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IX ENCONTRO DA ABCP Área Temática: Pensamento Político Brasileiro EPISTEMOLOGIA CONSERVADORA, POLÍTICA RADICAL: HISTÓRIA DAS IDEIAS E PROJETO POLÍTICO NA OBRA DE ALBERTO GUERREIRO RAMOS André Kaysel DCP-USP Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO DA ABCP

Área Temática: Pensamento Político Brasileiro

EPISTEMOLOGIA CONSERVADORA, POLÍTICA RADICAL: HISTÓRIA DAS IDEIAS E PROJETO POLÍTICO NA OBRA DE ALBERTO GUERREIRO RAMOS

André Kaysel DCP-USP

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

EPISTEMOLOGIA CONSERVADORA, POLÍTICA RADICAL: HISTÓRIA DAS IDEIAS E PROJETO POLÍTICO NA OBRA DE ALBERTO GUERREIRO RAMOS

André KayseL DCP-USP Resumo do trabalho:

O objetivo deste trabalho é analisar e entender a relação entre a história do pensamento

político-social brasileiro e o projeto político, presentes na obra do sociólogo Alberto

Guerreiro Ramos. Em um conjunto de trabalhos, publicados entre meados dos anos 50 e o

início dos 60, o sociólogo baiano desenvolve uma leitura da tradição intelectual nacional,

valorizando em particular pensadores conservadores ou autoritários. Porém, tais reflexões são

feitas em conexão com um projeto político radical, que combinava objetivos nacionalistas e

populares. Como entender essa aparente contradição representada pela mobilização de

referências conservadoras para uma política progressista?

Procurarei responder a essa indagação partindo de duas hipóteses que julgo

complementares: a relativa ausência de uma tradição de pensamento político radical no Brasil

e a existência de afinidades eletivas entre o pensamento autoritário e o nacional-popular,

notadamente a preocupação com o entendimento da realidade nacional e a crítica das

abstrações do liberalismo.

Palavras-chave: Alberto Guerreiro Ramos, conservadorismo, radicalismo, nacionalismo, pensamento político brasileiro

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar e entender a relação entre a história do pensamento

político-social brasileiro e o projeto político, presentes na obra do sociólogo Alberto

Guerreiro Ramos. Em um conjunto de trabalhos – Cartilha Brasileira do Aprendiz de

Sociólogo (1954), Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1956), A Redução Sociológica

(1958), O Problema Nacional Brasileiro (1959) e A Crise do Poder no Brasil (1961) – o

sociólogo baiano desenvolve uma leitura da tradição intelectual nacional, valorizando em

particular pensadores conservadores, ou mais precisamente, autoritários, como Oliveira

Vianna e Alberto Torres.1 Por outro lado, tais reflexões são feitas em explícita conexão com

a proposição de um projeto político radical, que combinava objetivos nacionalistas e

populares.2 Como entender essa aparente contradição entre uma epistemologia

conservadora e uma política progressista?

Procurarei responder à essa indagação partindo de duas hipóteses que julgo

complementares: a ausência de uma tradição de pensamento político radical no Brasil e a

existência de afinidades eletivas entre o pensamento autoritário de autores como Vianna e

Torres, por um lado, e o nacional-popular de Guerreiro Ramos, por outro, notadamente a

preocupação com o entendimento da realidade nacional e a crítica das abstrações do

liberalismo. Minha base para tanto será constituída pelos estudos acima referidos.3 Com

esta pesquisa procurarei reavaliar categorizações como as de “idealismo orgânico” e

“autoritarismo instrumental” com as quais pesquisadores como Gildo Marçal Brandão e

Wanderley Guilherme dos Santos procuraram compreender as aproximações entre Ramos e

a tradição do pensamento autoritário.

O trabalho se dividirá em quatro partes: na primeira abordarei a relação, acima

referida, entre a interpretação da história das idéias e a proposição de um projeto político,

presente nos trabalhos selecionados do sociólogo baiano. Nas duas sessões seguintes,

discutirei as duas hipóteses apresentadas e, por fim, concluirei este ensaio abordando

algumas das críticas mais conhecidas ao pensamento do autor e frisando a importância de

1 Creio ser importante precisar a filiação autoritária dos autores mensionados, pois não são a única vertente conservadora no pensamento político brasileiro. Como se verá adiante, há autores talvez ainda mais claramente conservadores do que Vianna ou Torres, que Guerreiro Ramos critica de forma dura, caso dos católicos da revista A Ordem. Assim, o presente trabalho pretende discernir com que tipo de pensamento conservador o sociólogo baiano se identificaria. 2 Não incluirei nesta análise o trabalho posterior de Ramos intitulado “A Inteligência Brasileira na Década de 30 da Perspectiva da Década de 80”, apresentado no Seminário em comemoração ao cinquentenário da Revolução de 1930, organizado pelo CPDOC-FGV. Ainda que a análise presente nesse texto seja substantivamente idêntica às dos anos 50 e 60, a perspectiva do autor é significativamente distinta, revelando um maior pessimismo em relação à possibilidade da autonomia cultural nacional (Oliveira, 1995, p. 127). 3 Devo advertir que as citações que se seguirão não obedecerão, em todos os casos, as datas originais de publicação dos trabalhos selecionados do autor.

