ENTREVISTA: PAULINHO PAIAKAN · Por isso divulgam o nome feio, a imagem feia, para tentar mostrar...

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ENTREVISTA: PAULINHO PAIAKAN FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI ESPECIAL Empreendimentos e terras indígenas TERRA Portal do Encantado ENSAIO Rosa Gauditano Ano III nº4 outubro/novembro 2006

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ENTREVISTA: PAULINHO PAIAKAN

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI

ESPECIALEmpreendimentose terras indígenas

TERRA Portal do Encantado

ENSAIORosa Gauditano

Ano III nº4 outubro/novembro 2006

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Neste quarto número da revista Brasil Indígena, apresentamos a relação entre os povos indígenas e as empresas privadas e públicas que atuam e impactam, de alguma maneira, os povos indígenas e seus territórios. São as hidréletricas, em primeiro lugar, as existentes e as planejadas, que alegam existir para que não haja apagão no País; as linhas de transmissão advindas dessas hidrelétricas; as rodovias que precisam ser abertas e asfaltadas; as ferrovias que prometem condução rápida, eficiente e coletiva, bem como transporte de carga mais barato; os empreendimentos de mineração que cobiçam entrar em terras indígenas porque lá estão tesouros recônditos, reais ou imaginários; as novas fazendas, os agribusinesses, os novos senhores da terra que almejam o ganho com o suor de seu trabalho e a recondução de sua classe à primazia da vida social brasileira. Todos eles só vêem o índio como parceiro passivo, na melhor hipótese, ou como atravancador do desenvolvimento nacional.

Os exemplos que ora apresentamos são significativos desse relacionamento. De um lado, temos a Companhia Vale do Rio Doce, a segunda maior produtora de ferro do mundo, graças ab initio à doação, feita pelo Governo brasileiro, de uma gleba de terras conhecida como Serra dos Carajás – nada mais nada menos que a maior mina de ferro do mundo. Terra esta que já pertenceu ao povo Xikrin num passado não muito longínquo. Hoje a CVRD recusa-se a acatar a responsabilidade histórica e o compromisso legal com os Xikrin. De outro lado, está o compromisso da Eletronorte para com o povo Waimiri Atroari, por conta da construção desastrada da hidrelétrica Balbina, e com o povo Parakanã, pela construção e expansão da hidrelétrica de Tucuruí, esta uma hidrelétrica viável e sustentável, a segunda maior do País. Entre esses dois pólos estão mais de duzentos empreendimentos, programados para serem realizados, que afetam direta ou indiretamente os povos indígenas.

Carta do Presidente

Capa: Paulinho PaiakanFoto: Christian Knepper

O ilustre antropólogo e etnohistoriador Carlos Moreira já disse que os índios sempre estiveram à margem da História do nosso País, nunca considerados e recepcionados como parte fundamental da Nação, não obstante serem parte essencial da formação do nosso povo. É tempo de repararmos esse grave erro histórico.

Esta revista não pretende desafiar a relação entre o capitalismo brasileiro e os povos indígenas. Busca apenas demonstrar que os povos indígenas são agentes de seus destinos, conscientes ao menos de parte das forças que desafiam sua existência e sua continuidade histórica. Os povos indígenas querem o reconhecimento da importância de sua existência no Brasil de hoje, nos termos que a relação social e econômica demanda. Do Governo, querem o compromisso de sua responsabilidade histórica e constitucional; da sociedade civil, o reconhecimento de sua importância cultural e social; das empresas, ao menos o troco, o custo, sua moeda corrente, o vil metal, aquilo que lhes faz sentido. Que não venham com injúrias, com moralidade falsa que não se dão a si mesmos, alegando que para serem índios têm de viver eternamente à margem da História.

Eis o recado que esta revista quer passar. Que o leitor também se conscientize das palavras proferidas pelo líder Kayapó Paulinho Paiakan, no seu retorno à vida cultural e política brasileira.

Mércio Pereira Gomes, antropólogo Presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai

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entrevistaPAULINHO PAIAKAN

tentou me fazer usar da mentira e dizer assim: “Eu estuprei.” Para ser preso e depois ser libertado porque teria assumido uma culpa. Mas eu nunca aceitei isso. Dentro da cultura kayapó, sou uma pessoa respeitada e conhecida. Então, tenho de falar a verdade. Se eu tivesse realmente cometido esse crime, publicamente, dentro da cultura dos Kayapó e perante a sociedade do homem branco nem gaguejaria para assumir.

BI: Você já era muito conhecido quando foi acusado. O caso teve grande repercussão na mídia. Isso o afetou muito? Paiakan: Teve repercussão para me desmoralizar e para desmoralizar a população indígena do Brasil. E fazer com que eu ou outro índio não lutasse pelos nossos direitos. A revista Veja publicou minha imagem na capa. Ela tem todo o direito. Por que eu estou dizendo isso? Porque a Veja é inimiga de índio. Por isso divulgam o nome feio, a imagem feia, para tentar mostrar para todo o mundo que o índio está errado. Eu dou toda a razão de homem branco brigar comigo, principalmente a Veja. Porque eles são inimigos de índio. Mas eu não tenho raiva da Veja, da

imprensa por divulgar minha imagem [de modo] ruim. A Veja está brigando, pensei, porque eu defendo meu território indígena, onde eu sou origem. Pura origem. O homem branco veio, se nacionalizou brasileiro e está

brigando com nós, indígenas, está com inveja por causa das coisas que nós temos que homem branco não tem. É um prazer homem branco brigar comigo porque é sinal de que ele está vendo que eu sou índio e eu tenho as coisas do índio. Agora, se algum dia eu tiver oportunidade de conversar com o editor da Veja, aí sim, nós discutimos, dialogamos sobre o conhecimento dele,

Seu nome evoca um deus Kayapó, dono dos raios da tempestade: Bep Kororoti. Para o mundo kuben (branco), entretanto, ele é mais conhecido por uma combinação singela do diminutivo de um nome cristão com o apelido de infância, referência a um passarinho do cerrado: Paulinho Paiakan. Em seus documentos, o dia de nascimento é 19 de abril de 1953. O Dia do Índio e a escolha de um ano aproximado foram a saída para oficializar a data que ninguém sabe ao certo. Paiakan nasceu quando os Kayapó não contavam os dias.

Protagonista de momentos simbólicos na luta pelos direitos indígenas, Paiakan ganhou notoriedade ao liderar atos como a reivindicação da demarcação de terras kayapó, o protesto contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte e a mobilização indígena na Assembléia Constituinte de 1988. A fama, porém, tomou caminho inverso ao de sua reputação, com enorme força, em junho 1992, quando foi acusado de estuprar uma jovem não-índia no Pará. Condenado pelo Tribunal de Justiça do Pará, Paiakan vive desde então recluso na Terra Indígena Kayapó. Recentemente, a Funai requereu ao juiz de execução criminal da comarca de Redenção (PA) o reconhecimento de que ele cumpriu pena em regime domiciliar, de acordo o Estatuto do Índio (Lei 6001/73).

Mora hoje em uma pequena aldeia à beira do rio Vermelho, em uma área de transição entre cerrado e floresta amazônica. Junto dele estão a mulher, a caçula de suas quatro filhas, as três netas e outras duas famílias. Ao todo, são apenas 28 pessoas. Mas a reclusão não significa abandono. Paiakan nunca perdeu o apoio de seu povo. Continua influente, ouvido pelos Kayapó com respeito conquistado por poucos, reconhecido como um chefe benhadjorore por excelência. Uma relação única,

de afetividade profunda. Filho único, conta que perdeu a mãe ainda nos primeiros anos da infância, vítima de feitiço. “A minha infância não foi completa. Mas acabei me completando com o povo Kayapó. O povo Kayapó foi minha mãe.”

Brasil Indígena: A pergunta, embora indelicada, é inevitável. Sobre a acusação de estupro, qual a sua versão?Paiakan: Eu estava esperando que o homem branco, junto com a Funai, reconhecesse que eu venho respeitando a sociedade dele. Agora, de repente, eu vi que essa acusação é forte contra mim. Eu entendi que não era acusação de estupro, e sim uma acusação política de um crime que eu realmente não cometi. Com o tempo, eu comecei a entender direitinho como o homem branco monta o esquema para prejudicar os outros. Eu lembrei da história de homem branco do passado, bem do começo: a história da esposa de Potifar, oficial do faraó [Gênesis, 37:36]. Potifar colocou José [filho de Israel, vendido pelos midianitas] para cuidar do palácio dele como escravo. A esposa logo se interessou em seduzir José, mas ele não cedia. Ela resolveu, então, ficar com a camisa dele para acusar ele de ter tentado estuprá-la. E ele não cometeu aquele crime. Esse é o costume de homem branco. Foi quando entendi: ah, é por isso que homem branco está acusando. Não quis escutar a verdade. Foi desse jeito que a justiça do homem branco me acusou do crime que eu realmente não cometi. Então, quando vieram me entrevistar sobre esse caso, eu respondi: “O que mais que eu vou falar com vocês? Advogado já escreveu, juiz já escreveu. Ninguém quis escutar minha versão, então, eu não vou falar mais.” Não é negar. Eu estou falando a verdade. Desde o começo, advogado

longe do silêncioMichel Blanco

Fotos: Christian Knepper

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o meu conhecimento. Não adianta eu brigar com a Veja. Eles [da revista] estão com todo o poder nas mãos. E eu não tenho nenhum poder. Como a formiguinha pode brigar com o elefante? Quando eu dei a primeira resposta para a Veja e ela passou a me perseguir, foi quando apareceu um empresário reclamando que queria ser índio para ser protegido, para ganhar muita terra... Então, tinha um jornalista que trabalhava na revista e ele me chamou e perguntou: “Paiakan, o que você acha? O cara está dizendo que quer ser índio.” Eu imediatamente respondi: “Se ele está dizendo que quer ser índio, eu quero ser empresário.” Aí saiu de novo o Paiakan na imprensa: “Eu quero ser empresário.” Acho que foi por isso que a Veja começou a se chatear comigo.

BI: Desde então, o que mudou na sua vida?Paiakan: Para mim, mudou muito pouco. Porque, dentro do povo Kayapó, eu sou consultado sobre todo assunto importante. Agora, a relação com o homem branco mudou. Aí eu comecei a pensar: poxa, nós acreditamos no homem branco e homem branco não é amigo de verdade. Quando apareceu essa acusação, vários amigos que acompanhavam a luta da preservação ambiental se afastaram. Era como se eu estivesse doente e pudesse transmitir uma doença. Eram amigos de interesse. ONGs e gente do Governo. Até a Funai tinha me deixado. Mas agora a Funai está tentando me ajudar. Queria que tivesse agido assim desde o começo. Mas eu tenho apoio do povo Kayapó, que sempre esteve comigo.

BI: Qual a sua avaliação da atuação das ONGs na questão indígena brasileira?Paiakan: No começo, eu realmente convidei ONGs internacionais para apoiar as lutas dos Kayapó e de outros índios no Brasil. Só que, depois que aconteceu essa acusação contra mim, várias ONGs se recusaram a continuar me apoiando. Isso é uma grande discriminação. É burrice. Cada ser humano é dono de si, tem defeitos e erra. Mas me julgaram. Poucos pensam e vêem o mundo melhor para todos. Eu sou Paiakan e sou um desses que querem um mundo

melhor para todos nós. Não vou salvar o mundo, quero apenas conscientizar as pessoas de que precisamos garantir a sobrevivência na Terra. O rio esta aí para o rico e para o pobre.

BI: Você saiu da aldeia muito jovem, para participar da abertura da Transamazônica, e ficou anos na frente de trabalho. Essa experiência virou um livro e, a partir daí, você começou a aparecer na imprensa. A abertura da estrada foi o que começou a lhe dar consciência do mundo externo à aldeia?Paiakan: Aquela época foi importante pra mim. Foi ali que eu realizei minha curiosidade. Ajudava a abrir picada, a guiar as equipes. Encontrei um monte de

homem-formiga. Foi quando comecei a ficar assustado. Pensava: de onde está vindo toda essa gente; para onde eles vão? Eu vi os tratores arrastando as casas dos índios Arara. Arrastando mandioca, banana, batata, mamão, para construir a estrada. Comecei a sentir que, quando voltasse pra aldeia, precisaria falar para meu povo que o homem branco são muitos. Estão tomando conta da terra. Estão destruindo muito. Fiquei de 1969 a 1974 trabalhando. Morei em Altamira. Depois de voltar da Transamazônica, fui pra aldeia Gorotire. Lá fiquei cumprindo a cultura kayapó. Comecei a liderar os jovens de novo, junto com outro companheiro, Kube-y. Depois de três anos, os missionários criaram um seminário indígena para fazer um treinamento lingüístico. Eu fui indicado, mas não tinha vontade de ir. O missionário pedia que eu explicasse as coisas da língua e eu estava chateado. Até o dia que um missionário pediu que escrevesse a minha história na Transamazônica. Então comecei a desenhar e escrever tudo o que eu tinha visto – a abertura das picadas, o contato com os índios Arara... Fiz uma pequena cartilha chamada Transamazônica. Foi a primeira vez que apareci na televisão, com o lançamento do livro. Mas não andei mais pela estrada. Para mim, a abertura da estrada não foi boa coisa. Eu participei inocentemente. Se tivesse sido hoje, teria pedido para o Governo verificar primeiro se tinha tribos indígenas

naquela área, para a estrada não cortar a aldeia ao meio. Muitos índios morreram. Eu entendi o que nós, indígenas, nunca tínhamos imaginado: que um dia iria se aproximar esse desmatamento, essa poluição. Nunca tinha imaginado que a Transamazônica é um caminho para entrar muita gente para ocupar as áreas [indígenas]. Depois do lançamento do livro Transamazônica, eu voltei a morar na aldeia. Depois meu pai, chefe da aldeia Kubenkrankégn, pediu para eu voltar para lá. Eu disse que voltaria, mas para escolher um local para criar outra aldeia, porque sei que a área precisa ser ocupada pelos Kayapó. Saí acampando até escolher a área onde seria Aukre. Aí eu falei: “Pai, aqui vai ser nossa aldeia.”

