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E N T R E V I S T A ENTREVISTA 20 DEMOCRACIA VIVA Nº 44 E N T R E V I S T A ENTREVISTA O historiador Joel Rufino, apaixonado desde garoto por futebol, durante o exílio político na Bolívia, chegou a ser jogador profissional. Foi também nessa época que o escritor – hoje premiado – participou de grupo liderado pelo intelectual Werneck Sodré para elaborar projeto que revolucionaria o método de ensino-aprendizagem da História no país. Pai e avô dedicado, o ex- preso político abriu seu coração para a equipe do Ibase nesta entrevista realizada ao apagar das luzes de 2009: “Estou muito contente de estar aqui, admiro muito o trabalho de vocês, sou aliado do Ibase em qualquer circunstância”. Foi uma conversa emocionante, recheada de risos e muito bom humor. Confira a seguir. Joel Rufino 20 DEMOCRACIA VIVA Nº 44

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O historiador Joel Rufino, apaixonado desde garoto por futebol, durante o exílio político na Bolívia, chegou a ser jogador profissional. Foi também nessa época que o escritor – hoje premiado – participou de grupo liderado pelo intelectual Werneck Sodré para elaborar projeto que revolucionaria o método de ensino-aprendizagem da História no país. Pai e avô dedicado, o ex-preso político abriu seu coração para a equipe do Ibase nesta entrevista realizada ao apagar das luzes de 2009: “Estou muito contente de estar aqui, admiro muito o trabalho de vocês, sou aliado do Ibase em qualquer circunstância”. Foi uma conversa emocionante, recheada de risos e muito bom humor. Confira a seguir.

Joel Rufino

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Democracia Viva (DV) – Poderia falar da sua origem e primeiras lembranças de família?Joel Rufino – Minha origem é suburbana

carioca, o bom subúrbio carioca do fim dos anos 40. Meu pai, Antônio Rufino, era ope-rário. Depois, ele passou por uma ascensão social, tornou-se alto funcionário do antigo IAPM [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos]. Durante um período da vida, ele foi pastor evangélico também. Meu pai foi isto: um operário que ascendeu para a pequena burguesia.

DV – Funcionário público estadual?Joel Rufino – Antigamente, o INSS [Ins-

tituto Nacional do Seguro Social] era dividido em IAPM; IAPI [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários]; IAPC [comerciários]; IAPB [bancários] e IAPETC [transportes e cargas]. Essa é basicamente a trajetória dele. E ele era um operário que lia, acho que isso determinou meu futuro. Podia ter me tornado qualquer coisa profissionalmente, mas me tornei escritor em parte por isso, pelo estímulo inicial muito forte do meu pai. Ele era comunista. Quantas coisas ele fez: era pastor evangélico, médio funcionário do IAPM e comunista. Como bom comunista que era, fazia questão de ler. Sobre-tudo, Lima Barreto, Graciliano Ramos, aqueles escritores que estavam na linha do partido, digamos assim.

DV – E quanto a sua mãe?Joel Rufino – Minha mãe tinha um nome

belíssimo, Felicidade Flora dos Santos. Era uma evangélica bem típica. Nordestina, semianalfa-beta e muito crente, ciosa do ensino da bíblia, da escola dominical. Minha mãe foi a segunda força, o segundo estímulo forte que tive. Ela queria muito que eu fosse um bom evangélico, mas nisso fracassou. Mas, por outro lado, alguns outros estímulos que frutificaram em mim, que se tornaram trajetórias para mim, vieram dela. Por exemplo, a consciência de que negro é igual a qualquer outro. Minha mãe fazia questão de dizer que o filho dela podia ser qualquer coisa, desde que estivesse vestido com decência, desde que tomasse banho, podia fazer qualquer coisa que outros meninos fizessem.

DV – Seu pai era filiado mesmo ao Partido Comunista Brasileiro?Joel Rufino – Era, desfiliou-se no 23º Con-

gresso, com a denúncia dos crimes de Stálin. Tenho a impressão, e minha irmã acha isso também, que o choque da revelação dos crimes de Stálin afetou a sua saúde, ele logo entrou

em depressão. Depois, melhorou, mas nunca se recuperou por completo desse golpe, como tantos comunistas. Ele era ‘prestista’ também. Passou pela Segunda Guerra, depois veio a perseguição aos comunistas no governo Dutra e uma semiclandestinidade.

DV – Sua mãe era nordestina de qual estado? E seu pai, era carioca?Joel Rufino – Ambos eram pernambuca-

nos. Eles vieram para cá num caso típico de migração nordestina para o Sudeste. Minha avó era empregada de um político nordestino de Pernambuco. Esse político se elegeu senador, veio para o Rio, e ela veio agregada, de serva. E foi puxando os outros, os filhos, depois as irmãs... Foi basicamente isso.

DV – Quantos(as) irmãos(ãs) tem? Joel Rufino – Do primeiro casamento do

meu pai, primeiro não cronologicamente – ele manteve duas famílias durante muito tempo –, com minha mãe, somos quatro. Três já fale-cidos. Da outra mulher, são quatro também. Estão quase todos vivos, menos um.

DV – Seu pai também era sindicalista?Joel Rufino – Sim, o sindicato dele era mui-

to forte, Sindicato dos Marítimos e Portuários. Era um sindicato com muito poder de barganha. Creio até que era um dos mais fortes daqueles tempos de Getúlio.

DV – Como foi sua infância? Joel Rufino – Sobre isso, minha filha

brinca dizendo que meu universo é muito limitado. Sempre me interessei por poucas coisas, futebol, livros, samba, e minha infância foi isso. Jogava bola o dia inteiro. Se alguém me chamasse: ‘Ah, vai lá em casa!’, pergunta-va: ‘Tem bola lá?’. Uma obsessão por futebol que se manteve por toda a vida. Uma paixão, digamos assim. As brincadeiras de criança, eu pouco fiz. Meu negócio era bola, dormia com ela. E samba, que minha mãe, como crente, não deixava, mas aí tinha aquele negócio de dar a volta, né?! Ir a escola de samba sem ela saber, sair no bloco sem ela saber... E livros. Desde menino, compensei muita coisa por meio dos livros.

DV – Seu pai era um intelectual do partido. Sua leitura era mais marxista, comunista ou ele lia de tudo?Joel Rufino – Ele lia de tudo, e era au-

todidata, aprendeu inglês sozinho. Ele lia em inglês, lia também um pouco de química, de física, tudo autodidaticamente. E também a

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literatura que o partido indicava. Havia isso, sabe, o Partido Comunista era também peda-gogo, digamos assim. Estamos falando de 1945 até a década de 60. Quem se tornava membro, tinha de ler determinados livros; muitas vezes, ele até ganhava coleções. A Editora Vitória era a editora do bom comunista. É gozado que minha mãe, como boa evangélica, tinha de ler a Bíblia, e meu pai, como bom comunista, tinha de ler outros livros, então, ali, não tinha escapatória, a gente saía da bíblia, caía em Jorge Amado.