Guerreiro Ramos para a formação de um campo de estudos do pensamento político-social

brasileiro.

1. Colonialismo e Emancipação: História das Idéias e Projeto Político

O ano de 1953 marca, segundo o próprio Guerreiro Ramos, o início de sua

empreitada de crítica da sociologia brasileira como vinha sendo praticada até então (Ramos,

1965: 13). Naquele ano o autor redigiria, para o jornal carioca Diário de Notícias, uma série

de nove artigos nos quais esmiuçava um conjunto

de teses apresentadas, no ano anterior, ao II. Congresso Latino-Americano de Sociologia,

as quais foram rejeitadas pela maioria do plenário. Tais teses, elaboradas por Ramos na

condição de presidente da comissão de “estruturas nacionais e regionais” do encontro,

postulavam, em síntese, a constituição de teorias sociais e métodos de pesquisa adequados

ao entendimento global ou parcial das estruturas nacionais e regionais dos países latino-

americanos, os quais deveriam levar em conta as peculiaridades e os limites materiais

dessas sociedades (Idem, : 76). Em seguida, tal série de artigos foi sistematizada e

ampliada, dando origem à referida Cartilha... .

Nesta obra, o sociólogo baiano opõe o que denomina como “sociologia enlatada” ou

“sociologia consular” – isto é, a prática da sociologia como mero desdobramento do

conhecimento produzido nos países desenvolvidos – à “sociologia dinâmica”, ou seja, a

aplicação dos princípios universais do saber sociológico de modo adequado às

particularidades dos países periféricos. Enquanto a primeira atitude perante a sociologia

refletiria a importação mecânica da produção intelectual estrangeira e a alienação em

relação às condições concretas da sociedade na qual vive o sociólogo, a segunda seria,

justamente, a tomada de consciência destas condições e sua expressão no plano teórico-

conceitual, sem,conforme dito acima, abdicar-se dos princípios universais do raciocínio

científico (Idem: 77-80). Contudo, para que tais princípios pudessem ser aplicados de modo

a obter-se um conhecimento adequado da estrutura social estranha a sua origem, seria

preciso ter uma consciência do caráter histórico dos conceitos e métodos da ciência

sociológica, adaptando-os às especificidades dos distintos níveis de desenvolvimento.

É preciso frisar que, para o autor, ambas as formas de consciência radicam em condições

sócio-históricas determinadas. Assim, a consciência alienada, na condição de traço definidor

se deveria à própria estrutura sócio-econômica do país, de tipo colonial, a qual impediria

uma consciência crítica sobre os problemas nacionais. Aqui, o “sistema colonial” é

concebido como um “fato social total” que molda, não apenas a esfera da produção

propriamente dita, mas o conjunto da vida social, concepção esta presente em obras de

Balandier e Sartre, ambos autores bastante influentes no âmbito do que viria a ser o Instituto

Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) (Ortiz, 1985: 53).4

As condições para o advento de uma ciência social capaz de apreender

adequadamente a realidade nacional começariam, na visão do autor, a se delinear com o

processo de desenvolvimento capitalista do país e o acirramento dos conflitos sociais daí

decorrentes. Dessa maneira, o advento de uma sociologia autêntica, no sentido de estar

bem enraizada em seu contexto, seria parte de um processo mais amplo, pelo qual o povo

brasileiro passaria de uma consciência “ingênua”, isto é, alienada, para outra, “crítica”, ou

seja, auto-consciente e, portanto, capaz de determinar seu destino enquanto nação (Idem,

1965: 79-80).

Todavia, a construção de uma sociologia nacional implicaria uma revisão da história

das teorias políticas e sociais no Brasil, para encontrar aí elementos de um pensamento

mais enraizado no contexto nacional. Aqui, o autor propõem a distinção, apoiada na obra do

sociólogo alemão Karl Mannheim, entre a teorização “politicamente orientada”, de um lado,

e a sociológica, de outro. A diferença entre ambos estaria em que, enquanto o primeiro tipo

de teoria assumiria um caráter partidário e voltado para o conflito político mais imediato, a

segunda, ao tomar consciência do caráter social e historicamente condicionado de toda a

forma de pensar, ganharia maior distanciamento crítico. Para Ramos, a teorização sobre a

política e a sociedade no Brasil, entre 1870 e a atualidade (1955), teria sido,

predominantemente, do primeiro tipo.

