Entrevista kazuo watanabe
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Sociedade não pode ser tão dependente do Estado para resolver conflitos"
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9 de novembro de 2014, 7h11
Por Alessandro Cristo e Livia Scocuglia
A sociedade não pode ser tão
dependente do Estado para resolver
seus conflitos. É preciso haver
mecanismos próprios para solucionar
as disputas, acabando com a ideia de
que tudo precisa ser resolvido nos
tribunais. É o que defende o advogado
e desembargador aposentado do
Tribunal de Justiça de São
Paulo,Kazuo Watanabe.
Doutrinador reconhecido na área do
Direito Processual e com participação
ativa na criação do Código de Defesa
do Consumidor, Watanabe propõe o
"Pacto da Mediação" para que
empresas e escritórios de advocacia se comprometam a tentar a solução amigável
dos problemas antes de mandar a questão para o Judiciário. Como resultado
provável, aponta a preservação do relacionamento entre as partes e a certeza de
um resultado positivo para todos, além, é claro, da maior celeridade e do menor
custo do processo.
Sobre o receio da advocacia em relação à mediação, Watanabe assegura que
advogados vão continuar estáveis no mercado: “Eles vão cobrar menos na
tentativa de solucionar o caso sem ir para o Judiciário, mas vão receber mais
rápido”. Como exemplo, o advogado afirma que o profissional americano já se
acomodou com os meios extrajudiciais de solucionar as lides — e estão fazendo
bom proveito.
“O americano ganha muito dinheiro com a mediação. Lá, menos de 5% dos
conflitos vão para julgamento final, porque no curso, 95% ou até mais, são
solucionados pelos mecanismos alternativos. Mesmo considerando que a Justiça
americana é mais cara, 95% de soluções fora do Judiciário é um número muito
alto”, afirma.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Watanabe disse acreditar
que a quantidade de bons acordos é o termômetro que mede a eficácia dos
juizados. Tal medição é ameaçada quando a demanda foge dos limites de sua
competência.
“Na Justiça Federal, por exemplo, quase todos os casos vão pra sentença final.
Nela, o juizado está sendo utilizado para dar um procedimento mais rápido, mas
o objetivo não é só isso, o objetivo do juizado é um pouco mais de natureza
social, facilitar o acesso ao cidadão e, com isso, mudar um pouquinho a cultura
da sociedade. Essa finalidade do juizado está desaparecendo, porque jogaram
tudo para ele.”
Nascido em Bastos, cidade que foi destino de muitos imigrantes japoneses no
interior de São Paulo, Watanabe escolheu o Direito inspirado nos personagens
dos livros que lia na infância. Ele se identificava com aqueles que tinham
formação jurídica. E foi só na academia, durante os agitados anos de 1954 e
1959, que se viu participando totalmente da sociedade brasileira.
Da sua cultura japonesa, Kazuo Watanabe aponta para um “caldo cultural” que
condiciona o seu comportamento. O cidadão japonês que vai ao tribunal, sem
antes tentar uma solução amigável, é mal visto na vizinhança, no trabalho e na
escola. E fica, praticamente, excluído da comunidade. Watanabe garante: “O
japonês é tão briguento quanto o brasileiro”, mas essa questão cultural controla a
sociedade e desestimula a judicialização imediata dos conflitos.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor é um grande entusiasta do uso da mediação. Qual é a
importância de empresas e escritórios de advocacia se comprometerem a
tentar resolver a questão antes de levá-la ao judiciário?
Kazuo Watanabe — A Justiça é obra coletiva, a boa organização da Justiça não
depende só do Poder Público, depende da participação da sociedade. A sociedade
não pode ser tão dependente do Estado na resolução dos conflitos, tem de ter
mecanismos próprios para solucionar as disputas. Por isso, o Pacto de Mediação
é uma convocação do segmento empresarial da sociedade para que se
comprometam a tentar solucionar as questões antes de levá-las ao Judiciário. As
indústrias, o comércio de um modo geral, o setor financeiro, assumem a
responsabilidade social de cooperar com a Justiça, tentando solucionar os
conflitos antes da sua judicialização. O evento em que o pacto será assinado
nasceu na Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem da Fiesp/Ciesp.