DV – Lembra de alguma perseguição a seu pai?Joel Rufino – Ele foi perseguido, mas não a

ponto de ser preso longamente ou ser condena-do. Ele escondia pessoas lá em casa, e um dos caras que me ensinou a ler foi um alemão que meu pai escondia. Isso em 1946. Esse alemão ficava lá em casa em um quarto. Nós, crianças, achávamos que ele tinha a fórmula da bomba atômica, imagina.

DV – Mas o que seu pai e sua mãe explicavam sobre essas pessoas?Joel Rufino – Para criança, não se dizia

muito. Mas ele ficava lá no quarto, só ia à sala para comer, depois voltava para o quarto. Meu irmão e eu íamos lá para conversar com ele. Não vou lembrar agora do seu nome, mas não im-porta, pois devia ser um nome falso mesmo.

DV – Quando começou a escrever?Joel Rufino – Por volta dos 10, 11 anos.

Na escola Ginásio Cavalcante, fazia redações, me sentia bem ao escrever, era elogiado pela professora, pelos colegas. Escrevia na parede do banheiro também, muito. Menino gostava muito de fazer isso.

DV – Era escola pública?Joel Rufino – Não, isso é interessante. A

escola pública naquela época era boa compa-rativamente, mas havia já essa ideia de o pobre que ganha um pouquinho mais, que ganha um extra, não botar os filhos na escola pública, e sim na particular. E minha mãe, além do trabalho doméstico, aos sábados e domingos, costurava para confecções. Com esse dinheirinho extra, ela preferiu me colocar na escola particular. Era uma escola de um pastor metodista, ‘Ginásio Cavalcante, entra burro e sai elefante’, era o que a criançada dizia e repetia.

DV – Seus irmãos e suas irmãs também estudaram lá?Joel Rufino – Não, meus irmãos estudaram

em escola pública. Eu era o caçula, compreen-deu a situação?

DV – Era bom aluno?Joel Rufino – Não, era mediano. Não ia

‘pagar o mico’ de ser bom, mas também não era ruim.

DV – Quando despertou seu engajamento político?Joel Rufino – Quando era estudante no

curso científico. Havia bases dos partidos nas principais faculdades e nos principais colégios. O meu era na Rua do Ouvidor, na Frederico Ribeiro, não sei se existe ainda. Ali, tinha uma célula que a gente chamava de base do partido. Ingressei no Partido Comunista Brasileiro, a divisão do partido ainda não tinha ocorrido.

DV – Quando saiu desse colégio, foi para onde?Joel Rufino – Comecei a trabalhar cedo,

com 14 para 15 anos, comecei como office-boy aqui no centro da cidade. Depois, fui trabalhar numa firma de engenharia, carregando teodo-lito, um instrumento de medição geológica. Aí pensei: ‘Vou ficar nessa firma, estudar en-genharia’. Mas quando terminei o científico, decidi não fazer mais faculdade. Pensei: ‘Tá bom, já tenho o diploma de segundo grau’. A essa altura, o que eu queria era viver de escrever e de ler. Para isso, não precisava de faculdade, pensei.

DV – Mas, então, como chegou ao curso de História?Joel Rufino – Isso foi uma virada na minha

biografia intelectual. Recebi de um ex-colega um livro que, segundo ele, havia mudado a sua vida e iria mudar a minha também. Era Introdução à Revolução Brasileira, do Werneck Sodré. De fato, o livro mudou a minha traje-tória, porque eu amava Literatura e o livro do Sodré, pela primeira vez, conectava a Literatura com a evolução geral do país. Por exemplo, a gente admirava Euclides da Cunha, aquela vaidade de jovem que fala de Euclides, etc. O livro de Sodré situava Euclides historicamente, mostrava em quê ele correspondia ao avanço do país, em quê era conservador. Isso foi uma revelação, colocar a Literatura no contexto da História. Estudei História até o Golpe de 64. Fui expulso no ano do golpe.

DV – Foi expulso da faculdade? Joel Rufino – Sim, me formaria em 64,

estava com quase 23 anos, mas não deu. Muitos anos depois, a universidade me deu o que eles chamam de Notório Saber, um diploma cor-respondente à graduação. Aliás, no meu caso, deram um título correspondente ao mestrado em História.

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DV – Como foi o dia o do golpe na sua vida?Joel Rufino – Eu trabalhava no Iseb

[Instituto Superior de Estudos Brasileiros], era assistente do Werneck Sodré. Eu era seu aluno no curso de História e seu assistente. No golpe, andei pela cidade meio atordoado, como todo mundo. Estava recém-casado, e minha mulher, grávida. A gente não sabia bem para onde ir.

No dia seguinte, ainda aquele atordoamen-to, minha mulher foi para um lugar seguro, voltou para a casa dos seus pais. E eu pere-grinei no subúrbio, em casas de conhecidos, esperando o que iria acontecer. Quando ficou claro que o golpe era mesmo para valer, que iria durar, eu me asilei na Embaixada da Bolívia, dali fui para o exílio. Isso é impressionante. Se vocês conversarem com quem veio dessa época, um mês, dois meses antes, ninguém poderia imaginar a dimensão do problema.

DV – Quantas pessoas ficaram na embaixada?Joel Rufino – Muita gente. Era um aparta-

mento de dois quartos, uma sala-escritório, e ali talvez estivessem umas 30 pessoas. Era fila para usar o banheiro, para dormir, o clima ficou irrespirável. Ficamos lá durante um mês.

DV – Conseguiram sair como?Joel Rufino – O cônsul da Bolívia nos levou

em um ônibus até o aeroporto, e dali para Cochabamba e La Paz. O avião fez uma escala em São Paulo, onde a polícia fez um ‘corredor polonês’. Eles não podiam tocar na gente, seria um absurdo, mas ficaram xingando, fazendo provocações.

DV – Durante o golpe militar, você já estava casado. Voltando um pouco, como se conheceram?Joel Rufino – Conheci minha mulher,

Tereza, quando ela fazia o pré-vestibular para entrar na faculdade, eu já havia entrado. A fa-mília dela é de migrantes espanhóis do tempo da guerra civil. A família veio para cá fugindo do franquismo. O pai dela era intelectual, era diretor da Editora Vecchi – não sei se ainda existe, mas foi uma editora importante em certo momento, editava a revista Grande Hotel, entre outras publicações bem conhecidas. Enfim, houve alguma dificuldade para a família aceitar o casamento. Eu, negro, comunista, pobre, historiador, era um genro que ninguém que-ria. Mas depois, com o tempo, eles acabaram aceitando, principalmente depois que nasceu o Nelson, meu filho.

DV – Nelson em homenagem a Nelson Werneck?Joel Rufino – Sim. Estivemos casados um

tempo, depois, com a necessidade de ficar fugindo de um lado para o outro, de ter de ir embora para São Paulo, clandestinamente, a gente acabou se separando. Ficamos muitos anos separados. Nos anos 80, a gente voltou.