Ao voltar-se para os esforços de teorização politicamente orientados sobre a

realidade brasileira, o sociólogo baiano retoma a categoria de “idealismo utópico”, de

Oliveira Vianna, segundo a qual os políticos liberais do Império e os republicanos teriam

importado instituições políticas inglesas, francesas e norte-americanas, sem a menor

atenção à sua adequação à realidade nacional. Embora reconheça nessa conceituação do

ensaísta fluminense um dos pontos mais altos a que teria chegado a sociologia brasileira,

Ramos faz a ressalva de que Vianna teria visto apenas meia verdade, sem explicar o porque

da importação de instituições por parte das elites políticas e culturais (Ramos, 1956: 52).

Para ele, não haveria nada de “utópico” nessa atitude, já que os políticos e

intelectuais assim agindo responderiam às condições históricas vigentes e aos interesses de

classe que representavam, sem questionar o conjunto da ordem vigente. Os republicanos,

por exemplo, representariam os interesses das classes médias, sem um lugar social preciso

em uma ordem senhorial e escravocrata (Idem: 53). Contudo, dadas as limitações de uma

4 EGuerreiro Ramos foi, ao lado de Hélio Jaguaribe, Rolland Corbisier, Nelson Werneck Sodré, Cândido Mendes de Almeida e Ewaldo Corrêa Lima, um dos fundadores do ISEB em 1955. Embora o sociólogo tenha rompido com a instituição em 1958 e, daí em diante, tenha sempre procurado marcar suas diferenças com os ex-colegas, seu pensamento continuou a ser próximo, em aspectos importantes, ao dos isebianos. Sobre o ISEB cf. (Toledo, 1979), (Franco, 1978), (Ortiz, 1985), (Pereira, 2002) e (Toledo, 2005).

estrutura produtiva agrária e exportadora, a qual não teria esgotado ainda seu potencial

histórico, os republicanos não teriam questionado a ordem social, limitando-se à propor a

mudança institucional.

Para Ramos, os primeiros esforços de teorização da realidade social teriam sido

iniciados pelos positivistas, os quais procuraram encaixar a evolução da sociedade brasileira

no esquema dos “três estágios” de Augusto Comte. Todavia, tais esforços, como os de

Teixeira Mendes, seriam limitados pelo dogmatismo e rigidez de seus esquemas, fazendo

com que seus projetos de reformas caíssem no vazio.

Os primeiros elementos de uma sociologia brasileira mais original, o autor encontra

em alguns textos de intervenção política de Sílvio Romero (Idem: 58). O crítico e jurista

sergipano teria captado traços fundamentais da sociedade nacional como o pauperismo

generalizado devido à economia da grande lavoura, a inexistência de uma burguesia e um

proletariado como na Europa e a escassez de base ideológica dos partidos políticos,

dominados pelas oligarquias regionais.

Com a 1. Guerra Mundial, a aceleração da industrialização e a crise da dominação

oligárquica, Ramos adverte novos movimentos de teorização da realidade do país: como os

vinculados à Ação Social Nacionalista e a “Propaganda Nativista”, os quais enfatizavam a

dominação comercial estrangeira e a carência de uma identidade nacional (Idem: 61). Nesse

período, todas as manifestações de inconformismo e dissidência política - as quais

culminariam na Revolução de 1930 - se deveriam à classe média, setor social numeroso e

cujas aspirações conflitavam com a ordem sócio-econômica e política dominante. As

demandas deste estrato social, contudo, se restringiriam à reformas liberais, sem tocar nas

bases da estrutura colonial.

Em que pese a desorientação ideológica de seus líderes, a Revolução de 30 teria

aberto um período de intenso debate intelectual, durante o qual emergiriam novas

abordagens da realidade brasileira com as mais variadas orientações político-ideológicas. A

intensificação do processo de industrialização, a crise da economia agrário-exportadora e a

emergência política da burguesia e do proletariado criariam, na atualidade, as condições da

emergência de uma sociologia consciente de sua inserção na realidade nacional e voltada

para a solução de seus principais problemas (Idem: 69-75).

