Entrevista para a Época - Liao

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82 > éPOCA, 30 de janeiro de 2012 éPOCA – Quando o senhor decidiu escrever o livro? Liao Yiwu – Foi depois que conheci um médico cristão. Quando o encontrei, ele fazia uma cirurgia de catarata num paciente num lugar de condições precárias numa região montanhosa da China. Depois da cirurgia, conversamos. Ele me contou que tinha sido vice-diretor de um hospital de Suzhou, mas foi afastado do cargo porque o Partido Comunista exigiu que abandonasse o cristianismo e ele recusou. A história dele me impressionou e resolvi escrever sobre essa perseguição. éPOCA – Que tipo de perseguições os cristãos sofreram? Liao - A China é um país ateu que despreza as crenças religio- sas. O governo se opõe a todas as religiões, como budismo, taoismo ou cristianismo. Naquele momento (no início da Revolução Cultural, nos anos 1960), havia muitos missioná- rios cristãos estrangeiros na China. Todos foram expulsos. Os fiéis foram proibidos de manter relações com os cristãos estrangeiros. O governo aceitava apenas a fé no comunismo. Por isso, muitos fiéis se afastaram. Mas muitos também conti- nuaram com sua fé e lutaram contra o regime. Alguns foram fuzilados, outros passaram mais de 20 anos na prisão. éPOCA – Hoje existe tolerância religiosa na China? Liao – As estatísticas mostram que há pouco mais de 70 milhões de cristãos, 5% da população. De um modo ge- ral, a procura por uma religião reflete a busca de suporte espiritual. E a China vive um momento de dúvidas e inse- guranças. O cristianismo, uma religião tradicional, ajuda a suprir essa necessidade. Mas acredito que a China tolera o cristianismo na teoria, não na prática. Deus e o diabo não podem existir no mesmo lugar. éPOCA – O senhor passou quatro anos encarcerado por ter escrito um poema (“Massacre”) inspirado nos protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989. Como foram os anos na prisão? Liao – Fui humilhado, tratado como um cachorro. Depois da prisão, me tornei outra pessoa. Presenciei muitos as- sassinatos na cadeia e acabei me tornando um confidente dos presos, que me contavam suas histórias. Um deles me contou em detalhes como matou a mulher: cortou a carne e comeu os pedaços dia após dia, até acabar. Outro me contou como escapou de uma prisão por uma fossa Vida O JORNALISTA LIAO YIWU, DE 53 ANOS, GOSTA DE PENSAR QUE ESTÁ SEGUINDO OS PASSOS de seu pai, um professor de literatura chinesa preso pelo governo comunista durante a Revolução Cultural, na década de 1960.“Ele foi punido por se dedicar a seu trabalho”, diz. Como seu pai, Liao foi para a prisão, em 1990. O crime do filho foi escrever um poema contra o governo chinês inspirado nos protestos na Praça da Paz Celestial.“Fui preso porque todos gostam de ler meus textos.” No ano passado, Liao fugiu para a Alemanha e conseguiu publicar Deus é vermelho – A história secreta de como o cristianismo sobreviveu e floresceu na China comunista, recém-lançado no Brasil pela editora Mundo Cristão. Humberto Maia Junior O jornalista chinês perseguido pelo governo conta sua experiência na prisão e diz que a abertura econômica não trouxe liberdade de expressão A China é uma grande prisão Liao Yiwu ENTREVISTA

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Entrevista com Liao Yiwu, autor do livro Deus é Vermelho para a Revista Época do dia (28/01)

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Page 1: Entrevista para a Época - Liao

82 > época , 30 de janeiro de 2012

época – Quando o senhor decidiu escrever o livro?Liao Yiwu – Foi depois que conheci um médico cristão. Quandoo encontrei, ele fazia uma cirurgia de catarata num pacientenum lugar de condições precárias numa região montanhosada China. Depois da cirurgia, conversamos. Ele me contouque tinha sido vice-diretor de um hospital de Suzhou, masfoi afastado do cargo porque o Partido Comunista exigiu queabandonasse o cristianismo e ele recusou. A história dele meimpressionou e resolvi escrever sobre essa perseguição.

época – Que tipo de perseguições os cristãos sofreram?Liao - A China é um país ateu que despreza as crenças religio-sas. O governo se opõe a todas as religiões, como budismo,taoismo ou cristianismo. Naquele momento (no início daRevolução Cultural, nos anos 1960), havia muitos missioná-rios cristãos estrangeiros na China. Todos foram expulsos.Os fiéis foram proibidos de manter relações com os cristãosestrangeiros. O governo aceitava apenas a fé no comunismo.Por isso, muitos fiéis se afastaram. Mas muitos também conti-nuaram com sua fé e lutaram contra o regime. Alguns foramfuzilados, outros passaram mais de 20 anos na prisão.