BI: E hoje você está na beira no rio Vermelho, morando em uma aldeia com apenas a sua família e outras duas. Por que você decidiu sair do Aukre?Paiakan: Eu vim do Aukre porque ajudei a desenvolver vários projetos que a população daquela aldeia não estava mais interessada. Eles queriam projetos que trouxessem dinheiro vivo, dinheiro imediato. E também há interesse de desenvolver a cultura da sociedade branca naquela comunidade. Estou aqui para desenvolver a minha cultura. Um dos motivos por que eu vim para cá foi porque a área é de acesso antigo dos Kayapó e precisa ser ocupada e preservada. Eu me mudei pra cá pra viver com a natureza, trabalhando com o meio ambiente. Viver vendo esta beleza de natureza que traz a vida pra gente, que traz saúde. E o rio não está sendo contaminado. É um rio limpo, a nascente é dentro da Terra Kayapó. Eu preciso ocupar aqui pra evitar a invasão de qualquer estranho.

BI: Houve uma época em que ocorria muita retirada de madeira na Terra Kayapó e isso ainda ocorre,

embora em menor escala. Sua comunidade mesmo chegou a se envolver com madeireiras, mas você sempre teve um discurso de defesa do meio ambiente. Como aconteceu isso?Paiakan: Na época, nós, eu e ambientalistas estrangeiros, defendíamos a Terra dos Kayapó e os Kayapó negociavam madeira. Então, [madeireiras] mostravam dinheiro para Kayapó e Kayapó aceitava esse dinheiro sem valorizar, sem saber que a madeira tinha valor na época. Eu tentei criar um grupo para visitar e conscientizar as comunidades sobre os prejuízos que a retirada de madeira trazia. Mas a Funai, o Ibama, os ambientalistas, ninguém se aproximou de mim para ajudar. Então, eu comecei a receber pressão dos parentes, que diziam que eu estava contra meu povo, ao falar de preservação. A minha comunidade resolveu negociar madeira. Eu concordei porque senão todo o mundo iria brigar comigo. E eu espero que todo o mundo que leia [esta entrevista] entenda que o interesse econômico é muito forte. De graça não vale neste mundo. O que vale é a pessoa ter dinheiro para mandar. Assim, com dinheiro, muitos Kayapó ganharam muito poder contra mim. Hoje vejo muitas comunidades reconhecerem que eu tinha razão de falar sobre preservação do meio ambiente.

BI: Ganharam muito dinheiro na época?Paiakan: Nossa, ganharam muito, muito dinheiro. Mas o dinheiro acabou. Kayapó não soube usar o dinheiro. Esse dinheiro deveria ter criado muitas alternativas para as comunidades. Esse dinheiro deveria estar rendendo até hoje, sendo investido na educação. Deveria ter formado muitos Kayapó para defenderem seu povo. Mas, infelizmente, o dinheiro de madeira e garimpo foi desperdiçado. A comunidade começou a parar com a

PAULINHO PAIAKAN

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venda de madeira no começo de 2000. Acho que parou mesmo a partir de 2004. Parou por causa da pressão política, do Governo brasileiro, pressão internacional. Mesmo assim, algumas lideranças ainda negociam madeira. Garimpo tem também em algumas aldeias. Mas nada disso está trazendo beneficio pra toda uma comunidade. Dá dinheiro apenas para uma família ou outra. No final, é ruim para todos nós.

BI: Quais seriam as alternativas econômicas sustentáveis?Paiakan: Tem tantas riquezas nas terras indígenas, tantos projetos que podem ser feitos sem precisar da ajuda do Governo. Aliás, alguns projetos podem até ajudar o Governo. Muitas atividades podem ser feitas com conhecimento do índio e dentro da lei do kuben. Exemplo: eu trouxe uma empresa inglesa, a [The] Body Shop, que comprava castanha da aldeia Aukre. Criamos uma empresa para exportar o óleo da castanha. Só que pagar imposto para o Governo não agrada muito à comunidade... Mas nós ajudamos o Governo. Várias vezes saiu óleo de castanha e nós pagamos imposto. Eu tive essa idéia da castanha quando estava viajando da Europa para o Canadá.

No avião, tinha um japonês – ou coreano, chinês, não sei – e na mesinha dele tinha um negócio que parecia castanha. Fiquei olhando e pensando: não pode ser castanha, pode ser chocolate em forma de castanha. Então, perguntei, em português mesmo, se era castanha, se eu podia ver. Ele fez com a mão que não entendeu. Aí perguntei em kayapó: “Moineja?” (o que é isso?). Aí ele me deu. Olhei, olhei e experimentei. Era castanha! E pensei: a gente tem tanta castanha, podia vender... O projeto com a Body Shop foi bom, mas não continuou. Mesmo assim, a gente tem condições de fazer coisas assim. Mineração, por exemplo, pode ser legalizada. Se a comunidade quiser e for legalizada, pode ser feito desde que o índio seja treinado. Assim como poderia ter também um projeto de manejo de madeira. Mas é preciso usar essas riquezas da natureza sem prejudicar o meio ambiente. Eu fiz um estudo independente sobre o mogno, como a árvore pega doenças, como ela vive mais, o tipo de floresta, solo em que ela pode crescer e ter mais resistência. É um plano de manejo que eu elaborei, mas não sei quando vou colocar no papel e discutir em público. Ainda quero registrar esse estudo. Preciso também, mais pra frente, discutir com a comunidade para saber como ela pode aproveitar essa idéia. Aqui na minha aldeia eu não preciso de grandes projetos. Para quê? Para ficar rico? Não quero. Mas se a comunidade tiver interesse, aí a gente chama a Funai e o Ibama para tentar criar uma alternativa econômica sustentável e realizar esse plano.

BI: Você transita por muitas aldeias Kayapó e freqüentemente é consultado sobre diversos assuntos. Para você, qual é a opinião dos Kayapó sobre as atividades econômicas próximas da área?Paiakan: A Terra Kayapó está sendo ameaçada sem o Kayapó perceber. Kayapó acredita que homem branco está respeitando os limites. Mas eu não acredito. Tenho certeza de que o asfaltamento da BR 163 é um risco muito grande de entrada de homens brancos na área. Vão dizer: “Ali não tem ninguém, vamos fazer uma rocinha.” E assim começa, ocupando aos poucos. A BR 163 deveria ser discutida com as comunidades indígenas e o Governo deveria deixar claro para todo o mundo que a terra indígena deve ser respeitada. Se houver uma invasão, o governo deve oferecer garantia de que vai retirar o invasor, tomar providência. Aí sim a gente pode apoiar o asfaltamento. Enquanto o governo não garantir nada, o risco de invasão continuará com a pavimentação da BR 163. Outro risco para a Terra Kayapó é a mineradora Onça Puma,

ligada à grande Companhia Vale do Rio Doce. Já está trazendo o povo de outra região para ocupar municípios vizinhos da Terra Kayapó, como Tucumã e Ourilândia. Essa empresa vai trazer muita gente que vai querer terra e o governo municipal vai tentar conceder mais espaço. Já houve várias reuniões com os Kayapó, mas eu não participei e não sei o que os Kayapó estão pensando. Alguns funcionários [da Onça Puma] estiveram aqui na minha aldeia e eu disse: “Madeireiro, garimpeiro trouxe dinheiro para Kayapó e Kayapó só aprendeu sacanagem de homem branco. Não quero que essa empresa repita o erro. Quero que essa empresa tenha consciência de criar alguma coisa que ajude a comunidade toda e não poucas pessoas.” A construção de Belo Monte [usina hidrelétrica no rio Xingu] também é outra preocupação muito grande. O Governo está insistindo em construir a barragem sem consultar a comunidade. Se tivesse diálogo com as autoridades indígenas, aí poderia haver interesse dos dois lados de fazer a barragem. Agora, sem explicar, sem garantir a participação da comunidade, nós somos contra. Se não houver participação dos índios nesse projeto, continuará havendo discriminação. Cadê a igualdade? Por que não podemos ser ouvidos? Uma coisa importante que pouca gente sabe: minha briga contra Belo Monte não era uma defesa só da vontade dos Kayapó. Na época em que morei em Altamira, eu viajava para várias aldeias e fui viver na tribo dos Assurini. Lá fui muito bem recebido, muito bem tratado. Peguei malária junto com eles, passei mal, muito mal, e uma senhora trazia fogo para eu me aquecer. Eu lembro que, se a barragem fosse feita, os Assurini iriam perder a terra deles. Então decidi assumir essa luta para defender os Assurini. Foi aí que convoquei os Kayapó e outros grupos para lutar contra a barragem. A grande manifestação foi em fevereiro de 1989.

BI: Em meio a tudo isso, como a cultura kayapó convive com as mudanças?Paiakan: O jovem não é consciente. Ele está valorizando mais a cultura da sociedade branca do que sua própria cultura. Tenho dito para alguns jovens que estão buscando embelezar o corpo na cultura da sociedade branca que, dentro deles, sua característica é indígena. Então, como vão poder se identificar? Eles ficam perdidos, não conseguem responder nem na cultura kuben nem na cultura indígena. Digo a ele: “Hoje você é só um nome indígena.” A cultura do Kayapó ainda é forte. Mas, mesmo assim, ela também está fortemente ameaçada. Eu, mesmo depois de tantas viagens para a Europa, não estou muito ligado na cultura do branco.

Prefiro ficar na minha cultura, porque assim é mais fácil eu responder qualquer coisa. Se você me perguntar na cultura de branco algum conhecimento de faculdade, eu não vou responder porque nunca estudei. Prefiro ficar na minha cultura. Naquilo que eu sou, que eu sei. A cultura do Kayapó é muito adotiva. Qualquer coisa que o Kayapó vê, quer aprender, quer adotar. E não é assim de hoje. Isso não veio depois do contato com o homem branco. Já vem desde o início. Muito da cultura kayapó foi adotado da cultura de outras etnias, inclusive do homem branco. Kayapó adotou para se divertir mais, para ter mais som, mais ritmo. Daí vem uma tradição. Eu sou Kayapó, segui na cultura, aprendendo com tantas histórias. Assim eu realizei minha curiosidade de seguir o ritmo dos Kayapó do passado, de conhecer o mundo. Continuo sendo Kayapó quando quero adotar alguma coisa que aprendi.

BI: Quando você retomar a liberdade, o que pretende fazer?Paiakan: Se o caso for resolvido, eu vou continuar. Eu sou Paiakan. Vou lutar pelos direitos indígenas, pelos seres vivos que precisam ser defendidos. O ser vivo que é a floresta, o ser vivo que é o rio, o ser vivo que é a terra... Se um dia eu retomar minha liberdade, vou continuar minha luta, defendendo nossos territórios, a cultura indígena, junto com nossas lideranças, junto com outros povos indígenas. Enquanto eu estou aqui na floresta, vejo que a luta dos povos indígenas está um pouco paralisada. Várias lideranças, não só dos Kayapó, comentam que sentem falta do meu apoio. Três Xavante de Mato Grosso vieram aqui me visitar... Um jovem e dois velhos, um cacique e outro curandeiro. A gente chorou junto de emoção, contando a luta do passado. O que eu pretendo fazer aqui na aldeia é criar uma escola para educar as pessoas sobre como viver com a natureza. Para qualquer pessoa. Preservação da cultura indígena e resgate do conhecimento tradicional. É com isso que a escola vai lidar.