DV – E essa questão do exílio, como foi? Joel Rufino – A Bolívia tinha um tratado

de asilo ou refúgio político com o Brasil. Aqui, já havia muitos exilados bolivianos, nós até conhecíamos alguns. Essa foi uma razão para eu ir para lá. Outra é que, apesar de as embai-xadas estarem cercadas para impedir a saída dos perseguidos pelo regime, o adido militar enfrentava. Ele pegava a pessoa candidata a se asilar e entrava com ela sob proteção na embaixada. E a gente sabia disso.

DV – A Bolívia era o país mais progressista da região. Muitos outros comunistas se refugiaram lá, não é?Joel Rufino – Sim, por exemplo, José Serra

foi meu colega de quarto na embaixada e, de-pois, em La Paz. Esse grupo de exilados ficou lá por uns cinco ou seis meses. Na Bolívia, era muito difícil se sustentar. Quem tinha família para remeter dinheiro, ficava melhor, mas quem não tinha... Havia um grupo de sargentos que tinha sido perseguido por causa de um levante anterior, era gente muito sem grana, sem apoio da família, cada um se virava como podia. Eu me lembro dos atores Gianfrancesco Guarnieri e Juca de Oliveira vendendo gravatas e roupas usadas para se sustentar. Eles enchiam uma mala e saiam pra ‘camelar’ pela cidade. E eu joguei bola profissionalmente. Tinha 23 anos. Ganhava cerca de US$ 100 por mês, dava apertado para pagar a comida.

DV – Qual era sua posição no time?Joel Rufino – Eu jogava com a “oito”.

Deixa eu contar um fato para fazer justiça: tinha um menino nissei que jogava muito, era o titular do time – o Municipal de La Paz. Eu não conseguiria tirar a vaga dele jogando, mas o técnico era um brasileiro comunista exilado, não precisa contar mais, né?!

DV – Assim, você se tornou titular...Joel Rufino – Virei, mas o japa sabia que

jogava mais. Eu dizia para ele: ‘Você joga mui-to!’ Mas, afinal, ele ganhava razoavelmente bem para o padrão boliviano, cerca de US$ 1 mil. Eu ganhava cerca de US$ 100, mas eles

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pagavam o hotel também... Esse comunista técnico do Bolívar, Vinícius Ruas, tinha sido presidente do diretório da Escola de Educação Física. Ele concorreu à eleição pouco antes do golpe e o slogan da sua campanha era: ‘Co-munista, porém honesto’. Era essa figura que treinava o Bolívar.

DV – Por que da Bolívia você foi para o Chile?Joel Rufino – Um grupo foi para o Chi-

le porque, para brasileiros, a adaptação na Bolívia era mais difícil. Por exemplo, naquele tempo que passei por lá, não consegui me relacionar com ninguém do povo. Tem a bar-reira linguística e toda essa história que agora está explodindo com Evo Morales. A Bolívia é fracionada mesmo. Quem é descendente de indígena é uma coisa, quem não é, é outra. A gente não conseguia se entrosar, aí passamos para o Chile. Nesse grupo, tinha o Marcelo Cerqueira, o falecido Artur da Távola. No Chile, a ajuda do governo era maior. Eles nos deram bolsa de estudo, eu me empreguei em uma pesquisa na Universidade do Chile, a situação começou a melhorar financeiramente. Fiquei lá por cerca de um ano, voltei para o Brasil no começo de 65.

DV – Como ficou sua relação com a escrita durante o exílio?Joel Rufino – No exílio, eu escrevi pouco,

mas escrevi com Pedro Celso O golpe de 64, para o público chileno. A gente contava, do nosso ponto de vista, o que tinha acontecido. Naquela época, havia a seguinte divergência: o golpe se deveu a uma ‘esquerdização’ ou a uma ‘direitização’? O que provocou o golpe: o fato de termos tentado avançar muito ou por que fomos tímidos nesse avanço? No livro, a gente procurava se situar. Achávamos que as duas coisas tinham sido verdadeiras. Por um lado, forçamos muito, com muita agitação, com certo ‘esquerdismo’ e, por outro, come-temos o erro da timidez, do conservadorismo. Até hoje, essa divergência existe.

O que mais nos ocupava lá era a agitação política que, no Chile, era intensa desde os anos 60. Até que vai culminar com a vitória de Allende no começo dos anos 70, e a gente se envolveu. Havia muito exilado espanhol, grupos da América Central, venezuelanos, cubanos. Exilados cubanos fugidos da re-volução e também cubanos que estavam lá para promover a discussão sobre a revolução, para defendê-la. Era um clima intenso de agitação.

DV – Por que resolveu voltar?Joel Rufino – Meu filho tinha nascido nesse

meio tempo. Além disso, eu tinha a ideia de que queria voltar a fazer política – ‘a luta continua’. Em suma, era isso.

DV – Como foi essa volta?Joel Rufino – Quando voltei, ainda estava

integrado ao PCB, voltei clandestinamente. O caminho passava por Buenos Aires, onde tínhamos um esquema de apoio, Passo de los Livres, Uruguaiana e, já no Brasil, São Paulo. Meu documento era boliviano, nem documento chileno tinha, porque, ao sair da Bolívia para o Chile, tinha renunciado ao exílio e estava tratando de conseguir documentação, voltei com um salvo-conduto boliviano.

DV – Um aspecto importante da sua trajetória é a produção da História Nova e sua contribuição para a historiografia. Em qual momento isso se dá? Joel Rufino – A História Nova é de 1963.

Eu estava com 22 para 23 anos. Participava de um grupo liderado pelo Werneck Sodré no Iseb. Éramos jovens assistentes, mas tínhamos um mentor de peso, um mestre. O Rubem Cesar Fernandes [coordenador do Iser/VivaRio] também participava, foi convidado a integrar a equipe do Sodré.

A História Nova era dirigida a professores, não era dirigida diretamente a alunos. Tinha um papel paradidático, dizíamos que era a reforma de base na História. Esse projeto só se tornou possível porque o Paulo de Tarso estava à frente do Ministério da Educação e o diretor da Cases [campanha de auxílio didático aos professores] era o Roberto Pontual. Eles editaram a História Nova, para resumir essa experiência. Depois do golpe, com a apreensão da obra, nossa prisão, inquérito, etc., a Editora Brasiliense, de Caio Graco, reeditou alguns volumes da História Nova, que também foram apreendidos, mas isso já em 67.

DV – Por que a História Nova teve tanto impacto nas salas de aula? Joel Rufino – A literatura didática esta-

va em crise profunda naquele momento de agitação muito grande de massa, que vai da morte de Getúlio até o golpe de 64, passando pela renúncia de Jânio. Esses anos foram de intensa agitação, e o ensino de História entrou em crise também, porque era muito em torno dos grandes feitos administrativos, dos presi-dentes. Geralmente, o ensino de História do Brasil não chegava aos presidentes, ia só até a

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Proclamação da República, citavam alguns pre-sidentes, com algumas façanhas, alguns feitos. Era isso, o ensino tinha falido completamente, quer dizer, aparecia como falido.