ConJur — E o que as empresas ganham em contrapartida, além dessa
função social?
Kazuo Watanabe — A mediação possibilita a Justiça mais rápida, menos
custosa e o que é importante, preserva relacionamento entre os conflitantes. Se o
cliente reclama de uma empresa e ela souber tratar bem do problema, essa pessoa
continua como freguesa...
ConJur — Não deixa crescer o problema?
Kazuo Watanabe — Exato. Soluciona o conflito e o relacionamento se mantém.
Além disso, outro resultado positivo é a certeza de que todas as partes sairão
vencendo. O processo judicial traz um estado de incerteza, mesmo para aquele
que tem razão em vista, porque a decisão é do juiz. Mas na mediação, como as
próprias partes constroem a solução, essa incerteza acaba.
ConJur — Por que uma empresa, que pode levar um processo para a
Justiça, iria tentar resolver amigavelmente uma questão com a qual, a
princípio, ela já não concorda?
Kazuo Watanabe — É preciso saber separar os tipos de conflitos. Se o conflito
for de massa, ou seja, envolver muitas pessoas, tem de ir para o Judiciário. Por
exemplo, os bancos estão brigando ainda por causa da caderneta de poupança. Se
fizer acordo com um cliente e não fizer com outro, vai criar uma situação ruim.
Ou faz com todo mundo ou não faz com ninguém. Mas, se são conflitos
genuinamente de natureza primitiva, eu acho que o mecanismo mais adequado é
a mediação.
ConJur — O Judiciário brasileiro não dá conta da demanda de processos,
enquanto o Japão tem a cultura de desestimular o litígio judicial. O que
motiva essa diferença?
Kazuo Watanabe — Há muitas explicações. Eu entendo que existe um caldo
cultural que condiciona o comportamento do japonês. Se um japonês vai ao
tribunal imediatamente depois de um atrito com uma pessoa e não busca uma
solução amigável, ele é mal visto na vizinhança e no trabalho. Ele praticamente
fica excluído daquela comunidade.
ConJur — O controle informal da sociedade é mais severo do que o formal?
Kazuo Watanabe — Muitas vezes sim. O controle informal da sociedade que se
dá através de vizinhança, escola, trabalho é muito mais forte do que o controle
formal, feito por polícia, Ministério Público, e Justiça. Esse controle informal, às
vezes, é tão severo que leva muita gente ao suicídio. Isso controla um pouco a
sociedade. Não é possível comparar países diferentes, mas, só para se ter uma
ideia, o estado de São Paulo tem 40 milhões de habitantes, território equivalente
ao do Japão, que tem 120 milhões de habitantes. No estado de São Paulo, para 40
milhões de habitantes, há mais de 300 mil advogados. Vamos dizer que apenas
um terço advogue, mesmo assim são 100 mil profissionais para 40 milhões de
pessoas. O Japão, para 120 milhões de habitantes, há menos de 30 mil
advogados. O japonês é tão briguento quanto o brasileiro, mas há uma questão
cultural nessa relação com a Justiça.
ConJur — O brasileiro depende muito do Estado...
Kazuo Watanabe — Sim. Sem discutir o que aconteceu na eleição, metade da
população do Brasil vive de bolsa família. Vivemos da proteção do Estado, e na
Justiça acontece a mesma coisa. Por isso que o movimento para a mediação é
extremamente importante para ver se a sociedade se organiza e forma uma nova
mentalidade.
ConJur — Nos Estados Unidos, mais de 4 mil empresas e 1,5 mil escritórios
de advocacia já assinaram ao Pacto da Mediação. Isso terá influência no
Brasil?
