei Praia do Futuro, a cada seis meses, quando ia visitar minha me. Depois da casa dela, sempre ia praia.

Karim com os atores Jesuta Barbosa e Sophie Charlotte Conrad durante as filmagens de Praia do Futuro, em BerlimRevista de CINEMA Como se deu a parceria com o Felipe Bragana e como se d a relao na prtica?Karim Conheci o Felipe atravs do roteiro de No Meu Lugar [2009], do Eduardo Valente. E gostei muito do jeito que o roteiro foi escrito. Conheci o Felipe, ento, pessoalmente, e o convidei para ser assistente de direo em O Cu de Suely, mas ele era muito ruim na funo, no era o negcio dele. Deixei-o como diretor-assistente, dirigindo algumas cenas. E, no processo, acabamos trocando muitas ideias sobre o roteiro que foram incorporadas. O Felipe um autor, no sentido literrio. A escrita dele linda, muito potica, muito numa linha do que me agrada. A carta que ele escreveu para o Desassossego exemplo disso. Quando fui fazer o Praia do Futuro, o chamei para participar e foi timo. O Felipe um cara, tambm, muito ligado ao imaginrio dos super-heris, conhece muito quadrinhos. Eu no conheo nada, mas queria isso no filme, porque o Donato meio um super-heri da vida real, h vrias referncias a isso o irmo o chama de Aquaman, por exemplo. Ele veio para Berlim algumas vezes. Conversvamos muito sobre o processo, sobre o filme, sobre o que nos interessava. s vezes, andvamos pela cidade, tomvamos um caf. E a ele ia embora, para o hotel onde estava, ou para algum lugar mais reservado, e escrevia. Escrevia bastante, sem parar. No dia seguinte, lamos e conversvamos sobre o que estava escrito, o que podia melhorar etc. Dessa vez, ele no esteve no set quando filmamos, mas se tinha algo que achava que estava faltando, algum dilogo que achava que no estava funcionando, ligava pra ele e logo ele me mandava uma sugesto nova.Revista de CINEMA Praia do Futuro est sendo desenvolvido j h vrios anos, mesmo antes de O Abismo Prateado. O que fez com que o projeto demorasse esse tempo para ficar pronto?Karim O filme demorou para ficar de p, no s o roteiro, como tambm financeiramente. um filme que envolve dois pases que no tm prtica de dilogo. Demoramos a conseguir uma coproduo, a levantar dinheiro um filme um pouco mais caro, envolve muita viagem etc. Demorou tambm um tempo para ser gestado. No meio do processo, apareceu O Abismo Prateado. Era um projeto super bacana e resolvi no ficar esperando aparecer o dinheiro. Quando O Abismo Prateado ficou pronto, voltei para o Praia do Futuro e por isso s lancei O Abismo depois de filmar o Praia.

Wagner Moura, em cena de Praia do Futuro, interpreta Donato, um salva-vidas angustiado que foge para a Alemanha. Alexandre ErmelRevista de CINEMA Por que escolheu o ttulo Praia do Futuro, que o nome do bairro de Fortaleza onde se passa parte do filme, sendo que a maior durao do longa se passa em Berlim?Karim O ttulo do filme comeou como o nome de um lugar, mas acho que a razo de adorar esse nome, para alm de descrever um lugar pleno de memrias para mim, que sempre achei esse nome to bonito. Praia tem algo do porvir, que meio sinnimo do futuro. E acho que a Praia do Futuro do ttulo nem o local em Fortaleza, mas sim no porvir, no final do filme. Alm da questo literal do bairro, tem a coisa de Berlim ser meio uma cidade do futuro, que aponta para frente, uma cidade cheia de tragdias e tentando digeri-las para seguir.Revista de CINEMA Nos seus filmes, muito forte a caracterstica de no-pertencimento dos personagens, de precisarem sempre andar, viajar, para tentarem se encontrar. Por que te interessa tambm esse vis?Karim o meu quinto filme e tem umas coisas que no so bem planejadas. Outro dia me falaram: todos os seus filmes terminam em estradas, com exceo do Madame Sat. E no que verdade? No foi algo que eu tenha pensado muito. Mas o que importa se pensei ou no? Meus filmes me parecem to diferentes, mas tem coisas que so inevitveis, so as questes que te perturbam. Quando voc faz arte, que uma expresso subjetiva, h sempre questes recorrentes, o que a psicanlise chama de lapso. Todos os meus filmes tm personagens meio deslocados. Me perguntam se meus filmes so autobiogrficos: todos so um pouco e todos no so. Tem que ser um pouco tambm, mas no acho que seja calculado, que quero fazer sobre um personagem que no-pertence. Sou um pouco assim, sa de casa aos 16 anos, fui rodar o mundo, morei em mais de 15 casas e isso me fez um cara muito feliz, menos medroso, mais tolerante, sem medo de se arriscar. Claro que vai engrossando a casca. a expresso talvez de uma experincia ntima, mas tambm no s isso, seno fica meio narcsico. So personagens procura de alguma coisa, mais do que no-pertencimento. Eles no sabem direito o que . Madame Sat, Suely, Z Renato [protagonista de Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo], a coitada do O Abismo Prateado, esto todos possudos por uma inquietao. O Donato nunca fala porque ele sumiu. Temos uma inquietao ontolgica. Quem no inquieto, paralisado. Acho que o no-pertencimento de um jeito ou de outro gera inquietao. A vida assim: se voc est achando que est tudo bem, tem um problema. O no-pertencimento fermenta isso. Acho que importante o no-pertencimento como plataforma para falarmos do que estar no mundo hoje, a partir de um desconforto, que talvez seja uma palavra mais precisa, um desconforto produtivo.

