Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

34
Entrevista realizada pelo Grupo com a Profa. Lígia Vieira da Silva (ISC-UFBA) SIDARTA Estamos hoje dando continuidade às atividades do nosso projeto PIBIC 2008/2009 com a seqüência de entrevistas que temos realizado. Nosso projeto visa à investigação da produção de conhecimento em artes e humanidades a partir de epistemologias não-cartesianas. Nessa direção, começamos com o estudo do filósofo da ciência e físico austríaco Paul Feyerabend, em seguida a obra do filósofo e químico Gaston Bachelard, e hoje, para conversar com a gente sobre a obra e o pensamento do filósofo e sociólogo Pierre Bourdieu, temos a professora LÍGIA Vieira do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, médica e doutora em medicina preventiva, com estágios pós-doutorais no Canadá, na universidade de Montreal e no Centro de Sociologia Européia em Paris. Conosco nosso grupo de pesquisa, Adalberto da Palma, mestrando em Artes Cênicas, aqui na Universidade Federal da Bahia, Adalene Sales, mestranda no programa de pós-graduação em psicologia da UFBA, a professora Denise Coutinho, que orienta nosso grupo de pesquisa, professora do instituto de psicologia e da pós-graduação em artes cênicas, Eleonora Santos, doutoranda do programa de pós-graduação em artes cênicas, e Isa Sara que é estudante de graduação do curso de dança da Universidade Federal, e eu sou Sidarta Rodrigues, estudante de graduação de Psicologia aqui da Universidade Federal da Bahia.

description

transcriçao da entrevista realizada com a professora ligia vieira da universidade federal da bahia - Instituto de saude coletiva - sobre o pensamento e a obra de Pierre Bourdieu

Transcript of Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

Page 1: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

Entrevista realizada pelo Grupo com a Profa. Lígia Vieira da Silva (ISC-UFBA)

SIDARTA

Estamos hoje dando continuidade às atividades do nosso projeto PIBIC 2008/2009 com

a seqüência de entrevistas que temos realizado. Nosso projeto visa à investigação da

produção de conhecimento em artes e humanidades a partir de epistemologias não-

cartesianas. Nessa direção, começamos com o estudo do filósofo da ciência e físico

austríaco Paul Feyerabend, em seguida a obra do filósofo e químico Gaston Bachelard,

e hoje, para conversar com a gente sobre a obra e o pensamento do filósofo e sociólogo

Pierre Bourdieu, temos a professora LÍGIA Vieira do Instituto de Saúde Coletiva da

Universidade Federal da Bahia, médica e doutora em medicina preventiva, com estágios

pós-doutorais no Canadá, na universidade de Montreal e no Centro de Sociologia

Européia em Paris. Conosco nosso grupo de pesquisa, Adalberto da Palma, mestrando

em Artes Cênicas, aqui na Universidade Federal da Bahia, Adalene Sales, mestranda no

programa de pós-graduação em psicologia da UFBA, a professora Denise Coutinho, que

orienta nosso grupo de pesquisa, professora do instituto de psicologia e da pós-

graduação em artes cênicas, Eleonora Santos, doutoranda do programa de pós-

graduação em artes cênicas, e Isa Sara que é estudante de graduação do curso de dança

da Universidade Federal, e eu sou Sidarta Rodrigues, estudante de graduação de

Psicologia aqui da Universidade Federal da Bahia.

LÍGIA

Inicialmente eu quero agradecer o convite, a vocês e a Denise. Dizer que, a minha

formação básica foi medicina, mas, como atuo na área de saúde coletiva que é uma área

transdisciplinar acabei incorporando as ciências sociais na pesquisa em relação a

diversos objetos. Eu, em particular, cheguei até Bourdieu por conta de uma linha de

pesquisa sobre os determinantes sociais das práticas de saúde e por essa razão vim

estudando há muitos anos e incorporando essa linha de pesquisa e resolvi fazer um

estágio pós-doutoral no Centro de Sociologia Européia onde desenvolvi um projeto de

pesquisa em colaboração com Patrice Pinell que trabalhou com Bourdieu e possui

estudos sobre o campo médico e análise das políticas de saúde a partir do referencial

“bourdieusiano”.

SIDARTA

Page 2: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

Eu queria começar com uma questão da obra de Bourdieu, quando ele fala sobre

habitus, a partir do conceito de habitus e de campo, o habitus, representando também e

incorporando elementos da estrutura do campo, como podemos pensar – uma questão

ética. Eu queria saber o lugar da liberdade e também da criatividade na obra de

Bourdieu, porque quando ele se coloca do ponto de vista metodológico, ele cria uma

certa oposição ao existencialismo e o individualismo de Sartre, como aquela idéia de

sujeito livre, e adota uma postura que tenta fazer uma mediação entre objetividade e

subjetividade, tentando evitar qualquer psicologismo. Nessa questão, o que seria um

agente livre, sendo que toda sua ação já tem uma estruturação objetiva a partir do

campo?

LÍGIA

Em primeiro lugar, eu queria fazer uma consideração preliminar da dificuldade de nós

discutirmos a obra de Bourdieu de uma perspectiva puramente teórica, porque a

essência da sua metodologia, sua epistemologia está ligada a uma investigação ao

mesmo tempo prática e teórica. Ele sempre traz nos seus trabalhos que não faz sentido

uma análise dos conceitos por si mesmos, mas ver como os conceitos funcionam em

situações concretas de investigações e de pesquisa. Essa é uma limitação de uma

discussão ainda que numa conversa, mas evidentemente que é possível referindo não só

àas pesquisas dele, mas ainda referindo àas pesquisas de outros pesquisadores do grupo

dele que incorporaram esse tipo de conceito.