Kazuo Watanabe — As empresas que tiverem filial no Brasil também vão
assinar aqui. Então, certamente General Eletric (GE), Shell, Wall Mart vão
assumir o compromisso. No Brasil, o Banco Itaú já afirmou que vai assinar
também. Com isso, eles se comprometem a solucionar o caso antes de ir ao
Judiciário, independente de estar no plano passivo e ativo.
ConJur — Alguma empresa já disponibilizou o resultado de fazer a solução
extrajudicial de conflitos?
Kazuo Watanabe — Sim. A General Eletric, por exemplo, adotou o programa
de solução antecipada de disputas. Isso significa que ao ver o conflito, eles
procuraram criar formas internas de solução mais adequada e chegaram à
conclusão de que economizaram 40 milhões de dólares. Muitas empresas já
aderiram a essa medida interna.
ConJur — Caso isso se torne comum no Brasil, os advogados sairão
perdendo?
Kazuo Watanabe — A participação dos advogados é fundamental. Tanto é que
no pacto dos Estados Unidos mais de 1,5 mil escritórios de advocacia assinaram
o pacto. O profissional, muitas vezes, tem a ideia de que ele só ganha dinheiro se
o problema for pra Justiça, mas não é bem assim. O advogado pode contratar um
cliente e tentar solucionar o caso sem ir para o Judiciário. Como a solução é mais
rápida, ele deve cobrar menos e estabelecer um percentual adequado. O
americano ganha muito dinheiro com a mediação. Lá, menos de 5% dos conflitos
vão para julgamento final, porque, no curso, 95% ou até mais são solucionados
pelos mecanismos alternativos. Mesmo considerando que a Justiça americana é
mais cara, 95% de soluções fora do Judiciário é um número muito alto.
ConJur — O juiz americano tem o costume de negociar mais com as partes.
Aqui, o juiz é muito vinculado ao processo, ele é quase que um escravo do
processo. É possível melhorar esse procedimento dentro da Justiça?
Kazuo Watanabe — A minha preocupação na minirreforma de 1994 era de
incorporar esse modelo americano. Nós sugerimos a chamada audiência
preliminar, o artigo 331, tentando transformar o juiz brasileiro num juiz mais
ativo. Nos EUA, há o case management, que é gerenciamento de caso. O juiz
recebe a petição inicial e, com a ajuda de assessores, já identifica pontos
importantes, manda o autor esclarecer algumas coisas. Depois, o juiz reúne as
duas partes para estabelecer um calendário de processo e vai gerenciando o caso.
O juiz americano é o verdadeiro condutor do processo.
ConJur — Aqui, nos processos de massa, o juiz não consegue ter a iniciativa.
Ele recebe milhares de processos e tem de despachar. Se ele for abrir a
possibilidade de negociação para cada processo será o caos no Judiciário.
Como é possível resolver esse problema?
Kazuo Watanabe — Quando os juizados foram pensados na década de 1980, a
ideia básica era de facilitar o acesso do cidadão comum à Justiça. Isso porque, a
grande maioria não estava querendo ir à Justiça, por causa da complexidade,
custo elevado e demora. E isso estava formando o que eu costumo chamar de
panela de pressão social, que para estabilidade social é muito perigoso. Quando a
população começa a não confiar nos mecanismos oficiais de solução de conflito,
tende a reagir violentamente.
Além disso, a competência inicial do juizado era de cinco salários mínimos, no
máximo 10. Depois passou para 20 e, no fim, passou pra 40 salários mínimos.
Mas julgam execução de título extrajudicial, ação de despejo... Tudo que não
seria problema do cidadão comum de acesso à Justiça, eles jogaram nos juizados
para tentar resolver a crise de morosidade da Justiça. Com isso, o juizado ficou
sobrecarregado. O mal não está na ideia do juizado, mas na ideia de ampliar
demasiadamente a sua competência e o Estado não dar recursos para aprimorar a
estrutura.
ConJur — A gente tem um problema grave no juizado que é a segunda
instância. As turmas recursais estão mais atoladas que a Justiça de primeiro
grau comum..
