Entrevista_Silvio_Ferraz

download Entrevista_Silvio_Ferraz

of 30

Transcript of Entrevista_Silvio_Ferraz

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    1/30

    Msica Contempornea ::

    9

    Silvio Ferraz em depoimento na Sala Adoniran Barbosa no Centro Cultural So Paulo em11/08/2005. Fotgrafo: Carlos Renn

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    2/30

    10

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: SILVIO FERRAZSilvio Ferraz compositor, nasceu em 1959 na cidade de So

    Paulo. Foi aluno de Willy Correa de Oliveira, Gilberto Mendes e GeorgeOlivier Toni na Universidade de So Paulo. Sua produo composicional marcada por intenso ecletismo, evoluindo de uma postura ps-serialnos anos 80, passando por um minimalismo cuja base terica remeteao compositor Olivier Messian, proposies que ainda figuram em seutrabalho porm mescladas idias provenientes da New-Complexity,

    tendncia composicional conduzida por Brian Ferneyhough, a qual de certomodo, o recolocam em ligao com Willy Correa em seu perodo anterior a1980. Desde 1985, participa dos principais festivais brasileiros de msicacontempornea, sobretudo do Festival Msica Nova e da Bienal de MsicaBrasileira Contempornea; no exterior participou do Festival dAutomne Paris 1994, Sonidos de las Amricas, Carnegie Hall, Nova York, em 1996e do Encuentro Internacional de Musica Contemporanea, Chile, 2006.Doutorou-se em semitica na PUC-SP. Sua obra tem sido interpretada porconjuntos instrumentais especificamente dedicados msica nova, comoo Grupo Novo Horizonte e o Duo Dilogos do Brasil, The Nash Ensemble eThe Smith Quartet da Inglaterra, o Ensemble Contrechamps da Sua, The

    Ictus Ensemble e Het Spectra Ensemble da Blgica e o Ensemble Nord daDinamarca. Dedica-se msica nova e principalmente aos modos de jogoinstrumentais, msica eletroacstica. autor de Msica e Repetio:aspectos da questo da diferena na msica contempornea (So Paulo:Educ/ Fapesp, 1997) e Livro das Sonoridades (Rio: 7 letras, 2005) e dediversos artigos no campo da anlise musical de obras do ps-guerra.Foi Bolsista da Fundao Vitae em 2003, pesquisador associado Fapespdesde 1997 e pesquisador do CNPQ, desenvolvendo projetos com principalenfoque na criao de aplicativos para transformao de audio e automaode processos criativos. Recebeu os seguintes prmios: VI Concurso Ritmoe Som, UNESP, 1 prmio: Na Seqncia Infinita das Figuras, 1990; 1Concurso Nacional de Composies para Contrabaixo, 1 prmio: Estudode Cores para uma Cena de Eroso, 1991; Concurso Firestone de MsicaCriativa, prmio para a composio instrumental Vrzea dos Pssaros deP, 1992.

    Desde 2003 professor de composio e harmonia no curso de msicada Universidade Estadual de Campinas.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    3/30

    Msica Contempornea ::

    11

    :: UMA CONVERSA COM O COMPOSITORSala Adoniran Barbosa - Centro Cultural So Paulo - 11/08/2005

    :: POR UMA MSICA QUE NO FAZ FALTANo sei muito bem o que falar num depoimento em relao ao meu

    trabalho. difcil, primeiro porque nem sei muito bem o que isto quechamo de o meu trabalho, isto que venho tentando fazer; no sei qual suareal importncia. S sei que importante para mim; mesmo quando no

    quero, eu escrevo msica. No escrevo porque algum encomenda, alis,isso ocorre raramente. Escrevo msica quase que s para mim.De tempos em tempos, sou acordado por uma idia, um gesto sonoro

    qualquer; uma frase meldica, um som qualquer que fica ali meio quevoltando o tempo todo. Estou tranqilo em casa, e l volta aquela frase,aquela sonoridade, aquela estrutura rtmica.

    s vezes, esse tipo de assalto acontece por eu ter ouvido uma msica,por ter assistido a algum espetculo, por ter visto alguma festa popular.Ainda outro dia, foi o dobrar de um sino em Tiradentes, Minas Gerais, parauma cerimnia fnebre que disparou esta coisa de ficar sendo perseguidopor uma msica que no sei onde est nem como , tomado por essa

    imagem sonora. Sou constantemente atormentado por isso. Ela volta evolta e no pra de voltar enquanto no for colocada no papel, enquantono virar partitura. Deve haver algum prazer nessa sensao porque eudemoro muito para tomar coragem e passar para a partitura, por issoproduzo muito pouco.

    H muito tempo, escrever msica para mim deixou de ser uma atividadepblica; alguma coisa que fao para msicos, que fao para um pblico,que fao para um evento qualquer. Tive de fazer isso recentemente emum concurso para professor; nos obrigaram a escrever uma pea de unstrs minutos em mais ou menos seis horas. Seis horas em um casulo,trancados, com um vigia na porta e autorizao para ir ao banheiro apenasacompanhado por ele. Foi gratificante ter provado para mim mesmo que eracapaz de escrever uma msica em algumas horas. Mas no essa a minhadinmica. A razo simples. A msica que escrevemos, contempornea,raramente tocada. Ningum pede por ela. Ela no diz respeito ao lugarem que vivo, neste pas cheio de sol e estardalhaos. Se, como professorde composio na UNICAMP eu passar dez anos sem escrever msica,

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    4/30

    12

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    ningum vai reparar. A imagem que me vem de uma msica pequena, umpequeno mundo cheio de detalhes, e o que o mundo de hoje menos quer detalhe. Uma msica cheia de detalhes que pede ateno s sutilezas.Me parece que o mundo de hoje o do borro de uma dimenso s, quesutileza aquilo que proibido. Essa msica dificilmente se far pblica,visto que o pblico hoje em dia ligado aos entretenimentos. Ser aindamais difcil ela se fazer pblica; eu diria que ela est no avesso da culturae que ningum se d conta de que ela existe. Quando digo que ela nofaz falta, para o pblico em geral. Alis, o que um pblico hoje emdia? Mas essa msica, estranhamente, me faz falta, e tenho colegas quecompartilham desse mesmo sentimento.

    Muitas das msicas que preciso escrever, eu gostaria que algum j astivesse escrito. Vocs j pensaram entrar em uma loja e encontrar diversaspeas de Silvio Ferraz que ele mesmo no se lembra de ter escrito, queforam escritas por outro compositor? por isso que muitas vezes procurogravaes para ver se alguns dos compositores que mapeei como aquelesaos quais eu me aproximo mais escreveram finalmente a msica que euprecisava ter escrito, aquela msica que estava me incomodando e meacordando nas madrugadas. E com isso me livrar de pequenos pesos e me

    dar o prazer de ouvir aquilo que me perseguia. Mas isso tudo paradoxal,no funciona bem assim.Um exemplo: eu estava escrevendo uma msica, alis uma srie de

    peas para orquestra, tendo por referncia o som da roda dos carrosde boi. Fui a um espetculo de teatro com trilha sonora assinada pelocantor Fernando Carvalhaes1. Logo no incio, um coro cantava como sefosse um carro de boi. A msica para orquestra que eu estava escrevendoficou largada, no precisava mais dela, j estava feita e me satisfaziao suficiente para que a idia de carro de boi sasse de minha cabea eparasse de me perseguir. Mas o efeito foi inverso, me satisfez a tal pontoque cheguei em casa e trabalhei um bom tempo na partitura.

    Ento, um pouco por isso que no sei o que dizer em um depoimento,porque fao uma msica que aparentemente no faz falta aos outros.Fao algumas perguntas o tempo todo, sobretudo quando adveio esteconvite. O que essa msica que escrevo no mundo em que vivo? 1 Fernando Jos Carvalhaes Duarte, compositor e professor-doutor (faleceu em 2006). Foiprofessor de canto e tcnica vocal no IA-UNESP, doutorou-se com tese sobre Roman de Fauvel, textoimportante do cancioneiro medieval.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    5/30

    Msica Contempornea ::

    13

    uma msica que est fora do mundo dos comuns. Claro, gostaria que elapertencesse tambm cultura dessa gente que nos rodeia, que est maisperto de ns. Mas o que a cultura de uma gente? tudo aquilo queleva a danar, cantar, chorar, rezar, cozinhar, se acasalar. Sutilezas. E seexiste a cultura de uma gente, existe sempre a cultura daquele que noquer que essa cultura vingue: a trilha sonora dos momentos especiais, amsica de passatempo para o chato quotidiano (aquilo que chamamos deentretenimento e que diz respeito diretamente ao trabalho capitalista:uma hora voc trabalha, outra voc vive o tdio de no estar trabalhandoe a voc se entretm com alguma coisa at chegar a hora de ir trabalharde novo).

    No sei se fica claro que danar e cantar no so entretenimento, sosim, manifestaes de um povo, exigem uma tcnica, um envolvimento,um fazer, uma forma de viver juntos. J o entretenimento no pede nada,nem ateno ele pede. Voc pode levantar, interromper quando quer,comer enquanto se entretm, falar de outra coisa. No impede nem quevoc descanse. Bem, toda msica corre riscos. Pode ser que no seja paraentretenimento, mas no sendo da cultura de uma gente, ela corre o riscode ser enfeite de esnobes. Coisa para polticas interpessoais das mais

    baratas.No fundo, essa msica contempornea at fica bem mantendo-seausente; quase sem gravaes, com ralas apresentaes em concertos.A resposta no est em modific-la. Algumas pessoas pensam assim: terum pblico. No o meu caso; escrevo para me livrar de idias que meincomodam.