Só que não havia uma literatura didática nova, o que havia eram historiadores como Caio Prado, Sergio Buarque, que renovaram o conhecimento histórico, mas não o ensino da História. A História Nova tentou fazer a ponte entre esses historiadores renovadores e a sala de aula. Esse foi exatamente o seu objetivo. Não tínhamos antecedentes, não sabíamos como fazer. Tanto que a História Nova tem defeitos graves, que a gente só enxerga com os olhos de hoje. Havia certo dogmatismo, por exemplo. A direita acusava a História Nova de marxista, mas ela não era marxista porque era muito elementar. A relação entre a base econômica e a superestrutura era quase mecânica. Para a época, foi um avanço pelo fato de o ensino de História estar em crise, mas ela tem as virtudes e os defeitos das reformas de base daquele momento. A História Nova é muito datada.

DV – Ao voltar, veio para o Rio de Janeiro para atuar onde?Joel Rufino – Não recomecei a atuar de

imediato. Eu me considerava militante, mas teve uma época que o Partido Comunista refluiu, e isso não adiantou porque havia a repressão. Então, eu, como tantos outros ex-estudantes,

virei ‘paliteiro’ de IPM, Inquérito Policial Militar. Quando eles não tinham como avançar, inclu-íam pessoas que, muitas vezes, não tinham nada a ver só para mostrar serviço. Por exemplo, entrei no ‘IPM da Feijoada’. Teve uma feijoada na casa do Ênio Silveira, abriram um IPM para apurar quem tinha participado, o que se tinha conversado... E eu nem fui na feijoada, mas entrei nessa também.

Para vocês terem ideia de como a situação foi caindo no ridículo, o falecido Stanislaw Ponte Preta inventou o Festival de Besteiras que Assola o País, o Febeapá ironizando essa situação. Teve um IPM do filme O encouraçado Potemkin para ver quem tinha participado da exibição e o filme tinha passado no Odeon. Quando eles se deram conta, a imprensa co-meçou a chamar a atenção: ‘Se abrir IPM para quem viu e discutiu o filme, todo mundo que foi ao Odeon estará incluído’. Os IPMs foram crescendo, eles acabavam largando de mão, mas, depois, abriam outros.

Ao voltar, enfrentei alguns IPMs e fiquei preso durante um mês uma vez; depois, alguns dias; uma semana, era assim que funcionava. Era limitado a fazer o seguinte: abria-se o IPM e o encarregado – muitas vezes, um major ou um coronel – começava a prender pessoas para justi-ficar. Quando comecei a me sentir muito incomo-dado com isso, a vida em família desorganizada,

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eu sem conseguir trabalho, resolvi ir para São Paulo. Já estávamos em 67, 68 – arranjei outra identidade e comecei a lecionar em cursinhos, foi aí que eu conheci a Bete Mendes.

DV – Ela era do Partido Comunista. Costumava encontrar com o pessoal do partido em São Paulo?Joel Rufino – Sim. Dava aulas no Equipe,

um curso pré-vestibular ligado ao grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, era uma entidade de alunos. Usava o nome de Pedro Ivo. Os alunos não sabiam de nada, só souberam depois. Esse cursinho foi interessante, juntou pessoas que marcaram a época. Por exemplo, Marilena Chauí, Miguel Wisnik, Benetasso, Marisa Lajolo. Mas alguns foram caminhando para a direita, alguns foram mortos pela repressão.

DV – E, certamente, utilizava a História Nova em suas aulas?Joel Rufino – Sim, a gente estava acos-

tumado com a História toda certinha, com as datas, então, a História Nova era como um bra-seiro, era a História como um processo, era uma revolução, extremamente mais interessante.

DV – Poderia falar um pouco sobre o período quando esteve preso?Joel Rufino – Cumpri pena em São Paulo

por dois anos, de 72 a 74, depois voltei para o Rio. Os presídios que conheci foram o DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna], o Dops [Departamento de Ordem Política e Social], o Presídio Tiradentes, que foi demolido, e passei uns poucos dias no Carandiru.

DV – As cartas que escrevia para seu filho na prisão renderam um livro, certo?Joel Rufino – Sim. Entrei no apoio da ALN

[Aliança Libertadora Nacional], e minha queda foi semelhante a tantas outras. Alguém é preso e eles sentam o pau. Aconteceu isso em dezembro de 72 e, depois de passar dessa fase, da etapa barra pesada de tortura, interrogatórios, fui cumprir pena como todo mundo. Nessa época, meu filho estava com 8 anos, e meu medo era perdê-lo. Impossível explicar para um menino que o pai está preso e não é bandido. Por mais que a mãe e os avós tentassem... Então, toda semana praticamente, escrevia uma carta. Ele respondia algumas, outras, a mãe respondia por ele... ficou nisso durante aquele tempo todo.

Quando deixei a prisão, as cartas que Nelson tinha me enviado, não pude levar. Ao sair do presídio, passávamos pelos delegados do Dops,

que confiscavam o que queriam, deixavam a gente levar o que desse na cabeça deles, e não me deixaram levar nada de papel, livros... Passaram muitos anos, e a mãe do Nelson tinha guardado uma parte dessas cartas, digamos 40%. As outras não tinham chegado a ele, se extraviaram de alguma maneira. Então, resol-vemos publicar tal qual foram escritas – usava lápis de cor, desenhava – pensando em dois aspectos: em primeiro lugar, que é um docu-mento desse medo que qualquer pai tem de perder o filho, até quando há uma separação mesmo, sem ter motivo extra. E, em segundo, as cartas são testemunhos do efeito da repressão sobre uma família, sobre um pai, um menino. O livro ficou muito bonito, ficou caro, mas valeu a pena, seu título é Quando voltei, tive uma surpresa, foi publicado em 1990.

DV – Na época da sua prisão, praticamente todo o Departamento de Filosofia da USP foi preso também. Por isso, o pessoal chamava o presídio de ‘universidade’?Joel Rufino – Era a Universidade, o pesso-

al também chamava de ‘Aparelhão’. A prisão política, em qualquer parte, funciona assim: as pessoas vão estudar, debater, um ensina ao outro aquilo que sabe. Eu li muito, aprendi muito. Um dos meus colegas de prisão, duran-te boa parte do tempo, foi o [José] Genoíno. Aprendi muito com ele sobre esse assunto de floresta, vida no mato, sobrevivência. Ele era um excelente contador de histórias. E instrutor de educação física, nos dava treinamento físico todo dia.

DV – Por que a opção pela ANL? Joel Rufino – Eu me fiz esta pergunta

muitas vezes. Não acreditava realmente na luta armada, então, não devia ter entrado na ALN. Penso que foram duas as razões para eu entrar: primeiro, a rede de relações que todos nós, comunistas, tínhamos. Se alguém dessa rede entrava, por um dever de solidariedade, a gente ajudava. Isso era muito comum, mesmo se a gente não concordasse, mesmo se achasse que a luta armada não daria em nada. Chamo essa razão de cumplicidade. Segundo, havia a onipotência de jovem. O jovem acaba acre-ditando que se ele não fizer algo, a ditadura não vai acabar. Vamos chamar isso de espírito sacrificial do jovem comunista, vocês estão compreendendo? Por mais que faça uma análise e conclua: ‘É, não adianta travar luta armada contra a ditadura nessas circunstâncias’. Mesmo

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que se conclua isso racionalmente, alguma coisa na gente diz: ‘Alguém tem de lutar, alguém tem de enfrentar. E eu sou jovem, tenho saúde, sou capaz de lutar’. Acho que foi isso basicamente. Não foi crença, não foi uma atitude logicamente determinada, pelo contrário.