Não é por acaso que o ponto de partida do sociólogo baiano para reconstruir a

trajetória das interpretações politicamente orientadas da realidade brasileira seja,

precisamente, a noção de “idealismo utópico” de Oliveira Vianna. Embora, como ficou dito

acima, Ramos faça importantes reparos à categoria elaborada pelo jurista fluminense, ele

claramente reconhece nela uma forte proximidade em relação à sua crítica da mentalidade

colonial ou alienada. Para Vianna (1939), os políticos e intelectuais brasileiros seriam

facilmente impressionáveis pelo prestígio de fórmulas teóricas e instituições estrangeiras,

acreditando na eficácia per se destas últimas, independentemente de sua adequação às

realidades sociais às quais se aplicam. Ramos, como se pode ver, preserva esse

entendimento geral, avançando, entretanto, a compreensão de que tal característica seria a

forma de consciência possível, dadas as condições de uma sociedade periférica e de

economia colonial.

Tal proximidade explica o porque de Ramos considerar, em diversas oportunidades,

o autor de Populações Meridionais do Brasil como um dos mais destacados precursores de

uma consciência sociológica brasileira, sublinhando a “lucidez” e “validade” de suas

análises, em que pesem as limitações e equívocos destas à luz dos avanços

experimentados pela sociologia desde então. Mas Vianna não é o único pensador

autoritário a figurar entre os ensaístas valorizados por Ramos como precursores de uma

sociologia nacional. Alberto Torres, por exemplo, é freqüentemente citado ao lado daquele

como um dos que mais teria contribuído para o conhecimento da realidade brasileira. Não

deixa de ser notável o fato de que o título de uma das obras do sociólogo baiano, citada logo

no início deste estudo, “Problema Nacional do Brasil”, ser praticamente idêntico ao da obra

mais importante de Torres, “O Problema Nacional Brasileiro”. Tal coincidência, obviamente,

não tem nada de fortuita, sendo intencionalmente mobilizada por Ramos para inserir-se em

uma linha de continuidade com o ensaísta em questão. Nas primeiras páginas do livro,

Ramos chega mesmo a afirmar que a obra de Torres poderia ser tida como ponto de partida

da “sociologia militante” no Brasil (Ramos, 1960: 13-14). Em obra posterior, o autor sustenta

que, a seu tempo, as reflexões de Vianna e de Gilberto Amado, segundo as quais o Brasil

não teria povo em sentido político, estariam essencialmente corretas, devido à exclusão da

massa popular da participação na sociedade política (Idem, 1961: 46-47).

Essa identificação com autores de tendência autoritária ou conservadora, não

significa que Ramos tivesse uma simpatia por teorizações conservadoras em geral. Pelo

contrário, suas incisivas críticas ao catolicismo integrista de autores como Jackson de

Figueiredo, cujo pensamento é caracterizado pelo sociólogo baiano como “ideologia da

ordem”, os quais teriam apreciações puramente morais e abertamente reacionárias sobre a

política, negando qualquer importância aos aspectos sociológicos, mostra bem que este não

é o caso (Idem: 141-151). Crítica semelhante é dirigida ao grupo que o sociólogo denomina,

acidamente, como Jenesse dorée: isto é, intelectuais de alta extração social que se

voltariam para o cultivo de formas generalistas e ornamentais do saber, dos quais seriam

exemplos Afonso Arinos de Mello Franco, Octávio de Faria e Alceu Amoroso Lima. Esse

conjunto seria caracterizado por um saudosismo em relação ao status quo anterior à

Revolução de 1930, pelo elitismo e também por uma visão idealista e moralista da política (

Idem: 152-167).

Por fim, o autor dirige um ataque distinto a outro intelectual que pode ser tido como

conservador, Gilberto Freyre. Segundo Ramos, a obra de Freyre seria um exemplo da

mobilização eclética de referências teóricas incongruentes, característica da mentalidade

dos intelectuais colonizados. Além disso, a interpretação freyriana do país se caracterizaria

por perder-se em aspectos secundários da vida nacional, não contribuindo para elucidar os

problemas globais da estrutura social brasileira e, por isso mesmo, resvalando para o

“belletrismo” (Idem, 1956: 80).

Lúcia Lippi de Oliveira sugere a hipótese de que Gilberto Freyre e Guerreiro Ramos

estariam em competição por modos de explicar o Brasil, daí as reiteradas críticas do

segundo ao primeiro (Oliveira, 1995: 126). Desse modo, em suas abordagens do pensamento social brasileiro, o sociólogo baiano

apresenta uma valorização muito desigual de distintas correntes, as quais poderiam, de um

modo ou de outro, ser tidas como conservadoras. Como destaca mais uma vez Oliveira, os

pesos e medidas que o sociólogo emprega para avaliar as distintas “famílias intelectuais”

não são os mesmos: se no caso da “jeness doré” Ramos os analisa a partir de sua origem

de classe, ao pensar autores como Vianna e Torres, com os quais simpatiza, esse critério

sequer é mencionado, dando Ramos prioridade à análise do conteúdo dos ensaios (Idem:

120).