    Ento me pergunto: Para que um depoimento de algum que faz umacoisa que mal existe? Que estranho culto esse? Sobretudo neste paspobre em que os afetos so to elementares. Qual o lugar de afetostristes, lamentos, rquiens, sussurros, jogos de timbres? Qual o lugarpara essas pequenas coisas que nos arrancam de nossos apegos cotidianos

    quando o que se quer justamente que no se saia do cotidiano? Olugar talvez seja o de resistir solitrio ao que chamamos de um povo semcultura, um povo que no consegue sequer chorar sem que seu choro vireentretenimento de algum.

    Dia a dia, a espessura daquilo que chamvamos de cultura quese perde. Torna-se dia a dia mais rala e, se resiste, em pequenas

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    6/30

    14

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    comunidades. E a cultura tornando-se rala, que espao tem a msica seno para se ficar feliz nem para se curtir fossa nem para passar o temponem para tornar o ambiente mais agradavelmente cult? Que lugar temhoje em dia uma msica que fala da morte e da dor e que no faz parteda cultura de uma gente?

    Volto para o meu mote inicial: Para que um depoimento de algumque faz uma msica que no existe, de um compositor que no existe,a no ser para ele mesmo e para um pequeno ciclo de amigos que ocercam? Digo isso porque sei que alguns dos meus colegas compositorestambm vivem coisas parecidas, e por isso mesmo passo a falar disso queno tem nada de pessoal, e fala menos de uma pessoa especfica do quede uma forma de vida que acabou, de uma coisa que acabou no jogo deachatamento, de decomposio das dimenses do que se chamava porcultura.

    :: DE DOLOS E REFERNCIASQuando era estudante, tinha um ou outro compositor por dolo. Com

    isso, minhas primeiras msicas, coisas escritas no primeiro e segundoano de faculdade, eram bricolagens, cada trecho era moldado por um

    dolo. Depois, veio a fase de me livrar dos dolos, que comeou logo. Noterceiro ano da faculdade, j me sentia atrado por essas sonoridades queme perseguem at hoje, mas no significa que tenha deixado os dolosde lado. Aconteceu quase sem eu perceber, os tiques sonoros dos dolosforam virando farinha e se misturando sem que as coisas deixassem clarode onde tinham vindo. Berio2, Villa-Lobos3, Bela Bartok4, Vivaldi5, msica

    2 Luciano Berio (1925-2003), compositor italiano ligado Escola de Darmstadt. Detacou-se porsua srie de composies intituladas Sequenzas, obras para instrumentos solistas que exploram novasdimenses de virtuosismo, e por sua Sinfonia.

    3 Heitor Villa-Lobos (1887-1959), compositor brasileiro, participou dos principais movimentos derenovao da msica brasileira e europia. De sua obra destacam-se suas Bachianas Brasileiras, obras quemesclam elementos da msica de J.S.Bach e a tradio musical popular brasileira.4 Bla Bartk (1881-1945), compositor hngaro conhecido por suas pesquisas etnomusicolgicasnas quais estudou a msica popular da Europa Central e de Leste, material este que retomou em diversasde suas composies como sua srie para piano Microcosmos.5 Antonio Vivaldi (1678-1741), compositor italiano, um dos expoentes da msica barroca, possuiimensa produo musical em diferentes formaes. Destacam-se os concertos, cujo formato foi adotado poroutros compositores.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    7/30

    Msica Contempornea ::

    15

    ricana, Bach6, Pixinguinha, Stravinsky7, Debussy8, Luca Marenzio9, JimiHendrix10. A lista aumentou com o passar do tempo: Mozart11, Messiaen12,Strauss13, Brian Ferneyhough14, Giacinto Scelsi15, Sciarrino16, Georges

    6 Johann Sebastian Bach (1685-1750), msico e compositor alemo do perodo barroco damsica erudita. Sua produo talvez a mais vasta da msica europia e referncia obrigatria de todaa msica que lhe foi posterior.7 Igor Stravinsky (1882-1971), compositor russo, um dos mais destacados e influentes dosculo XX, revolucionou de forma decisiva a linguagem musical com o bal A Sagrao da Primavera(1913). Posteriormente, se destacou em diferentes linguagens musicais, incluindo o neoclassicismo e oserialismo.8 Claude Debussy (1862-1918), compositor francs, smbolo do impressionismo musical e datransio da msica do sculo XIX ao XX. Levou a linguagem musical a universos antes no imaginadosatravs de novas escalas, novo uso da harmonia, da forma e da orquestrao.9 Luca Marenzio (1553-1599), compositor italiano, reconhecido pela composio de seus

    Madrigais em que se valia de excelentes cantores e virtuosismos vocais. Apesar de utilizar cromatismose acidentes, sua msica era praticamente diatnica, com melodias sensuais. Publicou diversos livros deMadrigais, tornando-se bastante famoso na poca10 Jimi Hendrix (1942-1970), guitarrista norte-americano. Deixou um legado de mais de 800horas de gravaes que talvez nunca sejam divulgadas. Mudou completamente o conceito de como tocaruma guitarra. Foi tambm o pioneiro na utilizao de efeitos como distoro.11 Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor, um dos mais populares dentre asaudincias modernas. Considerado gnio por compor desde ainda criana, revolucionou definitivamente aconcepo da pera com sua Flauta Mgica.12 Olivier Messiaen (1908-1992), organista e compositor francs, sua obra at hoje refernciapara as novas geraes de compositores. Em sua msica funde elementos do canto gregoriana, sistemasrtmicos indianos.13 Richard Strauss (1864-1949), compositor alemo. O mais importante nome da msica alemdos primeiros anos do sculo 20. Sua educao musical foi clssica, a princpio adepto de Brahms,posteriormente converteu-se, tornando-se discpulo e herdeiro de Wagner.

    14 Brian Ferneyhough (1943), compositor ingls. fundador da Nova-Complexidade, escolade composio inglesa de presena marcante a partir da dcada de 1970. Sua msica extremamenteelaborada exigindo situaes de performance de altssimo nvel.15 Giacinto Scelsi (1905-1988), compositor italiano. Destaca-se sobretudo por suas composiesrealizadas com uma ou duas notas apenas. Influenciou definitivamente a nova gerao de compositoresfranceses sendo o precursor da chamada Msica Espectral.16 Salvatore Sciarrino (1947), compositor italiano. efetivamente um autodidata, sendo que oseu conhecimento musical advm diretamente do estudo sobre os compositores modernos e clssicos. Suamsica importante pela revoluo no modo de escrita instrumental.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    8/30

    16

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Aperghis17, Marisa Rezende18, Rodolfo Caesar19, Roberto Victorio20, StefanoGervasoni21, Gesualdo22, Luigi Nono23, Franco Donatoni24, Grard Grisey25,Beethoven26. Mesmo virando farinha, eu ainda consigo saber de onde veiocada coisa que usei em cada pea daquele perodo de formao. s vezes,uma mesma coisa vem de mais de um desses dolos.

    Hoje em dia, quando ouo o que fao, no sei mais do que se trata.No sei se ou no contemporneo, se ou no interessante. No seise vale a pena continuar fazendo daquele jeito, o que, s vezes, me traz aidia de mudar de rumo, de fazer de outro jeito. Mas no sai, no sei fazerde outro jeito. E os dolos sumiram.

    claro que, se existiam os dolos, existiam tambm aqueles que no meinteressavam muito. E tambm verdade que dolos viraram insignificantes,

    17 Georges Aperghis (1945), compositor grego. Com formao autodidata, mudou-se para Parisem 1963. Suas primeiras obras so marcadas tanto pelo serialismo quanto pelas investigaes de PierreSchaeffer, Pierre Henry e Iannis Xenakis. A partir de 1976, passa a compartilhar o seu trabalho em trsgrandes domnios: o teatro musical, msica de cmara e para orquestra, vocal ou instrumental e pera.18 Marisa Rezende (1944), pianista e compositora carioca., fundou a Associao Nacional dePesquisa e Ps-Graduao em Msica. Sua msica considerada referncia entre a nova gerao decompositores brasileiros.19 Rodolfo Caesar (1950), msico eletroacstico e compositor carioca. Estudou no Conservatriode Paris, com Pierre Schaeffer, e mais tarde na University of East Anglia, Inglaterra, onde completou

    doutoramento em Composio Eletroacstica. Suas obras tm recebido distines diversas e sidoapresentadas em concertos e eventos importantes no Brasil e no exterior, como em Viena, Estocolmo, entreoutros.20 Roberto Victorio (1959), tenor, regente e compositor carioca. Tem em seu catlogo maisde uma centena de obras para as mais diversas formaes, executadas nos principais festivais demsica contempornea no Brasil e no exterior. Divulga, com o Grupo Sextante de Mato Grosso, obrascontemporneas, enfocando os novssimos compositores brasileiros.21 Stefano Gervasoni (1962), compositor italiano. Estudou no conservatrio Giuseppe Verdi emMilo, posteriormente teve contato com Luigi Nono e Brian Ferneyhough. Atualmente professor noConservatrio de Paris.22 Gesualdo da Venosa (1560-1613), compositor italiano que inovou a linguagem harmnica damsica renascentista, incorporando escrita vocal o uso do cromatismo.23 Luigi Nono (1924-1990), compositor italiano. Seu trabalho se destacou por sua atuao juntoa grupos operrios. Em suas composies, de fundamentao serial , elabora um interessante sistema deintegrao texto-msica.

