Epidemia Da Guerra - Eric Hobsbawn

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EPIDEMIA DA GUERRA ERIC HOBSBAWM Na falta de uma autoridade global efetiva, conflitos armados no final do século 20 embaralharam a distinção entre combatentes e não- combatentes e fizeram dos civis as principais vítimas O século 20 foi o mais assassino na história registrada. O número total de mortes causadas por ou associadas a suas guerras foi estimado em 187 milhões, o equivalente a mais de 10% da população mundial em 1913. Entendido como tendo se iniciado em 1914, foi um século de guerra quase ininterrupta, com poucos e breves períodos sem conflito armado organizado em algum lugar. Foi dominado por guerras mundiais: quer dizer, por guerras entre Estados territoriais ou alianças de Estados. O período de 1914 a 1945 pode ser visto como uma única "guerra de 30 anos" interrompida por uma pausa nos anos 20 - entre a retirada final dos japoneses do Extremo Oriente soviético, em 1922, e o ataque à Manchúria, em 1931. A isso se seguiram, quase imediatamente, cerca de 40 anos de Guerra Fria, que se adequaram à definição de Hobbes da guerra consistindo "não apenas de batalhas ou do ato de lutar mas de um período de

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EPIDEMIA DA GUERRA

EPIDEMIA DA GUERRA

ERIC HOBSBAWM

Na falta de uma autoridade global efetiva, conflitos armados no final do sculo 20 embaralharam a distino entre combatentes e no-combatentes e fizeram dos civis as principais vtimas

O sculo 20 foi o mais assassino na histria registrada. O nmero total de mortes causadas por ou associadas a suas guerras foi estimado em 187 milhes, o equivalente a mais de 10% da populao mundial em 1913. Entendido como tendo se iniciado em 1914, foi um sculo de guerra quase ininterrupta, com poucos e breves perodos sem conflito armado organizado em algum lugar. Foi dominado por guerras mundiais: quer dizer, por guerras entre Estados territoriais ou alianas de Estados.

O perodo de 1914 a 1945 pode ser visto como uma nica "guerra de 30 anos" interrompida por uma pausa nos anos 20 - entre a retirada final dos japoneses do Extremo Oriente sovitico, em 1922, e o ataque Manchria, em 1931. A isso se seguiram, quase imediatamente, cerca de 40 anos de Guerra Fria, que se adequaram definio de Hobbes da guerra consistindo "no apenas de batalhas ou do ato de lutar mas de um perodo de tempo no qual a vontade de travar batalhas suficientemente conhecida".

um tema a ser debatido o quanto as aes em que as Foras Armadas norte-americanas tm estado envolvidas desde o fim da Guerra Fria em vrias partes do globo constituem uma continuao da era de guerra mundial. No pode haver dvida, no entanto, de que os anos 90 foram recheados de conflitos militares formais e informais na Europa, na frica e na sia Ocidental e na Central. O mundo como um todo no tem estado em paz desde 1914 e no est em paz agora.

Apesar disso, o sculo no pode ser tratado como um bloco nico, seja cronolgica, seja geograficamente. Cronologicamente, ele se distribui em trs perodos: a era de guerras mundiais centrada na Alemanha (1914 a 1945), a era de confronto entre as duas superpotncias (1945 a 1989) e a era desde o fim do sistema de poder internacional clssico. Eu chamarei esses perodos de 1, 2 e 3. Geograficamente, o impacto das operaes militares tem sido desigual. Com uma exceo (a Guerra do Chaco, que ops Paraguai e Bolvia entre 1932 e 1935 pela posse de campos petrolferos no sop dos Andes), no houve guerras entre Estados significantes (em oposio a guerras civis) no hemisfrio Ocidental (as Amricas) no ltimo sculo.

Operaes militares inimigas quase no tocaram esses territrios: da o choque com os ataques ao World Trade Center e ao Pentgono em 11 de setembro. Desde 1945 as guerras entre Estados tambm desapareceram da Europa, que tinha sido at ento o principal campo de batalha. Apesar de no perodo 3 a guerra ter retornado ao sudeste da Europa, parece bastante improvvel que ocorra no resto do continente.

Em contrapartida, durante o perodo 2, guerras entre Estados, no necessariamente desconectadas do confronto global, permaneceram endmicas ao Oriente Mdio e ao sul da sia, e guerras maiores diretamente resultantes do confronto global aconteceram no leste e no sudeste da sia (Coria, Indochina).