Alessandra Negrini em O Abismo Prateado, filme sobre o no-pertencimento para explicar o mundo de hoje a partir de um desconfortoRevista de CINEMA Em Praia do Futuro, essa sensao de no-pertencimento extrapola as fronteiras nacionais. A ida para Berlim traz uma ideia forte de recomeo, de reinveno. Por que isso?Karim Sa muito novo, aos 16 anos, para morar em Braslia, e depois fui para Frana, aos 18, passar trs meses l. No tinha dinheiro, comprei uma passagem barata, fiquei estudando francs e foi muito bacana. Nem sei se o Donato se encontrou. Ele saiu de casa e bateu a porta, no voltou mais, foi ver como era o mundo l fora. Isso talvez seja o elemento mais importante do filme. um cara que saiu da gua e entra na vida adulta. Tinha uma coisa na minha gerao porque talvez fosse mais difcil sair de casa, de Fortaleza para So Paulo, de Iguatu para Fortaleza, coisas que fui fazendo no decorrer da minha vida , voc no saa e voltava, voc saa; era algo meio violento, mas muito bonito. Hoje em dia, no d mais pra sumir, como o Donato fez. Algum vai te achar de algum jeito. No filme, h algo muito geracional nesse sentido. Ele se aventura, se joga. Tenho uma sensao de que a nossa gerao se arriscava mais. Me parece que o mundo contemporneo muito pautado pelo medo, que se arrisca menos, porque tudo muito competitivo. Sinto falta do risco no mundo. A extrema direita na Europa muito forte e se calca muito no medo dos outros. Portanto, no me parece algo da fronteira nacional. Ele atravessa o Atlntico, ele mergulha e sai em Berlim, para comear de novo. Sempre achei que as pessoas tm vontade de se jogar no mundo e serem outras pessoas. Importa a travessia para outro lugar para ser outra pessoa. Esse o lado mais metafrico do filme. Mais do que se encontrar, me interessava mais o salto.Revista de CINEMA Outra caracterstica forte em seu cinema a sensao de abandono de seus personagens. Como trabalha isso?Karim Minha famlia uma famlia tpica brasileira, em que os homens iam e as mulheres ficavam. Os homens tinham a liberdade de ir porque no engravidam, precisam ganhar dinheiro. Os homens da minha famlia vo muito embora e essa sensao de abandono de meus personagens talvez venha de algo muito pessoal. O abandono no produz vtimas necessariamente, pode produzir heris, vida tambm. Na minha famlia, nunca ningum virou vtima por causa do abandono, todo mundo fez sua vida. Achava importante falar disso. No cinema, bom voc ver os outros se fuderem, pois a gente sai falando ao menos, no me fudi tanto. Era importante, pra mim, falar que a vida dura, somos todos abandonados em algum momento quando nascemos no estamos mais no corpo da me, por exemplo , e que isso produz vida tambm.