    24 Franco Donatoni (1927-2000), compositor italiano. Alm da sua carreira de compositor,Donatoni manteve uma intensa atividade como professor de composio A sua msica e o seu pensamentomusical influenciaram vrias geraes de compositores.25 Grard Grisey (1946-1998), compositor francs. Estudou no Conservatrio de Paris, onde cursoucomposio de Olivier Messiaen. um dos fundadores da msica espectral, escola que toma a estrutura dosom como temtica composicional.26 Ludwig van Beethoven (1770-1827), compositor alemo do perodo de transio entre oclassicismo e o perodo romntico, revolucionou vrios aspectos da linguagem musical no incio do sculoXIX.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    9/30

    Msica Contempornea ::

    17

    e insignificantes viraram dolos. Beethoven foi um desses nomes. Mas eupreferia mesmo era ouvir a msica dos burndis, a msica dos vendas, oscantos de pssaros, msica dos kaapor, tucanos e yaualapitis. Ouvir antesElomar27 a ouvir a dura msica de Beethoven. Coisas que me levavampara bem longe das relaes de poder que permeiam nossa sociedade. Africa, a sia, os ndios, as pequenas comunidades do interior do Brasil, ospssaros, essas coisas todas tinham o poder de me fazer sentir fora dessejogo de mesquinharias. E Beethoven era o compositor dos professores, oexigido. Assim como o dolo das vanguardas, Stockhausen28 parecia mesmouma msica insossa e pretensiosa.

    Claro, como professor de msica, sempre falei desses compositorespara os alunos, e sempre fazendo deles grandes gnios. Stockhausen juntocom Beethoven, mas sem a fora que depois eu descobriria na msica deBeethoven.

    Ainda como antidolos, no Brasil, nunca me desceu essa msica paravoz de cunho nacional. Talvez pelo cheiro de fascismo getulista. Essa formaempolada de cantar sempre foi um contraponto grotesco maravilhosamsica popular brasileira de Noel, Joo Pernambuco, Joo Pacfico, ChicoBuarque, Tom, Milton, os arranjos de Vadico. Localizando melhor, acho

    que o que me incomoda nessa msica brasileira de cunho nacional enesse pacote no falo de Villa-Lobos nem da primeira fase de Gallet29 oude alguns momentos de Lorenzo Fernandez30 o peso dela e sua sempreinadequada forma de escrita. Grandes orquestras bombsticas quandodeveria ser um solo. Solos quando deveria ser uma grande orquestra.Msicas que sempre lembram a msica de algum e sempre sem a alegria

    27 Elomar Figueira Mello (1937), compositor baiano. Depois de ter selado o caderno do cancioneiro,tem dedicado-se mais intensamente execuo de suas antfonas (cantos de louvor Deus), galopesestradeiros (sinfonias compactas) e peras. atravs do dialeto sertanez e da figura do catingueiro queele canta as vicissitudes humanas.28 Karlheinz Stockhausen (1928), compositor alemo. Um dos principais representates da Escola deDarmstadt, juntamente a Luciano Berio e Gyrg Ligeti pode ser considerado uma das principais referncias

    da msica contempornea.29 Luciano Gallet (1893-1931), compositor, pianista, regente, musiclogo e folclorista carioca.Foi diretor do Instituto Nacional de Msica, fundador da Associao Brasileira de Msica e reformulou oensino da msica, dando-lhe o estatuto de curso universitrio, em 1930. Sua principal fase composicionalespelha forte presena da msica impressionista francesa de Debussy, universo harmnico que abandonaao aderir ao nacionalismo musical.30 Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948), compositor, regente e professor carioca. Participou dafundao do Conservatrio Brasileiro de Msica, em 1936 e da Sociedade de Cultura Musical, da AcademiaBrasileira de Msica e do Conservatrio de Canto Orfenico.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    10/30

    18

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    das descobertas cpias e cpias e mais cpias que pretendem sempreultrapassar Villa-Lobos.

    A moda de fazer esse tipo de msica voltou. Agora ouvimos coisasque ficariam maravilhosas na voz de uma cantora popular, nas linhas deum violo ou de um clarinete, ou ainda na batida de um baixo eltricose empetecarem todas em arranjos mal-ajambrados de uma msica queno nem popular nem de experimentao msica para outra forma deesnobe, aquele que quer dizer que gosta do que do povo.

    J a ingenuidade me atrai. Me diverte ouvir algumas coisas de CamargoGuarnieri31 feitas para o cinema, ou de Guerra-Peixe32, ingnuas, caipirasno sentido bom que o termo tem.

    gozado: existe msica antiga e msica velha. Msica velha podenascer a qualquer poca, ela fora do tempo. E se existe msica velha,existe msica nova e ela tambm nova em todos os tempos: uma msicaque revela sempre algo que no estava ali antes.

    Falo assim meio debochado e sem restries da msica de outroscompositores que no me descem goela abaixo porque no tenho o menorconstrangimento de falar as mesmas coisas da msica que escrevo. Alis,no suporto muito ouvir as msicas que escrevi. Logo depois da estria,

    ouo e reouo at que cada detalhe comea a me incomodar, e a vontadeera de ter feito outra coisa. Pego para fazer outra coisa e, surpresa! Escrevoa mesma coisa.Talvez falta de capacidade mesmo.

    Mas, como no permanecemos parados, hoje, adoro Beethoven.Stockhausen continua no mesmo lugar, uma msica que no me interessaouvir.

    Nem s de msica a gente se alimenta, mesmo sendo compositor.No so poucos os nomes de poetas, de pintores, de cineastas, de coisas,eventos, fatos e lugares que de uma maneira ou de outra entram na msicaque fao. No sei bem como entram, mas sei que esto ali em cada notaescrita: os sinos de Minas Gerais, os moambiques do interior de So

    31 Camargo Guarnieri (1907-1993), compositor paulista. Manteve um curso de Composio, com ointuito de formar artistas conscientes da problemtica da msica no Brasil quanto esttica, s formas, linguagem e aos meios de realizao. Foi criador e diretor do Coral Paulistano, regente oficial da OrquestraSinfnica Municipal, membro fundador da Academia Brasileira de Msica, que presidiu.32 Csar Guerra-Peixe (1914-1993), compositor paulista. Influenciado por Hans JoachimKoellreutter, passou a utilizar tcnicas dodecafnicas em suas obras, conquistando reconhecimentointernacional. Foi um dos fundadores do Grupo Msica Viva, que abandonou no fim da dcada de 40,quando voltou-se para o nacionalismo musical.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    11/30

    Msica Contempornea ::

    19

    Paulo, o som do carro de boi, a filosofia de Gilles Deleuze 33, os pequenospoemas de Beckett34, Fernando Pessoa35, o alaranjado do pr-do-sol emPrados-MG, a Capela do Rosrio de Prados, a voz do velho Adhemar deCampos36.

    Fui aluno de Willy Corra de Oliveira37 e de Gilberto Mendes38, maspoderia dizer que o que permeia mesmo a msica que escrevo so as falasdos velhos, Adhemar de Campos e Olivier Toni39. As dicas de maestro debanda dadas pelo Adhemar e as opinies talvez mais cheias de detalhesdadas pelo Toni sempre orientaram o que eu tinha de estudar. Claro, tudoisso foi meio que posto de lado no momento de crescer, e rememoro hojecomo coisas bastante distantes e que dizem respeito a uma pessoa de outrapoca, de uma poca em que acreditava que com a msica eu faria algumascoisas se movimentarem, que aquilo teria alguma fora revolucionria.Hoje, no acredito mais nessas coisas, e as pessoas importantes ficaramcomo boas recordaes. Dos nomes todos de que me lembro, ficaria comquatro: Toni, Adhemar, Paul Klee40 e Gilles Deleuze.

    De Paul Klee sempre me impressionou a simplicidade. E simplicidade no fazer uma coisa simplria que todo mundo vai entender. Simplicidade querdizer se livrar de ornamentos inteis, deixar de lado tudo aquilo que pede

    explicao e que no acontece no plano concreto de quem ouve a msica.33 Gilles Deleuze (1925-1995), filsofo francs. Cursou filosofia na universidade de Sorbonne. Suaobra traz profundas marcas da filosofia de Nietzsche, Spinoza e Bergson.34 Samuel Beckett (1906-1989), escritor, poeta e dramaturgo irlands. considerado um dosprincipais autores do final do sculo XX com importante revoluo no uso da linguagem escrita e falada.35 Fernando Pessoa (1888-1935), poeta portugus. considerado um dos maiores poetas delngua portuguesa.36 Adhemar de Campos Filho (1926-1997), instrumentista, regente e compositor mineiro. Crioua Casa da Msica Lira Ceciliana, em Prados, onde organizou festivais de msica e dirigiu a Orquestra LiraCeciliana. Pesquisou e comps vrias msicas contempornea de vanguarda, muitas ainda inditas.37 Willy Corra de Oliveira (1938), professor e compositor brasileiro nascido em Pernambuco. Foi,juntamente com Gilberto Mendes, o grande responsvel pela propagao das idias musicais da Escola deDarmstadt (Boulez, Pousseur, Berio, Stockhausen) no Brasil.38 Gilberto Mendes (1922), compositor paulista, natural de Santos, participante ativo da

    vanguarda musical brasileira, um dos fundadores do Grupo Msica Nova e criador do Festival Msica Nova,de grande impacto na cena musical contempornea.39 Olivier Toni (1926), compositor paulista. Participou da fundao da Orquestra de Cmara de SoPaulo, da Sinfnica Jovem Municipal, da Escola Municipal de Msica e da criao do Depto de Msica daEscola de Comunicaes e Artes da USP (ECA). Foi, ainda, um dos articuladores da Sinfnica da USP, em1972, e da Orquestra de Cmara da USP, formada por msicos da ECA em 1995.40 Paul Klee (1879-1940), pintor alemo nascido na Sua. Foi influenciado por vrios diferentesestilos, incluindo expressionismo, cubismo e surrealismo. Em suas obras experimentou a mistura de meiosartsticos, usando aquarela e pintura a leo ou tinta, cola e verniz

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    12/30

    20

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Simplicidade tem a ver com usar elementos que esto altura da mo,em se valer de coisas sem ter nenhum subterfgio terico, revolucionrio,filosfico, semitico ou seja l o que for. Simplicidade aqui vem no sentidode bastar-se com o terreno em que se est: se algum vai ouvir aquilo,timo. Se ningum vai ouvir, pouco interessa. Mas importante que quemquer que seja que oua, consiga ouvir. Que aquilo que est ali sendo tocadoseja o suficiente para que algum escute e sinta que ali tem alguma coisa,que ali existe uma casa. Gosto bastante dessa imagem da casa: compor fazer uma casa. E a casa simples aquela em que a gente pode sentar emqualquer lugar, se deitar em qualquer canto, aquela casa sem protocolos.Existem msicas sem protocolo e msicas cheias de protocolo, para esnobes,esnobes da forma, da coisa antiga, das tecnologias, e assim vai. Ento,lendo Paul Klee que me dei conta dessa fora do simples.