Ao mesmo tempo, reas como a frica subsaariana, que haviam sido comparativamente no afetadas pela guerra no perodo 1 (com exceo da Etipia, sujeita a uma conquista colonial atrasada por parte da Itlia em 1935-36), vieram a ser palco de conflitos armados no perodo 2 e testemunharam enormes cenas de massacre e sofrimento no perodo 3. Outras duas caractersticas da guerra no sculo 20 se destacam, a primeira menos obviamente do que a segunda. No incio do sculo 21 nos encontramos em um mundo em que operaes armadas no mais esto essencialmente nas mos de governos ou de seus agentes autorizados e no qual os partidos em disputa no tm caractersticas, status ou objetivos comuns, exceto a disposio para usar a violncia. Guerras entre Estados dominaram tanto a imagem da guerra durante os perodos 1 e 2 que guerras civis ou outros conflitos armados dentro dos territrios de Estados ou imprios existentes foram de alguma forma obscurecidos.

Mesmo guerras civis no territrio russo aps a Revoluo de Outubro, em 1917, e aquelas que ocorreram aps o colapso do imprio chins poderiam ser encaixadas na moldura dos conflitos internacionais, na medida em que foram inseparveis deles.

Por outro lado, a Amrica Latina pode no ter visto Exrcitos cruzando fronteiras de Estados no sculo 20, mas foi cenrio de grandes conflitos civis: no Mxico depois de 1911, por exemplo, na Colmbia desde 1948 e em vrios pases da Amrica Central durante o perodo 2. Geralmente no se reconhece que o nmero de guerras internacionais declinou de forma razoavelmente contnua desde meados dos anos 60, quando conflitos internos se tornaram mais comuns do que aqueles disputados entre Estados. O nmero de conflitos dentro de fronteiras nacionais continuou a subir de maneira ngreme at se nivelar nos anos 90. Mais familiar a eroso da distino entre combatentes e no-combatentes. As duas guerras mundiais da primeira metade do sculo envolveram toda a populao dos pases beligerantes; tanto combatentes quanto no-combatentes sofreram.

Ao longo do sculo, entretanto, o nus da guerra passou cada vez mais das Foras Armadas para os civis, que no eram apenas suas vtimas, mas cada vez mais o objeto de operaes militares ou militares-polticas. O contraste entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda dramtico: apenas 5% dos que morreram na Primeira Guerra eram civis; na Segunda Guerra esse nmero subiu para 66%. geralmente suposto que de 80% a 90% daqueles afetados por guerras hoje sejam civis. A proporo aumentou desde o fim da Guerra Fria porque a maioria das operaes militares desde ento tem sido conduzida no por Exrcitos conscritos, mas por grupos bem pequenos de tropas regulares ou irregulares, em muitos casos operando armas de alta tecnologia e protegidos contra a possibilidade de receber baixas. Por mais que seja verdade que o armamento de alta tecnologia tenha tornado possvel em alguns casos restabelecer uma distino entre alvos civis e militares e, portanto, entre combatentes e no-combatentes, no h razo para duvidar de que as principais vtimas da guerra continuaro a ser civis.

E, mais, o sofrimento de civis no proporcional escala ou intensidade das operaes militares. Em termos estritamente militares, a guerra de duas semanas entre a ndia e o Paquisto por causa da independncia de Bangladesh em 1971 foi um caso modesto, mas ela produziu 10 milhes de refugiados. As lutas entre unidades armadas na frica nos anos 90 dificilmente envolveram mais do que alguns milhares, em sua maioria mal armados, de combatentes e, apesar disso, produziram, em seu pice, quase 7 milhes de refugiados -um nmero muito maior do que em qualquer momento da Guerra Fria, quando o continente foi cenrio de guerras protocolares entre as superpotncias. Esse fenmeno no se restringe a reas pobres e remotas.

De certo modo os efeitos da guerra na vida civil so ampliados pela globalizao e pela crescente confiana do mundo em um fluxo constante, ininterrupto, de comunicaes, servios tcnicos, entregas e suprimentos. Mesmo uma interrupo comparativamente breve desse fluxo - por exemplo, os poucos dias de espao areo fechado nos EUA aps 11 de setembro - pode ter efeitos considerveis, talvez duradouros, sobre a economia global. Seria mais fcil escrever sobre o tema da guerra e da paz no sculo 20 se a diferena entre as duas tivesse permanecido to clara quanto teria sido no incio do sculo, nos dias em que as Convenes de Haia de 1899 e 1907 codificavam as regras da guerra.