PAULINHO PAIAKAN

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�sumárioCarta do Presidente 1Mércio Pereira Gomes, antropólogo

Entrevista: Paulinho Paiakan 2Líder kayapó fala sobre reclusão e ativismo político

Educação: Wajãpi 10Índios alicerçam sua pedagogia na cultura

Especial: Empreendimentos e terras indígenas 15A difícil relação de empresas e comunidades

Ensaio: Rosa Gauditano 28O registro de índios Guarani em aldeias urbanas

Terra: Portal do Encantado 36A realidade dos Chiquitano na fronteira

Cultura: Pankararu 42Contraste e identidade entre duas comunidades da etnia

Arte: Guarani 48Desenho de jovem da aldeia Krukutu

expedientePresidente da República

Ministro da Justiça Presidente da Funai

Conselho Editorial

Coordenador Editorial Editores

Repórteres

Colaboradores

Fotógrafos

CopidesqueProjeto Gráfico

Diagramação e arteTiragem

ImpressãoJornalista Responsável

Luiz Inácio Lula da Silva Márcio Thomaz Bastos Mércio Pereira Gomes

Publicação bimestral da Fundação Nacional do Índio – Funai/Coordenação Geral de Assuntos Exter-nos (CGAE) em parceria com Via Pública – Instituto para o Desenvolvimento da Gestão Pública e das Organizações de Interesse Público

Carmen JunqueiraDaniel Matenho Cabixi Dominique GalloisGuilherme CarranoIzanoel dos Santos SodréJoão Pacheco de OliveiraJosé Carlos Meirelles Jurandir Siridiwê XavantePierlângela Nascimento da CunhaMichel Blanco Maia e SouzaFelipe Milanez Júlia MagalhãesChristiane PeresDanielle SantosMário Moura FilhoCesar GordonDominique GalloisIsabelle GianniniJuan PratginestósLux Vidal Porfírio de CarvalhoRosa Gauditano Walter SanchesAdemir RodriguesCarlos GoldgrubChristian KnepperTeresa BilottaMarcelo AflaloUnivers Design / Marcelo Aflalo e Marcelo Menna10 mil exemplaresIpsis Gráfica e EditoraJúlia Magalhães

Fundação Nacional do Índio – Funai Coordenação Geral de Assuntos Externos – CGAE SEPS QD. 702/902 Ed. Lex, 3º andarCEP 70390-025Telefone: (61) 3313.3512Contato: [email protected] | www.funai.gov.br

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Ensino Fundamental em suas aldeias. Uma educação diferenciada, elaborada pela reflexão da comunidade e baseada na rotina dos indígenas. Muitas vezes sem cadernos, lápis ou salas de aula. “Se não tem escola, eu ensino na minha casa. Nós, Wajãpi, ensinamos em qualquer lugar. Quando, por exemplo, cinco famílias vão caçar no mato, o professor vai junto e ensina lá também. Nós não esperamos a escola, o prédio. A gente vai atrás do ensino”, conta .

Aos seis anos, a preparação das crianças para a escrita da língua wajãpi inclui os grafismos tradicionais da etnia. Meninos e meninas começam seu aprendizado escolar treinando a coordenação motora com os desenhos que, futuramente, terão de fazer em seus corpos com jenipapo e urucum. Representações de onças, peixes, jabutis, cobras. São mais de 800 pinturas corporais que podem ser usadas nessa fase para “amolecer a mão” dos pequenos. Depois é a vez das letras e números. O raciocínio matemático se aprende com os dedos. As ciências naturais discutem o meio ambiente. Tem ainda História, Geografia. Português? Só depois dos conhecimentos tradicionais enraizados. Forma de preservar a identidade do grupo pela linguagem. Nessa proposta, a alfabetização na língua wajãpi não é uma introdução ao aprendizado da língua oficial do País. O português é segunda opção. Utilizado apenas para dialogar com o mundo dos karai kõ (não-índios) sem precisar de intérpretes. A idéia é mesmo um modo diferente de aprender e ensinar, uma vez que nas comunidades indígenas os conhecimentos são predominantemente transmitidos em conversas do dia-a-dia, dos mais velhos para os mais novos, sem a língua escrita.

aldeia-escolaChristiane Peres

Fotos: Dominique Gallois

No galpão de laterais abertas, chão de cimento e arquitetura humilde, um quadro-negro e duas mesas retangulares compõem a escola. São oito horas da manhã em Aramirã, uma das 38 aldeias da Terra Indígena Wajãpi, oeste do Amapá. Lá, nove indígenas que integram a turma do curso de formação de pesquisadores – um braço do projeto de educação desenvolvido com o Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepé) – discutem na sala de aula os levantamentos e registros sobre a cultura de seu povo: a origem de seus nomes, relações de parentesco, resguardos e casamentos, detalhes de seus rituais, usos do algodão. Ainda não são especialistas, mas já entendem as técnicas de registro da história e a desenvolvem para escrever e descrever a visão dos Wajãpi sobre suas práticas culturais. “A formação de pesquisadores é importante para nós porque estamos fazendo um levantamento da nossa cultura, para que ela não seja esquecida e cada vez mais se fortaleça. E o principal é que somos nós que estamos contando a nossa história, não os outros”, explica Kuripi Wajãpi, um dos pesquisadores.

Tudo que é estudado pelo grupo vira livro, caderno de leitura e de exercícios. Material que, posteriormente, será utilizado pelos professores indígenas em suas aulas nas aldeias. Wajãpi é pesquisador e educador. Hoje já faz uso dos instrumentos elaborados por sua classe de docentes para lecionar para as crianças. Ele foi um dos primeiros professores formados pelo Programa de Educação Wajãpi, que começou em 1992 como um dos percussores de novas propostas educacionais. Em 2003, a turma formada em Magistério mobilizou-se para a construção de um currículo escolar para o

Região oeste do Amapá Municípios Laranjal do Jari e Pedra Branca do Amapari Área 607.017 hectares População aproximadamente 900 pessoas Etnia Wajãpi Língua wajãpi, do tronco tupi-guarani

“Se não tem escola, ensino na minha casa. Wajãpi ensina

em qualquer lugar. Nós não esperamos a escola, o prédio.

A gente vai atrás do ensino.”

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Educação diferenciada Escolas pensadas e voltadas para o cotidiano das aldeias ainda são poucas no Brasil. No papel, o respeito às diferenças está garantido, porém, na prática, as iniciativas não ultrapassam 22, segundo o último Censo Escolar Indígena. A maioria, já que hoje são 2.324 escolas, são instituições estaduais e municipais que ainda não se adequaram ou não entenderam o que o termo “diferenciado” significa para essas comunidades. Desde a Constituição de 1988, um novo conceito de educação vem sendo pensado para os povos indígenas. Seu texto não inaugurou apenas um novo aparato jurídico de reconhecimento da diversidade étnica em nosso País. O que de fato mudou é que não cabe mais ao Estado promover a homogeneização cultural e lingüística dos índios; cabe-lhe sim proteger e valorizar a diversidade das etnias.

Foi com o detalhamento do princípio constitucional que a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, o Plano Nacional de Educação de 2001 e as normas específicas do Conselho Nacional de Educação de 1999 firmaram um conjunto de regras que garantem aos índios uma educação específica, que valorize práticas e conhecimentos próprios, que estimule e crie novos espaços para o uso de suas línguas e que permita que saberes tradicionais possam ser sistematizados e valorizados no contexto escolar. O grande desafio colocado hoje é a formulação e a execução de propostas que respeitem a individualidade de cada etnia, fazendo com que os próprios índios tomem as rédeas de sua educação. Esse é o princípio do trabalho realizado pelos profissionais do Iepé com os Wajãpi. “A tendência é sempre que os índios se encaixem no nosso sistema. Aqui, a nossa proposta é que os Wajãpi tomem a

Luís Donisete Grupioni é antropólogo, pesquisador associado ao Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, da Universidade de São Paulo, e coordenador de difusão do Iepé. Foi consultor do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas junto ao Ministério da Educação para a formulação de uma política específica para os índios. Em entrevista à Brasil Indígena, Grupioni fala sobre dificuldades, avanços regimentais e federalização da educação indígena no País. Bl: Quais as maiores dificuldades, quando se fala em educação escolar indígena? Luís Donisete Grupioni: Vejo duas ordens principais. A primeira refere-se a princípios que podem balizar um ensino diferenciado que atenda às expectativas das comunidades, sem a imposição de modelos que caracterizam a escola nacional. Partimos de uma proposição inovadora no final dos anos 80, ao afirmar que a escola indígena deveria ser pautada por bilingüismo, caráter comunitário, interculturalidade, diferença e especificidade. E chegamos, 20 anos depois, a uma situação em que somente em casos particulares conseguimos dar sentido a esses aspectos. A maioria adaptou alguma coisa da nossa escola. Isso tem a ver com a segunda ordem de dificuldade: a da gestão do processo escolar. Ao avançarmos no desenho de novos modelos para as escolas indígenas, não fomos capazes de pensar em novos modelos de gestão pública dessas instituições. A dificuldade está em dar sentido para o ensino nas terras indígenas.

Bl: Existiria um modelo ideal para a educação indígena? Grupioni: Penso que não existe um modelo que possa ser aplicado universalmente para todas as comunidades indígenas. Por quê? Porque são muito diversas as situações atuais dessas comunidades e as formas de interação com segmentos da sociedade. Assim, uma escola para o povo Wajãpi, no Amapá, que possui uma população relativamente pequena, concentrada numa área demarcada e sem conflitos, necessariamente deve

ser diferente de uma escola para os Guarani-Kaiwá, de Mato Grosso do Sul, dispersos em áreas diminutas envoltas em processos de conflito territorial. Apesar disso, é possível pensar em algumas características comuns: a busca da autonomia política e cultural dessas comunidades, o fortalecimento e a valorização da língua indígena, e o controle efetivo e esclarecido da comunidade sobre os rumos da escola seriam conceitos desejáveis a todas as comunidades. Bl: Algumas lideranças indígenas propõem a federalização da educação. Se essa proposta for levada adiante, o que muda?Grupioni: Tal reivindicação revela, antes de tudo, uma insatisfação muito grande com o atual modelo de gestão da educação indígena no País. Mas a proposta muda tudo. Se for criado um sistema nacional de educação escolar indígena, será preciso definir claramente os níveis e modalidades de que ele será composto. Não necessariamente teríamos ensinos Fundamental, Médio e Superior, por exemplo. A organização da escola, o tempo de ensino, o modo de ensinar, o que ensinar, como ensinar, tudo precisaria ser pensado e definido. Leis precisariam ser aprovadas no Congresso, recursos orçamentários precisariam ser direcionados e um novo quadro administrativo precisaria ser criado.

tempo demudança

2002 2003 2004 2005

Estaduais 733 981 1.099 1.083

Municipais 946 1.052 1.099 1.219

Particulares 23 24 30 22

Federais 4 3 0 0

Total 1.706 2.060 2.228 2.324

Escolas Indígenas no Brasil

2002 2003 2004 2005

Educação Infantil

9.476 11.429 14.152 18.583

EF 1ª a 4ª Série 82.918 96.597 99.632 104.573

EF 5ª a 8ª Série 12.148 18.954 19.371 24.251

Ensino Médio 1.187 2.248 2.047 4.749

Educação de Jovens e Adultos

1706 2060 2228 2324

Total 117.446 139.556 147.571 164.018

Estudantes Indígenas no Brasil

Desde a Constituição de 1988, um novo conceito

de educação vem sendo pensado para os povos

indígenas.

Fonte: MEC

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frente da educação e desenvolvam uma forma própria de ensinar. Assim, temos a valorização da cultura, da diferença. Não adianta impor um método como o das nossas escolas regulares. É preciso interagir com o modo de vida deles, respeitar suas tradições e calendários”, afirma a coordenadora do Programa de Educação Wajãpi, Lúcia Szmrecsányi.

Alternativa real A dinâmica dos cursos de formação de professores e das oficinas de pesquisadores mistura sempre teoria e prática. Os índios são incentivados a refletir sobre sua existência e modo de vida. “Estamos fazendo com que eles exercitem suas idéias e formulem suas próprias explicações. Queremos quebrar esse ritmo das nossas escolas que não incentivam o debate. Além disso, os frutos dessas discussões são os livros didáticos, que, além de contarem a história desse povo para aqueles que não a conhecem, são transformados em conteúdo para as aulas infantis. Aqui tudo é aproveitado e todos participam

do processo da construção do conhecimento, que está sendo sempre complementado”, explica a antropóloga Dominique Gallois, que acompanha o desenvolvimento do grupo há 28 anos.

Apesar de existirem mecanismos que reafirmem a necessidade de um novo pensar educacional, o antropólogo Luís Donisete Grupioni – uma das referências em educação escolar indígena – mostra que ainda existe enorme resistência por parte do sistema de ensino nacional em repensar o sentido da instituição escolar. Segundo dados do Ministério da Educação, a maioria das escolas indígenas é considerada escola rural ou sala de extensão de escolas urbanas. Ou seja, ainda seguem calendários e currículos dos “brancos”. “Para darmos um passo além, acho que falta engajamento de todos, no sentido de levar ao extremo a proposição de pensarmos uma escola indígena de fato diferenciada. Isso deveria implicar repensarmos a função da escola nas aldeias”, defende. O grupo dos Wajãpi pode indicar alternativas para esse impasse. Segundo o pesquisador e educador , um dos motivos principais do êxito do processo na comunidade foi a decisão autônoma do grupo de elaborar e integrar a educação à cultura. “Hoje algumas das crianças já estão fazendo curso de formação de professores para ensinar mais crianças. Temos 10 professores formados e 20 novos em formação”, diz. Atualmente, esse grupo de educadores ensina cerca de 300 crianças Wajãpi nas aldeias espalhadas pela Terra Indígena e se organiza para, cada vez mais, agregar interessados em participar do processo de educação do grupo, num exemplo de maturidade e consciência coletiva pela busca de seus direitos.