época – Hoje existe tolerância religiosa na China?Liao – As estatísticas mostram que há pouco mais de 70milhões de cristãos, 5% da população. De um modo ge-ral, a procura por uma religião reflete a busca de suporteespiritual. E a China vive um momento de dúvidas e inse-guranças. O cristianismo, uma religião tradicional, ajuda asuprir essa necessidade. Mas acredito que a China tolera ocristianismo na teoria, não na prática. Deus e o diabo nãopodem existir no mesmo lugar.

época – O senhor passou quatro anos encarcerado porter escrito um poema (“Massacre”) inspirado nos protestosna Praça da Paz Celestial, em 1989. Como foram osanos na prisão?Liao – Fui humilhado, tratado como um cachorro. Depoisda prisão, me tornei outra pessoa. Presenciei muitos as-sassinatos na cadeia e acabei me tornando um confidentedos presos, que me contavam suas histórias. Um delesme contou em detalhes como matou a mulher: cortou acarne e comeu os pedaços dia após dia, até acabar. Outrome contou como escapou de uma prisão por uma fossa

Vida

O JORNALISTALIAOYIWU, DE 53ANOS, GOSTADE PENSAR QUE ESTÁ SEGUINDO OS PASSOSde seu pai, um professor de literatura chinesa preso pelo governo comunista durante a Revolução Cultural,na década de 1960.“Ele foi punido por se dedicar a seu trabalho”, diz. Como seu pai, Liao foi para a prisão,

em 1990. O crime do filho foi escrever um poema contra o governo chinês inspirado nos protestos na Praça daPaz Celestial. “Fui preso porque todos gostam de ler meus textos.” No ano passado, Liao fugiu para a Alemanhae conseguiu publicar Deus é vermelho – A história secreta de como o cristianismo sobreviveu e floresceu na Chinacomunista, recém-lançado no Brasil pela editora Mundo Cristão.

Humberto Maia Junior

O jornalista chinês perseguido pelo governoconta sua experiência na prisão e diz que a abertura

econômica não trouxe liberdade de expressão

A China é umagrande prisão

Liao YiwuENTREVISTA

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cheia de fezes. Não queria ouvir essas histórias, mas elesme diziam que no dia seguinte poderiam ser fuzilados.“Você é meu último ouvinte”, diziam. Isso ficou marcadona minha mente e só consegui me libertar depois de es-crever essas histórias em livro (The corpse walking, algocomo O cadáver andarilho, inédito no Brasil).

época – Como o senhor conseguiu sair da China?Liao – Escapei pela fronteira na região de Yunnan no dia 2de julho de 2011. Entrei no Vietnã, de lá fui até a Polôniae depois cheguei à Alemanha. Já conhecia todos os cantosde Yunnan porque passei cinco anos lá pesquisando parao livro sobre o cristianismo. Na fronteira, havia muitosclandestinos, o povo era livre. Desliguei o celular, parei deacessar a internet e entrei clandestinamente no Vietnã.

época – Por que não saiu antes?Liao – Sofria ameaças e pressões, mas conseguia ficar na Chi-na. Eu me considero escritor, não político. Escrevia meuslivros no país e os publicava no exterior. Mas, dessa vez, elesme ameaçaram com prisão. Achei melhor sair.

época – O que o senhor sentiu ao chegar à Alemanha?Liao – Liberdade. Antes, eu não era livre.

época – Alguma diferença cultural surpreendeu o senhor?Liao – Viajei pelo mundo e percebi que os chineses men-tem demais. A China está repleta de mentirosos. Outracoisa que chamou a atenção foi durante minha chegadaaos Estados Unidos. O controle na alfândega é muito ri-goroso. Fiquei três horas lá. Senti que não deve ser fácilpara o governo americano administrar um país tão livre.Depois, fui para a Times Square, em Nova York. Nuncatinha visto tantos prédios altos e tantas pessoas andandona rua durante a noite. Mas me surpreendi quando vi umpainel de propaganda da Xinhua, agência de comunicaçãochinesa, no topo de um prédio. Como uma propagandadessa agência da ditadura pode estar num país liberalcomo os EUA?

época – O senhor pensa em voltar?Liao – Para mim, a China é uma grande prisão. Mas continuoesperando a chegada da mudança. s

LIBERDADELiao Yiwu, em fotorecente. O escritor

fugiu da China e hojevive na Alemanha.

“Só agora mesinto livre”

Foto: Gordon Welters/The New York Times

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livros no exterior. Desaparecimento é algo assustador, poisninguém sabe para onde essa pessoa foi.