DV – Você também tinha uma ligação com Marighella?Joel Rufino – Tinha, menos por Marighella

do que por outras pessoas. Eu falei ainda há pouco no Benetasso, que foi nosso colega no cursinho do grêmio, era uma pessoa admirável. A família dele tinha lutado contra o fascismo na Itália, aliás, ele era italiano, veio para cá jovem. O Benetasso era de luta, acreditava que o dever do revolucionário é morrer pela revolução. Há alguma coisa de grandioso nisso, de generoso. E quando Benetasso entrou na luta armada, aconteceu aquilo que eu disse: ‘Se um cara como esse, que eu admiro tanto, entra, por que eu não posso apoiar, não posso participar?’. Mas isso também eu só percebi depois, naquele momento, entrei sem pensar muito.

DV – É possível dimensionar o impacto das torturas que sofreu na sua vida?Joel Rufino – Também já me fiz essa

pergunta muitas vezes. Vamos começar pelo seguinte: dos presos políticos que conheci que passaram por tortura, grosso modo, dividiam-se em dois grupos. Um grupo achava que a tortura, que o torturador, são desumanos, que não são gente, que são monstros ou algo parecido; e o outro grupo achava que, apesar de ser uma forma extrema de crueldade, uma experiência-limite, o torturador é humano e que, dependendo das circunstâncias, uma pessoa que não torturaria, tortura. Ou seja, a propensão para a tortura estaria dentro de todas as pessoas, qualquer pessoa, em graus variados. Não estou falando de sadismo, estou falando do torturador que é capaz de torturar uma pessoa por horas a fio e sair dali, tomar uma cerveja com um amigo, ir para casa beijar os filhos. Por exemplo, havia os que diziam: ‘O torturador tem de sofrer exatamente aquilo que ele fez sofrer’. Essa era uma visão. Outra era: ‘O torturador desempenha uma função histórica determinada em um determinado momento e, em outro momento, ele não será torturador. Não faz sentido torturar ninguém, descontar, vingar’.

De modo geral, é assim que a gente se divide. Esse é um fato. Outro fato é que quem escapou, quem passou pela tortura, quase

certamente denunciou alguém, levou à queda de alguém. Mesmo aqueles que morreram sob tortura, eventualmente, podem ter entregado alguém, o que não os livrou de morte. Fazendo um pé de página nisso que estou dizendo, vi pelo menos uma pessoa morrer sob tortura, o Carlos Nicolau Danielli. O que nós o ouvía-mos dizer era apenas o seguinte: ‘Sim, sou eu quem sabe disso, mas não vou falar. Eu sei’. Eles queriam que o Carlos Danielli entregasse a conexão com a Guerrilha do Araguaia, e ele foi assim até morrer. Mas, então, quem passou pela tortura esteve sujeito a isso, qualquer que fosse a sua forma de reagir, a sua força interior.

O terceiro fato que posso dizer a esse res-peito é que, durante algum tempo, me puni muito por ter entregado algumas pessoas. E só me recuperei, cumprindo pena por alguns meses depois, conforme retomei o processo de luta como preso político. O preso político, mesmo ali naquelas condições carcerárias, tem condição de lutar, de prosseguir a sua luta de alguma maneira. Quando comecei a fazer isso, me recuperei daquela culpa, daquele sentimento ruim que eu tinha de achar que devia ter morrido, que não devia ter falado nada.

Vamos falar das sequelas desse sofrimento. Esse sofrimento de ter entregado algumas pes-soas, penso quase ter me curado por conta disso, porque não desisti de lutar, continuo lutando, de alguma maneira, continuo comu-nista. Isso, então, me cura, ou quase, dessa sequela. Agora, há sequelas dificílimas, talvez impossíveis de se curar. Por exemplo, ter visto alguém morrer sob tortura ou ter visto alguém ser torturado barbaramente, uma pessoa jovem. Muitas vezes, por exemplo, eu olho para minha filha – hoje com 30 anos – e fico pensando que muitas moças que conheci sob tortura, algumas que vi sob tortura, outras que eu soube, eram como a minha filha, pessoas completamente amadorísticas em termos de sofrimento, de enfrentamento. Como pode uma pessoa de 20, 25 anos enfrentar um torturador? É com-pletamente desigual. A pessoa nem foi vítima de tanta maldade nem praticou tanta malda-de assim que tivesse alguma defesa contra a maldade absoluta que é a tortura. Essa é uma sequela, isso me faz sofrer ainda. Quando olho para uma pessoa jovem, penso: ‘Poxa, alguém como ela foi torturada. Eu assisti a tudo, ela sofreu tanto’. Enfim, essa mágoa, acho que dificilmente passa.

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DV –Como analisa a juventude hoje?Joel Rufino – Com inveja, tenho muita

vontade de ser jovem ainda. Estou brincando, não sou saudosista. Cada época tem a sua luta. Se a gente vê coisas negativas na juventude de hoje, a nossa também tinha, e a gente tende a esquecer. Quer dizer, o jovem é mais ou menos igual em qualquer época. As diferenças são menores que as semelhanças. Por exemplo, a onipotência. Nós éramos muito onipotentes.

Outro dia, estava lendo para meu filho o manifesto que a imprensa teve de ler por conta do sequestro do embaixador americano. Acho que foi Franklin [Martins] que escreveu. Fomos ao lançamento do livro ‘Resistência atrás das grades’, de Maurice Politi, e eu li para ele. É de uma onipotência impressionante: “Agora será olho por olho, dente por dente.” É a onipotência do jovem de qualquer época. É o manifesto de um jovem. Então, a onipotência, a generosidade, o sentimento de injustiça, o jovem parece que diferencia mais isso.

DV – Em quais circunstâncias, tornou-se ativista do movimento negro?Joel Rufino – Na prisão, tive uma experi-

ência interessante, que foi de pertencer a um coletivo de presos políticos em que eu era o único negro durante a maior parte do tempo. E vivendo em um presídio onde a maioria es-magadora dos presos comuns era negra. Essa tensão foi me impulsionando, me estimulando a pensar na questão do negro. Nesse momen-to, o movimento negro estava crescendo, se fosse em outro momento, seria diferente, mas o movimento negro está exatamente tomando pique no começo dos anos 70.