Para a autora, o critério unificador das reconstituições que o sociólogo baiano faz da vida

intelectual do país é a busca de uma “teoria da sociedade brasileira” (Idem: 119). É com

base nesse metro que autores como os autoritários são valorizados, ao passo que outros –

os católicos, os “dorés” ou Freyre – são criticados.

Falar em “conservadorismo implica, evidentemente, em discutir o que se entende por

esse termo, debate bastante extenso que escapa aos limites deste trabalho. Adotarei,

entretanto, uma definição bastante ampla de conservadorismo como sendo o conjunto de

doutrinas e posturas políticas que valoriza positivamente a continuidade com o passado, a

preservação da ordem e das hierarquia sociais. É evidente que uma conceituação tão ampla

comporta uma grande variedade de correntes e autores, o que é proposital, já que pretendo

demonstrar que Ramos possui afinidades com uma determinada interpretação conservadora

do Brasil, que ficou conhecida como “pensamento autoritário”, assunto que retomarei na

próxima sessão.

Logo de saída, afirmei que a reconstrução que Guerreiro Ramos faz da história das

idéias no Brasil se vincula a seu projeto de elaboração de uma sociologia autenticamente

nacional, projeto esse que tem clara conotação política. Trata-se, agora, de explicitar qual a

localização política do autor. Me remeterei, para tanto, a sua leitura da crise política pela

qual passou o Brasil em inícios dos anos 60.

Tomando como ponto de partida de sua análise a vitória de Jânio Quadros nas

eleições presidenciais de 1960, o sociólogo baiano afirma que a ascensão ao poder de um

candidato desvinculado dos principais partidos políticos e com inclinações bonapartistas

representaria a crise do conjunto do sistema partidário, incapaz de canalizar as

contradições econômicas e sociais que se acirrariam no interior da sociedade brasileira

(Ramos, 1961: 21-22). Estas poderiam ser resumidas na maturação das condições objetivas

e subjetivas do advento de uma nação autônoma e no correlato aparecimento do povo como

categoria histórica (Idem, Ibidem). Desse modo, a contradição fundamental por trás da crise

brasileira seria entre “nação” e “anti-nação”, ou seja, entre os interesses nacionais e aqueles

ligados ao estatuto “colonial” que historicamente caracterizaria nossa sociedade (Idem: 42-

43).

Ramos não fornece uma definição acabada de povo, o qual se identificaria com as

classes objetivamente interessadas na emancipação econômica nacional: campesinato,

operariado, parte da classe média e da burguesia industrial. Não se deve, todavia, afirmar

que a categoria de povo seria um todo indiferenciado que escamotearia o conflito de

classes. Para o autor, o surgimento do povo na vida política brasileira resultaria, justamente,

da maior diferenciação social e do ganho de consciência por parte das diferentes classes

em relação a seus interesses (Idem, Ibidem).

Até 1930, o Brasil não teria povo em sentido político, já que a sociedade política –

isto é, os grupos sociais que, de algum modo, tomariam parte na esfera pública - seria

restrita às elites agrárias, comerciais e financeiras tradicionais, as quais monopolizariam o

poder, e à classe média tradicional, que constituiria o setor dissidente (Idem: 24).5 A

asceleração do desenvolvimento capitalista posterior a Revolução de 1930, marcaria a

entrada na sociedade política de novos grupos sociais, como a burguesia industrial e o

operariado, cujos interesses teriam sido incorporados pela legislação corporativa (Idem: 28-

31). Todavia, seria com a queda do “Estado Novo” que emergiriam as condições para o

advento do povo como agente político: a participação ampliada por meio de eleições

“idôneas” (Idem: 46-48). Aqui é importante sublinhar o destaque que o autor dá às eleições.

Por exemplo, Ramos expõe o número de eleitores registrados e os percentuais de votação

dos candidatos vitoriosos. Em seguida ele sublinha que a partir de 1945, não apenas o

número de eleitores cresceria enormemente, mas também que a vitória da situação deixaria

de ser uma certeza como fora durante o Império e a 1ª. República (Idem: 49).

A cada período da evolução histórica brasileira, o sociólogo baiano associa uma

forma de política: política de clã durante a colônia; política oligárquica no Império e na

“República velha” e a política populista após 1945 (Idem: 50-55). Para ele, o populismo seria

um fenômeno da fase inicial da industrialização, na qual as classes trabalhadoras começam

a se constituir, mas ainda não adquiriram consciência de classe (Idem: 56-57). Daí que os

5 Para um tratamento mais sistemático do conceito de sociedade política por parte do autor, bem como sua aplicação à história brasileira, (Ramos, 1956: 35-51).

trabalhadores se representariam no Estado por meio do vínculo pessoal com um líder que

encarnaria seus interesses, vínculo este diferente da submissão ou dependência

característica da dominação oligárquica (Idem: 55).