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O Kusiwarã, produzido pelos Wajãpi para pintura corporal e decoração, foi a primeira

arte gráfica indígena reconhecida pela UNESCO, em 2003, como Patrimônio

Imaterial da Humanidade

desenvolvimentopara todosJúlia Magalhães e Michel Blanco

Fotos: Walter Sanches

EMPREENDIMENTOS E TERRAS INDÍGENAS

Beleza, diversidade e riqueza cultural são bons motivos para escrever sobre os povos indígenas. Quantas pessoas sabem que no Brasil se falam 180 línguas diferentes? São 225 etnias e mais de 460 mil índios em aldeias, uma população que cresce a cada dia. Mas, ao longo de 2006, nada disso foi manchete na grande imprensa. Notícia era aquela relacionada a projetos desenvolvimentistas. Da revista Veja, com a matéria ”As falsas vítimas”, de março deste ano, aos jornais de circulação expressiva, todos trataram da polêmica questão de empreendimentos e terras indígenas. E é bom lembrar: as reportagens, quase sempre, falaram do tema sob uma única visão – a do empreendedor. Este talvez seja o melhor momento para esclarecer os equívocos que são difundidos em larga escala, às vezes pelo simples fato de as pessoas desconhecerem a História e a realidade desses povos;

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A Kayapó Tuíra ameaça o então diretor da Eletronorte, José Antonio Muniz, durante protesto contra a construção de Belo Monte, em Altamira, PA (1989)

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outras vezes porque, com freqüência, a mídia brasileira tende a defender os interesses econômicos.

“Os atuais projetos econômicos realmente precisam ser viabilizados, para o bem do País; porém, não só como atividades econômicas mas também como atividades sociais e ambientais que tragam desenvolvimento para as comunidades que estão ao seu redor, especialmente as daqueles que já foram os verdadeiros donos das terras onde se situam, os povos indígenas”, afirma o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes.

A Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse, em entrevistas recentes, acreditar que o Governo Federal possa resolver com responsabilidade a construção de obras consideradas essenciais à sociedade nacional. Em sua gestão, houve uma reformulação profunda das políticas voltadas para essa questão. A Ministra, porém, ressalta que hoje as discussões mais avançadas em torno do desenvolvimento contemplam alternativas sustentáveis. Da mesma maneira, Paulo Nogueira Neto, referência no assunto e um dos responsáveis pela criação da Política Nacional de Meio

Ambiente, lei de 1981, defende que é preciso refletir sobre a relação do crescimento econômico com os recursos naturais e a diversidade cultural do País.

Segundo ele, já é tempo de investir em estudos que apontem para novos caminhos. Biólogo e integrante do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), Paulo Nogueira Neto foi o primeiro Secretário de Meio Ambiente do Brasil e permaneceu no cargo durante 12 anos, de 1973 a 1985. Ele participou de diversos debates na Comissão Brundtland da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o combate à miséria no mundo e concluiu: “Observamos que onde havia miséria, havia explosão demográfica. Por isso a necessidade de se pensar o crescimento econômico aliado à proteção ambiental. Foi nessa época que criamos o conceito de desenvolvimento sustentável.” Isso foi há 20 anos.

As populações indígenas, assim como as comunidades de ribeirinhos e quilombolas, são diretamente afetadas por esses problemas. Atualmente as terras indígenas compõem quase 13% do território brasileiro e, em muitos casos, as áreas demarcadas e protegidas pelo Governo estão repletas de riquezas naturais, incluindo minérios. “Para a questão do meio ambiente, não existem fronteiras”, diz Nogueira Neto. Os limites concretos não barram ou fazem desaparecer os impactos provocados pela atuação do homem em torno dessas áreas. Além dos empreendimentos dentro de terras indígenas, têm se tornado cada vez mais freqüente os conflitos envolvendo obras construídas fora das áreas demarcadas pela Funai e comunidades indígenas. Há, portanto, uma necessidade crescente de os órgãos governamentais envolvidos nos processos de licenciamento ambiental dialogarem, na tentativa de encontrar o equilíbrio entre o crescimento econômico, o bem-estar social e a preservação dos biomas do Brasil.

“É no mínimo estranho ver imagens como essas em áreas que deveriam ser preservadas”, comenta o indigenista Walter Sanches, que registrou o trabalho de operários e as linhas de transmissão de Furnas na Terra Indígena Avá-Canoeiro, GO (2005)

EMPREENDIMENTOS E TERRAS INDÍGENAS

Novos caminhos Um dos avanços importantes na busca por um diálogo mais aberto entre esses órgãos foi a aproximação da Funai ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Segundo o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama teve seu quadro de servidores ampliado em 30%, o que contribui para o aumento dos licenciamentos federais, que saltaram de 145, em 2003, para 237, em 2005.

“Estamos cada vez mais relacionados com a Funai, buscando chegar a um consenso. A Funai vem exigindo que sejam feitos estudos etnoambientais, para que nós possamos ter essa avaliação. Isso é uma coisa nova, já que esses estudos englobam os possíveis impactos no modo de vida tradicional daquelas

populações. Talvez esses estudos venham a dar um norte nessa questão dos impactos e outras medidas que não só as compensações financeiras, porque, de fato, é muito mais difícil trabalhar com uma única medida de compensação”, diz Luiz Felippe Kunz Júnior, diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama.

Na Funai, embora o Governo ainda não tenha aprovado um plano de carreira nem aberto concurso para contratação de pessoal, também houve transformações no que diz respeito ao papel institucional do órgão na avaliação de estudos e relatórios de empreendedores sobre possíveis impactos ambientais em terras indígenas. Uma das ações de destaque foi a elaboração de um manual de critérios

”Os atuais projetos econômicos realmente precisam ser viabilizados, para o bem do País; porém, não só como atividades econômicas mas também como atividades sociais e ambientais que tragam desenvolvimento para as comunidades que estão ao seu redor, especialmente as daqueles que já foram os verdadeiros donos das terras.”

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e pela hidrelétrica Balbina, da Eletronorte (veja matéria na página 21). Já os Avá-Canoeiro, que tiveram parte de sua terra inundada pela usina Serra da Mesa, de Furnas, ainda lutam para que a empresa cumpra com seu dever de amparar a comunidade afetada.

Polêmica recente surgiu quando a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), responsável pelo Projeto Ferro Carajás, mineração próxima à área dos Xikrin (PA), cortou o repasse de mais de R$ 569 mil mensais a duas associações dos índios, sob o argumento de que investia voluntariamente na comunidade. No início de dezembro, a Justiça Federal de Marabá concedeu liminar em favor dos índios, após apreciar ação cautelar ajuizada pela Funai e pelo Ministério Público Federal, obrigando a empresa a manter o repasse, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. A CVRD alega que a suspensão da transferências das verbas decorreu da invasão, pelos índios, das instalações da mineradora em outubro passado.

Ao contrário do que defende a Vale, o juiz de Marabá, Carlos Henrique Borlido Haddad, argumenta que a empresa goza do direito real de uso da área que explora em Carajás, segundo consta de seu próprio site, nas informações acerca do Projeto Ferro Carajás. Em sua decisão, o magistrado lembra que a CVRD utiliza gratuitamente a gleba de terra adjacente à província mineral de Carajás e a concessão é válida porque a empresa nunca deixou de usar a área por prazo superior a três anos, conforme dispositivos de decreto presidencial de 6 de março de 1997. “Não há notícia de que a ré descumpra as obrigações impostas nos incisos do art. 2º do aludido diploma legal, à exceção do amparo das populações indígenas”, diz o juiz na

decisão. Ao ajuizar a ação, a Funai cumpre sua missão institucional de defesa dos povos indígenas, seguindo a tradição de respeito ao índio que vem desde que Gonçalves Dias o reconheceu como parte constitutiva da nação e desde que a fundação da República o instituiu no panorama democrático brasileiro.

“Os povos indígenas que sobreviveram aos quinhentos anos de conquista estão no Brasil para ficar para sempre. Não pertencem apenas ao nosso passado remoto, como tantos assim o desejaram como fábula e por remorso, mas são o nosso presente real e serão os fiançadores do nosso futuro, pelo modo como vêem a sua existência e a sua relação com a terra, se tivermos a inteligência de assim os reconhecer”, avalia Mércio Gomes.

Engana-se quem vê nesses conflitos uma oposição ao desenvolvimento. O que está em jogo é o tipo de crescimento econômico – se sustentável e duradouro, que assegure ao futuro do País a biodiversidade das terras indígenas, sobretudo na Amazônia Legal, ou se predatório e de ciclo breve. Gonçalves Dias foi visionário quando sentenciou que os índios são o princípio de todas as nossas coisas “e será a coroa de nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação”.

Exemplo de impacto ambiental: a utilização

de substâncias tóxicas provoca a morte de animais no lago de Cana Brava (2004)

da parceria Furnas–Odebrecht, no rio Madeira, fronteira com a Bolívia. Os investimentos nas obras são, respectivamente, de R$ 3,7 bilhões e R$ 20 bilhões.

Para o Governo, a construção dessas usinas deve evitar a crise de energia no País, daí a necessidade de licenciamento urgente. É necessário lembrar, no entanto, que diversas populações podem sofrer impactos. No caso das hidrelétricas do rio Madeira, há um agravante: segundo informações da CGPIMA, os EIAs/RIMAs chegaram à Funai apenas em dezembro de 2005 e foram considerados insuficientes. Além disso, está comprovada a presença de índios não contatados na área. Em outubro de 2006, a Funai entregou ao Ibama uma manifestação sobre o caso, mas ainda não obteve resposta.

Além de hidrelétricas, instalação de linhas de transmissão, construção ou pavimentação de rodovias, gasodutos e mineração também afetam povos indígenas. “Muitas vezes não é a obra em si que traz danos a uma comunidade indígena, mas seus resíduos. Uma hidrelétrica, por exemplo, mobiliza um enorme contingente humano e um tempo longo. Além disso, terminada a obra, boa parte desse contingente não terá outra opção a não ser fixar-se na região. Outra situação ocorre na construção de rodovias, que geralmente cria pontos de ocupação que podem afetar as comunidades indígenas, como postos de gasolina, bares e prostíbulos”, explica Izanoel Sodré.

Alguns exemplos da relação entre grande empreendimentos e povos indígenas são os casos das etnias Waimiri Atroari (AM) e Avá-Canoeiro (GO). A primeira conseguiu sobreviver aos impactos gerados pela construção da BR 174, pela mineração de cassiterita

que orienta o trabalho da Funai na área. Hoje, existem cerca de 300 processos de licenciamento ambiental para exame na Coordenação-Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente, dirigido pelo indigenista Izanoel Sodré. De acordo com ele, uma das alterações mais importantes dessa nova postura foi a exigência de que os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e os Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA) fossem apresentados para as comunidades envolvidas em suas próprias aldeias, com tradução na respectiva língua indígena. Antes, os EIAs/RIMAs eram apresentados à Funai, em Brasília, para elaboração de parecer necessário à emissão da licença prévia. A inclusão mais efetiva dos índios nessas questões é uma maneira de garantir sua participação nesse processo.

Izanoel, no entanto, explica que a Funai não é responsável por dizer se uma obra é viável ou não. “A Funai deve avaliar, com base nos estudos e relatórios, as conseqüências socioambientais e culturais sobre a população indígena na região. Comprovados os impactos, deve-se exigir medidas mitigadoras ou, se for o caso, compensatórias. Boa parte dos entraves acontecem porque a Funai não é ouvida desde o início. Não se trata de paralisar uma obra, mas de evitar que os índios sejam prejudicados com a sua instalação”, diz.

Cabo-de-Guerra A difícil relação de setores de infra-estrutura com populações indígenas vem desencadeando uma série de conflitos. Alguns dos mais conhecidos e polêmicos casos de empreendimentos que afetam terras indígenas estão sendo amplamente discutidos. É o caso das hidrelétricas Belo Monte, um empreendimento da Eletronorte no rio Xingu, e Jirau e Santo Antônio,

O que está em jogo é o tipo de crescimento econômico – se sustentável e duradouro, que assegure ao futuro do País a biodiversidade das terras indígenas, sobretudo na Amazônia Legal, ou se predatório e de ciclo breve.