Conflitos deveriam acontecer primariamente entre Estados soberanos ou, se ocorressem dentro do territrio de um Estado em particular, entre partidos suficientemente organizados para que fosse aceito o status de beligerncia por parte de outros Estados soberanos. A guerra deveria ser agudamente distinta da paz, por uma declarao de guerra em uma ponta e um tratado de paz na outra. Operaes militares deveriam distinguir claramente entre combatentes - identificados pelos uniformes que usassem ou por outros sinais que indicassem pertencer a uma fora armada organizada - e civis no-combatentes. A guerra deveria ser entre combatentes. No-combatentes deveriam, tanto quanto possvel, ser protegidos em poca de guerra. Sempre se entendeu que essas convenes no cobriam todos os conflitos armados civis e internacionais, e notadamente no cobriam aqueles que surgiam da expanso imperial de Estados ocidentais em regies que no se encontrassem sob a jurisdio de Estados soberanos internacionalmente reconhecidos, ainda que alguns desses (mas de maneira nenhuma todos) conflitos fossem conhecidos como "guerras". No cobriam tambm grandes rebelies contra Estados estabelecidos, como o assim chamado Motim Indiano [em 1857, tropas indianas que faziam parte do Exrcito britnico se rebelaram contra a Gr-Bretanha"; nem a recorrente atividade armada em regies alm do controle efetivo dos Estados ou autoridades imperiais que nominalmente as regiam, como os ataques e feudos de sangue nas montanhas do Afeganisto ou no Marrocos. Mesmo assim, as Convenes de Haia ainda serviam como guias na Primeira Guerra Mundial.

Ao longo do sculo 20, a relativa clareza foi substituda por confuso. Primeiro, a linha entre conflitos entre Estados e conflitos dentro de Estados -isto , entre guerras internacionais e civis- se tornou nebulosa, porque o sculo 20 foi caracteristicamente um sculo no apenas de guerras mas tambm de revolues e esfacelamentos de imprios. Revolues ou lutas por libertao dentro de um Estado tinham implicaes para a situao internacional, particularmente durante a Guerra Fria. Inversamente, aps a Revoluo Russa, intervenes por parte de Estados em assuntos internos de outros Estados -os quais os primeiros desaprovavam- se tornaram comuns, ao menos onde pareciam comparativamente isentas de riscos.

Legado desafortunado

Segundo, a clara distino entre guerra e paz se obscureceu.

Exceto aqui e ali, a Segunda Guerra Mundial no comeou com declaraes de guerra nem terminou com tratados de paz. Ela foi seguida por um perodo to difcil de classificar tanto como guerra quanto como paz nos sentidos conhecidos que o neologismo "Guerra Fria" teve de ser inventado para descrev-lo. A mera obscuridade da posio desde a Guerra Fria pode ser ilustrada pelo atual estado das coisas no Oriente Mdio.

Nem "guerra" nem "paz" descrevem exatamente a situao no Iraque desde o fim formal da Guerra do Golfo -o pas ainda bombardeado quase que diariamente por potncias estrangeiras- ou as relaes entre palestinos e israelenses ou aquelas entre Israel e seus vizinhos Lbano e Sria. Tudo isso um desafortunado legado das guerras mundiais do sculo 20 mas tambm da poderosa e crescente mquina de propaganda de massa da guerra e de um perodo de confronto entre ideologias incompatveis e carregadas de paixo, que trouxeram s guerras um elemento cruzadista comparvel quele visto em conflitos religiosos do passado. Esses conflitos, diferentemente das guerras tradicionais do sistema de poder internacional, foram cada vez mais travados com fins no-negociveis como "rendio incondicional".Como ambas as guerras e vitrias foram vistas como totais, todas as limitaes na capacidade de vencer de um beligerante, que poderiam ser impostas pelas convenes de guerra aceitas dos sculos 18 e 19 - at mesmo declaraes formais de guerra - , foram rejeitadas. Assim como o foram todas as limitaes do poder dos vencedores de impor a sua vontade. A experincia havia mostrado que acordos alcanados em tratados de paz podiam ser facilmente quebrados.