Kazuo Watanabe — Eu costumo dizer que a pedra de toque do juizado é a
conciliação. O que mede a eficácia do juizado é a quantidade de bons acordos.
Mas quando o juizado começa a dar muita sentença e começa haver muito
recursos dessas sentenças, é sinal de que não está funcionando adequadamente.
Na Justiça Federal, por exemplo, quase todos os casos vão pra sentença final, ali
o juizado está sendo utilizado para dar um procedimento mais rápido, mas o
objetivo não é só isso, o objetivo do juizado é um pouco mais de natureza social,
facilitar o acesso ao cidadão e com isso mudar um pouquinho a cultura da
sociedade. Essa finalidade do juizado está desaparecendo porque jogaram tudo
para ele.
ConJur — É comum a crítica de que o Poder Público é o grande causador
do assoberbamento da Justiça e, com isso, surge a pergunta: Como é que o
Estado a quer me impor a conciliação ou mediação, se o próprio Poder
Público recorre de teses que já estão mais que sacramentadas...
Kazuo Watanabe — Esse é realmente um grande problema que estamos
enfrentando. O Estado é um dos litigantes mais frequentes no Judiciário, mas é
preciso analisar que tipos de conflitos o Estado leva. Quando o Estado é réu
numa ação, a sociedade civil é que está agindo contra. Além disso, no volume de
serviço do Judiciário de São Paulo, 50% são isenções fiscais, que é a tentativa de
recuperar um crédito que a população deixou de pagar. Então nessas demandas
eu acho que o Estado tem razão de ir pra Justiça, porque não há outros meio de
fazer tal cobrança. O problema é a organização do setor de cobrança
administrativo.
ConJur — O senhor é a favor do Estado poder arrolar e penhorar os bens
antes de começar a execução?
Kazuo Watanabe — O Estado deveria fiscalizar melhor. Verificar se o devedor
tem patrimônio e só ajuizar a cobrança fiscal quando tiver certeza de quem tem o
patrimônio para responder por aquela dívida.
ConJur — A conciliação deveria ser uma etapa obrigatória no processo
judicial?
Kazuo Watanabe — Na Constituição Federal de 1824 havia uma norma que
dizia que ninguém poderia ter acesso à Justiça sem provar que tentou
previamente a conciliação e que isso seria feito por um juiz de paz. A figura de
juiz de paz que temos hoje remonta a essa instituição antiga, mas hoje juiz de paz
é juiz de casamento. Isso poderia sim ser usado para determinadas demandas.
ConJur — Pela Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça determina
que as sessões de conciliação e mediação devem ser feitas por conciliadores e
mediadores e apenas supervisionado por um juiz. Como nasceu essa
resolução?
Kazuo Watanabe — Eu e a professora Maria Tereza Sadek fizemos a proposta
de o Conselho Nacional de Justiça regulamentar melhor a parte de conciliação e
mediação, com a seguinte consideração: o CNJ é um órgão do Judiciário que
cuida da parte disciplinar, mas também cuida da eficiência do Judiciário. Nós
percebemos que a conciliação era praticada no Brasil todo como uma mera
faculdade que o juiz podia oferecer as partes. Por isso, chegamos à conclusão de
que o Judiciário teria que ampliar esse conceito de serviço Judiciário e não
poderia se limitar a oferecer apenas o serviço de solução de contencioso, mas
também todos os mecanismos adequados para a solução dos conflitos, inclusive
mediação da conciliação e não só isso, também serviço de orientação e
informação. Além disso, a resolução é um pouco mais ampla, fala de Judiciário
para mudar a cultura predominante e atuar junto com as instituições de ensino,
fazer com que as faculdades criem disciplinas.
ConJur — Aliás, a técnica de negociação virou uma parte recente do
currículo de Direito. Não é uma coisa muito comum...