Com a aceleração do desenvolvimento e o aprofundamento da diferenciação social,

o populismo começaria a dar lugar a novas formas de política: os “grupos de pressão” e a

política ideológica, forma mais avançada que pressupunha o desenvolvimento da

consciência de classe, a qual só começaria a se expressar no país (Idem: 58-60). Seria

justamente a inconsistência ideológica dos partidos brasileiros que explicaria sua rejeição

pelo eleitorado no pleito de 1960. Guerreiro Ramos parece apostar no papel das alas

renovadoras dos três principais partidos: PSD, UDN e PTB (Idem: 94-95). No caso deste

último, com o qual claramente simpatizava, o autor aponta o declínio dos métodos

populistas do varguismo e do janguismo e salienta a necessidade de se dar consistência

ideológica à agremiação, o que viria sendo empreendido por parlamentares como Sérgio

Magalhães, Bocayuva Cunha e Almino Afonso (Idem: 93). Se o trabalhismo superasse suas

deficiências de origem – como o populismo e o “peleguismo” sindical - , o autor sustentava

que se tornaria o principal veículo de representação dos trabalhadores (Idem: 90-91).6

Na argumentação de Ramos são claros os ecos do ideário “terceiro mundista” da

Conferência de Bandung, da descolonização da África e da Ásia, bem como da então

recente Revolução Cubana (Idem: 105-118). Essa radicalização política não significou,

todavia, uma adesão ao marxismo ou às posições do Partido Comunista. No plano teórico, o

sociólogo combina o pensamento de Marx, Engels e Lukács com referências como

Mannheim, C. Wright Mills e Jean-Paul Sartre, propondo a necessidade de se constituir uma

teoria da revolução brasileira que transcendesse os limites do marxismo-leninismo do PCB

(Idem, Ibidem). Assim, o projeto político de Ramos seria o de uma esquerda de feição

nacionalista, cujo o objetivo fundamental seria o de completar a construção da nação

brasileira, por meio da incorporação social e política das massas populares, de um lado, e

da emancipação econômica do país frente ao imperialismo, de outro.

Se se trata, pois, de nacionalismo, devo registrar que este é uma variedade de

nacionalismo muito diferente daquela defendida, por exemplo, por Oliveira Vianna. Aqui,

penso ser útil retomar a distinção entre um nacionalismo conservador e outro popular,

proposta por Daniel Pecault . O primeiro – calcado numa leitura autoritária e elitista da

sociedade brasileira – predominou na geração intelectual que vai de 1925 à 1945. Já a

geração seguinte, 1954-1964, foi marcada pelo segundo tipo de nacionalismo que, como

ilustra bem a obra de Guerreiro Ramos, apoiava-se na idéia de “desenvolvimento” e na

6 O autor em inícios dos anos 60 procurou assumir a posição de “ideólogo” do trabalhismo mais radical, em oposição a Santiago Dantas, formulador de posições mais moderadas (Ramos, 1995: 153). Além dessa atuação publicística, o sociólogo procurou lançar-se à vida política, candidatando-se a deputado pelo PTB (Idem: 154).

valorização da participação política das classes populares (Pecault, 1989: 85-91). Contudo,

Pecault aponta a existência de continuidades entre ambas as gerações: a noção de uma

“missão” dos intelectuais de fornecer representações da nação e, assim, orientar a ação

política do Estado ou das classes sociais (Idem: 81-82 e p. 91). Diante de tal diferenciação,

impõem-se dois problemas correlatos: de um lado, o da diferença marcante entre os

contextos históricos que o autor francês atribui a cada um dos nacionalismos e, de outro, o

das afinidades ou aproximações que existiriam entre ambos. Eis os temas que tratarei nas

sessões a seguir.

2. A Questão das Afinidades Eletivas

A proximidade entre as reflexões de Guerreiro Ramos e as de pensadores autoritários como

Oliveira Vianna não é algo novo nos estudos sobre o pensamento político brasileiro.

Brandão(2007: cap. 1), por exemplo, inclui os dois autores em uma mesma linhagem das

interpretações do Brasil, que ele denomina como “idealismo orgânico”.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer o que Brandão entende por “linhagem” no

âmbito da história das idéias sociais e políticas. Ao recorrer a essa categoria, o cientista

político pretende apontar a existência de continuidades de determinados modos de pensar,

esquemas interpretativos, problemas e temas de reflexão durante um longo período da

história intelectual do país, de 1870 a 1980, aproximadamente. Seriam justamente essas

continuidades que constituiriam as linhagens, as quais, todavia, não deveriam ser

confundidas com categorias taxionômicas, nem com outros conceitos dos estudos sobre

pensamento político, como “ideologia”, mesmo que uma dada linhagem possa ter afinidade

com determinada ideologia.