    J o maestro Adhemar, maestro da banda da pequena cidade mineirade Prados, me mostrou outro tipo de simplicidade, a simplicidadecomunitria. Viver com os outros sem a necessidade de ser sempre regidopor protocolos morais. Simplesmente convivendo com respeito necessriopara no diminuir nada que esteja sua volta. Se bem que, muitas vezes,no consigo me manter nesse mundo que ele imaginava. Me vejo neste

    nosso mundo em que as pessoas nos foram a tomar atitudes que notomaria, reao s formas medocres de convvio (talvez a lista de nomesseja maior do que a de compositores que citei acima).

    Depois tem o Toni. Toquei com o Toni muito tempo. Ele sempreressaltou a importncia de se ser um msico em todas as dimenses:compor, tocar e conhecer os fundamentos daquilo que se toca; me mostroumuita msica, coisas que eu nunca tinha ouvido e at mesmo no gostava.Atualmente, cada vez que corrijo exerccio de algum aluno de harmonia,um baixo cifrado, uma sonata, me lembro do Toni e imagino o que elepensaria se visse aquilo que foi possvel ser ensinado.

    Por fim, o filsofo francs Gilles Deleuze. O pensamento de Deleuze

    mudou a minha forma de conceber muitas das coisas que eu pensava sobreo mundo, sobre existir. Escrevi muito a respeito e creio que muito do quefalo vem atravessado da forma de pensar que ele inaugura no sculo XX.Pensar sem as bengalas da moral, sem as bengalas transcendentes dosmodos de julgamento. difcil, mas interessante.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    13/30

    Msica Contempornea ::

    21

    :: SOBRE A MSICA QUE FAO

    No tenho uma linha fixa que me caracterize como compositoracstico, eletroacstico, informtico. Cada hora uma coisa. Ora faocoisas eletrnicas, ora acsticas, ora realizo o trabalho de poemas-em-msica41. Depende do momento, daquilo que aparece para fazer. Temdias inclusive que ao invs de escrever msica fico desenhando, pintando,afinal de contas, quando tinha meus quatorze anos, imaginava um dia ser

    pintor, nunca msico. S no pedem um depoimento de minha atividadede pintor porque no atuo no meio da pintura, mas acreditem, minhapintura to desinteressante e fora do mundo quanto minha msica.

    Sou constantemente capturado por coisas e pessoas, e dessa captura quenascem as msicas, desenhos ou pinturas. Minha atividade de criar dependede que eu seja capturado. No caso da msica, capturado por um som, umamelodia, uma seqncia rtmica, um poema, uma forma, uma dana, uma voz,mas essa msica deve bastar-se em si; ela deve ser ressonante, um pedaoligado no outro por afinidade sonora ou meldica ou rtmica. Sempre porafinidades concretas, nada de estrutural, de formal, de abstrato.

    Como disse antes, a simplicidade me atrai, e no h nada menos apto

    simplicidade do que a propenso explicao. Tem msica que chegae de cara j fala que sabe mais do que o pblico; msica que existe paraexibir: Veja como este compositor o mximo, ele usa computador, usasoftwares franceses. Blablabl. E a simplicidade volta aqui naquilo que oconcreto, que est na partitura e no que se ouve da partitura.

    :: MATEMTICASSou adepto de um monte de matemticas para compor. Aprendi a cultuar

    isso com outro dos meus professores, com o ingls Brian Ferneyhough etalvez com o colega Fernando Iazzetta42 ou at mesmo do contato comalunos em aulas de anlise. So matemticas que me ajudam a processarcoisas que eu geralmente fao improvisando. Muitas de minhas msicasnascem quando improviso a partir daqueles motes que me perseguem.

    A pea sempre passa por uma etapa de improvisao, de ser41 Poemas-em-msica trabalho que envolve a leitura de poemas e o tratamento da voz daleitora em tempo real. O trabalho realizado com a poeta Annita Costa Malufe.42 Fernando Iazzetta (1960), percussionista e compositor paulista. professor da Universidade deSo Paulo e um dos principais pesquisadores e representantes da msica e tecnologia no Brasil.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    14/30

    22

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    experimentada. Improviso primeiro e descubro a lgica depois, e essalgica que me ajuda a prosseguir, a dar continuidade e consistnciaconcreta pea.

    Como disse, elas so como casas: tm cmodos, tm corredores, janelas,reas mais ventiladas, outras escuras e midas, outras com paredes altas,outras estreitas e baixas, armrios cheios de coisas, armrios vazios. Nelaa gente passeia, vai de um lado para o outro, e tudo concreto. E tudonasce de ir experimentando essa casa, improvisando, cantando, imaginandoblocos sonoros. E as matemticas servem muito para automatizar umgesto, uma improvisao. um exerccio interessante ouvir o que se estfazendo e logo imaginar aquilo numa maquininha que desenhe a msicasem a necessidade de ficar escolhendo notas ao piano.

    Uma vez, vi o Chiquinho de Moraes43 escrevendo um arranjo numshow da Simone em que eu estava substituindo algum como segundatrompa. Ele escrevia aquele monte de acordes, uma matemtica. Ele sabiaexatamente que seqncia de acordes usar, no por solfejo, mas porconhecer a matemtica da coisa, a seqncia das coisas. Dou um exemplo.Em uma de minhas peas, Casa Tomada, a coisa funciona assim: umaseqncia de notas cromaticamente prximas segue um pulso constante e

    por vezes interrompida por uma figurao mais rpida que pode crescerna forma de um acorde ou na forma de apojaturas. Noutra pea, pegueium trecho de Vivaldi e vi uma seqncia de intervalos (meio tom, umtom, meio tom, um tom e por vezes uma tera menor). Imaginei entoum acorde a x vozes em que cada uma desceria nessa ordem de intervalos,alternadamente: se uma voz desce um tom, a outra descer meio tom, eassim vai. Escrevi uma srie de peas usando esse algoritmo.

    O algoritmo transpor tom, semitom, descer naturalmente justamentepara fingir que voc est numa escala. Aquela coisa de voc estar indopara um lugar, faz a curva, e a pessoa acha que voc vai, mas voc vai parao outro lado. Justamente voc vai retorcendo, voc vai distorcendo, voc

    vai transformando essa escala em outra. Na msica do sculo XX, no seusam quase escalas. Alguns caras tentam usar escalas estranhas, com umquarto de tom, escalas esquisitas, que no acabam nunca. Tem de tudo.No caso, o que fica na memria, talvez para mim, que um movimento,

    43 Chiquinho de Moraes, maestro e arranjador. Seu nome est ligado aos mais importantestrabalhos e intrpretes brasileiros.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    15/30

    Msica Contempornea ::

    23

    os pequenos movimentos de tom e meio tom pa-r ou pi-r ficam nacabea de quem est ouvindo, todo mundo ouve porque est acostumadoa ouvir o tempo todo. E no uma escala completa.

    Uma vez, eu ouvi um dos primeiros quartetos de cordas do GiacintoScelsi, compositor italiano que ressurgiu na dcada de 70. O Quartetode Cordas dele era justamente s movimento de meio tom. E ficava sisso, as coisas descendo assim. Muito bonito. O segundo movimento erajustamente rpido, tudo subindo, subia meio tom. S que ele tinha umasrie de notas, ele atacava. Ele no segue, como eu estou seguindo otempo todo, uma regra um pouco mais restrita. A dele era um poucomenos restrita, em compensao a textura era sempre igual. Para mim, assim, o algoritmo pode ser mais restrito, mas a textura no pode sersempre igual, ela tem de ter uma coisa que a transforme rapidamenteporque eu no tenho pacincia.

    Como eu sou ouvinte da minha msica, como disse desde o comeo,estou escrevendo para mim. Ento, ela tem que satisfazer a minha pacincia.Ou eu tenho pacincia de escut-la ou no. um pouco por a.

    :: SONORIDADES E CONCRETUDE

    Sou tambm adepto de sons no muito corriqueiros nos instrumentos.Gosto muito de msica africana, de msica indgena, msica de congos emoambiques. Gosto nessa msica da sua riqueza timbrstica. Para obteruma riqueza semelhante, tenho de usar o que algumas pessoas chamamerroneamente de efeitos no so efeitos, mas sim, uma outra forma detocar os instrumentos que exige uma tcnica especial. Algumas coisas saemdos automatismos dos instrumentistas e se constituem em verdadeirosdesafios no mundo da msica contempornea. Em pases em que essamsica parte de sua cultura, essa forma de tocar chamada de extendedtechnique. A busca timbrstica um pouco mais difcil quando escrevopara piano. So bastante conhecidos os resultados do piano preparado de

    John Cage44. possvel tambm utilizar a eletrnica para o enriquecimento

    timbrstico. Fiz isso em algumas peas para piano e numa pea paraclarinete solo; usei diversos aplicativos que elaborei num programa44 John Cage (1912-1992), escritor norte-americano, compositor musical experimentalista suamsica ficou conhecida pelo uso quase irrestrito do acaso como princpio composicional.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    16/30

    24

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    chamado MAX/MSP e que servem para transformar em tempo real um sinalsonoro qualquer. Fiz diversos desses aplicativos, e continuo fazendo.