Nos anos recentes a situao se complicou ainda mais devido tendncia de usar publicamente o termo "guerra" para se referir disposio de foras organizadas contra vrias atividades nacionais e internacionais vistas como anti-sociais -a "guerra contra a mfia", por exemplo, ou a "guerra contra os cartis de droga". No apenas muito diferente a luta para controlar ou at mesmo eliminar tais organizaes ou redes, incluindo grupos terroristas de pequena escala, das grandes operaes de guerra: tambm se confundem as aes de dois tipos de fora armada. Uma fora -vamos cham-la de "soldados"- dirigida contra outras foras armadas com o objetivo de derrot-las. A outra -vamos cham-la de "polcia"- deve manter ou restabelecer o grau de lei e ordem pblicas dentro de uma entidade poltica existente, tipicamente um Estado. A vitria, fato que no necessariamente possui uma conotao moral, o objetivo de uma fora; trazer Justia violadores da lei, fato que possui uma conotao moral, o objetivo da outra.

Tal distino, entretanto, mais fcil de traar em teoria do que na prtica. Homicdio por parte de um soldado em batalha no , em si, uma quebra da lei. Mas e se um membro do IRA (Exrcito Republicano Irlands) se v como um beligerante, mesmo que um oficial da lei do Reino Unido o veja como um assassino? As operaes na Irlanda do Norte foram uma guerra, como o afirmava o IRA, ou uma tentativa de manter um governo ordenado diante de violadores das leis em uma Provncia do Reino Unido? Uma vez que no apenas uma formidvel fora policial local mas tambm um Exrcito nacional foram mobilizados contra o IRA por cerca de 30 anos, podemos concluir que era uma guerra, mas uma guerra sistematicamente gerida como uma operao policial, de modo a minimizar as baixas e o estilhaamento da vida na Provncia. Ao fim, houve um acordo negociado; acordo que, tipicamente, at agora no trouxe paz, mas meramente uma extensa ausncia de luta. Tais so as complexidades e confuses das relaes entre guerra e paz no incio do novo sculo. Elas so bem ilustradas pelas operaes -militares e outras- em que os EUA e seus aliados esto engajados atualmente. H agora, como houve por todo o sculo 20, a completa ausncia de toda autoridade global efetiva capaz de controlar ou resolver disputas armadas. A globalizao avanou em quase todos os aspectos -economicamente, tecnologicamente, culturalmente, at linguisticamente-, exceto um: poltica e militarmente, os Estados territoriais se mantm como as nicas autoridades efetivas. H oficialmente cerca de 200 Estados, mas na prtica apenas uns poucos contam, dos quais os EUA so avassaladoramente os mais poderosos. Entretanto nenhum Estado ou imprio jamais foi grande, rico ou poderoso o suficiente para manter a hegemonia sobre o mundo poltico, ainda mais para estabelecer supremacia poltica e militar sobre o globo. O mundo muito grande, complicado e plural. Nada indica que os EUA, ou qualquer outra possvel potncia de Estado nico, possam estabelecer controle duradouro, mesmo que quisessem. Uma nica superpotncia no pode compensar a ausncia de autoridades globais, especialmente dada a ausncia de convenes -relativas ao desarmamento internacional, por exemplo, ou ao controle de armas- fortes o suficiente para que os grandes Estados se comprometam com elas voluntariamente. Algumas de tais autoridades existem, notadamente as Naes Unidas, vrios organismos tcnicos e financeiros, como o Fundo Monetrio Internacional, o Banco Mundial e a Organizao Mundial do Comrcio, e alguns tribunais internacionais. Mas nenhuma delas tem poderes efetivos alm daqueles que lhes foram concedidos por acordos entre Estados ou graas ao suporte de Estados poderosos ou voluntariamente aceitos por Estados.

Conflitos armados entre pases se tornaram mais srios e podem continuar por dcadas sem nenhuma perspectiva sria de vitria ou acordo: Caxemira, Angola, Sri Lanka, Tchetchnia, Colmbia