Kazuo Watanabe — Não é mesmo. A Resolução 125 é um ato muito importante
na transformação do Judiciário brasileiro. O acesso à justiça não é só o direito de
ser ouvido por um órgão do Judiciário, mas de ir a um órgão Judiciário para
encontrar uma solução adequada.
ConJur — É a Justiça no sentido amplo.
Kazuo Watanabe — É muito mais acesso à ordem jurídica justa do que acesso à
Justiça como um órgão Judiciário, como órgão do Estado. Acesso à ordem
jurídica justa supõe ter uma compreensão da realidade, e o juiz trabalhar de
forma tal que atenda o real interesse das partes.
ConJur — Acontece que, muitas vezes, o advogado não quer negociar, e não
há o que fazer..
Kazuo Watanabe — Os advogados podem estabelecer honorários diferenciados
para os casos de mediação, como os advogados americanos fazem. Nesses casos,
eles vão ganhar menos, mas vão receber mais rápido. Falta um pouco da
percepção de que a mediação interessa também ao advogado. E, em relação a
produtividade, a Resolução 125 já fala que as soluções amigáveis também devem
contar para aferição do mérito do advogado.
ConJur — Alguns estados como o Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro,
Paraná, Santa Catarina começaram a criar a figura de juiz leigo, ou seja,
aquele que não é juiz de carreira.
Kazuo Watanabe — O juiz leigo ganha por tarefa, por exemplo, quando faz um
acordo ou uma minuta da sentença. Eu não sou a favor de juiz leigo, eu acho que
isso transforma juizados especiais em juizado de assessores. Grande parte dos
juízes faz mesmo a sentença, mas uma minoria pode começar só a assinar o que o
assessor faz...
ConJur — Hoje em dia, quem mais julga, na prática, são assessores. O
motivo é o excesso de processos?
Kazuo Watanabe — Pode ser excesso de serviço... Mas no meu tempo não
tínhamos computador, nem assessor, nem gabinete. Trabalhávamos em casa e
com máquina de escrever e tínhamos, proporcionalmente, a mesma quantidade de
processos que os juízes têm hoje. Na minha vara, tinha uma média de 5 mil
processos por ano.
ConJur — A gente pode falar que com esses assessores houve uma queda de
qualidade comparado com antigamente?
Kazuo Watanabe — Não sei, eu não tenho advogado, mas o pessoal reclama...
Existem assessores muito bons, então se escolher bons assessores, pode virar
uma Justiça boa, mas é muito difícil de controlar, porque assessor muda de cada
titular...
ConJur — O juiz tem um certo preconceito com ação coletiva, sendo que
por um lado ela pode resolver as coisas mais facilmente?
Kazuo Watanabe — Quem vai atuar na área de processo coletivo tem que
dominar a distinção entre interesse difuso, interesse coletivo, interesse individual
homogêneo. A dificuldade não é tanto na área do direto e sim na solução do fato
que pode ser muito complexa. Por exemplo, se uma das partes agiu com má fé,
qual é o critério para aferir má fé ou boa fé?
ConJur — O senhor propôs no novo CPC a possibilidade de o juiz
transformar ação individual em coletiva. Qual que é o conceito?
Kazuo Watanabe — Não é qualquer ação que tem essa possibilidade. Existem
conflitos de várias naturezas. Quando uma ação individual tem alcance coletivo é
importante que transforme isso, às vezes, numa demanda coletiva para que o juiz
dê uma sentença que valha para todos. Em alguns casos, para que o conflito seja
solucionado definitivamente é interessante que a ação se transforme em coletiva,
porque o bem jurídico que está sendo tutelado é o bem jurídico vai além da
pessoa que está propondo a ação.
ConJur — A pessoa não tem que se habilitar a executar a sentença?
Kazuo Watanabe — Não.
ConJur — E no caso de uma improcedência, acaba-se o assunto também?
Kazuo Watanabe — Acaba o assunto definitivamente. Agora na prática existem
ações pseudo-individuais, a ação é proposta como individual, mas na verdade não
poderia ser. Trata-se de uma demanda que individualmente não pode ser
processada, é uma pseudo-demanda individual.