época – Em artigo publicado pelo senhor no jornal The New YorkTimes em 2011, a China é chamada de “prisão colossal e invisível”.Outras pessoas preferem classificar o país como um “gigante daeconomia”. O que o senhor acha da variedade de adjetivos que aChina recebe?Liao – Nos últimos anos, o mundo mantém intensa relaçãocomercial com a China. Mas digo que a China mantém umapolítica de cinismo. Não permite debates sobre suas políti-cas. Adota apenas relações comerciais. Digo simbolicamenteque a China, numa mão, carrega notas de dinheiro. Noutrasegura uma faca. O dinheiro é oferecido aos estrangeiros quequerem fazer negócio, abrir fábricas poluentes que seriamproibidas em seu país de origem. A faca o governo reserva àpopulaçãochinesa.Políticos,homensdenegócioe intelectuaisque elogiam a China veem apenas o sucesso econômico eignoram a forma como o país trata sua população.

época – O senhor acredita que a China um dia possa se tornar umEstado democrático de direito?Liao – É uma tendência natural. Mas até lá a natureza esta-rá destruída e os rios poluídos. Estou preocupado com adegradação dos recursos naturais na China. É assustador.Além disso, um regime democrático pode levar à segregaçãodo país. As províncias se tornarão países independentes. AChina pode virar 20 países ou mais.

época – O senhor acredita que a Primavera Árabe possa influenciarmovimentos pró-democracia na China?Liao – Sim. O ano passado foi assustador para os comunistaschineses. No primeiro semestre, houve a Primavera Árabe. Nosegundo, a morte do ditador Muammar Khadafi, da Líbia. Vimuitos chineses chorando a morte dele. Isso me fez lembrar amorte de Mao Tsé-tung, em 1976. Muitos choraram sua mor-te, mas logo depois ocorreu uma série de mudanças positivas...Espero que essa mudança possa acontecer novamente.

época – O senhor vê seu trabalho como uma missão ou um fardo?Liao – Apenas transcrevo a realidade que vejo. Não façocríticas. Apenas relato fatos. A verdade é meu ideal. u

época – Como seus amigos e parentes lidam com a possibilidadede seu trabalho incomodar o governo chinês?Liao – Não os envolvo em meu trabalho. Mas sofro por eles.Divorciei-me duas vezes. A primeira, depois de sair da prisão.Minha mulher não suportava a pressão e pediu a separação.Com minha segunda mulher, ficamos casados por dez anos.Uma vez, ela me perguntou se tínhamos futuro. Não conseguiresponder, e, por isso, nos divorciamos.

época – Escritores chineses sofrem muita pressão do governo?Liao – Como a maioria dos escritores produz histórias ima-ginárias, não são perseguidos. Eles escrevem apenas para ga-nhar dinheiro. Entregam a consciência para o diabo. Algunsforam muito bem-sucedidos e têm uma vida confortável.O mesmo ocorreu com diretores de cinema como ZhangYimou. Nos filmes, eles embelezam a ditadura e fazem su-cesso no mundo. Na Olimpíada de Pequim, convidaram ummúsico para compor uma canção. Só tem um verso: “Eu teamo e você me ama”. E só. Esse músico é famoso, conhecidopelo mundo inteiro. Quer dizer, todos só precisam cantar“Você me ama e eu te amo”, e está tudo bem.

época – Que tipo de censura o senhor sofreu?Liao – Manuscritos de obras minhas foram confiscados.Além disso, sofri ameaças de prisão e fiquei encarceradopor curtos períodos. Já tentei lançar livros na China, mesmocom pseudônimo, mas o governo sempre proíbe a publica-ção. O povo não pode ter acesso a meus livros.

época – Como a falta de liberdade afeta o cotidiano do povo?Liao – Os chineses não têm liberdade de expressão. Nãopodem opinar sobre o governo. Por exemplo, se o governoconfiscar sua terra, você não pode falar nada ou sofreráretaliações. Um porco tem mais liberdade que uma pessoa.O comunismo não deixa a população raciocinar.

época – Como o governo trata os opositores?Liao – O governo chinês não tolera qualquer forma de opo-sição. Do ano passado para cá, muitos amigos meus desa-pareceram. O governo trata os intelectuais como bandidos,cobre seu rosto com saco preto antes de torturá-los. Fuiameaçado de desaparecimento caso continuasse publicando

entrevista Liao YiwuVida

O gOvernO chinês carregadinheirO numa mãO e uma faca

na Outra. O dinheirO é para hOmensde negóciO estrangeirOs.

a faca, para O pOvO

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