Por mais que se possa lamentar, nada indica que isso v mudar no futuro previsvel. Uma vez que apenas Estados detm poder real, o risco que as instituies internacionais sejam pouco efetivas ou que a elas falte legitimidade universal quando tentarem lidar com violaes como "crimes de guerra". Mesmo quando cortes mundiais so estabelecidas por consenso geral (por exemplo, o Tribunal Penal Internacional institudo pelo Estatuto de Roma das Naes Unidas em 17 de julho de 1998), seus julgamentos no sero necessariamente aceitos como legtimos e compulsrios enquanto os grandes Estados tiverem a possibilidade de desconsider-los. Um consrcio de Estados poderosos pode ser suficientemente forte para garantir que alguns violadores de Estados mais fracos sejam trazidos a esses tribunais, talvez reprimindo a crueldade de conflitos armados em certas reas. Esse um exemplo, entretanto, do exerccio de poder e influncia tradicional no sistema de Estados internacional, no um exerccio de direito internacional (1). H, entretanto, uma grande diferena entre o sculo 21 e o 20: a idia de que a guerra acontece em um mundo dividido em reas territoriais sob a autoridade de governos efetivos que possuem o monoplio dos meios de poder e de coero pblicos deixou de se aplicar. Ela nunca se aplicou a pases que passavam por revolues ou a fragmentos de imprios desintegrados, mas at recentemente a maioria dos novos governos revolucionrios ou ps-coloniais -a China entre 1911 e 1949 a principal exceo- emergiu com razovel rapidez na forma de regimes ou Estados sucessores mais ou menos organizados e funcionais. Nos ltimos 30 anos, entretanto, o Estado territorial tem, por vrias razes, perdido seu monoplio tradicional da fora armada, muito de sua prvia estabilidade e de seu poder e, cada vez mais, de seu sentimento fundamental de legitimidade ou pelo menos de permanncia aceita, aquilo que permite aos governos impor nus como impostos ou alistamento a cidados propensos. O equipamento material para a guerra agora est amplamente disponvel a pessoas fsicas assim como os meios de financiamento de guerras no-estatais.Desse modo, o equilbrio entre organizaes estatais e no-estatais mudou.Conflitos armados entre pases se tornaram mais srios e podem continuar por dcadas sem nenhuma perspectiva sria de vitria ou acordo: Caxemira, Angola, Sri Lanka, Tchetchnia, Colmbia. Em casos extremos, como em partes da frica, o Estado pode ter virtualmente cessado de existir; ou pode, como na Colmbia, no mais exercer poder sobre parte de seu territrio. Mesmo em pases fortes e estveis tem sido difcil eliminar pequenos grupos armados no-oficiais, como o IRA na Gr-Bretanha e o ETA (grupo separatista basco) na Espanha. A novidade nessa situao indicada pelo fato de que o mais poderoso Estado do planeta, tendo sofrido um atentado terrorista, se sente obrigado a lanar uma operao formal contra uma organizao ou rede pequena, internacional e no-governamental que no possui nem territrio nem um Exrcito reconhecvel.

Equilbrio em xeque

Como essas mudanas afetam o equilbrio entre guerra e paz no sculo que se inicia? Eu preferiria no fazer previses sobre as guerras mais provveis de acontecer ou seus possveis resultados. Entretanto tanto a estrutura dos conflitos armados quanto os mtodos de resoluo dos conflitos foram profundamente mudados pela transformao no sistema mundial de Estados soberanos.

A dissoluo da Unio Sovitica significa que o sistema do Grande Poder que governou as relaes internacionais por quase dois sculos e, com bvias excees, exerceu algum controle sobre conflitos entre Estados no existe mais. Seu desaparecimento removeu uma grande restrio sobre a guerra entre Estados e sobre a interveno armada nos assuntos de outros Estados -fronteiras territoriais estrangeiras foram bastante respeitadas pelas Foras Armadas durante a Guerra Fria. O sistema internacional era de fato potencialmente instvel, mas como resultado da multiplicao de Estados pequenos, s vezes bastante fracos, que mesmo assim eram oficialmente membros "soberanos" das Naes Unidas. A desintegrao da Unio Sovitica e dos regimes comunistas europeus simplesmente aumentou a instabilidade. Tendncias separatistas de fora varivel em Estados-nao at ento estveis, como a Gr-Bretanha, a Espanha, a Blgica e a Itlia, podem muito bem aument-la. Ao mesmo tempo, o nmero de atores privados no cenrio mundial se multiplicou. Sob essas circunstncias, no surpreendente que guerras atravs de fronteiras e intervenes armadas tenham crescido desde o fim da Guerra Fria.

Que mecanismos existem para controlar e resolver tais conflitos? O registro no promissor. Nenhum dos conflitos armados dos anos 90 terminou com um acordo estvel. A sobrevivncia de instituies, pressupostos e retrica da Guerra Fria manteve vivas velhas suspeitas, exacerbando a desintegrao ps-comunista do sudeste da Europa e tornando mais difceis acordos na regio previamente conhecida como Iugoslvia. nEsses pressupostos da Guerra Fria, tanto no nvel ideolgico quanto no nvel do poder poltico, tero de ser dispensados se quisermos desenvolver alguns meios de controlar conflitos armados.