ConJur — O novo CPC propõe a coletivização das demandas. É o chamado
Incidente de Conversão da Ação Individual em Ação Coletiva. Como é que
isso vai funcionar?Kazuo Watanabe — Eu acho que os juízes foram muito contra isso, porque era uma forma de avocar um processo sem tirar da decisão de primeiro grau. Nós sugerimos demanda coletiva, não em substituição, mas para complementar essa ação. Mas, eu sei que a comissão originaria do senado não está aceitando esse incidente de coletivização, parece que eles vão ficar só com incidente de demandas repetitivas...ConJur — O novo CPC traz mudanças significativas?
Kazuo Watanabe — Acho que não. Não tocaram em aspectos importantes como
o juiz mais ativo na condução de um processo, o modelo é mais formalista, mais,
de juiz passivo. O código muda algumas coisas mais pontuais..
ConJur — Como o efeito suspensivo dos recursos?
Kazuo Watanabe — Eu achei interessante no sentido de prestigiar mais o
primeiro grau. Mas para implementar um modelo dessa natureza, é preciso
organizar uma Justiça adequadamente. Se a Justiça de primeiro grau não estiver
bem estruturada então é um risco muito grande.
ConJur — O ministro Teori Zavascki acredita ser um erro apostar na
infalibilidade das cortes superiores no papel de controle das decisões locais.
Para ele, o sistema precisa trabalhar com a possibilidade de erro. A saída
seria ampliar o uso da ação rescisória?
Kazuo Watanabe — É difícil dar uma opinião sobre isso. Em princípio, pelo
menos nas duas instâncias ordinárias, supõe-se que tenha havido uma decisão
razoável. É preciso privilegiar a decisão das duas instâncias, se houver erro,
então admite-se uma revisão, mas a decisão tem que ser executada de modo
definitivo. Privilegiar as instâncias inferiores é muito importante, desde que o
estado organize bem as instâncias inferiores.
ConJur — O novo CPC também diz que o juiz vai poder negar uma ação
que não esteja em conformidade com a jurisprudência. Como isso
funcionaria?
Kazuo Watanabe — Vai depender da matéria. Nas demandas repetitivas, talvez
tenha um resultado socialmente mais útil. Quando se fala em tese jurídica, nem
sempre estamos numa demanda repetitiva nesse conceito da pessoa estar
disputando sobre o mesmo caso, sobre a mesma tese. Às vezes, as demandas são
repetitivas no sentido de que na vida social há muitas pessoas que trabalham da
mesma forma, não é uma disputa sobre uma tese jurídica. É um fato isolado.
ConJur — Muitos juízes ainda não seguem a jurisprudência por entender
que o que vale é o seu livre convencimento.
Kazuo Watanabe — O novo CPC está querendo mudar isso. Em relação, por
exemplo, a tese constitucional, a Constituição de 1988 diz que a decisão do
Supremo Tribunal Federal tem eficácia vinculante. Então o que o Supremo
decidir em termo de inconstitucionalidade, todo mundo tem que obedecer. Mas,
como em relação a tese, a normas infraconstitucionais, não existe autorização na
Constituição, em tese não pode haver um súmula vinculante. Mas esse incidente
de tratamento das demandas repetitivas leva mais ou menos a esse resultado...
ConJur — Mas isso é um risco, não é? O advogado hoje em dia entra com
um recurso especial e extraordinário ao mesmo tempo.
Kazuo Watanabe — Mas para ir para o Supremo está ficando cada vez mais
complexo, por causa de Repercussão Geral.
ConJur — O próprio Supremo julgou esses dias o efeito de uma mudança de
jurisprudência, ou seja, até a jurisprudência do Supremo pode mudar...
Kazuo Watanabe — Pois é, a partir de quando vale a mudança de interpretação?