Hermila Guedes em O Cu de Suely, onde Karim exerce um intenso trabalho corporal relacionado ao contexto do filmeRevista de CINEMA Em seus filmes, tambm muito forte sua relao com o filmar a sexualidade e o corpo em ao. Por que isso?Karim Isso foi acontecendo por acaso. Em Madame Sat, pra mim, o personagem estava vivo no por questes msticas, mas porque lutou a vida inteira, fisicamente, danava etc. Falaram da questo do corpo. No tinha pensado nisso. Depois me dei conta de que adoro filmar corpos. Acredito muito no momento do aqui, agora. A presena do corpo e a fisicalidade me interessam. Se viajo, por exemplo, no consigo muito ficar no email etc., preciso sair, ficar com as pessoas. algo muito fsico. O mundo me d prazer pela presena fsica nele. A presena do corpo na tela muito potente. Fiz um curta nos anos 1990 [Hic Habitat Felicitas], com plano fixo, mesma lente, e algo me incomodava. Sentia a necessidade de ficar prximo aos personagens. Os outros filmes vieram nessa toada. Gosto de filmar presena humana, gente respirando, cantando, danando, fazendo aes vitais, como sexo, dana, comida, viagem, que so aes muito presenciais. Em O Cu de Suely, j trabalho bem isso, a presena corporal dentro de um espao, um contexto. No h coisa melhor do que comer, fazer amor, danar, ento, acho importante documentarmos isso e o cinema muito potente para tal.Revista de CINEMA A temtica homossexual, em algum momento, foi uma questo para voc? Como trabalhar esse tema e por que utiliz-lo?Karim De um lado, havia um desejo de fazer uma coisa que nunca havia feito. Me interessava muito fazer um melodrama masculino, gnero muito ligado ao feminino. Nos anos 1970, no tinha videogame e computador, tinha novela, que era basicamente melodrama. Por isso, a questo homoafetiva, homoertica no filme. Ns homens temos uma maneira de negociar afeto de modo muito particular e queria adentrar nisso. Como so dois homens que so irmos? Como so dois homens que so amantes? Dois homens que so inimigos? Como se d o afeto entre homens? Acho que o filme tem essas camadas todas. Tem o amor e o dio entre dois irmos, entre dois amantes. Isso me interessava mais do que trabalhar a homossexualidade por si s. Me interessava falar tambm o que era uma relao afetiva e sexual entre dois homens. Mas no d para falar que tanto faz. No acho que seja um assunto neutro. Nunca ningum me perguntou por que escolhi fazer um filme sobre um personagem heterossexual (risos). Acho que isso fala de um estado de coisas do nosso mundo. Claro que uma prtica sexual de exceo, se no essa pergunta no teria sido feita, mas acho importante atac-la. Estamos em 2014. Era importante falar da relao entre dois homens sem o peso da questo, sem precisar justificar. bvio que aquilo tem um peso dentro da histria, porque o Donato do exrcito, vem de um lugar muito homoertico, mas tambm muito homofbico. Quando o irmo fala voc foi dar o cu escondido no polo norte, tem isso tambm, mas ele foi fazer outras coisas. No queria partir de um pressuposto de que isso era um problema capital para o personagem do Donato, mas sim para o irmo, que pergunta logo de cara. Donato no responde. um problema ficar discutindo casamento gay, porque casamento gay tem que existir e pronto, tem que ter casamento de tudo. Tem que falar sobre o que est acontecendo na Sria, sobre o preo da passagem no Brasil, isso sim muito mais importante. Queria falar disso subjetivamente. Fui fazendo um filme atrs do outro com personagens femininos muito fortes e queria falar que sei fazer outra coisa, que falar do masculino. Hoje, est todo mundo fora do armrio, mas no bem assim. No Brasil, ainda se matam 300 homossexuais por ano. uma questo sim. O personagem Donato tem uma certa vergonha de no conseguir falar para o irmo. Em geral, temos personagens trgicos, que no conseguem falar isso e morrem, ou personagens muito bem resolvidos. Era importante ter uma sutileza no personagem do Donato, ao mesmo tempo em que aquilo no lhe uma questo, porque ele aceita, no h dvida, tambm o muito ali no seu ntimo. Mas penso que falo mais do masculino do que do homossexual.Revista de CINEMA Como se deu a escolha do elenco: Wagner Moura, Jesuta Barbosa e Clemens Schick?Karim A vontade de trabalhar com o Wagner j vem de um bom tempo, j vnhamos conversando, mas no tinha papel pra ele. J tinha at falado pra ele pensar numa histria, que eu faria. Quando escrevi o Praia do Futuro, mandei pra ele o roteiro e ele adorou, me ligou super emocionado, e fiquei feliz. Queria muito algum que fosse de Fortaleza, mas o Wagner poderia ser de l; o fsico importante pra mim. O Donato um personagem muito silencioso, fala e explica pouco. O Wagner tem um carisma to impressionante e acho que ele fala muito nos filmes. Queria coloc-lo num lugar mais lacnico, a potncia estava muito ali. O Jesuta veio de uma pesquisa de elenco, h uns trs anos, antes do Tatuagem [2013]. Quando bate, bate. Em teste de elenco, tem a cena e tem tambm os atores sem fazer nada, filmados num close pra mim, o que mais importa em teste de elenco open call. O Jesuta tem um mistrio que no se entende quem aquela pessoa; s vezes, meio menino, s vezes, meio homem, meio violento, meio misterioso. O Clemens tambm veio de uma procura de elenco na Alemanha. Queria um ator famoso. O Clemens nem era to famoso. Assisti batelada de testes de atores famosos e quis abrir mais. Foi quando recebi o teste do Clemens e foi muito bacana. Morria de medo de fazer um filme com um alemo bonito, loiro, alto. E o Clemens at loiro, bonito, mas tem uma cicatriz, todo meio bagunado, meio rocknroll. Queria que o personagem fosse a encarnao do rocknroll. E o azul do olho dele me lembrava o azul-verde do mar de Fortaleza, que onde o Donato tinha que se perder. tambm um ator de poucas palavras, assim como o personagem, o nico que no tem arco dramtico, fica ali jogando luz nos dois irmos. Quando ele mandou o teste, estava no Brasil, no o conhecia. O Clemens um ator que faz uns espetculos teatrais solo, com muita ao fsica, e trabalha muito com a fotgrafa Nan Goldin.