O equilbrio entre guerra e paz no sculo 21 no depender de arquitetar mecanismos mais eficientes para negociao e resoluo, mas, sim, de estabilidade interna e de se conseguir que sejam evitados conflitos militares

tambm evidente que os EUA falharam, e vo falhar inevitavelmente, em impor uma nova ordem mundial (de qualquer gnero) por meio de fora unilateral, no importa o quanto as relaes de poder pendam em sua direo no presente e, mesmo que sejam apoiados por uma (inevitavelmente efmera) aliana. O sistema internacional permanecer multilateral e sua regulao depender da habilidade de diversas grandes unidades em concordar umas com as outras, mesmo que um desses Estados desfrute de predominncia militar. O quanto a ao militar internacional tomada pelos EUA depende de acordo negociado com outros Estados j est claro. Tambm est claro que a resoluo poltica de guerras, mesmo aquelas nas quais os EUA esto envolvidos, ser por meio de negociao, e no por imposio unilateral. A era das guerras terminando em rendio incondicional no retornar no futuro previsvel.

Gerenciamento improvisado

O papel dos organismos internacionais existentes, notadamente as Naes Unidas, deve ser repensado. Sempre presentes, e normalmente requisitados, eles no tm um papel definido na resoluo de disputas. Sua estratgia e sua operao esto sempre merc de poderes polticos que mudam. A ausncia de um intermedirio internacional considerado genuinamente neutro e capaz de tomar uma atitude sem ser anteriormente autorizado pelo Conselho de Segurana tem sido a lacuna mais bvia no sistema de gerenciamento de disputas. Desde o fim da Guerra Fria o gerenciamento da paz e da guerra tem sido improvisado. No melhor dos casos, como nos Blcs, conflitos armados foram detidos por interveno armada externa, e o status quo ao final das hostilidades foi mantido por Exrcitos de terceiros. Esse tipo de interveno de longo prazo tem sido aplicado por muitos anos por fortes Estados individuais em suas esferas de influncia (a Sria no Lbano, por exemplo).

Como forma de ao coletiva, entretanto, foi usado apenas pelos EUA e seus aliados (s vezes sob os auspcios das Naes Unidas, s vezes no). O resultado at agora tem sido insatisfatrio para todas as partes. Ele compromete os interventores a manter tropas indefinidamente e a um custo desproporcional em reas nas quais eles no tm nenhum interesse particular e das quais eles no obtm nenhum benefcio. Tornam-se dependentes da passividade da populao ocupada, que no pode ser garantida -se h resistncia armada, pequenas foras de "mantenedores da paz" armados tm de ser substitudas por foras muito maiores. Pases pobres e fracos podem se ressentir desse tipo de interveno como sendo uma lembrana dos dias de colnia e protetorado, especialmente quando muito da economia local vai para as necessidades parasitrias das foras de ocupao. Permanece incerto se um modelo geral para futuro controle de conflitos armados poder emergir de tais intervenes. O equilbrio entre guerra e paz no sculo 21 no depender de arquitetar mecanismos mais eficientes para negociao e resoluo, mas, sim, de estabilidade interna e de se conseguir que sejam evitados conflitos militares. Com poucas excees, menos provvel que as rivalidades entre Estados que os levaram a conflitos armados no passado sejam capazes de faz-lo hoje. H, por exemplo, comparativamente poucas disputas entre governos a respeito de fronteiras internacionais. Em contrapartida, conflitos internos podem facilmente se tornar violentos: o perigo principal da guerra jaz no envolvimento de Estados ou atores militares externos nesses conflitos. Estados com economias florescentes, estveis e com uma distribuio de bens relativamente equnime entre seus habitantes tendem a ser menos titubeantes -social e politicamente- que aqueles que so pobres, altamente inequnimes e economicamente instveis. Um aumento dramtico em iniquidade econmica e social dentro dos pases, assim como entre eles, reduz as chances de paz. O controle da violncia armada interna depende ainda mais imediatamente, entretanto, dos poderes e da atuao efetiva de governos nacionais e de sua legitimidade aos olhos da maioria dos habitantes. Nenhum governo hoje pode dar de barato a existncia de uma populao civil desarmada ou o grau de ordem pblica h muito familiar em grandes partes da Europa. Nenhum governo hoje est em posio de ignorar ou eliminar minorias armadas internas. Ainda assim o mundo cada vez mais dividido, de um lado, em Estados efetivamente capazes de administrar seus territrios e cidados -mesmo quando confrontados, como foi o caso do Reino Unido, por dcadas de ao armada por parte de um inimigo interno- e, de outro lado, em um nmero crescente de territrios assediados por fronteiras internacionais oficialmente reconhecidas, com governos nacionais variando de fracos e corruptos a inexistentes. Essas zonas produzem sangrentas lutas internas e conflitos internacionais, como os que vimos na frica Central. Entretanto no h perspectiva imediata para melhorias duradouras em tais regies, e um maior enfraquecimento de governos centralizados em pases instveis ou uma maior balcanizao do mapa mundial indubitavelmente aumentariam o perigo de conflito armado. Uma tentativa de previso: a guerra no sculo 21 tende a no ser to assassina quanto no sculo 20. Mas a violncia armada, criando sofrimento e perdas desproporcionais, permanecer onipresente e endmica -e ocasionalmente epidmica- em grande parte do mundo. A perspectiva de um sculo de paz remota.