    Mas do que eu mais gosto, o resultado que mais me deixou contente,foram as tentativas de desfazer o som do piano. Passei a pesquisar algunsacordes estranhos que meio que deformam o som do piano e, por maisafinado que o piano esteja, fica parecendo sempre um pouco desafinado.O desafio criar esses acordes e no ficar parecendo msica atonal docomeo do sculo XX. No sei por qu, mas evito tais familiaridades.

    Essa concretude para as peas diz respeito tambm a formas tradicionaisde se tocar um instrumento: os arpejos no piano, os movimentos de arcotrocando de cordas nos violoncelos, o uso de cordas presas nas rabecas,essas estruturas fazem parte de um solfejo instrumental que vem semprequando se est escrevendo msica, esse gestual instrumental; acho que amsica est ligada a isso. A gente, de certo modo, ouve o movimentar-sedo instrumentista, e isso ajuda a ligar as partes. Coisas que soam de mododistinto acabam muitas vezes se amalgamando s porque aquilo nascedentro de um mesmo gesto. E se uma coisa nasce para viola porque no para orquestra. Para ela virar algo para orquestra, muita coisa tem deacontecer, no basta uma mera reorquestrao. Ela tem de pedir outro

    som, outro equilbrio no peso das sonoridades, outras velocidades, outrosgestos, e assim vai. Acontece porque esse tipo de msica no se resumena melodia, na estrutura rtmica ou no plano harmnico; nela, o timbre importante, e as texturas so relevantes. Mas vira e mexe eu me traio efao uma transcrio quase que desatenta.

    Ainda sobre a relao com a improvisao e com os gestos que nascemdela, diria que minha estratgia sempre ir repetindo e deformando atque esse movimento meio centrfugo e meio centrpeto me lance num outrogesto. Da a msica que fao ter uma certa continuidade, funcionar semprepasso a passo e no por grandes saltos. Gosto da idia de deformao aoinvs de desenvolvimento.

    :: TEMPONa verdade, compor uma forma de inventar estratgias para resolver

    alguns problemas que aquelas sonoridades que me perseguem acabamcolocando.

    Tenho muito pouca pacincia para ouvir msica em concertos. Aquilo

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    17/30

    Msica Contempornea ::

    25

    de ouvir obras longas me irrita profundamente. Prefiro coisas mais rpidas.H compositores, como Stravinsky, que fazem coisas longas, mas deixama impresso de leveza, de que aquilo tudo durou no mais do que 3 ou 4minutos. Me interessa esse tipo de soluo em que a msica como sefosse tempo. A forma musical para mim isso e no um aparato tericoque vai me garantir xito. Acho ingnuo demais.

    Pensar a forma musical pensar como fazer com que o tempo passesem ter passado ou no passe passando.

    Pensando a partir de Stravinsky, de todo esse novo tempo que nasceuna msica moderna nas dcadas de 1910 e 1920, tempo de peas rpidas,curtas, que acabo criando tambm trabalhos geralmente curtos ouencadeados por pequenos momentos. Uma pea longa feita de diversasmicropeas, mas micropeas que no se fecham. Da uma coisa continuarna outra e parecer que uma pea s. Me preocupo muito com o tempo.No roubar o tempo dos outros e tambm querer que aquela pessoa queveio ao concerto fique ali sentada e capturada por um tempo que no finalela no vai saber mais quanto foi.

    :: AFETOS

    Eu devia ter uns dezesseis anos quando ouvi pela primeira vezalguma msica do Willy Corra de Oliveira. Acho que era Willy mesmo,no tenho certeza. Foi num festival Msica Nova talvez, em 1976. O queme impressionou foi o uso de um fragmento de msica tonal sobrepostoa uma textura serial (no sei se pontilhista ou textural). O fato que oafeto da msica tonal (no caso, creio que era Mozart) ampliou-se comaquele distanciamento do fundo sobre o qual estava colado. Isso meimpressionou de tal maneira que na primeira pea que escrevi em 1977, sem me lembrar diretamente do fato, usei uma citao de Mozart. Depois,todos diziam que parecia Willy, e eu no conseguia associar uma coisa aoutra. Hoje, associo, e, claro, associo tambm a Berio, a Zimmermann45,

    a uma p de gente, mas o que me marcou foi a questo de poder trabalharcom afetos em uma msica no tonal.

    45 Bernd Alois Zimmermann (1918-1970), compositor alemo. Partipante ativo da vangarda deDarmstadt, sua obra O Soldado conhecida por sobrepor trechos diversos de msicas do passado, criandouma nova idia de tempo na msica.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    18/30

    26

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Anos depois, em 1985, fiquei impressionado com um texto docompositor B. Ferneyhough e uma entrevista com York Hller46. A msicadeles trazia, ao menos nos textos que escreviam, de novo a questo doafeto. No caso de Ferneyhough, era o afeto do nervoso, do aflito, doangustiado, trazido pelo modo com que pedia para que os instrumentistasse voltassem sua msica, virtuosismo que deixava o instrumentistasempre sob certa tenso.

    Minhas msicas, desde 1978, sempre traziam duas coisas: tenso oulontano, ora um ora outro. Dois afetos bastante importantes para o queeu escrevia: de um lado, aquilo que Ferneyhough chamou de tatilidade dotempo (como se o tempo fosse palpvel e perceptvel pelo tato); de outro,o som do deserto, os longos pedais e o som ao longe (com referncias asmais diversas: de Jimi Hendrix ao cinema de Werner Herzog47). Essa minhaamarra com o passado, com aquilo que me atrai no passado, a capacidadede uma certa msica mover as paixes da alma sem o dirigismo pretendidopor alguns estudiosos semiticos (geralmente primrios e tacanhos).

    Hoje, diria que tenho um pacote maior de elementos afetivos: osgritos, os sussurros, as cavernas (sons ressonantes de tam-tam, grandesacordes), os sinos, os cortes abruptos, a figurao rtmica, os cantos de

    pssaros e o movimento meldico descendente somando-se aos velhostenso e lontano. Diria tambm que esses afetos esto diretamente ligados mobilidade dos objetos sonoros que escolho. Ou seja, cada objeto temuma espcie de ndice de atividade. Uns mais texturizados, mais tteis,outros mais lisos. Uns direcionais, outros mais estticos, mas todos comum certo potencial de movimento. Da que s vezes o resultado so msicasmuito agitadas. O interessante disso para compor que vira e mexe preciso interromper a agitao; alm do mais, a msica no fica parada,est sempre em movimento. A questo da mobilidade tem a ver com otempo e tambm com a concretude do material que uso para compor,cruzando um pouco os itens que escrevi acima.

    46 York Hller (1944), compositor alemo. Explora a fuso dos sons vivos e eletrnicos, sua msicacombina tcnicas modernistas com referncias a Romanticismo, foi convidado por Boulez para compor noIRCAM e por Stockhausen para WDR em Colnia, onde diretor do estdio eletrnico.47 Werner Herzog (1942), escritor e cineasta alemo. um dos maiores representantes do novocinema alemo, movimento que surgiu nos anos 70. Embora seja mais conhecido por seus filmes defico, ele tido como um excelente documentarista e, ao longo de sua carreira, dividiu-se entre os doisgneros.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    19/30

    Msica Contempornea ::

    27

    :: PERCURSO PESSOALNesses depoimentos, sempre se fala um pouco do percurso. O meu

    comum a muitos da minha gerao. Comecei a estudar msica com oitoanos, num curso de piano no interior de So Paulo, em So Jos dosCampos. Desse percurso todo, pouca coisa importante para a msica quevenho escrevendo.

    Citaria dois momentos: primeiro, minha passagem pelo Partido dosTrabalhadores na sua fundao, em 1980, poca em que, para um grupo

    de colegas, no adiantava mais ficar atuando intelectualmente; era horade arregaar as mangas e partir para um engajamento mais concreto. Essanecessidade do mais concreto sempre foi muito importante para mim.Na poca, atuei bastante como professor sempre trabalhando com crianasou diretamente em questes de ordem poltica em pequenas comunidadesem Taboo da Serra, Prados, Pouso Alegre, Diadema, Jardim Miriam, FavelaNicodemus e Favela JK, chegando mesmo a parar de compor e apenastrabalhar como instrumentista.

    Foi a poca em que me livrei de meus dolos compositores. Aquelesnomes todos no ajudavam muito a entender o mundo em que eu vivia.Constru outros dolos; talvez o povo e a simplicidade do povo brasileiro, a

    impresso toda de uma simplicidade e de um excesso de cultura derrotadospelos padres neoliberais tenham ficado marcados e estejam na msicaque escrevo hoje e no que conduz meu pensamento.

    Fez um pouco parte dessa ao concreta o fato de ter casado e tertido trs filhas. Mas as filhas trouxeram uma outra linha de fora porrazes diversas e adversas; me afastei do mundo, da poltica, da vidacoletiva, de tudo, porque estava quase sem emprego. Foi ento que volteipara a universidade, onde fui novamente capturado pela composio. Nocomo professor, mas como aluno-bolsista. A universidade talvez um dosnicos lugares em que possvel, para quem no tem grandes heranasfinanceiras, ser compositor dessa msica que renuncia ao mercado, quequestiona o entretenimento capitalista, que procura um canto um poucomais escondido do mundo. claro que existem os chatos relatrios eformulrios, mas coisa rpida de se aprender. preencher uma coisaaqui outra ali, acertar no mais das vezes, errar de vez em quando. Nose precisa ser professor logo de cara, o caminho pode ser trilhado pelasmodalidades de bolsas de estudos. Tive bolsa de todo tipo: iniciao

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    20/30

    28

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    cientfica, aperfeioamento (modalidade que nem existe mais), mestrado,doutorado, pesquisador em centro emergente, e agora sou bolsista doCNPq, afora uma srie de projetos que sempre tiveram por objetivo abrirespao para que eu continuasse a compor. Fui tambm bolsista da Vitae,o que possibilitou acompanhar o crescimento das filhas e ainda estudar eescrever msica.