Jesuta Barbosa, Karim Anouz, Wagner Moura e Clemens Schick. Joe DilwortthRevista de CINEMA Como foi trabalhar com eles com relao s lnguas?Karim Ningum falava a lngua do outro. Quando as pessoas se encontram, elas falam, em geral, em ingls, o ponto mdio. Mas o Jesuta no falava ingls, ele falava cearencs (risos). No filme, tem isso, os personagens no conseguem plenamente se comunicar. Era importante que eles no se entendessem direito, por isso escolhi que no aprendessem a lngua do outro e proibi o ingls, tem apenas uma ou outra fala. O Jesuta foi o que aprendeu mais. Queria que ele aprendesse uma espcie de alemo do Google Tradutor, todo enviesado, de quem ficou praticando oito anos na frente do computador, e ele comeou a ter uma embocadura de quem estudou. O Wagner e o Clemens, nos ensaios, se comunicavam em ingls e depois aprenderam as falas. Algumas foram dubladas. Eu, que adoro improvisar, no tinha como fazer isso, porque os atores tinham que aprender as falas com o coach, mas tem muitas cenas silenciosas entre eles que era do fato de no falarem a lngua do outro. Ficaram poucas falas e me parece bom pros personagens.Revista de CINEMA Como foi trabalhar com uma equipe mista? H alguma diferena em filmar no Brasil e na Alemanha?Karim Foi trabalhoso. Cem por cento da equipe no falava a lngua do outro, ento falvamos ingls. Mas no era s a lngua que fazia ser trabalhoso. Era a questo do mtodo de trabalho, do processo. O alemo est acostumado a planejar o ano inteiro. Ns planejamos o amanh. Tinha uma coisa, culturalmente, de encaixar as equipes, que deu trabalho. Gerenciar a coproduo foi complicado. Havia uma coisa comum: o ofcio de fazer cinema. a mesma tribo. Atravs da prtica, nos encontramos culturalmente. Filmamos as primeiras cinco semanas na Alemanha e depois mais trs no Brasil. Tem uma coisa que engraada l. No Brasil, voc filma e no ltimo dia tem a festa da filmagem, todos ficam bbados, come todo mundo. L, no. So cinco semanas. Depois de duas, voc faz uma festona, quando tudo est meio encrencado, e fica todo mundo doido, e ali tudo se junta. Da pra frente, foi super tranquilo.Revista de CINEMA A msica tambm costuma ter um papel forte em seus filmes. Em Praia do Futuro, David Bowie tem um peso grande nos crditos, com Heroes em sua verso alem. Como a msica se relaciona na sua obra?Karim A minha relao com a msica totalmente intuitiva. Quando vou fazer um filme, tenho algumas canes na cabea que meio que o norteiam. O Praia do Futuro talvez tenha comeado pelo Heroes. Queria fazer um filme que tivesse a alegria e a melancolia, a harmonia, a batida dessa msica. a semente do filme. Quando vi Eu, Christiane F., 13 Anos Drogada e Prostituda [1981], no me lembrava que tocava Heroes. Descobri a msica quando morei na Inglaterra, nos anos 1990, e pra mim a msica mais linda que j ouvi na vida. Quando quis falar de casa, a msica tinha que entrar. Ela tinha que estar no filme mais como tom dele do que como trilha. Sempre que tentava encaixar a msica no filme, parecia um videoclipe. Mas no dava para termin-lo sem Heroes. Na preparao do roteiro, vi Christiane F. de novo e percebi a msica. No me lembrava que Heroes falava do muro, que sobre Berlim. Coloquei nos crditos porque queria que as pessoas sassem lembrando da msica e do filme juntos. Nos meus outros filmes, no tem muita trilha. Nesse, como mais melodrama, senti falta. No entendo muito de msica, mas gosto do uso de uma trilha que se repete no filme inteiro. Chamei o Volker Bertelmann e ele fez umas quinze msicas, tadinho, e acabamos usando s umas duas, porque queria esse efeito. Cheguei a ir