Um dos bandidos, preso comum – ele se considerava bandido –, sempre que me encon-trava nas partes comuns do presídio, dizia assim: ‘Ô neguinho, qual é a tua manha pra ficar com os terroristas?’. Ele não se convencia de que eu era ‘terrorista’, eu tinha sempre de dizer: ‘Não rapaz, eu sou terrorista’. O preso político tinha banho quente, as visitas eram mais longas. E ele achava que eu usava de alguma manha para entrar nesse grupo. Uma vez, meu filho foi me visitar e eu o apresentei a um ladrãozinho de pequenos roubos. Depois que meu filho foi embora, ele disse assim: ‘Ô, professor, querendo me desclassificar? Por que me apresentou ao seu filho? O que vão pensar de mim? Eu sou fera!’. Ele achou que eu queria esculachá-lo na frente dos outros ao apresentar meu filho.

Essas experiências com os presos negros foram me estimulando e, como eu disse, o movimento negro estava também no pique. Aí, ao sair da prisão, em 75, comecei a participar de alguns movimentos. Tinha aqui no Rio o IPCN [Instituto de Pesquisas da Cultura Negra], o MNU [Movimento Negro Unificado], que foi fundado em 1978.

DV – Como é sua relação com o movimento hoje?Joel Rufino – Sempre pertenci a uma corren-

te minoritária do movimento negro. A corrente principal, a dominante, é aquela que pensa a questão racial como se fosse a principal contradi-ção da sociedade, quase isolada das outras. Sou de uma corrente que defende que a contradição racial só pode tomar sentido no conjunto das contradições brasileiras. Por exemplo, a questão das cotas. Sou a favor das cotas, mas como uma estratégia de democratização da sociedade bra-sileira. Por que a maioria, pelo menos parte dos líderes do movimento negro, tem uma visão de racismo como se fosse um fenômeno autônomo? No fundo, trata-se do seguinte, são duas concep-ções do negro. Uma do negro como proletário, e outra do negro como etnia, ‘raça’, entre aspas, porque pouca gente usa e trata o negro como raça. São duas concepções. Quase sempre, estive na contramão do movimento negro, da tendência dominante do movimento negro.

DV – Mas você concorda que há uma luta específica que precisa ser travada pelo movimento?Joel Rufino – Concordo que o negro tem

de travar a sua luta. Todos têm de travar a sua luta específica. Agora, a estratégia tem de ser a mudança da sociedade como um todo. Nessa luta, me reconheço como o negro proletário. Vou dar um exemplo que, talvez, me faça en-tender melhor. Qualquer expressão, qualquer nome, qualquer designação é relativa, não pode ser tomada como absoluta. Eu não gosto da expressão ‘afrodescendente’, porque filia você a uma África anterior à experiência histórica brasileira. Na experiência histórica brasileira, o que foi o negro? Foi um trabalhador. Com-pulsório, escravo, mas trabalhador. O negro de hoje descende desse negro que construiu o país como trabalhador. E não do negro africano anterior ao Brasil. Nesse momento, aparece a contradição, a divergência. Uso a expressão ‘afrodescendente’ com restrição.

DV – O que achou da aprovação da Lei 10.136, que obriga o ensino da história da África nas escolas?

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Joel Rufino – Eu achei bom, mas não pode tomar o lugar do ensino da história do trabalho no Brasil. Quer dizer, o negro foi no Brasil, grosso modo, o africano desterrado e foi o trabalhador brasileiro. Nós descendemos, ou devemos nos orgulhar de descendermos, do trabalhador bra-sileiro. Quando se quer descender do africano, se esquece um pouco o essencial, que é a expe-riência de classe trabalhadora do negro.

DV – Acredita que essa contradição se deva a quê?Joel Rufino – Essa tendência dominante,

de ver o negro como o africano desterrado, deve-se à origem do movimento negro, que se origina na classe média em ascensão nos anos do chamado milagre brasileiro. Nesses anos 70, 80, muitos negros queriam entrar na classe média por meio do estudo. Formam-se em universidades, particulares geralmente, vão para o mercado de trabalho. E não conseguindo a gratificação que esperavam, eles se frustram. A frustração dessa classe média ascendente por meio do ensino particular é a origem do movimento negro, que fica marcado por essa origem de classe. Suas reivindicações são típi-cas de classe, tanto que o negro mais pobre, o negro que não está em ascensão, não consegue se identificar com as bandeiras do movimento negro. Por exemplo, me parece mais fácil o movimento negro se mobilizar pelas cotas nas universidades que pelo ensino público universal e gratuito.

DV – Poderia falar mais sobre por quê dessa não identificação da população negra mais pobre com o movimento negro?Joel Rufino – Em primeiro lugar, eles acham

que são discriminados porque são pobres e não porque são negros. Eu nunca medi isso, embora haja quem faça estatísticas a respeito, mas onde se encontra negro favorável a isso é mais na classe média. O negro humilde mesmo, que não tem pretensão, que sabe que o filho não vai para a universidade, que não está nem tentando, não quer saber disso. Ele pensa que o sistema de cotas e outras reivindicações desse tipo vão dividir mais ainda.

DV – Há diferenças entre racismo, discriminação e preconceito racial?Joel Rufino – O preconceito racial é fácil de

identificar. Já o racismo é mais difícil, porque, para compreendê-lo, é necessário conhecer alguns conceitos sobre o funcionamento da sociedade. O racismo é uma forma de domi-nação estrutural na sociedade brasileira que só

adquire sentido por meio da luta social, da luta de classes, da luta contra a ordem. O racismo é um fator estrutural, está na própria essência da formação brasileira. Se não pensarmos assim, vamos tomar o preconceito racial um sinônimo de racismo, e aí o problema vai longe, vai cair na reivindicação isolada, justa, mas isolada, vai cair em certas ilusões que alguns negros têm de que se, por exemplo, o negro puder estar na televisão, se o negro puder ser general, se puder ser executivo, que o problema estaria resolvido, o racismo estaria sendo combatido.

Essa questão vai aparecer com a novela “Viver a vida”, da Rede Globo. Ter uma prota-gonista negra na ‘novela das oito’ é realmente combate ao racismo? Para quem encara racismo como sinônimo de preconceito racial, é. Está aí a negra no papel. Agora, se pensarmos no racismo como estruturante, como elemento essencial da formação brasileira, que não é igual ao simples preconceito, vamos perceber

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que a novela é um endeusamento da beleza da mulher. Esse é um fator estruturante das relações no Brasil. Entre Helena e Luciana, qual é o papel principal? Aparentemente, é o da Helena, mas, na verdade, é da Luciana porque a beleza é uma forma de dominação na sociedade moderna, não só no Brasil, mas no Brasil principalmente. Quem nasceu belo não precisa ter mérito nenhum. Não precisa ser bom, ser legal, ser estudioso, ser boa pessoa, ser generoso, basta ser belo que já tem um espaço assegurado. Em suma, a ‘novela das oito’ com-bate o preconceito racial, mas o racismo está lá na questão da exaltação da beleza.

DV – Como distinguir o que é ou não estruturante? A questão racial não é estruturante também? Joel Rufino – Essa é uma questão meto-

dológica antiga de difícil solução. O fenômeno social só aparece por meio de fenômenos espe-cíficos. A questão social no Brasil só se mostra por meio da discriminação dos negros, da mu-lher. O geral só aparece a partir do específico, mas o especifico não existe sem o geral. É uma antiga questão porque, no fundo, tem a ver

com o lógico e o dialético. O que constitui a verdade da sociedade? É lógica? Não.