EMPREENDIMENTOS E TERRAS INDÍGENAS

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�0 ��Região divisa do Amazonas com Roraima Municípios Novo Airão, Presidente Figueiredo, Rorainópolis, São João da Baliza e Urucará Área 2.585.911 hectares População 1.153 pessoas Etnia Waimiri Atroari Língua da família karib

salto para a liberdade

O movimento era intenso no Núcleo de Apoio Nawá, às margens da BR 174, estrada que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). Do antigo quartel do Exército, que um dia abrigou repressores e vigilantes da liberdade indígena, fez-se uma área verde, onde brotaram também projetos e idéias. O mesmo descampado de terra batida e quase morta hoje é espaço de harmonia. Sob o teto de palha de buriti e sentados em bancos de madeira, representantes das 19 aldeias Waimiri Atroari reuniam-se para discutir mais um ano de novos desafios e conquistas. A população kinja, como se autodenominam, saltou de 374 pessoas, no início da década de 1980, para 1.153 em 2006. Um povo que renasceu. Na terra de mais de 2,5 milhões de hectares, demarcada depois de anos de luta, a prova de que o tempo é poderoso: a história dos índios Waimiri Atroari mudou de rumo; eles passaram das tragédias e das mortes a uma vida plena.

Júlia Magalhães

Fotos: Juan Pratginestós

Nas últimas semanas, os principais jornais do País noticiaram o imbróglio entre os índios Xikrin e a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), em Carajás, no Pará. No dia 01 de novembro de 2006, a CVRD anunciou a suspensão do apoio financeiro aos Xikrin, em virtude da invasão de suas instalações pelos índios, dias antes.

Os Xikrin são cerca de 900 índios, 80% dos quais com menos de 30 anos. Apenas uma pequena parcela fala fluentemente o português. Eles foram contatados nos anos 1950, sofreram perdas demográficas na década seguinte e viram-se reduzidos a menos de cem pessoas. Recuperaram-se custosamente e agora enfrentam os enormes desafios – econômicos, políticos, culturais e existenciais – de viver na Amazônia em tempos de globalização.

Há uma brutal desproporção de forças entre a CVRD e os índios. Soa absurda a tentativa da companhia de incriminar a comunidade. Mais absurda ainda, e exagerada, é sua decisão de denunciar o caso à Organização dos Estados Americanos. A empresa sabe perfeitamente que os Xikrin não representam a ameaça alegada.

As discordâncias são antigas e giram em torno do dinheiro. Os índios consideram insuficientes os repasses e afirmam que só são ouvidos quando promovem atos de protesto. A CVRD vem ultimamente desqualificando as demandas indígenas e diz que não negocia sob pressão.

Em todo caso, é fundamental entender que as reivindicações dos índios por dinheiro e bens não são resultado de aculturação. Os Xikrin não são índios capitalistas, oportunistas ou degenerados. Sua busca por mercadorias obedece a uma lógica cultural própria. Ela está em continuidade com a

forma tradicional pela qual os Xikrin se relacionam com não-indígenas e estrangeiros: incorporando de fora novos conhecimentos e capacidades técnicas e estéticas, e convertendo-os internamente em valor, por meio de uma sofisticada economia ritual e simbólica.

Quando essa dinâmica sociocultural se depara com um universo de mercadorias e objetos produzidos em escala industrial, surgem efeitos complexos e inesperados para os próprios índios. O principal deles é o que poderíamos ver como uma espécie de “inflação” indígena: a rápida depreciação do valor dos objetos no interior da sociedade xikrin, criando novas demandas em espiral. Assim, apesar de perfeitamente legítimo, o consumo crescente que se vê entre eles tem resultados às vezes desvantajosos. Os Xikrin passam por um momento crucial e delicado.

Os responsáveis pelos assuntos indígenas da CVRD deveriam ter inteligência e sensibilidade para perceber que não estão em jogo apenas toneladas de minério ou alguns milhões de dólares, mas a vida de uma população humana, minoritária, que luta para sobreviver e manter seus valores e expectativas em um contexto histórico de mudanças rápidas e grande impacto.

A CVRD não é vítima dos Xikrin. Tampouco eles são vítimas da companhia. Mas é preciso um grande esforço para superar os mal-entendidos culturais e fazer com que a relação não seja de confronto, mas de cooperação. Para tanto, a companhia precisa sair de sua passividade cômoda, assumindo responsabilidades proporcionais ao seu tamanho.

O manifesto do antropólogo e autor de Economia Selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin foi apoiado pelas antropólogas Lux Vidal e Isabelle Giannini.

os índios xikrin e a companhia vale do rio doceCesar Gordon

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O aprendizado O Programa Waimiri Atroari tem seis divisões – Administração, Proteção Ambiental, Apoio à Produção, Educação, Documentação e Memória, Saúde –, pelas quais são desenvolvidos diversos projetos. Os maiores objetivos são o bem-estar e a independência dos índios. Ao longo de 18 anos de relacionamento com a Eletronorte, os Waimiri Atroari alcançaram um diálogo mais justo com o mundo a seu redor e, a cada dia, buscam economia própria e força cultural suficientes para protegerem seu território e seu povo. Por meio de um programa de educação especialmente desenvolvido para eles, os índios estabelecem uma relação mais clara entre o modo de vida kinja e as exigências do mundo globalizado.

“As tarefas e as aulas são pensadas com base nas nossas atividades. Toda a nossa escrita é importada do latim, mas foi criada em cima do fonema dos índios. Temos turmas de adultos e de crianças e as aulas duram cerca de 2 horas por dia. Mas tudo depende do

período do ano, respeitando nosso calendário de festas e rituais. Todos podem participar das aulas, mesmo que ainda não sejam alunos regulares. Então, a criança, desde pequena, pode assistir às atividades no colo da mãe”, explica o professor indígena Ewepe. Para ele, é importante aprender tanto a kinja iara (língua materna) como o português.

No atendimento à saúde, os Waimiri Atraori também se sentem privilegiados frente ao quadro que se estabeleceu nos últimos anos para os povos indígenas do País. O Programa baseia todo o trabalho na prevenção e no controle de doenças, como malária e tuberculose. A maior bandeira, no entanto, é a recuperação populacional dos índios que, quase dizimados ao longo dos anos de ditadura militar, conseguiram se reerguer e hoje vivem cercados de crianças, uma nova geração que nasce sem os traumas dos primeiros contatos com o branco.

Conflitos Do céu azul da Floresta Amazônica, o avião disparou a bomba. A explosão logo alastrou fogo pela aldeia Mydy. Em pouco tempo, toda a vida que ali existia desapareceu. Restou um passado de cinzas. Essa é uma das lembranças mais fortes e dolorosas para os

Waimiri Atroari. Na época da construção da BR 174, os índios viram cenas como essa se repetirem por mais de uma vez e afirmam: as atrocidades eram cometidas pelo próprio Exército brasileiro. Entre as décadas de 1960 e 1970, os kinja foram vítimas da total ignorância com a qual o Estado lidava com a questão indígena. Duras descobertas vieram de ambos os lados – os índios morriam por golpes violentos ou doenças trazidas por invasores e projetos desenvolvimentistas na região, e reagiam com força, travando uma luta intensa contra qualquer um que se aproximasse da comunidade.

A relação conflituosa entre os Waimiri Atroari e a sociedade envolvente perdurou por muitos anos, até meados da década de 1980, quando finalmente conseguiram garantir seus direitos junto à Eletronorte. Mas, se o impacto da construção da UHE Balbina foi suficiente para ameaçar a vida dos índios, que já estava por um fio, a abertura da BR 174, sob o comando do Exército, entre 1974 e 1977, e a instalação do Projeto

Pitinga (do Grupo Paranapanema) para extração de cassiterita tiveram uma responsabilidade ainda maior pela desestabilização da sociedade kinja.

Para os líderes Waimiri Atraori da época, era preciso resistir. Como reação aos freqüentes bombardeios e ao movimento de operários na região, os índios organizaram-se para a batalha. Armados de flechas com pontas de ferro e cheios de coragem, os kinja passaram a desconfiar de todos os não-indígenas que surgiam, inclusive dos indigenistas da Funai. “Nós entendíamos que a Funai era a porta de entrada dos inimigos na nossa terra. A primeira vez que eu vi o Txamyry [Carvalho], era pequeno e estava com meu pai. Nós fomos num posto da Funai enfrentar os funcionários, mas quando chegamos não tinha ninguém. Resolvemos esperar. No meio da tarde, o Txamyry veio chegando num barco com o Gilberto. Meu pai e meu tio se posicionaram perto de onde o Txamyry costumava descer. Ficamos ali, aguardando. Mas o Txamyry resolveu descer mais pra frente. Foi sorte dele... Hoje eu penso que foi sorte de todos nós”, conta Wame. Sorte que não teve Gilberto e outros 16 funcionários da Funai, mortos em uma emboscada dos índios, em 1974. Uma história que provoca tristeza profunda nos Waimiri Atroari.

Grande parte dessas transformações deve-se a um dos mais bem-sucedidos projetos de compensação ambiental já vistos no Brasil. O Programa Waimiri Atroari, financiado pela Eletronorte em parceira com a Funai, foi pensado como medida de compensação dos impactos gerados pela construção da Usina Hidrelétrica de Balbina (UHE Balbina), no rio Uatumã, que inundou uma área de 30 mil hectares da Terra Indígena Waimiri Atraori e deslocou duas aldeias. O Programa, com duração prevista de 25 anos, foi implementado em 1988, a partir de um estudo coordenado pelo indigenista Porfírio de Carvalho. Segundo relato dos índios, a notícia de que a Eletronorte iria iniciar a construção de Balbina, já em meados dos anos 1980, despertou grande preocupação na comunidade.

“Quando a gente ficou sabendo que a hidrelétrica ia fazer lago na nossa terra, a gente foi até Brasília falar com o presidente da Funai da época. Mas ele não queria falar com a gente porque tinha um monte de índios querendo tirar ele da Presidência. A gente não tinha ido até lá pra tirar ele. A gente só queria falar sobre a Eletronorte. Mas ele não falou. A gente, então, procurou o Txamyry e disse: ‘Txamyry, vai fazer lago

lá. Como vai ser?’. Depois de pouco tempo, ele veio pra cá dizendo que a Eletronorte ia mesmo fazer a hidrelétrica e que não tinha como impedir, mas que ele ia pensar num projeto. Ele foi conversando com a gente e a gente foi entendendo. Foi assim que nasceu o programa Waimiri Atroari”, lembra Wame, mais conhecido entre os não-índios como Viana.

Txamyry é o nome carinhoso que os índios deram a Porfírio de Carvalho e, na língua deles, quer dizer velho. De fato, Carvalho é um velho conhecido. Em 1969, ele integrou a frente de contato da Funai com os Waimiri Atroari ao lado do companheiro indigenista Gilberto Pinto Figueiredo, morto em 1974. Enfrentou, por muitos anos, resistência por parte do Estado e dos próprios índios. A confiança dos kinja foi um imenso presente para quem se dedicou tanto à causa indígena. “Fiz dos Waimiri Atroari meu projeto de vida. Tenho um compromisso com os índios. Se eu fracassar com eles, fracasso com minha vida também”, diz Carvalho, com a serenidade de quem acredita no que faz.

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Índios Waimiri Atroari fotografados na década de 1970, época de grandes conflitos

EMPREENDIMENTOS E TERRAS INDÍGENAS

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comunidade. “Os Waimiri Atroari vivem num sistema efetivamente comunista. Eles pensam comunitariamente e tudo o que fazem é para eles mesmos”, diz Carvalho.

Prova disso é o crescimento constante da receita gerada pelos próprios índios, sem contar os recursos repassados pela Eletronorte. Em 1995, a receita da comunidade era de R$ 118 mil. Em 2000, esse valor saltou para R$ 822 mil. Em 2005, já era de R$ 1.112.000. O dinheiro é usado para as despesas básicas das aldeias, como compra de combustível, ferramentas e roupas. A reunião no Núcleo de Apoio Nawá, realizada em outubro de 2006, apresentou um balanço do ano de 2005 que concluiu que os gastos foram cerca de R$ 75 por mês para cada indígena. No mesmo período, o programa da Eletronorte investiu aproximadamente R$ 240 por kinja por mês. O gasto total, portanto, com saúde, educação, projetos agrícolas, entre outros, foi em torno de R$ 315 por mês por índio. Um dos poucos bons exemplos de troca entre uma empreendedora e um povo indígena: a Eletronorte entendeu seu papel e garantiu os direitos dos índios, e os Waimiri Atroari mostraram para o mundo capitalista que é possível viver bem de forma solidária.

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O crescimento populacional é a maior vitória dos Waimiri Atroari, que foram quase dizimados nos anos de ditadura militar. Ao lado, o cotidiano na Terra Indígena

Algum tempo depois, a mineradora, em acordo com o Governo da época, conseguiu tirar 526 mil hectares da área de delimitação da Terra Indígena proposta pela Funai. Além disso, para o escoamento do minério extraído na região, a empresa abriu uma estrada de terra que se liga à BR 174. Pela utilização dessa estrada, o Grupo Paranapanema passou a pagar aos índios o valor de R$ 81 mil por mês, valor reajustado para R$ 90 mil reais em 2006.