    Hoje, passados dez anos dentro da universidade, as coisas estodiferentes, e tenho de assumir compromissos que me afastam um pouco dacomposio. Na universidade, divido meu tempo em dar aulas, coordenare orientar projetos. Um colega outro dia observou que tudo isso comoa parede dura, necessria para que o terreno mvel e instvel da msicase faa presente como uma fora que nos atire para fora do excesso decivilizao.

    Revendo o que disse at agora, parece que a vontade nunca minha,que sou capturado e que defendo isso, arrastado pelas filhas, capturado pormelodias, atrado pelas necessidades polticas do pas. No bem assim,o sentido dessa captura no passivo. O que sinto que minha vontadeno est totalmente sob meu controle e que tenho de criar estratgiaspara enfrent-la. claro que a viso que tenho de meu trabalho e de

    mim mesmo de certa forma est ligada a meu envolvimento crescentecom o campo da filosofia, sobretudo a filosofia de Spinosa48, Nietzsche49,Bergson50, Deleuze, Foucault51, os escritos de Fernando Pessoa e Cortazar52.Essas leituras me trouxeram uma viso um pouco outra do que vem a sercompor, do que vem a ser ter ou no ter tcnica de composio, e muitasvezes evito debates justamente por notar que eu no conseguiria me fazerentender em pouco tempo. Ento, escrevo.

    48 Benedictus Spinosa (1632-1677), filsofo holands, tambm conhecido por Bento de Espinosa,foi um dos grandes racionalistas da filosofia moderna. Considerado o fundador do criticismo bblicomoderno.49 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filsofo alemo. Crtico da cultura ocidental e suas

    religies e, conseqentemente, da moral judaico-crist.50 Henri Bergson (1859-1941), filsofo e escritor francs. Influente na primeira metade do sculoXX. Em 1927 obteve o Prmio Nobel de Literatura51 Michel Foucault (1926-1984), filsofo francs. Suas obras situam-se dentro de uma filosofiado conhecimento. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepes modernasdestes termos.52 Julio Florencio Cortzar (1914-1984), escritor argentino nascido em Bruxelas. Um dos maioresdo sculo XX, considerado um mestre do conto e criador de importantes novelas que inauguraram umanova forma de fazer literatura na Amrica Latina, rompendo os moldes clssicos.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    21/30

    Msica Contempornea ::

    29

    Escrevi dois livros. O primeiro, algumas pessoas leram, mas nem todasnotaram o que eu queria dizer ali. Do segundo, no espero mais do queo mesmo resultado. Algumas pessoas vo l-lo e entrar no mundo quepropus, outras vo ler e tomar aquilo por norma moral. Da, vo me xingarou elogiar ou citar incorretamente.

    Para que no parea um lamento este depoimento, diria que souatravessado por uma grande preguia e que nela escondo um fiozinho quediz: se voc se mexesse mais no marketing pessoal, talvez conseguisse quesua msica fosse mais tocada, que seus trabalhos fossem mais lidos, ouseja, voc receberia mais estmulo para continuar trabalhando. A preguiatem o poder de iludir, e por isso permaneo com ela, embora trabalhandomais do que o dia permite para me livrar dessas pequenas idias queficam me perseguindo e que ora se chamam msicas, ora textos, livrosou depoimentos como este. Por fim, sempre faltam algumas palavras. Sealgum chafurdar nos meus rascunhos, vai encontrar uma anotao ououtra, coisas de cunho pessoal, coisas mais tcnicas, anotaes casuais.So anotaes importantes para uma anlise da partitura, mas elas nodizem nada de como se deve ouvir uma msica porque acredito que amsica deva se bastar no palco, no CD ou ao instrumento.

    No necessrio um professor para se ouvir o que componho. preciso,sim, pacincia, sutileza de escuta, e isso s se faz com repertrio, com ohbito de detalhar as coisas, de se dar conta das nuances do mundo. Aomesmo tempo em que escrevo msica, posso estar desenhando, e essascoisas se relacionam estranhamente.

    Minha msica cheia de referncias, mas essas referncias so apenascuriosidades. Conhecer as referncias no ajuda em nada a ouvir a msica,simplesmente porque no escrevo msica para dar aulas, mas para serouvida. No tem nada para ser compreendido, aprendido, analisadoauditivamente. Essa msica, tento eu que seja um fluxo, uma onda deum certo afeto: triste, alegre, tenso, rpido, movido, denso, escuro,

    claro, amargo, doce, doloso, frio. Acontece que pessoas unidimensionaisno conseguiro viver tais afetos. Quem vive um afeto s, quem vive aausncia de detalhes no poder ouvir uma coisa que pede tanto, mas seconseguir, acredito eu, ser capturada e querer ouvir de novo.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    22/30

    30

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    :: ANLISE QUE FAA ESCUTANo Livro das Sonoridades proponho a idia de uma anlise que faa

    escuta. Tem um monte de idias nesse livro. Na verdade, eu at escrevi asidias em aforismo, e elas nem se ligam tanto assim, essa coisa da anliseque faa escuta. Vamos pensar a questo da anlise: uma espcie deenergia que est no som e que vai ser transformada em outra espciede energia. Existem diversas formas de anlise. Quando escrevi o meumestrado, imaginei a anlise como o que chamei de contraponto analtico:o cara est danando uma msica, uma espcie de anlise, ele estfazendo uma anlise com o corpo dele, ele est analisando a melodia. claro, ele est pegando as coisas como ritmo. Como que eu posso meapropriar daquilo que estou ouvindo? Quando voc vai analisar no papel,a anlise escrita tambm uma forma de apropriao. Do mesmo jeitoque a gente tem o corpo que com o que a gente se mexe, a gente temas tcnicas de anlise que com o que a gente se mexe tambm. Cadatcnica de anlise tem sua poca. Uma msica da Bach, por exemplo,analisada com instrumento atual, pode dizer que Bach medocre. J parauma msica atual analisada com instrumento analtico da poca de Bach,

    quando no existia ainda anlise, no existia sequer o conceito formamusical, tambm pode se dizer que esse conceito no adequado.O primeiro passo aquele da estratgia da ferramenta correta para

    a coisa correta. O segundo passo a ferramenta incorreta para aquilo aque a ferramenta no se adapta porque voc tem certeza de que aquelaferramenta vai lhe mostrar um negcio que as outras ferramentas no vo.S que essa anlise sempre faz um outro tipo de escuta. O algoritmo umoutro tipo de escuta, no tem som em escuta. Escuta no necessariamenteum negcio que vem pelo ouvido, um negcio que fala de msica.

    Uma coisa importante nessa viso de anlise o seguinte: vocs senta para analisar aquilo que realmente lhe interessa muito e que

    chamou sua ateno: deixe-me usar todos os instrumentos analticos queeu tenho, desde instrumentos de msica tonal que a gente aprendeu,desde instrumento de contraponto at a questo das texturas, etc.

    criticvel, por exemplo, na posio de professor universitrio: umcolega meu, que trabalha na mesma universidade, recebe o mesmo salrio,e a anlise dele feita com bisturi em cima de um ser humano vivo. Se

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    23/30

    Msica Contempornea ::

    31

    ele errar, aquele ser morre. Uma famlia inteira chora, tem funeral. Ora,no mnimo eu tenho de ter a mesma responsabilidade que ele. Assimcomo ele conhece a ltima ferramenta para abrir o paciente e tirar lde dentro um tumor ou consertar algo qualquer, ele est desenvolvendoferramentas. Como compositor e como analista, eu tenho que conhecer asltimas ferramentas para trabalhar. uma questo de responsabilidade.Eu at arrisco dizer que uma grande maioria de professores da rea deartes no Brasil ou at da rea de humanas s vezes irresponsvel. Noconhece a ltima ferramenta ou no conhece as ferramentas ou se ope aalguma ferramenta, o que uma besteira.

    Eu me lembro de um caso engraado em Londrina. Uma senhora teveuma ruptura no corao no meio de uma operao. Qual a sada? O mdicoestava pesquisando um sistema de colar tecido com um tipo de SuperBonder. Ele catou a sua Super Bonder, usou o mtodo que estava estudandocom rato e colou o corao. Ou ele fazia ou a mulher morria. Se ele notivesse essa pesquisa de ponta, ele tentaria costurar e no daria certo.Ele iria dar bito: no deu, estourou o corao. Ele colou, a mulherest viva e superfeliz. Se esse professor tem que ter responsabilidade,eu, como professor universitrio de composio, tenho de ter tambm.

    Mesmo que eu opte por fazer maracatu, eu tenho que saber analisar BrianFerneyhough, eu tenho que saber analisar Stockhausen. No d. Eu possofazer o que eu quero, mas como professor universitrio, eu tenho que teruma certa responsabilidade. No caso do fazer escuta, claro, quantomais tcnica voc tiver, mais sutileza voc vai ouvir. O tempo todo eufalei aqui da sutileza, acho que tem um pouco a ver com isso.