Por exemplo, alguém diria o seguinte: ‘O problema dos negros é que eles são discrimina-dos porque são negros, É o racismo’. Até aí, só fomos lógicos, é preciso dar o passo seguinte, verificar que a discriminação dos negros é a maneira pela qual se dá a exploração do capital pelo trabalho, ou melhor, do trabalho pelo capital, na sociedade brasileira. Assim, saímos do lógico e passamos para o dialético, saímos do particular e passamos para o universal para melhor compreender o particular.

No caso do negro, ele é discriminado e vítima de racismo. Mas essa discriminação é uma manifestação, uma concretização de algo mais geral, universal no Brasil, que é a exploração dos pobres pelos ricos ou da classe dominante pela classe dominada. Então, não há contradição em dizer: ‘A questão do negro é específica, mas não é a questão do negro, é a questão do Brasil’. Para mim, a questão do negro só é interessante porque é a ques-tão da sociedade brasileira. Se luto contra a discriminação dos negros, é porque, na minha consciência, estou lutando pela transformação da sociedade brasileira. Aí, desaparece essa contradição entre lógico e dialético, entre particular e universal.

DV – Acredita na eficácia das políticas universalistas para combater o racismo?Joel Rufino – Isso faz sentido. Políticas

universalistas, como as de educação, vão be-neficiar os negros. Há antecedentes disso na História do Brasil. Conforme o Estado se for-taleceu na era Vargas, conforme se constituiu e se ampliou, melhorou a situação dos negros porque eles entraram no Exército, na polícia, no funcionalismo público, eles começaram a ganhar mais, subiu o patamar de renda da população negra. Nesse sentido, é possível que uma política de universalização da escola melhore a situação dos negros. Agora, tam-bém sem ilusões porque quando se analisa a melhora dos indicadores sociais brasileiros nos últimos cem anos, percebe-se que a melhoria da população negra não acompanhou o mesmo ritmo. Há uma especificidade aí.

DV – Por que o foco na literatura infanto-juvenil?Joel Rufino – Resolvi escrever para crianças

porque estava sem emprego em São Paulo, fugindo da repressão, e alguém me ofereceu uma mixaria para escrever uma história na

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Revista Recreio. Isso foi em 69, algo assim. Es-crevi achando que não iria dar certo, mas deu, e possui a escrever toda semana e a ganhar um dinheirinho com isso. Depois, na prisão, escrevendo as cartas para o meu filho, isso foi decisivo para eu achar que poderia escrever para criança. Mas depois que meus filhos cresceram, perdi um pouco a graça.

DV – Você é avô?Joel Rufino – Sou, tenho quatro netos. DV - Como avalia o ensino da literatura para crianças no Brasil?Joel Rufino – Fui professor de Literatura

brasileira nos últimos 20 anos, até me aposen-tar. Penso que o professor, ou o pai, a mãe e o responsável, tem de convencer a criança, de alguma maneira, que literatura é importante. A criança tem de descobrir, olhando o exemplo do adulto, que literatura é interessante. Se ela desconfia que é só um acessório, não dá certo. Para a criança melhorar o interesse pela leitura, é necessário que os professores sejam leitores. Como professor, eu estava um bocado na contramão também. Porque há os professores que consideram o gosto do aluno e os que não consideram. Os que consideram o gosto do aluno começam por ouvir mais do que falar. Isso também serve em casa com nossas crian-ças. Você tem de ouvir a fabulação da criança sem cortar, sem disciplinar, sem organizar. A fabulação é natural na criança, e a gente tem de estimular. Vejo muito pai e muita mãe que ficam tristes porque o filho não lê, não pega livro. Mas não adianta tristeza e a obsessão de obrigar a ler, isso não funciona. Tem de ser divertido, a criança tem de compreender que leitura é importante, os adultos precisam ter livros em casa, a criança precisa ver o pai e a mãe lendo.

DV – Esse estilo de didática você trouxe do estudo em História?Joel Rufino – Publiquei um livro sobre isso

há três anos: Quem ama literatura não estuda literatura. Tento passar o que deve ser o progra-ma de um estudante de Letras, de um professor de Letras. E começa pelo seguinte: a literatura e, portanto, o estudo de Letras é um capítulo da história da cultura, não pode ser tomado isoladamente, como um setor que se explique por si próprio, que faça sentido por si mesmo. Por exemplo, o estudo de Letras no Brasil tem de passar por Filosofia, Ciência.

DV – Sentiu alguma dificuldade como professor universitário por não ter concluído o seu curso?

Joel Rufino – Não, porque fiz doutora-do em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ. Os embates que eu tinha como professor eram mais de natureza ideológica, concepção de literatura, sentia a necessidade de politizar o ensino da Literatu-ra, aí tinha um embate muito grande.

DV – Como um árduo defensor dos direitos humanos, como avalia o cenário brasileiro?Joel Rufino – Considerando um largo

período da História brasileira, os avanços são evidentes. Por exemplo, na área da Justiça, per-cebi, no período em que fui assessor do Miguel Paxá, que a morosidade se deve, em grande parte, ao aumento da demanda por justiça. Isso considerando os últimos 50 anos. Em matéria de justiça, houve um avanço da consciência dos direitos, muito mais demandas por parte de mulheres, de pobres, de vizinhos.

DV – O que acha da política de segurança pública do governo do estado do Rio de Janeiro? Joel Rufino – Até onde pensei nessa ques-

tão, não sou muito favorável a essa política do governo estadual. Compreendo que deve ter alguma razão, algum fundamento, que é razoá-vel em alguma medida, mas não acho que seja por aí o caminho. O que é segurança? Política de segurança deve ser a política de direitos humanos. Política de segurança, para mim, que sou de esquerda, só pode ser a política de direitos humanos. Quando se separa as duas, vai mal, sou crítico.

DV – Analisando historicamente a questão do golpe de 64 e a situação política atual de ascensão de esquerda na América Latina, qual leitura poderia fazer? Joel Rufino – Há 50 anos, a ideia de reali-

dade brasileira era de pouca circulação social, mas tinha peso nos acontecimentos políticos. Quando se dizia: ‘o problema do Brasil é o la-tifúndio e o imperialismo’, para a maior parte da população, isso não queria dizer nada. Tinha significado para uma pequena parte da popu-lação que lia livros, estava na universidade, ia a debates da esquerda. Mesmo sendo pequeno o número dos que participavam desses debates, tinham peso nas estratégias políticas, na luta política. Em certo sentido, o golpe de 64 foi dado contra o prestígio dessa ideia de realidade brasileira. É nesse sentido que digo, há 50 anos, a luta ideológica e intelectual era mais nítida, os pensadores eram mais seguros de si.