Desenvolvimento e preservação ambiental Com o apoio da Eletronorte, os índios deram uma guinada nessa história. A mesma rodovia que foi a razão de tantos choques entre os kinja e os não-indígenas, hoje é encarada de maneira bem diferente. Em 1997, o Governo Federal deu início à pavimentação da estrada. O que antes seria motivo para guerra foi encarado pelos Waimiri Atraori de forma mais consciente. Para eles, o importante era a preservação da área. Pensando nisso, a comunidade elaborou o Plano de Proteção Ambiental e Vigilância Territorial.

Os motoristas que passam pelos 125 quilômetros da BR 174 que cortam a Terra Indígena deparam-se com placas de advertência e com informações preciosas sobre a área. Ao entrarem e saírem dos limites estabelecidos pela Funai, recebem um kit ambiental com sacolas de plástico para o lixo, folhetos sobre o Programa Waimiri Atroari e orientações para que nada prejudique a paz dos índios. Nos dois postos de vigilância da estrada, os kinja fazem uma fiscalização de todos os carros que passam e todos os dias, no fim da tarde, fecham as cancelas, que são reabertas apenas no dia seguinte de manhã. Justificam a proibição de circulação de veículos durante a noite de maneira muito simples: querem evitar acidentes e invasões.

Os cuidados, no entanto, não se restringem à área da estrada. A cultura waimiri atroari prega a atenção e o respeito à natureza. Os índios têm grande preocupação com tudo que está relacionado a esse universo e, por isso, mantêm a área indígena sempre intacta, inclusive nas grandes malocas das aldeias. Essa organização também se observa na maneira como eles discutem e pensam em alternativas para o desenvolvimento econômico da

EMPREENDIMENTOS E TERRAS INDÍGENAS

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Parte do Governo e a maioria dos brasileiros ainda vêem os índios e suas terras demarcadas como empecilhos para a implementação dos chamados grandes empreendimentos. Até pouco tempo, era comum que o Governo decidisse iniciar uma obra que atingisse direta ou indiretamente terras indígenas sem se basear em qualquer estudo de impacto etnoambiental. A própria legislação, até o final da década de 1970, não protegia as terras indígenas dos grandes empreendimentos, mesmo daqueles financiados pelo Governo Federal, pois ainda não existia o Estatuto do Índio nem leis e normas de proteção ao meio ambiente.

Até então, a base da política indigenista resumia-se à criação das chamadas reservas indígenas, pequenas porções de terra que abrigavam índios, muitas vezes de etnias e costumes diferentes. O Estado acreditava que não era necessário proteger áreas extensas para a sobrevivência dessas culturas. Os decretos de criação da Reserva Indígena Waimiri Atroari e da Parakanã, de 1971, por exemplo, tinham um artigo que dizia: “A Fundação Nacional do Índio terá o prazo de 2 (dois) anos para apresentar no Ministério do Interior projeto de redução da área reservada, desde que julgada excessiva às necessidades dos índios que a ocupam.”

Muitas vezes viram-se casos de extrema violência contra os direitos desses povos. Os Waimiri Atroari foram vítimas desse processo por diversas vezes. Numa delas, os indígenas assistiram à decisão do Presidente General Figueiredo de extinguir a Reserva Indígena para beneficiar a empresa Paranapanema, que estava instalando o Projeto Pitinga para exploração mineral de cassiterita na região.

Ainda na década de 70, criou-se para a Funai uma linha de financiamento para a formação de frentes de atração de índios “arredios” e para viabilizar a retirada das comunidades que habitavam as áreas onde seriam iniciadas obras desenvolvimentistas. Esses recursos eram derivados do chamado Plano de Integração Nacional – PIN. Nesse período, o Governo acreditava dispor das reservas indígenas para a

implementação de projetos, já que as terras, segundo a Constituição Federal, eram bens da União.

Os sertanistas e indigenistas da Funai reagiam, procurando sempre propor mudanças para que os empreendimentos não atingissem diretamente os índios e seus territórios. Na época, não se falava em compensações financeiras nem em ações mitigadoras dos impactos, mas a Funai buscava fazer com que a assistência a esses índios fosse melhorada. Alguns dos empreendimentos promoveram melhorias na infra-estrutura do órgão indigenista, mas tão logo se instalavam as obras, os apoios eram suspensos.

Finalmente, em 1977, surgiram as primeiras negociações entre os índios e as agências governamentais de desenvolvimento. Intermediei, junto com outros indigenistas, uma dessas negociações: aquela entre a Companhia Hidrelétrica do São Francisco S.A. – CHESF e as comunidades indígenas guajajara e krikaty. Na ocasião, os Guajajara não permitiram o início da construção da linha da CHESF em suas terras sem que houvesse reparação dos danos que seriam causados. A urgência da empresa em resolver o impasse resultou em um acordo, segundo o qual a companhia financiaria ações de apoio às atividades produtivas e de infra-estrutura das duas comunidades. Foi o primeiro passo para o reconhecimento dos direitos dos índios a ações compensatórias e mitigadoras por danos causados por empreendimentos em terras indígenas.

Hoje os programas Waimiri Atroari e Parakanã, ações indigenistas financiadas pela Eletronorte em parceria com a Funai, talvez possam servir de parâmetro para a elaboração de medidas mitigadoras de empreendimentos que atingem povos indígenas. Os resultados positivos alcançados por ambos os programas são prova dos avanços nas discussões em torno do tema, ao longo de tantos anos.

Indigenista e coordenador do Programa Waimiri Atroari, financiado pela Eletronorte.

índios e empreendimentosPorfírio de Carvalho

OPINIÃO

Além do Programa Waimiri Atroari, em 1988 a Eletronorte também firmou um convênio com a Funai para a criação do Programa Parakanã, direcionado a esse povo indígena que vive na bacia do rio Tocantins, no Pará.

Afetados pela construção da usina hidrelétrica Tucuruí, que começou a funcionar em 1984, os Parakanã viram 38,7 mil hectares de sua terra serem inundados e outros 56,9 mil hectares entregues ao Incra para o reassentamento de colonos que viviam na região e também haviam sofrido impactos com a obra. O primeiro passo das atividades de compensação socioambiental financiadas pela empresa para os índios foi a regularização fundiária da Terra Indígena, uma área de 351,6 mil hectares, hoje concluída.

a eletronorte e os parakanã

O Programa Parakanã, com duração prevista de 25 anos, desenvolve projetos nas áreas de educação, saúde, preservação ambiental e apoio à produção. Também coordenado pelo indigenista Porfírio de Carvalho, ele tem os mesmos objetivos do Programa Waimiri Atroari. “Eles foram pensados mais ou menos da mesma forma, mas isso não quer dizer que sejam programas idênticos. É preciso respeitar as diversidades de cada povo. O que funciona pra uns pode não funcionar pra outros. O que importa, na realidade, não é o modelo e sim os objetivos. É como minimizar os impactos causados por fatores históricos e pela presença de empreendimentos dentro ou perto de terras indígenas. No caso da Eletronorte, a empresa aprovou mais que programas de compensação ambiental”, explica Carvalho.

Cerca de 2.500 índios são beneficiados pelo Programa de Compensação Ambiental Xerente (Procambix), criado em 2002 por causa dos impactos gerados com a construção da hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães. Apesar de estar a 15 quilômetros da terra indígena, a usina alterou o curso do rio Tocantins, usado pelos índios Xerente para pesca e irrigação das plantações.

O empreendimento foi construído sob a nova legislação ambiental, o que explica o uso racional dos recursos naturais e a preocupação ambiental. Para Wagner Tramm, um dos coordenadores do Procambix e técnico da Coordenação Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente da Funai, o Procambix é uma grande conquista dos Xerente e de

EMPREENDIMENTOS E TERRAS INDÍGENAS

procambix:uma mudança na vida dos xerente

todos os povos indígenas do Brasil. “Um diagnóstico etnoambiental realizado por pesquisadores da Opan [Operação Amazônia Nativa, organização não-governamental] e do Gera [Núcleo de Estudos e Pesquisas do Pantanal, Amazônia e Cerrado da Universidade Federal de Mato Grosso] apontou alterações no curso do rio que prejudicavam a comunidade indígena. A partir daí, foi possível concretizar o programa”, diz Tramm.

Resultado de um convênio entre a empresa Investco (responsável pela hidrelétrica) e a Funai, o Procambix deve desenvolver 13 projetos, ao longo de oito anos, com uma verba total de R$ 10 milhões. O programa atende índios de duas terras indígenas da etnia Xerente em Tocantins – a T.I. Funil e a T.I. Xerente, que totalizam uma área de mais de 167 mil hectares.

Além da Funai, da Investco e dos índios Xerente, o Ibama, o Ministério Público Federal, o Sebrae e o Naturatins (órgão ambiental do governo de Tocantins) também formam o Comitê Gestor do Procambix.

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aldeias da metrópoleFelipe Milanez

ensaio

O primeiro contato da fotógrafa Rosa Gauditano com povos indígenas foi na tensa reunião na cidade de Altamira, Pará, em que se discutia a construção da hidrelétrica de Belo Monte. A imagem que lhe vem à memória é a foto que tirou da índia Kayapó Tuíra encostando um facão no rosto de José Antônio Muniz, então presidente da Eletronorte. “Eu era uma das poucas jornalistas nacionais no meio de um monte de estrangeiros. Vi a quantidade de povos e diferentes línguas do Brasil, a resistência deles, mas também presenciei o descaso da imprensa brasileira com os índios”, relembra Rosa.

Rosa trabalhou para grandes empresas de mídia no Brasil, antes de fundar a sua própria agência de imagem, a Studio R, e a ONG Nossa Tribo. No lançamento de seu livro Raízes do Povo Xavante, que retrata a iniciação espiritual, ao longo de 15 anos, dos Xavante de Pimentel Barbosa, no Mato Grosso, foi procurada pelo cacique Timóteo Verá, da aldeia

guarani Tenondé Porã, para ajudar a fazer uma publicação sobre os Guarani Mbya.

O trabalho de parceria teve início em 2003. Rosa passou a freqüentar as três aldeias de São Paulo – Tenondé Porã, Krukutu e Jaraguá – ao menos uma vez por mês. No projeto, apoiado pela Caixa Econômica Federal e pela Prefeitura Municipal de São Paulo, foram compradas câmeras digitais, com as quais ela deu aulas de fotografia para os índios. “Cheguei à conclusão de que precisava passar adiante o que eu sei, o que aprendi na minha vida. A fotografia é um instrumento poderoso e essas comunidades precisam ter essa arma em mãos.” A partir desse trabalho, foi publicado o livro Aldeias Guarani Mbya na Cidade de São Paulo, com depoimentos em português e tupi-guarani, lançado em setembro de 2006.

As fotos deste ensaio são parte da experiência de Rosa nas aldeias de São Paulo. A erva-mate é original da cultura guarani (Tenondé Porã)

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As mulheres fazem artesanato para conseguir alguma renda (Jaraguá)O CECI é a escola guarani bilíngüe (Jaraguá)

As meninas são mães muito cedo (Jaraguá)

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Jogo tradicional das crianças Guarani (Tenondé Porã)A magia das bolas de sabão sempre encanta as crianças (Krukutu)

ROSA GAUDITANO

As crianças brincam em liberdade (Jaraguá)

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O cachimbo é fumado nos rituais religiosos (Krukutu)Crianças tomam banho na bica (Jaraguá)

Catar piolho é um ato de carinho entre os Guarani (Tenondé Porã)

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porta parauma vida novaFelipe Milanez

Fotos: Ademir Rodrigues

Região sudoeste de Mato Grosso Municípios Pontes e Lacerda, Porto Esperidião e Vila Bela da Santíssima Trindade Área 43.057 hectares População 300 pessoas (e cerca 2.000 fora da área) Etnia Chiquitano Línguas português e chiquitano

PORTAL DO ENCANTADO

A 15 minutos de caminhada da casa do pajé seu Lourenço, o sol abre as portas de um mundo encantado logo nas primeiras horas do amanhecer. Ao pé da Serra de Santa Bárbara, que corta a Terra Indígena Portal do Encantado, a luz da aurora transforma os tons de verde da densa mata. À medida que os raios ficam mais fortes e ganham mais brilho, quase sete horas da manhã, o topo ilumina-se. Com a chegada do calor, um vento forte escorre das escarpas e traz o perfume da floresta. Num ponto entre a mata e a linha de pedra do maciço, uma sombra produz a ilusão de profundidade na rocha, como se uma porta se abrisse dentro da montanha. É o “Portal do Encantado”, que se observa melhor nessa hora do dia. As bochechas do pajé Lourenço se retraem para formar um cativante sorriso de satisfação de dever cumprido. O Portal está ali, logo à nossa frente. Dele vem o nome dado à terra indígena que abriga a aldeia de seu Lourenço, Fazendinha, e a aldeia Alcorizal. Essa é a primeira terra que acolhe publicamente os Chiquitano como povo indígena. Atrás do portal, essa fresta de rocha na montanha, seu Lourenço afirma que os espíritos que vivem no mundo encantado da serra estão felizes, ouviram as suas preces e ajudarão a ele e a seu povo na luta que travam pelo reconhecimento de sua cultura e pela demarcação de suas terras.