    :: CAPTAR FORASO que me atrai muito em msica o movimento, a mobilidade. Cada

    objeto que eu vou usar em msica tem uma certa mobilidade. Ou ele vaipara cima ou ele vai para baixo. Ou ele tem algo que vai aumentando

    de nmero ou algo que vai diminuindo de nmero, isso que o FlorivaldoMenezes53 trata no seu artigo sobre macro e microdirecionalidades emWebern54, aquela coisa muito do Willy Corra de Oliveira, a direcionalidade.

    53 Flo Menezes (1962), compositor paulista. Professor de composio na Universidade EstadualPaulista, diretor do Studio PANaroma de Msica Eletroacstica da Unesp e professor visitante da Universidadede Colnia, Alemanha. um dos principais representantes da msica eletroacstica brasileira.54 Anton Webern (1883-1945), compositor austraco pertencente chamada Segunda Escola de

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    24/30

    32

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    O Willy falava o dia inteiro, a gente ficava mareado de direcionalidade,acabava ficando. Tem sempre essa coisa de o objeto se movimentar, ir deum ponto a outro, ele vai de um lugar a outro. isso que eu vou de certamaneira fazer. uma idia bem antiga, e eu vou mant-la.

    Existe tambm a questo: A msica diz alguma coisa ou representaalgum treco? Sou totalmente avesso a isso; no mximo, serve para algumescrever um paper e publicar. Voc ouve, mas no rola aquilo. Rolamsempre uns afetos muito bsicos. O Deleuze tem uma proposta: A arte nosignifica nada!? No representa nada? Ela no quer dizer alguma coisa?Ela muito mais interessante do que isso, ela quer fazer aparecer umacoisa que no aparecia antes. Que coisa essa? Por exemplo, o Messiaenquer fazer aparecer o tempo. Ningum v o tempo, a gente no pega otempo com a mo. Tem at um filsofo, professor Luis Orlandi55, comseus 60 anos, que diz: Tempo! Quem o tempo, esse senhor que no meconhece? A gente dizia: - Oh, Orlandi, o senhor est jovial!- Como jovial?Que histria essa? Quem o tempo, esse senhor que no me conhece, eleno sabe nada de mim. Eu sou extremamente jovem, ele que no sabecontar. Eu, mesmo eu contando, ainda no se passou nada, ele respondia.

    O tempo esse negcio que no tem como pegar, e o Messiaen vai

    tentar fazer o tempo aparecer na msica. Quer dizer, uma fora que o tempo, essa fora que faz a gente envelhecer, estragar, crescer. Elevai fazer aparecer num lugar que no tem nada a ver com isso, que amsica. O escultor vai l, esculpe o pedregulho, e a gente olha e v ocorpo de Cristo flutuando no colo de Nossa Senhora, com o vestido delaali, parecendo que vai balanar com o vento. E aquilo de pedra. O carafez aparecer a leveza, o vento, tudo num pedao de pedra. Ento, asforas so essas: a fora da gravidade, do tempo, fora de crescimento,fora de germinao.

    O Almeida Prado56 faz aparecer num piano as constelaes que estoViena, liderada por Arnold Schoenberg. Aderindo ao sistema dodecafnica desenvolvida por Schoenberg

    trouxe msica do sculo XX aquela que seria sua textura caraterstica: o pontilhismo.55 Luis Orlandi, filsofo, pesquisador, professor da UNICAMP e da PUC-SP cuja obra marcada pelafilosofia da diferena de Gilles Deleuze, da qual um dos maiores especialistas e tradutores em linguaportuguesa.56 Jos Antonio de Almeida Prado (1943), pianista, professor e compositor paulista. Possui umcatlogo com aproximadamente 250 obras. Seu estilo mltiplo, vindo do nacionalismo de Villa-Lobos eGuarnieri, passando por fase ps-serial atonal, o transtonalismo de Cartas Celestes, o misticismo da Missade So Nicolau e ao ps-moderno dos Poesildios e Preldios para piano. Vem seguindo a linha tonallivre.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    25/30

    Msica Contempornea ::

    33

    desenhadas na carta celeste. Ele no astrnomo. Ele vai fazer aquelenegcio virar uma outra coisa. Villa-Lobos vai fazer aparecer um trem queno um trem qualquer, um trem do caipira numa msica. Tem umaespcie de trem esquisito ali em baixo, parece mais uma batucada compiano, uma longa melodia que desce o tempo todo. uma melodia queele colocou ali por acaso porque sem a melodia a msica j ficaria emp sozinha. Realar um trem ou fazer Debussy, fazer aparecer um mar ouVivaldi. At no livro eu dou esse exemplo, a fora da gravidade, fora dovento, fora de crescimento, fora de germinao. Esse tipo de fora.

    :: PRECONCEITO CONTRA MSICA CONTEMPORNEANa universidade onde trabalho no existe preconceito, exatamente o

    oposto. Uma aluna de composio no quis entregar o trabalho e no ltimodia ela chorava porque o trabalho dela era de cunho mais tradicional, ealguns alunos vigiavam o que ela estava fazendo. Digo como formador deprofissionais, como formador de pessoas. Existe uma histria de defesade territrios, de defesa de lugares. a primeira coisa, a necessidade dedefender o lugar em que voc est, do mesmo jeito que passarinho mudade pena na hora de demarcar territrio e acasalar, gato solta plo, cheiro,

    etc. Professor tambm solta farpa, e essa defesa acontece por muitasrazes. s vezes, o prprio professor tem um problema de formao, eisso normal. Ele vai se defender a partir de qualquer pequena ameaa.A outra coisa que ele no tinha outro instrumento para dizer uma coisabvia que era o seguinte: Olha, isso que voc est fazendo requer um outromecanismo de leitura e anlise. E eu no tenho esse mecanismo. Onde que aparecem os preconceitos? O que preconceito? O preconceito algo que voc coloca, a priori, antes do que est chegando e, contrao que, mais ou menos, voc no quer reagir. Voc defende o seu lugar:Aqui ningum vai entrar porque se entrar pode ser que eu me desmantele.Digo isso defendendo um pouco o lugar dos professores. Agora, falando

    de uma maneira um pouco mais geral, eu diria que a gente tem histriasde preconceitos, de territrios no Brasil: Os nacionalistas versus osvanguardistas ou experimentalistas. Na dcada de 40, Koellreutter57versus Camargo Guarnieri. Os nacionalistas versus os romnticos, clssicos57 Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), compositor alemo radicado em So Paulo. Mudou-separa o Brasil em 1937 e tornou-se um dos nomes mais influentes na vida musical no Pas. Foi adepto damsica dodecafnica. Fundou em 1939 o grupo Msica Viva.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    26/30

    34

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    e conservadores. O prprio Camargo Guarnieri e Villa-Lobos contra osprofessores deles. Os romnticos reagindo contra a msica que existia noBrasil quando alguns deles chegaram.

    A gente tem histrias interessantes no Brasil. Um compositor como opadre Jos Maurcio Nunes Garcia58, o compositor mais atuante na corte,de repente v chegar um sujeito que tinha uma msica enfadonha, oSigismond Neukomm, o msico da corte. Logo de cara, j tem o primeiroembate: o cara que vem da Europa com a msica recente e o compositorque est aqui com a msica que ele vinha trazendo desde o final do sculoXVIII, que ele aprendeu com seus professores. Outro embate: ChiquinhaGonzaga59, Calado60 e companhia limitada, tambm no Rio de Janeiro,tentando defender uma espcie de msica que a gente pode chamar hojeem dia de origem da msica instrumental brasileira, msica instrumentalde cunho popular.

    O Paulo Castagna61 fez uma pesquisa bem interessante sobre asproibies de msica, de prtica musical popular na passagem do sculoXVIII para o XIX. H textos absurdos: proibido juntamento de mais dequatro pessoas para cantar nas ruas porque incomodam... proibido omaxixe. Proibido mesmo, a polcia entrava, batia e prendia todo mundo

    porque estavam danando maxixe. Do mesmo jeito que teve isso, as coisasvo mudando. Depende de quem est no poder e de quem no est no podernum determinado momento. A msica experimental que passou a ser amsica do mal: proibido msica experimental. A msica instrumentalque tinha nascido l com a Chiquinha Gonzaga que era msica do bem.Passa depois a ter todo o apoio de Getlio Vargas. Num dado momento, amsica experimental passa a ser tambm policialesca: No pode popular,no pode isso aqui. Voc est fazendo que nem Beethoven! Isso nopode. So pequenos mecanismos, digamos, extremamente mesquinhos decontrole.58 Padre Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830), compositor carioca. Em 1808 com a chegada

    da famlia real, O Prncipe-Regente D. Joo VI, grande admirador de msica, o nomeia mestre da CapelaReal considerado um dos maiores compositores das Amricas de seu tempo.59 Chiquinha Gonzaga (1847-1935), compositora carioca. Pioneira maestrina brasileira, na artedo Choro; autora de um dos maiores clssicos do carnaval: a marcha Abre Alas. Comps msicas para 77peas teatrais, responsvel por cerca de 2.000 composies60 Joaquim Antnio da Silva Calado (1848-1880), msico e compositor carioca. Os historiadores oconsideram como um dos criadores do choro ou como o pai dos chores.61 Paulo Castagna, musiclogo, pesquisador da msica brasileira e professor do Instituto de Artesda Universidade Estadual Paulista.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    27/30

    Msica Contempornea ::

    35

    O professor tem de estar atualizado. A ltima ferramenta que vai dara ele a msica mais experimental. bvio. Mas ele tem que estar tambmantenado em outras coisas. Uma vez, eu e o Rodolfo Caesar demos umseminrio de msica eletroacstica para DJs no circo do Realengo. Cadaum com o seu laptop, um monte de crianas de escolas da periferia doRio de Janeiro querendo danar. A gente tocava Pierre Schaffer62, e elasficavam danando street dance no cho. Danavam, e a gente tocava PierreSchaffer, improvisando, colocando uns beats de bateria que no tinhaem Schaffer, fazendo o papel de Xuxa contemporneo. So tentativas.A posio de preconceito extremamente mesquinha, esconde por trsalgumas faltas de conhecimento, falta de abertura, medo. Num pas dedesemprego, medo a primeira coisa.