Fazendo essa consideração, há duas observações a serem feitas: a idéia de que o habitus

implica um determinismo rígido não é uma idéia precisa do que foi o conceito de

habitus de Bourdieu, nem que ele se opunha a Sartre. No livro O senso prático, ele

inicia sua análise dizendo que todo homem trabalha com duas metafísicas, segundo

Bachelard: uma objetivista, outra subjetivista.

Ele traz o pensamento de Sartre por um lado, que enfatiza uma perspectiva subjetivista e

o de Lévi-Strauss que seria a perspectiva estruturalista, objetivista. Ele discute que

ambas as abordagens são importantes para o conhecimento do mundo social. Ele não

exclui, ele diz que ambas são importantes, ele desenvolve a teoria das práticas dele a

partir de uma busca de incorporação e de diálogo entre essas duas abordagens.

O segundo comentário, também me referindo à questão de Adalberto, em ciências

sociais, isso o Weber já discutia, precisaríamos distinguir muito “o que é” do “que deve

André, 18/08/09,
É uma questão feita fora da entrevista, ou é a questão de Sidarta, a quem Lígia chamou de Adalberto? Não entendi!
Page 3: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

ser”. Na verdade, muitas vezes nós confundimos projetos de mudança com o que é a

realidade social. Bourdieu, ao investigar a realidade social, descobriu que o que era mais

freqüente não era a mudança e sim a conservação e a reprodução das estruturas. E ele

estudou a realidade social. Isso não quer dizer que ele defenda a manutenção do status

quo, até para você mudar, você tem que entender por quê, quais são as razões da

conservação e reproduçãos das estruturas.

DENISE

Agora, o que eu acho que mais chocou a gente, e Sidarta fez uma referência direta a

isso, na posição dele em relação a Sartre está no livro Esboço de auto-análise, quando

ele está fazendo um panorama da intelectualidade francesa, quando ele começou, em

que a figura do intelectual total que era Sartre era muito mais – do ponto de vista dessa

posição de Sartre enquanto existencialista – era muito mais valorizada do que a posição,

por exemplo, de um sociólogo como ele. Então ele sai da posição de filósofo, que era

muito mais reconhecida socialmente na época, e vai para uma posição que é de defender

a prática da sociologia, e isso era menor na época.

LÍGIA

Sim, na verdade é que o Esboço de auto-análise é uma demonstração prática de como

ele exercita a própria epistemologia dele, onde ele propõe que o sujeito que objetiva tem

que se objetivar. Então, ele estava tentando explicar a própria obra a partir da posição

que ele assume no campo intelectual francês, no momento em que ele entra, em que ele

optou por exercer um ofício que era não tão nobre na época e ele foi fazer pesquisa de

campo, foi entrevistar, desenvolveu uma investigação concreta no mundo social, pôde

perceber coisas que talvez ele não percebesse se ficasse numa perspectiva mais teórica

exclusivamente.

Mas eu acabei não lhe respondendo sobre a liberdade. Claro que é uma pergunta muito

complexa e muito difícil. Mas, em síntese, eu acho que onde ele responde bem essa

questão é ao final do livro A miséria do mundo. O livro A miséria do mundo contém

uma série de entrevistas do grupo de Bourdieu, sobre jovens em situação de exclusão na

periferia de Paris e também nos guetos americanos. Além dos jovens foram

entrevistados outros, os agentes relacionados com aquela situação como assistentes

sociais e professores. Ao final do livro ele retoma a análise feita em trabalhos anteriores

Page 4: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

onde aponta como o sistema escolar contribui para excluir os excluídos, para perpetuar

essa situação de exclusão.

Então, ele fala: qual o papel do intelectual? O papel do intelectual não é

necessariamente o papel militante (Esse aspecto ele discute em diversas outras obras).

Ele defendia que o intelectual interviesse na realidade como intelectual através de sua

obra. Não era absolutamente necessário que ele fosse para passeatas e manifestações

embora isso não fosse contraditório com a sua contribuição como intelectual. Para ele, a

alternativa da ciência não é entre a desmedida totalizadora de um racionalismo

dogmático e a renúncia esteta de um irracionalismo niilista; ela se satisfaz com verdades

parciais e provisórias que ela pode conquistar contra a visão comum e contra a doxa

intelectual e que estão em condições de fornecer os únicos meios racionais de utilizar

plenamente as margens de manobra deixadas para a liberdade, isto é, para a ação

política”.

Ou seja, ele mais uma vez se contrapõe a falsas oposições. Considera então, que as

margens de manobra deixadas para a liberdade estão exatamente na ação política. O que

é coerente com seus últimos anos de vida quando ele desenvolveu várias atividades

militantes na melhor tradição dos intelectuais franceses engajados.

DENISE

Agora talvez a gente pudesse ver a questão de Adalberto já, não é?

ADALBERTO

É isso, porque na realidade como é que ele pode dar, você deixou claro, essa visão do

que a realidade é e do que ela deveria ser. Como, especificamente, a questão da arte nos

interessa no sentido de o trabalho de um intelectual pensando a arte, ele está pensando

num método, mas a própria feitura da arte dispõe de outro método. Mas aí, ao mesmo

tempo, ele traz outra questão: a arte legitima essas desigualdades sociais, por quê? Eu

estou me olhando, eu como um produtor de arte, estou olhando o que deveria ser e não o

que é a realidade. Nesse sentido, eu fiquei pensando, ele tem todo esse lado político que

a senhora está falando, destes últimos anos da vida dele, mas quando ele traz a questão

do habitus, que ele diz que o habitus tem dois princípios: o princípio da individuação e

o princípio da associação. Tudo bem, se o princípio da associação cai nessa roda viva

de legitimação das desigualdades sociais, eu fiquei pensando, talvez seja pelo princípio

André, 18/08/09,
As aspas deveriam ter começado em algum lugar da frase?
Page 5: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

da individuação que eu, como agente, como artista, posso pensar no que deveria ser e

não no que é, não sei se fica um pouco confuso o argumento, professora...