Chicha, pataska e carnavalitos Perto de seu Lourenço vive José Mendes, o seu Zé, outro patriarca chiquitano. “Vamos fazer uma festa para discutir como foi o encontro com os parentes”, propõe seu Zé, sentado na varanda de sua casa, em alusão à reunião que acontecerá dentro de poucos minutos para falar sobre o 1º Seminário de Afirmação dos Povos Chiquitanos, realizado dois dias antes no município de Cáceres, Mato Grosso. Os convidados começam a chegar por volta das sete da noite. A maioria desce de um ônibus usado para o transporte dos jovens à escola. Outros chegam “na pernada”. O pajé Lourenço carrega sua flauta, chamada paiovisch, e seu filho Cirilo, cacique da Fazendinha, traz a caixa, feita de couro de veado. Eles são os músicos da comunidade. No total, vieram mais de 50 pessoas à casa de seu Zé.

As conversas fluem em volta da casa e na varanda. Todos à vontade. O tema geral é a visita à cidade e as tensas discussões políticas que tiveram por lá. Aqueles que foram a Cáceres querem contar para os que ficaram na aldeia como está a situação dos parentes que vivem espalhados pela região. Falam de algum primo que está com eles na luta, de um tio que está contra e chama todo o mundo de “boliviano”. Conversas.

Não houve tempo para preparar a bebida chicha para animar mais o ambiente. Nem a pataska – um cozido de milho. Em compensação, um cozido de mandioca e carne de gado já está para sair do fogo. Feitos os agradecimentos e as rezas na língua chiquitana pelo pajé Lourenço, tem início a ceia, acompanhada da alegre música tradicional de flauta e percussão. Tocam o animado “carnavalito”. Alguns casais dançam com lenços; outros giram em roda com as mãos dadas. O encontro está animado e Zé Mendes sente orgulho da organização. “Agora que já entendemos que o encontro foi bom, é hora de festa, de deixar pra lá essas coisas!”, exclama, referindo-se às tristezas, às ameaças de morte, aos insultos, às ofensas e aos preconceitos que seu povo tem sofrido. E também quer esquecer um pouco a iminente possibilidade de serem expulsos de suas terras por terem negada a sua origem indígena e a sua identidade como Chiquitano.

Virar branco, morrer índio Na fronteira do Brasil com a Bolívia, numa área geográfica pouco acima do Pantanal, já nas primeiras franjas da Amazônia, vivem os Chiquitano, ou Chiquitos. Bastante católicos, hoje encheriam de orgulho qualquer jesuíta que passou por aquelas bandas três séculos atrás para catequizá-los.

Um dia entre os Chiquitano: o amanhecer no Portal do

Encantado (ao lado) e o fim de tarde na agradável casa de seu Zé

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PortoEsperidião

San Matias

San Ignacio

Cáceres

Campamento

Jauru

Vila Bela daSantíssima Trindade Figueirópolis

D’Oeste

Indiavaí

A Coroa espanhola arrebanhava as etnias que encontrava e as enfiava em suas reducciones missionárias. Nas missões da região de San Ignacio de Velasco, que surgiram para impedir o avanço dos bandeirantes paulistas no território, eram mais de 30 grupos com línguas e costumes diferentes, como os Boro, os Saraveka, os Guarayo, os Kuruminaka, os Parisica. Ao povo mais numeroso, os espanhóis deram o apelido de “chiquitos” – por causa da pequena entrada de suas casas. Dessa etnia, os jesuítas aproveitaram a língua para o uso geral, a mesma para a qual verteram a Bíblia imposta a todos os outros grupos, e criaram um nome para o amálgama cultural: chiquitanos.

Os jesuítas foram expulsos em 1767. Os Chiquitano ficaram. Ao longo dos séculos, mudaram-se as fronteiras, em discussões políticas entre as metrópoles coloniais e posteriormente Brasil e Bolívia, e os povos originários da região permaneceram em sua terra, exatamente nos mesmos locais em que sempre estiveram. Em uma nova ordem, sofreram a exploração do trabalho escravo pelas encomiendas espanholas, pela mão dos bandeirantes, e, mais tarde, viveram a experiência de bóias-frias nas fazendas. Sob tanta pressão, tentaram transformar a sua existência, “virar brancos”, abandonar sua identidade. Praticamente perderam a língua, abandonaram hábitos. Mesmo assim, permaneciam os preconceitos – a cor da pele e os olhos puxados, eles não conseguiam esconder. No fundo, a afirmação cultural dos Chiquitano, um povo de fronteira, é um tema que tem ensinado o Brasil a ser um país ainda mais latino-americano e mais justo com seu passado.

Expulsão “Tinham dado 30 dias para a gente sair daqui de onde a gente sempre viveu”, recorda o cacique Cirilo, da aldeia Fazendinha, referindo-se a um período trágico vivido há poucos anos pela comunidade. “Depois de usar a gente para trabalhar que nem escravo, os militares não queriam mais a gente. Daí chegou um monte de fazendeiros dizendo que a terra era deles, que era pra gente sair. E a gente que sempre viveu aqui, vai pra onde?”, indaga a cacique Francelina, da aldeia Alcorizal. “Se saísse, eu não sei para onde

iria. Já sou velho, eu e minha velha. Ia parar na beira da estrada, procurar um cantinho na cidade, não sei o que ia fazer”, reflete seu Zé Mendes sobre a agonia que viveu. “O fazendeiro tinha falado bem assim pra gente: ‘Vocês são igual a boi quando vai pro matador; vão embora daqui um atrás do outro, em fila, pra morrer’”, relata seu Lourenço. Os depoimentos dos habitantes do Portal do Encantado, uma área identificada pela Funai e que aguarda portaria declaratória do Ministério da Justiça, expressam o temor pela perda da terra e de sua própria história.

O caso dos Chiquitano veio à tona com a construção do gasoduto Brasil–Bolívia, no final dos anos 1990. Eles estavam no meio do caminho, e precisavam ser identificados. Em seguida, quando o Exército brasileiro passou a fazer o recadastramento de todos os permissionários que viviam nas áreas de fronteira, novamente apareceram os Chiquitano, “sem lenço e sem documento”. Daí a iminência de expulsão mencionada pela cacique Francelina, em razão de outras pessoas possuírem títulos de propriedade. A espoliação territorial sofrida pelos Chiquitano não vai tão longe no tempo quanto a sua conversão ao catolicismo, no século XVII. É coisa de poucos anos.

Legítimos, mas sem “papéis” “Pelos dados que temos colhido, o processo violento de expulsão e deslocamento começou em 1976, durante a ditadura militar, com a regularização fundiária feita pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a chegada das agropecuárias à região”, afirma a antropóloga Joana Fernandes, professora da Universidade Federal de Goiás. A “regularização” era arbitrária e todas as áreas que não estavam tituladas eram consideradas pelo Estado terras devolutas. “As

comunidades de Chiquitos que sobreviveram e estão estruturadas até hoje são as que resistiram ao processo de expulsão e vivem nas bordas das fazendas ou nas áreas de destacamentos militares”, explica.

As ameaças e as expulsões, sempre acompanhadas de papéis que os índios não entendiam, colocou em xeque a sobrevivência das duas comunidades do Portal, as aldeias Alcorizal e Fazendinha, que agora vivem uma situação pouco menos ameaçadora do que a de seus parentes espalhados pelas beiras das estradas. Mas, para isso, foi preciso assumirem-se publicamente como Chiquitano, uma condição absolutamente desfavorável no meio social em que vivem. Em 1998, a Funai deu início a um processo de cadastramento de todas as comunidades da região, para verificar quais teriam origem indígena e poderiam pleitear a regularização da posse de suas terras. A ira local veio com força e o boicote à mão-de-obra que se assumia como indígena agravou-se. Muitos índios, até hoje, preferem não tocar no assunto e manter distância da Funai, para não sofrerem represálias. “Identidade é uma questão política, mas se apresenta extrema nesses casos”, diz a antropóloga Joana. Ser índio na região de Cáceres

Os Chiquitano já estavam aqui, o Brasil é que ainda

não tinha chegado.

Seu Lourenço, o pajé (página ao lado), não conhecia as linhas da fronteira quando era pequeno. No mapa ao alto, a dispersão das aldeias, de acordo com a Funai e documentos bolivianos. No registro histórico, um outro desenho político da ocupação.

Brasil

Bolívia

Aldeias Chiquitanas no BrasilAldeias Chiquitanas na Bolívia

PORTAL DO ENCANTADO

Terra IndígenaPortal do Encantado

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significa uma ameaça constante. “Tenho medo de ir à cidade, sei que sou marcado por aqui para morrer”, conta Cirilo. “Mas não vou deixar de ser Chiquitano e de lutar pelo meu povo.”

Índio ou boliviano? Em meio a falta de dinheiro, fome, ausência completa de expectativas, os Chiquitano na região são obrigados a refletir sobre a condição indígena. Afinal, não raro, fazendeiros tentam comprar o silêncio da identidade chiquitana. Esse conflito foi tema do encontro realizado em Cáceres, entre 10 e 12 de novembro. “O pessoal da comunidade me mandou aqui para entender melhor essa questão. A gente tá confuso lá na Vila Bela. Tem gente que se diz índio, outros não. Será que ser índio vai melhorar a vida do povo chiquitano?”, questiona, de forma tautológica, Vicente Matucari. Com pele avermelhada, olhos puxados, cabelo preto bem liso, estatura baixa, pés pequenos, dedos curtos, dada a proximidade com um país em que 90% da população é de origem indígena e possui esses mesmos traços físicos, Vicente pode passar por um boliviano. Essa é a denominação que tem sido imposta a eles no conflito fundiário em que se encontram. Uma “armadilha”, na visão da antropóloga Joana. “O que está em jogo, por trás, é o direito à terra”, afirma. “E a identidade, como em qualquer caso, tem um cunho político. Eles são índios, há muitas evidências científicas para provar isso. Basta vir aqui e conversar um pouco com eles para não se ter mais dúvida.”

Em área de fronteira há sempre um movimento humano, cultural e econômico entre os dois lados. É inevitável. Na região alagadiça do rio Paraguai não é diferente. Um mapa de comunidades chiquitanas (veja página 39) mostra uma ocupação muito mais harmônica do que as linhas geométricas que marcam as áreas de fronteira seca. A aldeia do Barbecho foi cortada ao meio pela linha de fronteira. Com a

chegada das fazendas, o Barbecho foi desmembrado em pequenos núcleos, dispersos nas beiras das estradas. O indigenista da Funai José Eduardo Moreira da Costa começou a trabalhar com os Chiquitano em 1998, estendeu seu trabalho de campo à pesquisa acadêmica e, em setembro último, publicou o livro O Manto do Encoberto: identidade e território entre os Chiquitanos. De acordo com suas pesquisas, a linha de fronteira foi passando por cima do território dos Chiquitano. “A ocupação tradicional ia até os rios Jauru, Guaporé e Paraguai, estendia-se aos limites dos territórios dos Nambikwára, ao norte, e a até onde hoje é Cáceres, no extremo leste”, explica. O traçado atual que divide os países foi definido somente nos anos 1970. As retas geométricas sobre a área seca chegam a maltratar os contornos geográficos da natureza. Os Chiquitano já estavam aqui, o Brasil é que ainda não tinha chegado.

A origem O caminho de Cáceres até San Ignacio é uma poeirenta estrada de terra. Ela atravessa uma grande parte do território chiquitano. Uma visão antropológica permite identificar as comunidades pela organização familiar regida por irmãos, chamada “siblings”: depois de casarem, os irmãos abandonam o lar e vão, juntos, procurar outra área para viver e formar uma aldeia. Isso proporciona um imenso território, mas dificulta a união, em virtude das distâncias. Ao longo do trajeto, avistam-se casas que seguem um mesmo modelo arquitetônico, bastante térmicas para suportar o calor. As construções são feitas em três módulos, sendo dois quartos e, no meio, uma varanda. Uma após outra, dispersas, todas iguais, beirando o pantanal, com alguns quilômetros de distância. No Brasil, na faixa de fronteira, na entrada da Bolívia, nas aldeias do Portal do Encantado, a arquitetura expõe uma unidade cultural, até a chegada nas missões, quando a imponência barroca determina o contraste com o popular. No Portal, já

Arte e música: no encontro em Cáceres teve carnavalito e cantos tradicionais. A cerâmica e a escultura permanecem traços marcantes na cultura chiquitana. Nas antigas igrejas das missões (página ao lado), ainda resiste o Barroco missionário

PORTAL DO ENCANTADO

está em construção um grande memorial da cultura chiquitana, que segue o modelo do Barroco missionário.