A meia-vida do nazismo e do stalinismo

O historiador Robert Conquest disse certa vez que, apesar de condenar as atrocidades soviticas, ele "sente" que o Holocausto nazista foi pior do que os crimes do stalinismo. Muitas pessoas concordam com ele, mesmo reconhecendo a natureza hedionda dos crimes comunistas: grandes setores da populao relegados fome por motivos polticos, limpeza tnica, dezenas de milhares de assassinatos judiciais, as mortes em massa na rede de campos de trabalho forado. Outros observadores negam que os crimes nazistas tenham sido mais hediondos que os stalinistas e afirmam que o fato de o nazismo ter sido alvo de mais censura se deve perspectiva peculiar dos intelectuais ocidentais, alguns dos quais eram marxistas de longa data e alguns dos quais eram judeus. No pretendo discutir neste momento qual experincia foi, de fato, mais atroz. Em lugar disso, estou interessado na questo de saber qual experincia permaneceu mais indelevelmente impressa na memria, tanto a histrica quanto a pessoal. Procuro sugerir essa diferena com o uso dos termos "memria quente" e "memria fria".

Legado menos definido

Existem razes poderosas pelas quais a memria do nazismo seja considerada quente, comparada que se tem do comunismo. O regime nacional-socialista precisou de uma guerra terrvel para ser derrubado. Os Estados comunistas no iniciaram uma guerra mundial (apesar de terem sido coniventes com conflitos locais, como a Guerra da Coria) e sobreviveram at chegar a uma fase mais branda, algo que Vaclav Havel [escritor e presidente da Repblica Tcheca] qualificou como "ps-totalitarismo". Instalado na Hungria pelos soviticos para acabar com a revolta de 1956, Jnos Kdar pde introduzir uma era mais suave, a do chamado "comunismo "gulash'". Era inevitvel que essa fase do ps-totalitarismo deixasse um legado histrico menos definido. Os historiadores continuam a trazer tona exemplos da crueldade comunista. No entanto, a cada vez que isso acontece, depois de um ou dois anos o ultraje moral esfria, pelo menos fora dos limites da Europa Oriental. J o Holocausto, pelo contrrio, vem ganhando cada vez mais significado como elemento da memria coletiva do Ocidente.

Discutimos a construo de memoriais e museus do Holocausto, mas raramente chegamos nem sequer a considerar a hiptese de erguer monumentos em memria das vtimas do stalinismo. Peregrinos e turistas visitam Auschwitz e Dachau, mas no Vorkuta ou Katyn. Professores universitrios ainda podem pendurar retratos de Marx e Lnin em suas salas de trabalho, mas os de Hitler ou Himmler, no. A indignao anticomunista se manteve forte por alguns anos aps 1989. A impresso que se tinha era que as contnuas revelaes da cumplicidade de alguns indivduos com a Stasi [polcia secreta da ex-Alemanha Oriental", o processo de purificao tcheco -que impediu determinados comunistas de ocupar cargos pblicos na nova democracia tcheca- e as disputas eleitorais fossem preservar a memria do comunismo como fora maligna.