LÍGIA

Bom, na verdade em A Distinção ele faz uma análise a partir da sociedade francesa,

quer dizer, o objetivo dele naquele trabalho era estudar o gosto, o gosto artístico, o que é

que faz alguém gostar de uma obra de arte abstrata e o que é que faz alguém gostar de

uma obra de arte realista. Então ele estudou isso empiricamente, através de uma amostra

das diversas classes sociais na França, mas associou a esse estudo estatístico – ele usou

uma técnica estatística de análise de correspondências, ele fez algumas perguntas sobre

o gosto artístico em matéria de pintura, em matéria de música, em matéria de lazer...

DENISE

Os freqüentadores de museus, aquele “Por amor a arte”?

LÍGIA

Esse é outro livro. Em A Distinção ele fazia perguntas sobre o gosto artístico. Ele

queria estudar o que é que faz com que alguém tenha um gosto legítimo. As classes

dominantes reivindicam para si o gosto legítimo como se fosse algo nato, alguém saber

apreciar uma obra de arte seria algo nato, da nobreza, ou das classes dominantes,

enquanto as classes populares estariam desprovidas daquele gosto. Então, ele mostra o

processo de produção do gosto, o que é que faz a diferença do gosto. Ele faz um estudo

empírico a partir de uma amostra representativa das classes sociais francesas: de

operários, patrões, da classe média, intelectuais, mas usa também entrevistas em

profundidade, usa fotografias, então reúne diversas técnicas de análise para concluir

sobre a...

DENISE

A produção do gosto. A construção do gosto.

LÍGIA

A construção do gosto. Então ele chega à conclusão que tanto a posição no espaço

social do indivíduo quanto sua trajetória social e familiar são orientadoras das

disposições para apreciar a obra de arte. Então, por exemplo: as classes populares

gostavam mais da obra realista (um quadro com um cavalo correndo no campo, uma

fotografia sobre um pôr-do-sol) e tinham menos chance de achar, por exemplo, a

Page 6: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

fotografia das mãos de uma mulher idosa, toda enrugada, como uma obra, como algo

que poderia ser considerado como uma obra de arte. Ele faz uma análise muito

interessante do que seria o gosto popular, a partir da idéia de que a distância da

necessidade criava um habitus que permitia a apreciação da obra dita legítima. Então, o

gosto artístico mais realista estaria ligado também ao gosto em matéria de comida,

ligado às comidas gordurosas e substanciais, a, digamos, uma decoração interna prática

e útil, e não estética. Então, apoiado nessa análise empírica ele desenvolve uma teoria

do que seria um gosto de luxo – gosto da liberdade ou um gosto popular – gosto da

necessidade. Na verdade, ele mostra que o campo artístico se autonomiza quando você

dissocia a forma da função, onde a forma ganha uma prioridade em relação à função, ou

seja, não precisa uma obra ser útil ou ser bela para ter valor artístico, isso foi levado ao

extremo, digamos, com aquele episódio do...

TODOS

Duchamps!!! Do urinol.

LÍGIA

No sentido de que... Não sei se...

ADALBERTO

Sim, na realidade a senhora está falando... porque ele diz que a questão do gosto, na

realidade, é um código; que a pessoa, para ter um determinado gosto artístico, na

realidade, esse código também foi construído. Então isso que a senhora está levantando,

das disparidades sociais, na realidade, o gosto da nobreza, na realidade, pressupõe todo

um código de construção anterior...

DENISE

... e, além disso, tem a questão de que o agente não só ele é orientado para isso como ele

orienta a reprodução disso, não é?

ADALBERTO

É.

LÍGIA

Eu falei um pouco como ele fez o estudo, mas depois como ele analisa. Ele identifica

também que nas classes dominantes essa disposição de apreciar a obra de arte, que

Page 7: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

constituiria o gosto legítimo, é incorporada quase que naturalmente, porque as pessoas

têm os quadros originais nas suas casas...

ADALBERTO

Vem da família já.

LÍGIA

É interiorizado, enquanto, digamos, alguém das classes populares que adquire aquilo

como um capital escolar, então, ele estuda quem foram os principais pintores, ele visita

os museus para poder ver as obras de arte, é um gosto cultivado com um esforço maior.

Então ele [Bourdieu] compara, é claro, na França, os descendentes da nobreza com as

pessoas que adquiriram uma cultura artística através da escola. E aí ele analisa o capital

cultural. Com uma função interessante, que o capital cultural tem uma função que ele

chama de noblesse oblige que é que a pessoa se sente na obrigação, por ter um certo

nível, nós, por sermos universitários, nos sentimos na obrigação de conhecer os

principais pintores impressionistas, porque nós somos universitários, porque isso faz

parte do saber universitário, então o capital cultural faz com que a pessoa busque um

conhecimento que a escola não ensina, por esse efeito.

ISA

É essa é uma das minhas perguntas. Porque com essa questão do gosto, ele quebra

mesmo com aquela discussão do senso comum para o nosso século que gosto não se

discute. E, também, ele vai levantar um argumento muito grande: a história do

indivíduo, do agente, para falar sobre capital cultural, não é verdade? Aí eu iria

perguntar por que ele confere essa importância à história do agente para pensar capital

cultural?

LÍGIA

Na verdade, a história é importantíssima na teoria das práticas de Bourdieu. Ele diz que

as práticas são produtos do encontro de duas histórias: a história incorporada nas coisas,

sob a forma de estruturas e a história incorporada no corpo, sob a forma de habitus,

então as práticas das pessoas são produzidas tanto pela história coletiva quanto pela uma

história individual, quer dizer, o habitus é formado também com contribuição dessas

duas histórias.