Feitas essas ressalvas, Brandão identifica duas linhagens principais que teriam sido

predominantes ao longo da história do pensamento político-social brasileiro: o “idealismo

orgânico” e o “idealismo constitucional” (Idem, Ibidem). Como afirma o próprio autor, essas

categorias foram retiradas da obra, acima mencionada, de Oliveira Vianna, O Idealismo da

Constituição, ainda que de maneira modificada para diminuir seu traço excessivamente

normativo.

Por idealismo orgânico, Brandão entende um modo de pensar o Brasil que

problematiza a realidade nacional a partir da fragilidade do tecido social, ou a

“inorganicidade” da sociedade brasileira, na qual prevaleceria o arbítrio privado como

principal obstáculo à liberdade e à cidadania. Como solução para essa insuficiência de

vínculos sociais, os adeptos dessa linhagem defenderiam um fortalecimento do Estado,

única agência capaz de conferir coesão ao corpo social e garantir os cidadãos contra o

arbítrio privatista.

No pólo oposto estaria o chamado “idealismo constitucional” (Vianna, como se viu,

utiliza o termo “utópico”). Nessa vertente do pensamento político a fragilidade ou

precariedade da sociedade brasileira também é admitida, embora seja atribuída a causas

opostas. Ao invés do privatismo seria justamente o excessivo poder estatal que impediria o

desenvolvimento de uma vida associativa plena. Em face desse diagnóstico, os idealistas

constitucionais defenderiam a adoção de instituições jurídicas e políticas que limitassem o

arbítrio do Estado e favorecessem as relações de tipo societário ou de mercado.

Dessa maneira, enquanto o idealismo orgânico teria uma certa afinidade com o

conservadorismo, ou com uma visão autoritária, o idealismo constitucional seria muito

próximo ao liberalismo. Todavia, na medida em que as linhagens são diferentes de

ideologias, elas não se resumem a um polo do espectro político. Nas palavras de Brandão,

“toda linhagem teria uma esquerda e uma direita” (Brandão, 2010). Um bom exemplo, nesse

sentido, seria justamente a obra de Guerreiro Ramos, o qual retomaria, “pela esquerda”, as

reflexões de Oliveira Vianna (Idem, 2007).

Outro estudioso que se dedicou a identificar linhas de continuidade na trajetória do

pensamento político no Brasil foi Wanderley Guilherme dos Santos. Para o cientista político,

a história das idéias políticas e sociais em qualquer país deve ser feita tendo se em vista, de

um lado, a importação de teorias e métodos de outras realidades e, de outro, a história

econômica, social e política local, que condiciona tais apropriações (Santos, 1978).

No caso do Brasil, durante o período colonial, a relação com o próprio passado e

com o presente das outras sociedades estaria condicionado à relação que Portugal

estabelecia com seu passado e com o presente das demais nações européias. Seria com a

independência política e a necessidade da organização de um Estado nacional que teriam

emergido os primeiros esforços mais consistentes de reflexão sobre a sociedade e a

política. Do período pós-independência até a terceira década do século XX, tais

empreendimentos intelectuais teriam sido levados a cabo sem a presença de instituições

universitárias especializadas, sendo desenvolvidos nas faculdades de direito e medicina.

Além disso, o período autoritário do “Estado Novo” e a concorrência de intelectuais

estrangeiros, para os quais não haveria teoria social no Brasil, teriam feito com que as

primeiras gerações de intelectuais universitários ignorassem a produção do pensamento

social anterior à década de 30.

Santos divide os poucos estudos, até então realizados, sobre o pensamento político

brasileiro em três modelos de análise: o institucional, voltado para o desenvolvimento de

instituições especializadas; o sociológico, o qual buscaria as bases sociais do conhecimento

e, por fim, o ideológico, que investigaria o conteúdo mesmo da produção intelectual (Idem,

Ibidem).

No primeiro modelo, identificado principalmente com a obra de Florestan Fernandes

e de Djacir de Menezes, Santos criticaria a rejeição do pensamento social não-universitário

como sendo “pré-científico”.7 Já a abordagem sociológica, também encontrada nos trabalhos

do sociólogo paulista e de Elgio Trindade, seria limitada por não levar em conta as

mediações entre a estrutura social e as idéias. Já na terceira vertente, Santos aponta duas

contribuições principais: a de Guerreiro Ramos, com a qual se identifica explicitamente e a

de Bolívar Lamounier, por ele criticada.