A missão de Santa Ana, distante 42 quilômetros de San Ignacio, é um povoado com menos de 500 pessoas. Todos se consideram remanescentes dos primeiros Chiquitano aldeados. A língua antiga é falada por todos, inclusive pelos jovens. Ao encontro realizado em Cáceres, veio uma orquestra de cordas para mostrar aos Chiquitano do Brasil a beleza sonora de quem conheceu a religião católica ao som de Bach. Na aldeia, Bach percorre os ares por meio do som do órgão que se propaga de dentro da bela igreja, levantada pelos próprios índios depois que os jesuítas foram expulsos. No seu interior, alguns documentos pouco conhecidos explicam a história dos Chiquitano.

“Me chamam de guardião porque cuido das coisas que estão aqui”, apresenta-se Luís Rocha Peña. Em seu colo, um manuscrito grande, naquelas letras bonitas de antigamente. Na capa, 1870. É o registro dos batismos e casamentos da região. Naquele tempo, os padres iam a cavalo a todas as comunidades para fazer as “desobrigas” religiosas. Nesse documento, em alguns outros encontrados nas outras missões da região, nos arquivos públicos de Mato Grosso e no Arquivo Nacional de Sucre, é possível encontrar os nomes das famílias que vivem nas aldeias do Barbecho (em fase

de estudo e identificação pela Funai), Alcorizal e em tantas outras que, hoje em dia, estão no Brasil.

Últimas palavras no linguará No Brasil, a língua que os Chiquitano jovens falam em Santa Ana é rara. Dentro do Portal, seu Lourenço só fala a língua antiga com dona Rosália e com seu Inácio, os mais idosos que vivem na Alcorizal. As lingüistas Áurea Santana, que também é indigenista da Funai, e Ema Cintra tentam recuperar por intermédio deles a língua quase extinta e refazer sua classificação científica – possivelmente ligada ao tronco jê. Dona Rosália é a matriarca. Tem o coração de mãe e as mãos macias de avó. Gosta de contar histórias. Seu Inácio tem um largo sorriso, mãos grossas do trabalho e uma voz serena, meio rouca. Quando fala do que sofreu, fecha a cara, numa demonstração clara de que não gosta de lembrar algo ruim que já passou. “Fala pra ele que nos escravizaram”, incentiva sua filha, a cacique Francelina. “Hum!”, balbucia seu Inácio. Seu Lourenço também prefere deixar para os filhos o desgosto de falar sobre a brutalidade com que foram e têm sido tratados. Quando se dirige a alguém de fora, prefere falar do que lhe dá prazer – dos mitos, dos encantos da terra onde vive e onde sempre viveu seu povo: “O Portal é lindo demais, e seus espíritos vão nos proteger.”

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tão longe,tão pertoJúlia Magalhães e Mário Moura

Fotos: Christian Knepper e

Carlos Goldgrub

Região sertão de Pernambuco Municípios Tacaratu, Petrolândia e Jatobá Área 15.927 hectares População aproximadamente 6.100 pessoas Etnia Pankararu Língua português

Uma distância de mais de dois mil quilômetros mede a saudade de homens e mulheres que deixaram a aldeia Brejo dos Padres, no sertão de Pernambuco, em busca de melhores condições de vida. Desde a década de 1940, índios Pankararu partem – muitas vezes embarcados em ônibus capengas – para a maior cidade da América do Sul, São Paulo. A metrópole em nada se assemelha com a terra indígena desse povo, um vale de terras férteis com inúmeras fontes de água, próximo à barragem de Itaparica, no rio São Francisco. Pelo contrário. A paisagem que cerca a comunidade que vive no meio urbano é feita de asfalto, concreto, tábuas de compensado. E de uma imensa desigualdade social. Na aldeia de 6.100 índios, não há quem não tenha amigos e parentes que vivam fora dali. A maioria deles está na região Sudeste do Brasil.

“Nossos parentes mais velhos deixavam a aldeia, a mulher e os filhos, e vinham pra São Paulo. Aqui trabalhavam em obras, como pedreiros, juntavam dinheiro e, depois de meses, voltavam para casa. A vida deles era essa, de ir e vir o tempo todo. Já a minha geração veio com a família, mas sempre

PANKARARU

Índios caminham em direção à aldeia Brejo dos Padres.

Ao lado, crianças vivenciam sua cultura no sertão de Pernambuco

com a vontade de voltar”, conta Manuel Alexandre Sobrinho, conhecido como Bino, que hoje preside a Associação Indígena S.O.S. Comunidade Indígena Pankararu, com sede na favela Real Parque, zona sul da capital paulista. Nessa favela, concentra-se a maior comunidade Pankararu da cidade de São Paulo. De acordo com o último censo da Associação, realizado em 2006, são 116 famílias, que somam 509 pessoas.

Dona Quitéria, uma das maiores lideranças pankararu, tem filhos e netos tanto na aldeia quanto em São Paulo e Santa Catarina. Voltar para a terra natal, segundo ela, é o sonho da grande maioria desses índios. Mas a vida, muitas vezes, não permite o retorno. “É em São Paulo que está o ganha-pão deles”, diz. Muitos só vão à área para matar a saudade e rever aqueles que ficaram. “Se a terra já estivesse desocupada desses 'brancos' que estão aturrados aí, muitos já tinham voltado.” Dona Quitéria explica que os índios começaram a deixar a aldeia por causa das freqüentes invasões da área por não-indígenas. Ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais difícil sobreviver ali.

O território pankararu tem mais de 300 anos de História, com registros de índios em diversas regiões do rio São Francisco. A regularização fundiária, que envolve uma porção de terra de quase 16 mil hectares, ainda não está concluída. Para o cacique de Brejo dos Padres, João Alto, embora os Panakararu acreditem que a área ainda seja insuficiente para a sobrevivência da comunidade, o problema não se resume à questão territorial. É preciso instalar poços artesianos e energia elétrica que possibilite o funcionamento das máquinas para irrigação de pomares e pequenas lavouras. “O período chuvoso é muito curto e isso traz grande prejuízo aos índios, seja na lavoura e nos pomares, seja na criação dos animais, pois, sem pasto para alimentá-los, os índios são obrigados a vendê-los a preços bem baixos, para que não morram de fome”, conta o cacique. As dificuldades encontradas pelos índios do sertão de Pernambuco não são muito diferentes daquelas enfrentadas por outros povos indígenas do Brasil. Hoje a gestão territorial é o maior desafio deles.

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Cotidiano no campo e na cidade Na Terra Indígena, os Pankararu vivem basicamente da agricultura familiar, com o cultivo de roças de feijão, milho e mandioca. A colheita de pinha também é um importante sustento, já que os índios são um dos maiores produtores da região. Frutas como goiaba, manga, caju, murici e banana também são comercializadas nas feiras dos municípios próximos, principalmente em Tacaratu e Petrolândia. Mas é no umbu que está a grande referência para os índios. No início da safra, eles celebram seu mais importante ritual, a Corrida do Umbu.

Já na cidade, o dia-a-dia da comunidade é outro. Não é da terra que os Pankararu do Real Parque tiram o sustento. “Meu sonho é conseguir uma área onde a gente possa viver e morar. Índio não quer esmola. Quer terra pra trabalhar”, afirma o presidente da Associação. Embora ele almeje um cenário mais justo e igualitário, a favela é uma realidade oposta. A Grande São Paulo aglomera 19 milhões de pessoas e, nesse mundo de gente que se atropela na luta constante do trabalho, os Pankararu

da Prefeitura Municipal de São Paulo voltado à população carente), os Pankararu da cidade conseguiram manter a dignidade e a consciência de que o mundo deles vai além. Mantêm uma conexão viva e reverencial com a comunidade de Brejo dos Padres, comunicando-se freqüentemente com o cacique e o pajé da aldeia.

Cultura viva O maior símbolo cultural dos Pankararu é o Toré, ritual conhecido entre os povos indígenas do Nordeste. Vestidos com roupas de fibras de palmeira, um grupo dança ao som do toante, um canto ritmado e forte. Os maracás e a batida dos pés descalços no chão dão o tom da apresentação. A dança é expressão de contentamento e pode ser realizada em qualquer época do ano.

Na terra indígena, o Toré é realizado de forma plena, assim como outros rituais, como a Corrida do Umbu e o Menino do Rancho. Já a comunidade de São Paulo deve obedecer a restrições feitas pelo cacique e pelo pajé de Brejo dos Padres. Algumas comemorações não podem ser realizadas fora da aldeia por causa da ausência de uma

Moradores da favela Real Parque preparam-se para dançar o Toré.

À esquerda, dois líderes: Bino, da comunidade urbana, e Dona

Quitéria, da aldeia

“Meu sonho é conseguir uma área onde a gente

possa viver e morar. Índio não quer esmola. Quer

terra pra trabalhar.”

tentam incansavelmente manter a identidade indígena. “Em janeiro de 1977, eu deixei a aldeia chorando. Metade de mim veio; a outra metade ficou”, lembra Bino.

O sentimento dele é o mesmo de quase todos os outros índios que se fixaram à beira da Marginal Pinheiros, um dos símbolos do caótico tráfego paulistano, com milhares de motos, carros, caminhões, além de linhas de trem urbano. Em São Paulo, o cotidiano é agitado e as complicações são muitas. Nem todos os adultos Pankararu que vivem no Real Parque têm emprego fixo. Alguns estão desempregados há tempos e dependem da solidariedade da comunidade para ter onde morar e o que comer. “Eu não deixo parente meu passar fome. Se alguém está passando necessidade, a Associação recolhe um dinheirinho para comprar pelo menos uma cesta básica. Sempre dá-se um jeito.” Bino sente-se feliz com a união dos índios na favela. Apesar de todos os apertos, de viverem em barracos simples ou em apartamentos pequenos do Cingapura (projeto de moradia

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PANKARARU

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casa de reza e de um território indígena.Mesmo longe de sua terra, ao receberem a

reportagem da Brasil Indígena, alguns índios vestiram as máscaras típicas do Toré e dançaram em frente à sede da Associação Pankararu, em São Paulo. É o único ritual que estão autorizados a realizar. Num dia de semana cinzento, a chuva fina não impediu o movimento intenso dos moradores da Real Parque. Música americana tocava no último volume do rádio de um carro velho. Crianças brincavam na calçada e mulheres observavam o vaivém da rua principal. Mas logo que os índios apareceram com os rostos cobertos, os demais moradores da favela pararam. Todos ficaram atentos e com os olhos vidrados nos passos dos Pankararu. No contraste de dois universos tão distintos como o da cultura indígena e o do cotidiano urbano, o respeito mútuo. “Quando a gente quer dançar o Toré, fazemos na rua mesmo porque o espaço dentro da sede da Associação é muito pequeno. Os vizinhos não reclamam e até gostam. Mas é um trato: a comunidade da favela nos fala quando algo vai acontecer e nós avisamos quando vamos fazer

festa”, explica Dora, filha de Bino.Aprendendo a lidar com a diversidade A proximidade antiga e intensa dos índios do Nordeste com a sociedade envolvente é marcada pelas novas necessidades que surgiram para esses povos, como a questão da educação e da compreensão de um sistema estranho à tradição indígena. Muito antes disso, pela própria história de contato dos Pankararu com a cultura dos não-indígenas, houve uma forte miscigenação. Isso, no entanto, não afeta sua identidade “porque o índio não está na cor e sim na cultura”, como costumam dizer. Eles sentem orgulho de ainda manterem todos os seus rituais, de serem reconhecidos como um povo diferenciado e das lutas que travaram para manter o seu território.

Entretanto, a língua, que foi esquecida ao longo dos anos, ainda é um tabu. “Voltar a falar o idioma nativo vai reforçar as nossas raízes, mas não somos menos índios porque não falamos a nossa língua originária”, afirmam vários habitantes da aldeia Brejo dos Padres. O cacique João Alto, porém, esforça-

se para conseguir retomar a língua pankararu. Já procurou um professor da Universidade de Brasília (UnB) para pensar, junto com algumas professoras indígenas, como fazer esse resgate.

Para José Vidal, uma das lideranças indígenas da aldeia, o principal motivo que levou os índios a perderem a língua materna foi a catequização dos padres. “Eles, na verdade, queriam ensinar a religião deles e forçavam os índios a falarem só o português. Eles não queriam que os índios conversassem no idioma nativo, porque assim eles não entendiam a conversa.” A despeito das mudanças, há um forte sentimento de suas raízes. Esqueceram como falar pankararu, mas jamais se esquecerão de que são indígenas – seja na aldeia, seja vivendo em comunidade numa metrópole como São Paulo.

Os adultos lutam pela garantia do direito à terra para as novas gerações

PANKARARU

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Karai de Oliveira Paula

Aldeia Krukutu

Nanquim sobre papel

ARTE

Para maiores informações, entrar em contato com a

Coordenação-Geral de Estudos e Pesquisas

Telefones: (61) 3313.3500

[email protected]

Revista de Estudos e Pesquisas da Funai: mais uma

publicação em defesa dos direitos indígenas

Contracapa: Casa e vasos na comunidade chiquitana da Vila Nova, MT. Foto: Ademir Rodrigues

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