ISA

Page 8: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

Eu me lembro também daquela música que um grupo de axé canta, que há muito tempo

a gente vem ouvindo aí, que acaba se tornando realmente uma realidade. Porque apesar

de ser uma coisa nova [...] já está algo como senso comum, está mais naturalizado. Ela

diz assim: “Analisando esta situação precária [...] analisando essa cadeia hereditária

quero me livrar dessa situação precária. Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre

cada vez fica mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe e o

de baixo desce.” Então é essa cadeia, não é? Será que ele coloca aqui mesmo nos

estudos dele, para pensar o capital cultural...

NORA

Dentro dessa idéia de que a questão de Adalberto trouxe... dessa obra intitulada A

Dominação, não é?

ADALBERTO

A Distinção.

NORA

A Distinção. Mas, dentro da resposta que a professora trouxe, a gente pode perceber

essa noção de disputas de poder, de jogos de poder, que é muito presente nas discussões

e nos argumentos de Bourdieu. Por que, por exemplo, por que será então que as classes

operárias vão aos museus para apreciar os mesmos pintores que a classe dominante, ou

que a classe burguesa aprecia. Porque nos museus estão esses autores, esses pintores, os

artistas tidos como os importantes a serem apreciados. Então, nesse jogo de escolhas, de

espaços para as obras de arte também atua esse jogo de poder, de dominação que define

também, um pouco, o caminho desse gosto. Não sei se a idéia estaria nesse sentido. Por

que se a pessoa da classe operária que acaba tendo gosto mais tendencioso à obra

realista, dos pintores mais presentes no pensamento do senso comum como “os grandes

pintores”, são aqueles que ocupam os grandes espaços em museus. Então, mesmo que

esse interesse venha da escolarização, do estudo, o que está disponível para ser

apreciado é produto de uma escolha de dominação, de poder, porque o espaço que os

museus abrem acaba também sendo definido pela disputa de poder e de dominação do

tipo de arte que pode ser apreciada ou não, ou que deve ser apreciada.

LÍGIA

Page 9: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

Aí é mais complexo. Eu acho que são duas questões importantes que você traz. A

primeira é que a teoria sobre mundo social de Bourdieu, nela, as lutas são partes do

mundo. O mundo social não é um mundo de uma comunicação harmônica. É formado

por campos e espaços de luta. E cada campo tem tipos de lutas específicas. Então, o

campo científico é um campo onde determinadas lutas são travadas que não são as

mesmas do campo econômico, ou do campo do poder, ou da burocracia. Então cada

campo tem suas questões que estão em jogo e que valem a pena para os agentes

envolvidos com aquele jogo e que por isso pertencem àquele campo. Então essa é uma

questão. Agora, o que faz com que algo seja considerado uma obra de arte, aí é uma

questão mais complexa, que está ligada à autonomia relativa do campo artístico, que

Bourdieu estudou. Ou seja, quem define o que é uma obra de arte é um campo artístico

relativamente autônomo. Claro que isso numa relação com o campo de poder, com

outros campos, para impor essa posição. Você cansa de ver várias pessoas dizendo que

não consideram a pintura abstrata como arte: “Eu não gosto, eu não entendo, isso não é

arte”, mas o campo artístico, ele conseguiu definir a arte abstrata e mesmo outras formas

de expressão artística que parecem estranhas ao senso comum. E os artistas dizem que

eles não pintam para vender, eles pintam, eles produzem suas obras de arte por outras

razões.

ISA

Os livros falam muito sobre isso. Sobretudo os livros que falam sobre o sociólogo

Bourdieu. Então, para Bourdieu, o que é sociologia?

LÍGIA

Olhe, Bourdieu tem um livro muito interessante que é O Ofício do Sociólogo, é um

livro de epistemologia com algumas questões metodológicas. Inclusive uma das

contribuições muito grandes desse livro, principalmente para quem não teve uma

formação inicial em ciências sociais, é que ele introduz o leitor as ciências sociais. Ele

buscou em autores clássicos da sociologia como Marx, Weber, Durkheim o que é que

eles tinham de comum do ponto de vista metodológico. Apóia-se muito também na

epistemologia de Bachelard e nesses autores. Então, ele considera que se tornar

sociólogo é desenvolver uma atitude perante o mundo social de investigação, é

desenvolver certas atitudes e disposições, um habitus. Tanto que ele critica os textos

puramente metodológicos que contêm prescrições acerca da pesquisa sociológica.

Page 10: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

DENISE

Dos clássicos. Engraçado, eu acho que é nesse livro, que ele diz assim: “O problema é

que a escola vai separando. Então, o primeiro semestre estuda Durkheim, o segundo

Weber e o terceiro, eu.”

Todos: risos.

DENISE

Ele já faz, ele se coloca na genealogia também...

SIDARTA

Nesse sentido, eu queria aproveitar essa pergunta de Isa para saber da senhora quais são

os parâmetros que ele utiliza, quais os fundamentos do campo científico que ele chama

para a prática dele, para sustentar que a sociologia que ele faz, a teoria que ele defende é

científica. Porque essa é uma questão que não passa muito despercebida, principalmente

no âmbito das ciências sociais que buscam um estatuto de cientificidade e legitimação

dentro do campo da ciência. Então, quais seriam essas características da ciência que

fundamentam a prática dele, de modo a considerar a sociologia dentro da comunidade

científica?

DENISE

É, eu tenho uma pergunta, Lígia, porque a gente viu umas entrevistas que fizeram com

ele, e uma das perguntas recorrentes é assim: Então qual seria a diferença entre um

sociólogo para um repórter, para um jornalista? Porque ele também vai para o fato, ele

também vai fazer perguntas... Então, por que a sociologia é ciência e o jornalismo não?

LÍGIA

Ele se baseia nesses autores, principalmente Bachelard, Marx e Durkheim, da

necessidade da ruptura com o senso comum para produzir um conhecimento científico.

Então ele se filia às correntes epistemológicas que distinguem o senso comum,

conhecimento do científico e o conhecimento científico como resultante de um processo

de ruptura, construção e constatação.

DENISE

Validação, verificação...