para o estdio dele e amos encaixando na cena. A msica meio que perfura o celuloide e o celuloide comea a sangrar e a respirar. Foi assim, fui sentindo a trilha.Revista de CINEMA Praia do Futuro seu primeiro filme a participar da competio principal de um dos grandes festivais europeus, no caso Berlim. Como isso? Muda algo?Karim No sei se muda (risos). Tudo exponencial, o pblico, a tenso, o sucesso, a crtica. Pode ser at que volte para a segunda diviso, mas um pouco como se estivesse jogando na primeira diviso do futebol. Foi um momento bom, algo timo na minha idade, mas quero continuar fazendo cinema, independente de estar na competio dos festivais grandes. Tive um reconhecimento maravilhoso com o primeiro filme em Cannes, no Un Certain Regard, e dez anos depois entrei na competio. um reconhecimento de que continuo trabalhando. Fiz l tambm a conferncia de imprensa enorme, com jornalistas do mundo todo. Foi tudo muito novo, muito emocionante. Mas s um festival. Acho que foi bom pra nossa gerao. No s o fato de estar em competio, mas em termos de reconhecimento do nosso cinema.Revista de CINEMA Recentemente, voc tambm participou do longa em episdios em 3D Cathedrals of Culture. Como se deu isso e como foi filmar em 3D?Karim O Wim Wenders f do Marcelo Gomes por conta do Cinema, Aspirinas e Urubus e viu, em Berlim, o Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo e adorou. Um ano depois, ele me ligou porque estava fazendo uma srie sobre arquitetura, em 3D. Para ele, o 3D j nasceu comprometido com o cinema comercial, mas acredita que pertena outra ordem e est investindo nisso o 3D como uma nova mdia. Ele chamou seis diretores, cada diretor escolhia um prdio que seria personagem. um filme em primeira pessoa. Comea com o prdio dizendo: Paris acordou s 6 da manh. Quando acordo, no consigo me mexer porque sou todo feito de ferro, criando a narrativa a partir de um objeto inanimado. O Wenders fez sobre a Filarmnica de Berlim, o Michael Glawogger, da ustria, fez sobre a Biblioteca Nacional de So Petersburgo, o Michael Madsen, da Dinamarca, fez sobre a Priso Halden, a Margreth Olin, da Noruega, sobre a casa de pera de Oslo, o Robert Redford fez sobre o Salk Institute. Eu fiz sobre o Bo Bo [o Centro Pompidou]. um projeto para expandir o conceito de arquitetura. Havia duas premissas: que fossem documentrios e que tratasse o objeto como personagem. O Bo Bo um personagem de trinta e sete anos, que j foi jovem, que quando nasceu era absolutamente iconoclasta e est envelhecendo o que hoje, como se relaciona com a cidade, com quem o usa? Eu tinha um certo preconceito com o 3D, mas depois que vi Gravidade [2013] fiquei impressionado. Sou curioso e resolvi arriscar, ainda mais porque era um documentrio, com cmera em movimento. caro, mas no to complicado. Fiz com a estengrafa do Pina [2011], Josphine Derobe, e ela fala do cinema em relevo, que muito bacana. E sobre o Bo Bo, que, quando fui para a Europa, passava meus sbados l.

Centro Georges Pompidou, o Bo Bo, no episdio da srie de documentrios em 3D Cathedrals of Culture, dirigido por Karim convite de Wim Wenders. Ali Olcay GzkayaRevista de CINEMA Seu prximo longa The Beauty of Sharks mesmo? Quais os prximos projetos?Karim No sei qual o meu prximo filme e no deve ser o The Beauty of Sharks, que est ainda sendo negociado. Tenho alguns filmes em desenvolvimento, dois a serem feitos no Brasil, um no Japo e um na Arglia. Queria muito filmar l, meu pai de l e nunca fui para l. Creio que chegou a hora.http://revistadecinema.uol.com.br/2014/05/os-deslocamentos-e-as-pertubacoes-no-cinema-de-karim-ainouz/