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De 20 a 30 anos para cá, embolou o meio de campo, e não só porque o Brasil mudou, e mudou não apenas naquele sentido que aque-les pensadores pensavam, o mundo mudou também. A inserção do Brasil no mundo se tornou diferente, ou seja, aconteceram duas coisas que estavam fora do alcance daqueles pensadores nítidos: a globalização e a cultura de massa. Esses dois fatos mudaram, acabaram com aquelas certezas.

DV – A crise do socialismo também contribuiu para isso?Joel Rufino – Também, esse seria um ter-

ceiro fator, sem dúvida. Temos de contabilizar a nossa derrota perdeu, perdeu. Agora, há possibi- lidade de surgir outra vez alguma ou algumas teorias nítidas com peso social sobre o Brasil? Eu penso que sim. Por exemplo, o Fernando Henrique, o grupo do Fernando Henrique, tem um pensamento, tem uma teoria de Brasil.

DV – Ainda hoje?Joel Rufino – Sim, hoje. É por isso que o

considero um adversário difícil. Em certo mo-

mento, foi impossível derrotá-lo, depois caiu em decadência. Era difícil criticar o Fernando Henrique porque ele tinha o que chamo de ‘teoria do Brasil’, era a ‘Teoria da Dependência’. Com base nessa teoria, ele fez um governo coerente, fez alianças políticas coerentes para compor uma base que permitisse essa políti-ca. Outro dia, minha mulher lembrava que o Fernando Henrique, ainda em campanha, teria dito: ‘Vou fazer aliança com o PFL’. Ele não escondeu de ninguém. Hoje, por exemplo, é impossível alguém propor uma aliança com o DEM, herdeiro do PFL, mas Fernando Henrique propôs naquele momento e funcionou como base de apoio para ele governar.

No plano político, me parece evidente que Lula foi um passo adiante. Agora, em termos de teoria do Brasil, será possível também ir adiante de Fernando Henrique? Outra teoria do Brasil, as bases para uma nova teoria que não seja a de Fernando Henrique, que seja também de esquerda? A base talvez já exista. Bresser Pereira, que é um pensador interes-

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sante, teve certo prestígio com Fernando Henrique, depois com Lula – o pai da reforma administrativa. Ele tem uma hipótese interes-sante, diz que a teoria desenvolvimentista do Brasil, dos anos 60, fracassou porque acon-teceram fatos que ela não previa. Um desses foi a queda do socialismo, a globalização, a internacionalização da economia brasileira, o fim do processo de substituição de importa-ções, não havia uma burguesia nacional, como tantos acreditavam.

O desenvolvimento anterior da sociedade brasileira, da economia brasileira, criou pos-sibilidade para uma burguesia nacional. A possibilidade que morreu naquele momento ressurgiu agora com o desenvolvimento pos-terior à globalização. No momento presente, a globalização criou, permitiu uma burguesia industrial brasileira, ou seja, uma burguesia interessada em ganhar dinheiro, obviamente como toda burguesia, mas que vê essa possibi-lidade no confronto com o capitalismo inter-nacional, sobretudo com o capital financeiro. Essa burguesia industrial, que não existia antes, estava mais no plano do desejo e, agora, está no plano do real, pode ser a base para uma teoria de Brasil.

É uma ideia interessante, uma especulação que, no mínimo, mostra que a vida social e política é muito mutável. Há 50 anos, não cabia outra teoria do Brasil que não fosse aquela do desenvolvimentismo. Nos 30 anos seguintes, não se produziu nenhum pensamento, ne-nhuma política nova, a não ser a do Fernando Henrique, e, agora, 50 anos depois, na geração seguinte, já surge a possibilidade de um novo pensamento de Brasil. É uma visão otimista. Por exemplo, existe uma teoria de Brasil a partir do PT, a partir do lulismo, que considera o interesse da classe operária industrial. São especulações. Por exemplo, o que chamam de subperonismo do Lula – foi o Fernando Henrique quem falou –, ele está querendo dizer de algo que é um mal, mas está apontando para algo possível. Pode ser que surja daí, em volta, como superestrutura desse subperonismo, uma teoria de Brasil.

DV – Aécio Neves acaba de renunciar. Acha que Dilma Roussef vai ganhar esta eleição?Joel Rufino – Não, acho que não. Mas é

puro palpite. Se fosse hoje, eu votaria na Dilma com dúvida, mas votaria.

DV – Quem vai estar no páreo, na sua opinião?Joel Rufino – O melhor individualmente é

o Serra. Mas a gente não decide assim, a gen-te não vota assim, a gente decide de acordo com o contexto. Entre Serra e Dilma, Serra é melhor pessoa, melhor cabeça... Não sei, ainda estou pensando, ainda há tempo para decidir. Quando a Marina se lançou, saiu do PT, eu me entusiasmei um pouco, durante alguns dias...Agora, é melhor esperar para ver qual será o menos pior.

DV – Como avalia as perspectivas do Fórum Social Mundial para a sociedade em termos de transformação cultural nestes 10 anos da iniciativa?Joel Rufino – Em primeiro lugar, é indiscu-

tivelmente um avanço daquilo que chamamos de direitos humanos, de democracia. Também visto a partir dos 50 últimos anos, é um grande avanço, um grande passo adiante. Eu nunca participei, o que sei é pelos jornais, pelo que me contam, mas só vejo aspectos positivos.

DV – Quais seriam os livros fundamentais que você mandaria para alguém em uma ilha deserta?Joel Rufino – Um manual prático de cons-

trução de barcos, para começar. Talvez o livro mais importante desta geração de escritores brasileiros seja o Viva o povo brasileiro, do João Ubaldo. É um livro que narra a elaboração dos mitos da formação e da fundação brasileira. O livro começa com um índio que, durante o domínio holandês na Bahia, um dia come um holandês que saiu do acampamento, e gostou tanto que faz um criatório de holandeses para comer. Está aí o mito da antropofagia, depois vem o mito do heroi que proclama a independência. É um livro fundamental.

DV – Você está escrevendo?Joel Rufino – Estou sempre escrevendo.

Agora, estou tentando mostrar os limites disso que chamei aqui hoje já de realidade brasileira. Até que ponto a realidade brasileira correspon-de à realidade de fato? Seria um livro de histó-ria das ideias, como a realidade brasileira, ao mesmo tempo que foi um instrumento de luta social, criou algumas ilusões difíceis de superar. Vai sair em meados do ano que vem.

DV – Já tem nome?Joel Rufino – Tem um título provisório, um

gigantesco inseto, retirado da metamorfose de Kafka. Eu acho que houve no Brasil uma grande metamorfose a partir de 1930. Essa metamor-fose produziu essa ideia de realidade brasileira, que ao mesmo tempo, é um instrumento e uma ilusão.

Participaram desta entrevista

Entrevistadores(as)Ana Bittencourt Carlos Tautz Cândido Grzybowski Diego Santos Dulce Pandolfi Felipe Siston Fernanda Carvalho Flávia Mattar Francisco Menezes Gabriel Ferreira Gonçalves Geni Macedo Jamile Chequer João Roberto Lopes Pinto Luciana Badim

DecupagemFabiana Born

EdiçãoAna Bittencourt

FotosMarcus Vini

ProduçãoGeni Macedo