LÍGIA

Page 11: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

...de ruptura, os três atos epistemológicos de Bachelard, Denise: ruptura, construção e

constatação. Diferente de correntes que consideram que qualquer saber é igual, não tem

distinção entre ciência e senso comum. Ele se filia às correntes que consideram que é

necessário romper, porque o senso comum se coloca como um véu que impede que a

gente tenha acesso ao real. Bachelard traz inúmeros exemplos. O Louis Pinto tem um

livro junto com Champagne e Remi Lenoir, Introdução à Sociologia que é um

desdobramento de O ofício do sociólogo, que retoma essa linha mostrando, já com

investigações concretas desses princípios, como a objetivação científica rompe com o

senso comum que vai produzir um conhecimento diferente que explica o mundo social,

essa é a diferença. Repare, o que é ciência? Ciência é muito complexo, mas a gente

pode considerar como um conceito provisório aquilo que um grupo de produtores

considera em determinado campo como conhecimento científico. O problema das

Ciências Sociais, segundo o próprio Bourdieu, é que, digamos, o senso comum para as

ciências da natureza também foram um obstáculo para o conhecimento, e as ciências

sociais, segundo Bourdieu, por serem uma ciência mais nova, poderiam saltar essa

etapa, mas acabam caindo nela e, existem várias correntes que consideram que a

experiência primeira é conhecimento científico. Bourdieu desenvolve então toda uma

polêmica com a fenomenologia que acaba reduzindo conhecimento à fala dos

entrevistados, ao senso comum, à impressão primeira.

DENISE

E também eu acho que ele dá muita ênfase, como Bachelard dava, à produção da teoria,

a ciência como produzindo teoria.

LÍGIA

É, é, isso. Na ruptura como o senso comum ele utiliza a teoria. Quer dizer, como

estratégia de ruptura, ou técnica de ruptura, ou modo de ruptura, a teoria é formulação

de hipóteses, porque se você não vai fazer uma investigação apoiado em uma hipótese,

você vai fazer perguntas com base no senso comum, então você fica na armadilha do

senso comum, que é o que ele chama de sociologia espontânea. Então a teoria é um

instrumento de ruptura, a análise histórica da gênese dos conceitos é uma segunda

maneira de ruptura, as analogias, a comparação metódica. Louis Pinto faz um estudo

sobre a instituição militar, onde ele mostra como a comparação metódica conseguiu

fazer com que ele rompesse com a visão que os alistados tinham de si. Remi Lenoir dá

Page 12: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

exemplo sobre a velhice, na área de saúde coletiva, temos vários exemplos de estudos

rompendo com o senso comum.

NORA

Então o conhecimento está aí produzido, tem esse caráter cientíifico muito mais por

conta desses pressupostos do que propriamente por uma aplicação de um método

cientifico, “cartesiano”, vindo dessa idéia da modernidade, da proposta epistemológica

da modernidade... no sentido de que esses pressupostos são muito mais abertos, não

estão voltados para a aplicação de um método como Descartes propunha: ciência é

aquilo que cabe nesse método científico e uma vez verificado por esse método ganha, o

conhecimento advindo daí, ganha o status científico.

LÍGIA

Ele opõe uma rigidez do método ao rigor e o que define a ciência não é um método, mas

é o processo de produção do conhecimento que rompe com o senso comum e busca uma

constatação na realidade empírica – ele trabalha tanto com a teoria quanto com a

realidade empírica – e também faz uma críitica aos “teóricos teóricos”. Ele faz uma

críitica tanto a uma teoria sem qualquer referência ao real quanto a uma metodologia

sem nenhum referencial teórico previamente explicitado que acaba incorporando o

senso comum de forma acrítica.

NORA

Então assim, já que a gente entrou nesse campo de produção do conhecimento e uma

das propostas do PIBIC é essa aproximação entre arte e ciência e produção de

conhecimento acadêmico, que é o que a gente faz aqui na universidade, a minha

pergunta vem para esse sentido. O que é estudar a arte dentro da academia, a partir de

que parâmetros podemos pensar esse estudo e na produção de conhecimento acadêmico

em arte, uma vez que o objeto artístico é um objeto bastante complexo, singular, de uma

relação muito individual da obra do sujeito criador. Uma das obras que a gente leu foi

Livre-troca, onde ele faz um diálogo com um artista, Hans Haacke e troca muitas

idéias, como você falou no iníicio, a partir de situações da realidade artística com esse

artista alemão Hans Haacke. E, em determinados momentos, ele coloca como o fazer

artístico, a competência especifica do artista é uma competência que pode fazer a

diferença nesse rompimento com o senso comum e talvez até na produção de

conhecimento para o mundo. Não entra especificamente no campo acadêmico, mas diz

Page 13: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

que o artista tem essa tendência de transgredir as regras e propor o rompimento das

tradições do próprio campo artístico. Aí, eu fico pensando nesse ambiente de estudo

acadêmico das artes. Como é pensar a produção de conhecimento acadêmico sobre

obras artísticas e se essa capacidade artística da transgressão e do rompimento de regras

poderia ser importada para o mundo de produção de conhecimento acadêmico, uma vez

que esse campo de produção acadêmica tem a tradição de que as escolhas teóricas

precisam ser bem justificadas, as escolhas teóricas precisam estar muito claras,

enquanto que o artista nas suas escolhas, nas suas propostas de transgressão, não tem

essa obrigatoriedade de se justificar em relação a essas escolhas, e às propostas de

transgressão que apresenta. Então, como é fazer esse diálogo entre a obra artística como

objeto de estudo ou o artista que se coloca na posição de pesquisador, mas que tem esse

habitus de propor transgressões e criar e romper? Como é essa aproximação, como pode

acontecer, se é possível acontecer esse diálogo de estratégias de habitus em prol da

produção de conhecimento acadêmico em artes.