Eu entendo que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pode ter essa
eficácia a ponto de o juiz que já indeferiu uma petição inicial julgar
improcedente, já no nascedouro da ação, sem citar a outra parte. A jurisprudência
está contra a jurisprudência. Essa norma vai acabar parando no Supremo Tribunal
Federal.
ConJur — O senhor participou da criação da antecipação da tutela, que foi
muito criticado por ter sido criado para resolver as lides de forma mais
rápida, mas acabou se tornando um recurso a mais...
Kazuo Watanabe — A antecipação de tutela nasceu de várias sugestões que já
existiam e a comissão de 1994 apenas a consolidou. A constatação é de que na
prática já existia antecipação de tutela. Na época, ela só foi regulamentada,
estabelecendo certos requisitos como o de ter um juiz de verossimilhança e uma
prova que convença pela possibilidade de dano. Eu acho que a regulamentação
foi importante, porque o processo civil brasileiro era processo civil do réu, no
sentido de que o autor que tivesse razão tinha que aguardar até a solução final do
processo para obter reconhecimento do seu direito. A antecipação era uma forma
de regular isso: a demora no processo ia ser suportada ou pelo autor ou pelo réu.
ConJur — O problema é o juiz que julga a liminar e demorar para chegar
no mérito e acumula muitos processos que acabam perdendo o objeto.
Kazuo Watanabe — Não é tanto pela perda de objeto. Às vezes, a decisão
liminar do juiz já decide o conflito todo. As partes não têm mais interesse em
disputar. Com base nessa constatação a professora Ada Pellegrini Grinover
apresentou um projeto de lei de estabilização das decisões liminares. Ou seja, se
houver uma liminar, e a parte a quem é desfavorável não recorrer, isto é,
manifestar uma ação por silêncio, induz aceitação daquilo e acaba o processo. É
chamado de incidente de estabilização da demanda.
ConJur — Em relação a Tutela Específica das Obrigações de Fazer e Não
Fazer, o que o CPC propõe?
Kazuo Watanabe — Essa tutela específica já estava no Código de Defesa do
Consumidor e foi para o Código de Processo Civil. Tradicionalmente, entendia-
se que o descumprimento de uma obrigação de dar e da obrigação de fazer, se
resolvia em perdas e danos. Então se, por exemplo, um pintor famoso não pinta o
quadro prometido, só cabe a indenização, porque não há a possibilidade de coagir
o pintor a pintar. Mas, em alguns casos, o ato do devedor não é tão importante.
Então, se é possível o Judiciário substituir o ato do devedor para outorgar o
direito prometido, então tinha que adotar essa solução.
ConJur — Então se o devedor não cumprir a determinação judicial, a
própria Justiça pode solucionar de fato o problema?
Kazuo Watanabe — Sim, e isso pode acontecer em matérias que envolvam o
meio ambiente, por exemplo. Vamos supor que a Petrobras tenha sido condenada
a colocar um filtro numa chaminé que está poluindo, e não obedece a decisão do
juiz. A solução em condenar por perdas e danos não resolve o direito do autor da
ação que tem direito ao meio ambiente sadio. Então a ideia é fazer com que a
Petrobras coloque efetivamente o filtro, caso não o faça, o juiz pode nomear um
interventor dentro da empresa e alocar recurso para esse fim, e atingir
plenamente o direito da parte.
ConJur — Hoje volta à tona a discussão do CDC, principalmente as
questões de crédito, excesso de crédito, excesso de oferta de crédito e
compras eletrônicas...
Kazuo Watanabe — Superendividamento. No Código de Defesa do
Consumidor, o importante avanço que nós tivemos foi a complementação da Lei
da Ação Civil Pública, que era de 1985, mas disciplinou só tutela de interesse
coletivo. A tutela de direitos individuais homogêneos vem com o Código de
Defesa do Consumidor que complementa a disciplina da ação coletiva, por isso
se diz que o sistema de processo coletivo no Brasil é formado por duas normas,
dois diplomas legais. Há um microssistema: A Lei da Ação Civil Pública e o
CDC dão um sistema legal de ações coletivas.