Destinos distintos

Mas esses sentimentos de ultraje foram se enfraquecendo com o tempo. Os partidos polticos ps-comunistas, como o Partido Social-Democrata (SPD) alemo ou os partidos ditos "socialistas" da Polnia, Hungria e Romnia continuam sendo concorrentes tolerados, enquanto o Partido da Liberdade austraco, de Jrg Haider, ou a Frente Nacional britnica ainda suscitam reaes de horror de seus adversrios. A pergunta permanece: por que o arquiplago Gulag no exerceu o mesmo impacto visceral que o Holocausto nazista? Uma explicao possvel que aqueles que sofreram s mos do nazismo no so os mesmos que sofreram sob o comunismo. Os alemes ocuparam a Europa Ocidental e a Oriental, mas os soviticos impuseram seu regime apenas Rssia e Europa do leste. Judeus e no-judeus viveram destinos distintos. Ademais, o alvo dos nazistas era uma comunidade de vtimas muito mais "orgnica". O Holocausto no foi uma simples limpeza tnica, no foi apenas o terror estocstico do stalinismo, o deslocamento insensato de trtaros da Crimia para o interior nem mesmo a morte pela fome de boa parte da populao da Ucrnia. O terror stalinista era estocstico -ou seja, um atroz jogo de adivinhao-, porque ningum podia prever quem seria o prximo a ser "desmascarado" e exposto como conspirador ou destruidor. J o terror nazista golpeava suas vtimas de acordo com suas caractersticas perceptveis, sobretudo segundo sua origem tnica j assinalada de longa data, no caso dos judeus. O terror estocstico possui meia-vida mais curta; o terror com alvo determinado deixa memrias quentes. Outro fator a ser levado em conta o problema da cumplicidade. claro que a cumplicidade tambm um tema que faz parte da histria do comunismo. Mas, no perodo do chamado ps-totalitarismo, esse tipo de cumplicidade j no custava s vtimas suas vidas. O passado nazista, por outro lado, leva todo o mundo a indagar: "Como eu teria agido?". A pergunta que sempre ressurge em nossos museus do Holocausto, nossas visitas a antigos campos de concentrao, nossa contemplao da trilha ferroviria no Gruenewald Bahnhof, no "ser que eu teria sido nazista?", mas "ser que eu teria tido a coragem de dizer queles que vinham fazer uma priso "deixe-os tranquilos, o que vocs esto fazendo maldade'?". Creio que a maioria de ns teme que nossa resposta teria sido "no". A memria quente aquela que concerne a muitos de ns -no porque sejamos maus, mas porque nossa coragem limitada.

Sentimento de vergonha

O passado comunista no envolveu um exame de conscincia to doloroso. Poucos ex-comunistas evidenciam grande sentimento de vergonha pelo que fizeram. Mas o carter central e sempre presente do anti-semitismo levou ao surgimento de profundos sentimentos de vergonha. A memria do nazismo na Alemanha, creio eu, passou a construir-se basicamente em torno da conscincia da cumplicidade, e deixou filhos e netos envergonhados, embora no culpados.

A vergonha tambm est presente nos Estados ex-comunistas. A amplamente difundida colaborao com a Stasi no poderia deixar de contribuir para a vergonha. Mas a vergonha diante de tal cumplicidade tem estado restrita queles que de fato colaboraram. Aqueles que no colaboraram no sentem a necessidade de confessar a si mesmos que poderiam facilmente t-lo feito. Afinal, eles viveram sob o regime, foram testados e no se deixaram corromper. Assim, a "memria" do fascismo nos pede para pensarmos no sobre se teramos sido fascistas, mas se teramos sido antifascistas, e a resposta, com frequncia, um "no" que nos inquieta. O comunismo fez a seus circunstantes uma pergunta menos dolorosa, e a maioria deles tem menos vergonha com que conviver.

Nota1. Esse tambm o caso, por definio, em que Estados individuais aceitam as leis humanitrias internacionais e unilateralmente assumem o direito de aplic-las a cidados de outros pases em seus tribunais nacionais -como, notadamente, as cortes espanholas fizeram no caso do general Pinochet.

Este texto foi publicado no "London Review of Books".Traduo de Victor Aiello Tsu.

Saiba quem Eric Hobsbawm

Um dos mais importantes historiadores e intelectuais de esquerda vivos, professor emrito da Universidade de Londres e da New School of Social Research, em Nova York (EUA). Nascido em Alexandria (Egito) em 1917, estudou em Viena, Berlim, Londres e Cambridge. A obra de Eric Hobsbawn tem por base o esforo de recontar, com enfoque marxista, a trajetria do Ocidente moderno, da queda do Antigo Regime do Muro de Berlim, empreitada que resultou na tetralogia: "A Era das Revolues", "A Era do Capital" , "A Era dos Imprios" (ed. Paz e Terra) e "A Era dos Extremos" (Companhia das Letras). A nfase na luta de classes tambm guiou Hobsbawm em estudos originais sobre fenmenos como o banditismo, o jazz e o nacionalismo. Em seus livros mais recentes, ganha espao a preocupao com os rumos da histria -como experincia social e disciplina- na atualidade, tema de "O Novo Sculo" e "Sobre Histria" (ambos pela Cia. das Letras).