LÍGIA

Aí, é muito complexo. Não sei se eu tenho competência para falar sobre isso. Para

conversar, um pouco. Mas eu tenho a impressão de que a obra de arte produz um

conhecimento sobre o real e muitas vezes de forma bastante mais profunda que muito

conhecimento científico produzido sobre o mundo social. Claro que isso teria que ser

contextualizado, identificado. Você vê a própria inspiração que a obra de arte traz pra

cientistas sociais, filósofos e sociólogos. O próprio Bourdieu cita, trabalha o tempo todo

com a literatura, com referências à literatura, a obras importantes, Em busca do tempo

perdido de Proust a Virginia Wolf...

DENISE

Flaubert...

LÍGIA

Flaubert, ele analisa a obra no sentido de criação do campo artístico, Flaubert e Manet.

Ele deu um curso no Collège de France só sobre a obra de Manet que infelizmente não

foi publicado ainda, um curso que, segundo Pinell, é o curso que ele mais gosta; não foi

publicado, espero que alguém publique. Mas no livro As regras da arte ele já faz

algumas referências a Manet embora seja principal o estudo sobre Flaubert, mas ele

estudou porque como ele estudou o campo artístico, quer dizer, então a arte pode ser

Page 14: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

tomada como objeto de estudo sociológico, como campo. Como ele fez em A distinção,

em As regras da arte, ou mesmo como no O amor pela arte na freqüentação dos

museus. Agora, tem o lado do artista criando sua obra; o quanto ele pode explicar ao

mundo, embora não seja esse seu objetivo. O que Bourdieu estudou sobre o campo

artístico é que o artista cria mais em função da forma do que do conteúdo, embora em

todas as manifestações artísticas, o conhecimento do mundo social e a relação com o

mundo social têm um papel importante. No âmbito da criação propriamente artística,

tem sua especificidade, que é diferente do conhecimento cientifico. Então eu acho que

quem está na academia vai tomar a obra de arte como objeto de estudo. Não veria como

fazê-lo sem ser objeto de estudo sociológico. Pode até ter outras perspectivas, mas eu

não veria como objeto de estudo acadêmico. Outra perspectiva é o artista desenvolver

sua obra, são duas coisas diferentes. Tanto o artista desenvolvendo sua obra pode

produzir – como Proust escreveu Em busca do tempo perdido, produziu uma obra que

inspirou um sociólogo como Bourdieu, como Moby Dick inspirou alguns filósofos,

como tem quadros importantes, livros de filosofia, os filósofos fazem reflexões, embora

alguns artistas digam que fazer análise teórica sobre obra de arte é absolutamente

supérfluo porque o artista não pensou nada daquilo quando fez a obra, mas aí também

não sou competente para falar sobre isso.

ADALBERTO

Professora, na construção da obra – retomando um pouco o que Nora estava falando – a

construção da obra de arte não é uma investigação cientiífica, um método cientíifico

dentro da acadêmica. O artista trabalha por pressupostos talvez seja para construir

significados.

DENISE

Formulando hipóteses...

ADALBERTO

Exatamente, há construção de significados pela obra de arte. Então, na realidade, posso

pegar a obra de arte não no sentido de uma ciência que a academia traz para a gente,

mas eu posso pegar a obra de arte como uma construção de significados. Existem

métodos. Aí, eu fico pensando, vou perguntar à senhora: a construção desses

significados seria a própria história da arte, discurso da arte, alguma coisa assim?

LÍGIA

Page 15: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

Essa não é minha área de investigação. A única coisa que eu sei sobre a arte foi por ter

lido Bourdieu...

DENISE

E viver com um artista...

LÍGIA

É, muito mais por Bourdieu que estudou o campo artístico, mas esse não é meu objeto

de investigação então eu não saberia lhe responder. Agora, como Bourdieu estudou o

campo artístico, ele estudou essa lógica do campo artístico. Segundo Bourdieu, a lógica

do campo artístico não é baseada em hipóteses e busca de significados, é uma lógica que

é outra, que é especifica, não é uma lógica de produção cientíifica.

ADALBERTO

Mas há lógica, há uma lógica.

DENISE

Há sim...

ADALBERTO

Há uma lógica de construção de conhecimento.

NORA

Sem a pretensão de produzir conhecimento científico desse tipo.

DENISE

O objetivo não é esse...

LÍGIA

Tanto que a ruptura de Flaubert é exatamente fazer um romance que não tem uma tese,

não é um romance de tese... É uma das rupturas.

ADALBERTO

Que Flaubert faz...

LÍGIA

Sim, Manet também, os impressionistas, com a pintura realista. No primado da forma

sobre o conteúdo.

Page 16: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

ADALBERTO

É exatamente, e não é a função... nas camadas populares se confunde a forma com a

função. Essa xícara é bonita, mas também é boa para eu tomar café aqui.

LÍGIA

Exatamente.

ADALBERTO

Então, ele faz essa diferenciação entre as camadas populares em um discurso estético,

de arte, e o discurso estético da arte tem o significado do subjacente, a leitura é

construída, os códigos são construídos, então. Na realidade, a forma se sobrepõe à

função. Num carnaval de rua, numa cena de rua, de festa, de dança a função está se

sobrepondo à forma, embora a forma seja importante ali. Estou aqui pensando no meu

trabalho, na minha pesquisa, porque é exatamente isso... a relação...

NORA

O que eu percebo é que o estudo de Bourdieu ajuda, a nós, estudantes dos campos das

artes, no espaço para produção de conhecimento acadêmico em artes, a entender

justamente isso, que o campo acadêmico tem a sua estrutura e que o artístico tem a sua

outra estrutura e que nunca essa tradução vai ser literal, vai ser então uma transposição.

Então, enquanto artistas, pesquisadores dentro do campo acadêmico, precisamos estar

atentos à estrutura que o acadêmico produz.