    Para o professor de composio muito complicado. Como que vocavalia o trabalho composicional de algum? No existe avaliao de umtrabalho composicional pronto, finalizado. Voc s pode acompanhar umtrabalho que est em processo. A primeira coisa que voc deve entender:qual o problema que enche a pacincia do aluno que est escrevendomsica. Este aluno tem um problema que o persegue. Ele est escrevendo,resolvendo o problema, e eu tenho que ter aptido suficiente para bater o

    olho e dizer que ele est com problema, suponhamos, de tempo: se ele largaristo aqui, ficar melhor; isto aqui est sem movimento, etc. O professor podefazer se estiver acompanhando um processo. Do contrrio, no tem como.

    Eu entendo bem a questo do preconceito no Brasil, sobretudo nopopular erudito. Exagerando, o Hermeto Pascoal63 e o Arrigo Barnab64tm tanto pblico quanto eu. A nica diferena que a publicidade paraa msica deles mais forte e vai mais gente. Para o lanamento do livro,eu tinha 90 pessoas e s mandei e-mails. Se tivesse feito publicidade,talvez tivesse mais. O concerto que a gente fez no SESI tinha por voltade 100 pessoas, tambm s por e-mails. Quem tem pblico no a msicapopular nem a msica erudita, o entretenimento, aquilo que vai divertir.

    Eu acho genial isso, eu no sou contra ir a um show, tomar cerveja,conversar com os amigos. A gente precisa disso de vez em quando para62 Pierre Schaeffer (1910-1995), compositor, radialista e msico francs, criou a msica concretaatravs de experimentos com sons pr-gravados e transformados em estdio.63 Hermeto Pascoal (1936), multiinstrumentista e compositor alagoano. Considerado por boaparte dos msicos como um dos maiores gnios em atividade na msica mundial.64 Arrigo Barnab (1951), instrumentista e compositor paranaense. Com trabalho singular namsica brasileira, tem composies de caractersticas que vo do dodecafonismo a atonalidade.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    28/30

    36

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    poder voltar a trabalhar no dia seguinte.O entretenimento tem essa caracterstica. E a gente nem pode julgar

    se pela msica. No sei se pelas msicas que as pessoas vo a umshow. Acho que os rapazes vo pelas meninas, e as meninas vo pelosrapazes. A nica diferena que a msica que os caras esto tocando alina frente nos faz pular. E nos fazendo pular, chegamos mais perto uns dosoutros.

    J a msica erudita, no. Eu vou ficar sentado, vou ficar prestandoateno. Ou mesmo o jazz, msica instrumental popular, que a gentechama de popular. A msica instrumental popular brasileira, por exemplo, muito mais, ela o projeto nacionalista do final do sculo XIX. Vemvindo, tomado pelo Mrio de Andrade, depois tem uma vertente maisfascista com Getlio Vargas, uma vertente comunista com a Internacionalde Praga. Hermeto, Egberto Gismonti65 e Grupo Pau Brasil esto resolvendoo problema daquilo que seria a msica instrumental brasileira com basena melodia nacional e nos ritmos brasileiros, o projeto de identidadenacional do Mrio de Andrade. A entra outro problema da msicapopular: isso nacional, isso no nacional? Essas divises as pessoasprecisam rever rapidamente. A msica instrumental brasileira um projeto

    nacionalista, uma linha que vem de Alberto Nepomuceno66

    , Villa-Lobos,Lorenzo Fernandez67, Camargo Guarnieri, Guerra-Peixe, Cludio Santoro68,a j com um projeto comunista, no s um projeto nacional, mas tinhaum comunismo por trs. As pessoas que vo ver concertos de msicacontempornea no Festival Msica Nova so as mesmas pessoas que vover show de jazz ou que vo ver msica instrumental.

    Tem uma coisa que est fora disso, e a gente no devia mais confundir,que a cano. A cano popular brasileira uma outra coisa, com bons65 Egberto Gismonti (1947), multiinstrumentista, arranjador e compositor brasileiro. Funde amsica erudita e a msica popular, com influncias do folclore nordestino e do centro-oeste brasileiro, amsica indgena e a msica indiana.66 Alberto Nepomuceno (1864-1920), compositor cearence. Ocupou lugar de destaque tanto por

    uma produo romntica considerada de tima qualidade quanto por sua criao de cunho nacionalista.Pioneiro ao compor e cantar em portugus, criou o lema no tem ptria um povo que no canta em sualngua.67 Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948), compositor carioca. Utilizou temas amerndios autnticosretirados dos fonogramas gravados por Roquete Pinto no Mato Grosso, obteve tima repercusso nos meiosmusicais. Foi bom poeta e escreveu textos para muitas de suas obras para voz solista ou para coro.68 Cludio Santoro (1919-1989), compositor amazonense. Iniciou-se como compositor em 1938 edois anos mais tarde escreveu sua primeira sinfonia. Foi um dos fundadores do Grupo Msica Viva criadopor Koellreutter com quem teve aulas de Composio e Anlise Musical.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    29/30

    Msica Contempornea ::

    37

    trabalhos do Luiz Tatit69. Um dos aspectos muito importantes na canobrasileira o texto. Tem o poema e o poeta. Chico Buarque poeta,Caetano poeta, Gilberto Gil poeta. Por mais estranho que parea,Djavan tambm poeta. So poetas e esto fazendo cano. FernandoBrant poeta trabalhando junto com Milton Nascimento, e o que elesesto fazendo cano, uma msica cuja forma de apropriao no sefaz danando nem de olhos fechados viajando num lugar que no existe.A forma de apropriao da cano cantar junto. Para cantar junto eutenho que ter os meus instrumentos.

    Depois de um vale profundo pelo qual o pas passou, a gente podedizer que algumas geraes foram sacrificadas. Digamos que algumasgeraes foram perdidas. Eu tenho certeza de que os alunos desta geraotm uma formao muito mais detalhada do que a minha. Eu comparo ascoisas que escrevo sobre msica e as coisas, s vezes, do meu aluno PauloVon Zuben70. Ao ler o texto dele, eu pergunto de onde o cara tirou aquilo.Por exemplo, eu exijo que meus alunos escrevam primeiros movimentos desonatas no curso de harmonia. Voc tem que resolver aquela matemticaali. O curso se chama harmonia do classicismo. Harmonia do Classicismo sonata, e voc tem que resolver aquilo. o trabalho, eles escrevem e me

    apresentam. A sorte que nenhum deles pediu para eu mostrar a sonataque fiz quando estava na faculdade porque era au. Todo mundo eraaprovado. No tinha aula de harmonia, o professor de harmonia falava deidias, o outro falava de idias, o outro tambm falava de idias. A genteno aprendia nada. Tecnicamente, foi uma gerao quase perdida.

    Da gerao imediatamente anterior minha, so raras as pessoasque se salvaram. As que ficaram no Brasil no conseguiram se formar. Sse formou quem foi estudar na Europa ou nos Estados Unidos. terrvel.Alguns deles so atualmente professores universitrios. Um aluno temaula comigo e tem aula com outro sujeito e tem aula com outro sujeito etem aula com outro. Se eu for capenga no que eu estou ensinando, tem outro professor que no , que sabe exatamente o que est ensinando.69 Luiz Tatit (1951), cantor e compositor paulistano. tambm professor do Departamento deLingstica da Facudade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP. Iniciou-se musicalmente com oGrupo Rumo em 1974 e obteve destaque na poca da Vanguarda Paulista com um novo modo de cantar, ochamado canto falado.70 Paulo Von Zuben (1969), professor e compositor. Atuou como compositor no PANaroma Studio,orientado pelo Prof. Dr. Flo Menezes. Teve obras executadas em festivais no Brasil e no exterior, como emColnia, Alemanha e em Havana, Cuba.

  • 8/7/2019 Entrevista_Silvio_Ferraz

    30/30

    38

    :: Depoimentos - IDART 30 Anos

    Ento, quando o aluno entra na minha sala, j aprendeu na outra sala. Sena minha aula eu comeo a dizer: Vamos l para o deixa disso; msica oque vocs fizerem; faam o que vocs quiserem que legal; vamos discutiraqui a questo das abelhas, o aluno vai virar e dizer: Professor, esta aulano de harmonia? No estava escrito que o senhor tinha que ensinarharmonia do barroco? Eu quero saber escrever, eu quero escrever comoBach. Ensina agora. Ento, voc tem que ter essa tcnica.

    Outra questo que ns vivemos um perodo gigantesco de retraocultural nos anos 70 e 80. Claro, foi um momento em que cresceu muitacoisa, msica popular, etc, mas no campo da msica a gente no podiaestudar fora, a gente no tinha como comprar partitura, no tinha isso deentrar na Internet, pagar oito dlares e receber em casa as partituras damsica que voc queria. Era preciso ir para o exterior e trazer na mala. Umcolega meu ia ao exterior e trazia discos escondidos no meio das roupasporque no podiam entrar no Brasil. Hoje em dia, voc baixa as msicasno eMule, no LimeWire, voc pega na Internet em MP3. Tem um site daUFRJ, sussurro.musica.ufrj, no qual diversos compositores, e eu estou lno meio, disponibilizaram partituras e gravaes MP3 das msicas. Esttudo l. s entrar e baixar.

    Paro por aqui com a esperana de que algumas coisas que eu tenhadito possam ressoar em outras histrias particulares. Afinal de contas,precisamos dessas ressonncias para ter certeza de no estarmos loucos efalando sozinhos de um mundo totalmente inventado.