DENISE

E também construir esse outro capital, porque muitas vezes o artista chega na

universidade, eu tenho visto isso, com seu capital cultural e artístico e seus interesses,

achando que isso é imediatamente traduzido em capital acadêmico, e não é. Então,

querem, por exemplo, ser reconhecidos naquele outro campo da mesma maneira que o

são no campo artístico. Não existe essa colagem, é outro campo.

LÍGIA

É, é outro campo. É claro que quando o artista... vamos ver... Caetano Veloso que é um

compositor que se consagrou como compositor e cantor. Quando ele atingiu o auge da

consagração, a UFBA deu o tiítulo Honoris Causa para ele. Ele não precisou vir aqui

fazer uma tese de mestrado, doutorado para ter o titulo de doutor. Ele foi reconhecido,

Page 17: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

os versos são usados para as apresentações das teses, mas não é um conhecimento

cientíifico. Ele fez uma produção artística sobre o mundo social, que tem vários

significados e, no fim da carreira – no fim da carreira não, no auge da carreira – é

reconhecido pela universidade.

DENISE

Lígia, eu tinha vontade de saber se a teorização sobre Bourdieu está muito presente na

área de saúde. Tem muitas produções de teses, de dissertações?

LÍGIA

Olha, na saúde coletiva ela está presente, mas não é, no Brasil, dominante. Existem

alguns grupos que trabalham, que têm algumas produções, mas eu diria que é incipiente,

há predominância de uma antropologia americana e canadense. Na produção de ciências

sociais em saúde, ela não é dominante.

DENISE

Embora Bourdieu seja um dos autores mais citados hoje, não é? No mundo acadêmico,

em relação às ciências sociais, parece que ele, Marx e Weber são os grandes autores e

ele esta sendo cada vez mais citado como referência.

LÍGIA

Eu considero que ele é um dos mais importantes... também não tenho essa dimensão,

não sei a dimensão...

DENISE

Você acha que ele continua restrito às ciências sociais?

LÍGIA

Não, não. Eu creio que ele ultrapassou as fronteiras das ciências sociais. Especialmente

na saúde coletiva brasileira, que é mais limitada. Tem grupos em São Paulo e no Rio de

Janeiro que trabalham com ele mas...

DENISE

Eu o acho muito produtivo nas artes, inclusive porque ele propõe uma sociologia da

arte.

LÍGIA

Page 18: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

É, ele estudou o campo artístico...

NORA

E essa proximidade com as artes não aparece só pela proximidade pessoal dele, que

trabalhou com a literatura, nessa aproximação com autores de teatro, que o programa de

pós-graduação em artes cênicas tem proporcionado. Uma outra curiosidade foi a

perspectiva com a proposta teatral de Brecht. Brecht é um autor do teatro alemão que

trabalha com sociologia do teatro. Propõe obras artísticas com o viés, com a proposta de

que a cena produza um estado de pesquisa do espectador, pelo distanciamento. Uma

cena, pela não identificação, que o teatro realista faz, o teatro realista durante muito

tempo produziu – e é um dos pressupostos do teatro realista. Uma das características

principais da proposta de Brecht é trabalhar com o gestus que é produzir na cena,

recriar, trazer à cena, questões de comportamentos sociais comuns onde o espectador

pode se reconhecer ou não ali, ou pelo menos exercitar a crítica em relação ao que está

sendo apresentado. Então, há o comportamento social de determinadas classes, o que

identificaria alguém sendo de uma linhagem nobre ou então de camadas operárias, de

trabalhadores, e isso é uma proximidade muito grande com o que me parece a idéia de

habitus. O habitus, no sentido de incorporação de uma estrutura social. E o gestus

brechtiano vem também com uma idéia de, ali na cena, ser apresentado um habitus

social de diversas categorias sociais. Então, uma curiosidade que surgiu foi ver se

Bourdieu se referenciou ou estudou a obra de Brecht.

DENISE

Adalberto encontrou...

ADALBERTO

Está aqui, na introdução, estava comentando isso ontem. Na introdução de A Distinção,

ele faz essa referência ao distanciamento brechtiano. Na realidade, a gente volta à

questão da forma e da função. Brecht chama atenção assim para o gestus, professora, no

sentido de que o gesto tem uma função na cena, mas ela tem uma forma. O que Brecht

quer é que o público fique atento é para a forma, é a forma que denuncia, é um ato, é um

gesto político. É um gesto de transformação. Então, não é a identificação com o gesto de

uso da xícara pela função, para eu tomar café. Eu vou ver o espetáculo porque vou ver o

mocinho, porque é bonito, porque é uma pessoa que eu quero amar na vida. Justamente

o contrário. Ele quer romper essa relação da função e da forma no teatro e pensando

Page 19: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

como a senhora disse no iníicio da conversa, o sociólogo que quer ver o que é, e o

sociólogo que quer ver o que poderia ser. Na realidade, Brecht quer mostrar o que é, e

não o que deveria ser: o namorado que quero ter identificado com o mocinho da peça.

Eu acho que é a discussão de forma e função que a gente continua tendo, só que no

plano da arte ou no plano da sociologia. E ele fala aqui claramente que essa construção

de significados é a questão do distanciamento, você não olhar a coisa como você quer

que seja, como deveria ser, mas como é, como construção de significado, que o Brecht

chama esse distanciamento, você não misturar com a coisa. Pode falar assim? A coisa?

É pouco epistemológico. Está aqui na introdução do texto dele e eu estou um pouco

abismado com a quantidade de trabalho que tem pela frente, porque é muito incrível.

DENISE

Ele usa gestus como Bourdieu usa habitus.

LÍGIA

Na teoria das práticas de Bourdieu, um componente importante é o que ele chama de

hexis corporal. A postura, hexis corporal, faz parte da prática das pessoas, a linguagem

corporal diz muito da pessoa. Então ele tem toda uma análise do corpo, por quêe o

habitus se incorpora no corpo. A história individual e as estruturas se incorporam no

corpo. Então, as pessoas submissas das classes populares têm uma postura recurvada,

enquanto as pessoas dominantes têm uma postura... O que a pessoa é se traduz na

postura corporal. Faz parte da teoria dele.

ADALBERTO

É uma construção, não é? E assim, pensando nessa coisa da violência simbólica é

chocante, porque a gente observa nas escolas as desigualdades sociais, no ensino

público, no ensino da elite, essa construção do gestus. A sociedade vai construindo isso

como habitus... É maravilhoso como ele coloca, ele está a par das teorias da arte

moderna, do distanciamento do teatro, como [inaudível] é um diálogo maravilhoso que

vem a partir das ciências sociais, os grupos sociais como produtores de significado.

Você aceita ou não seguir. Serve para a gente também. Você vê isso em sua vida como

uma forma ou como função. Eu acho que cabe a gente decidir, não sei. Essa legitimação

das desigualdades sociais, eu estou pirado com isso, através da obra de arte. É uma

função técnica, importantíssima. E Brecht chamou atenção: não adianta você ir ao teatro

para ver uma coisa e assumir aquilo como sendo seu, sendo que não é; você vai lá e

Page 20: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

assimila a função. Você tem de ver a forma, por que ele traz aquilo? Por que eu estou

usando o gestus dessa maneira e não de outra?

LÍGIA

Vamos discutir um pouquinho mais a teoria das práticas. Retomando até um pouquinho

da sua primeira questão. Ele tem uma teoria das práticas que se distancia da teoria da

ação racional, ou seja, o homem não se move, as práticas humanas não são racionais,

não decorrem de ações racionais, mas sim de um encontro entre um habitus e um

campo, uma situação num determinado campo. Daí que as práticas sociais não são

decididas livremente. Você tem esses constrangimentos que são não só toda sua história,

o campo onde você se situa, mas também o que ele chama de condições de

possibilidade. Então, por exemplo, em As regras da arte, onde ele desenvolve toda sua

teoria geral sobre os campos, é onde ele sistematiza toda a construção do campo

artístico, mas ele desenvolve a teoria geral dos campos, ou seja, além de analisar, quem

é quem naquele campo, quem são os agentes, quem são as instituições ele procurou

sistematizar aspectos comuns aos diversos campos. Eu estou estudando o campo da

saúde coletiva, quais são as instituições que fazem parte desse campo, quem é que

pertence a esse campo? O que é que está em jogo neste campo? O que é importante, o

que faz com que as pessoas façam parte da saúde coletiva e não da medicina? Queiram

jogar esse jogo? O que faz com que alguém seja artista e não médico? A gente acha

importante que um médico dê um plantão de 24 horas, joga esse jogo; outras pessoas

dizem não, eu jamais faria isso, eu jamais veria sangue e vice-versa. Um médico diria:

eu jamais seria artista eu não tenho paciência... Então, o conceito de illusio é próximo

da libido, o que é que faz com que eu motive minhas energias para aquilo. Então, essa

teoria das práticas sociais que ele desenvolve relacionando, explicando essa teoria com

o pertencimento a um campo a um habitus gerado naquele campo, a partir da história

social, da trajetória social. Investigar empiricamente um campo é investigar as

trajetórias sociais, de onde vem a pessoa, de onde vem o avô, a avó, o pai, a mãe, sua

trajetória pessoal para entender um pouco o que faz hoje. Então a teoria das práticas

dele é outra teoria que ajuda muito a gente a entender o mundo social.

NORA

E culmina com essa questão do espaço dos possíveis? Em As regras da arte...

LÍGIA

Page 21: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

É, o espaço dos possíveis seria uma outra maneira de falar de contexto. O espaço dos

possíveis de Bourdieu ter desenvolvido a sociologia reflexiva dele foi o campo

intelectual francês dos anos 1950, onde existia Sartre por um lado e Lévi-Strauss por

outro. E a trajetória pessoal e familiar dele, que veio do interior da França, o fato dele

ter ido servir na Argélia, que o colocou em contato com um trabalho de campo, uma

pesquisa muito empírica, e esse foi o espaço dos possíveis. No livro As regras da Arte

ele analisa o espaço dos possíveis de Flaubert.

DENISE

As contingências...

LÍGIA

Contexto é muito pouco preciso. Tem um outro aspecto interessante que a gente não

comentou que é a abrangência de disciplinas que Bourdieu transitou, a gente falou

muito de sociólogo, mas ele é reconhecido como antropólogo. O livro Respostas, de

Loic Wacquant, um sociólogo americano foi produzido após um semestre durante o

qual seu grupo estudou Bourdieu; e Bourdieu responde às perguntas do grupo. Este

livro tem um subtítulo: “Por uma antropologia reflexiva”. Então, ele é reconhecido

como antropólogo, tem trabalhos que são filosóficos, como sociólogo, ele recorta uma

quantidade enorme de disciplinas e temáticas. Nesse estudo das práticas, ele também

desenvolve a idéia das trocas sociais, fazendo parte da explicação das práticas sociais. O

interessante é que ele vai vendo regularidades nessas leis que regem o mundo social,

que estão presentes tanto numa sociedade primitiva como a sociedade Cabila como na

França dos anos 1970. A gente estudando o Brasil hoje também vê isso se reproduzir.

Então ele conseguiu captar alguns processos universais, daí sua obra poder ser

considerada como uma produção de conhecimento cientíifico.

Livros de Pierre Bourdieu citados durante a entrevista:

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

BOURDIEU, Pierre. A distinção – crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.

Page 22: Entrevista Sobre Pierre Bourdieu Com Ligia Vieira

BOURDIEU, Pierre; HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1995.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: génese e estrutura do campo literário. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte : os museus de arte na Europa e seu público. Porto Alegre. Ed. Zouk, 2003.