Santos rejeita na abordagem de Lamounier o conceito de “ideologia de Estado” para

caracterizar o pensamento autoritário dos anos 20, na medida em que qualquer ideologia

pressupõe alguma forma de Estado. Outro problema dessa abordagem seria sua redução

do pensamento autoritário à condição de “mero reflexo da realidade e seus conflitos”,

recaindo assim no determinismo mais estreito.

Discutida a produção sobre o pensamento político brasileiro, Wanderley Guilherme

dos Santos se volta para suas próprias visões sobre o assunto. Segundo ele, se pode

escrever a história das idéias de diferentes maneiras: seja concentrando-se no conteúdo das

obras, seja procurando seus esquemas e modelos analíticos de fundo.

Adotando esse segundo caminho, o autor aponta que o paradigma da moderna

sociedade burguesa teria sido o horizonte comum da maior parte da imaginação social

brasileira. No império, por exemplo, liberais e conservadores divergiriam nos meios para

alcançá-la: os primeiros advogando a adoção de instituições de tipo anglo-saxão, enquanto

os segundos defendiam um Estado forte e centralizado capaz de dominar os poderes

arbitrários locais. A mesma divergência teria se repetido entre liberais e autoritários na

década de 30.

Já nos anos 50, o pensamento nacionalista e desenvolvimentista do ISEB ou a

teorização do Partido Comunista Brasileiro (PCB) também teriam como horizonte a

constituição de uma sociedade burguesa no Brasil, para a qual ambos defendiam uma

aliança entre a burguesia nacional e o proletariado. Do outro lado, estavam aqueles que,

para alcançar a ordem burguesa, postulavam uma aliança da burguesia com os interesses

econômicos internacionais..

Desse modo, formulações de contextos e orientações ideológicas muito diferentes

poderiam compartilhar esquemas teóricos ou paradigmas de fundo. Nesse sentido, Santos

parece identificar a sua posição, bem como a do ISEB, com a dos conservadores do império

e a dos autoritários do início do século, em que pesem as óbvias distâncias ideológica e

7 Aqui, Santos retoma a polêmica teórico-metodológica que, no final dos anos cinqüenta, havia oposto Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. Embora este assunnto fuja ao escopo do presente trabalho, farei uma referência ao debate entre os dois sociólogos na conclusão. Aí se poderá ver que Santos assume a posição de Ramos na discussão.

histórica.8 Afinal, tanto uns quanto outros reclamariam soluções políticas adequadas à

realidade local. Já as reflexões de Bolívar Lamounier teriam continuidades com o liberalismo

do século XIX e dos anos 30, ao reivindicar a adoção de instituições estrangeiras que

reduziriam o peso opressivo do Estado sobre a sociedade, postura que Santos denomina

como “reificação institucional”.

Se as abordagens de Brandão e de Santos me parecem convincentes, tanto ao

apontar a existência de modos de pensar o Brasil que se reproduzem ao longo do tempo e

do espectro político, quanto, mais especificamente, ao sustentar que autores como Vianna e

Ramos podem ser vistos como membros de uma mesma vertente do pensamento político

brasileiro, não creio que tais autores forneçam explicações que elucidem essa afinidade.

Embora saiba que essa não seja uma tarefa fácil, acredito que a explicação para a

proximidade entre as reflexões do jurista fluminense e as do sociólogo baiano estejam nas

afinidades eletivas existentes entre o nacionalismo conservador, do primeiro, e o

nacionalismo popular do segundo. Como se viu na sessão anterior, o próprio Pecault já

sugeriu uma importante linha de continuidade entre ambos os nacionalismos: ou seja, a

idéia de que a nação seria ainda algo “por fazer” e que o Estado teria um papel central

nessa transformação de uma sociedade ainda informe em uma comunidade organizada.

Ao lado desse traço em comum, bastante enfatizado por Brandão e Santos, está o

tipo de análise da relação entre idéias e contexto sócio-histórico. Não é por acaso que

Ramos parta do conceito de “idealismo utópico” para reconstituir os antecedentes de uma

sociologia nacional. Afinal, o sociólogo baiano compartilhava com Vianna a mesma aversão

às abstrações importadas que fossem aplicadas de modo mecânico ao contexto nacional,

sem que se indagasse pela sua adequação a este último. Assim, os dois autores têm em

comum uma preocupação com a apreensão do “concreto” ou das “especificidades” da

realidade local, tais exigências devendo se sobrepor à fidelidade ao universalismo

cosmopolita.

Como observa Ricupero (2010), o apego à concretude, às particularidades

contextuais e a aversão às abstrações são características importantes do pensamento

conservador. O que estou argumentando é que também o são do pensamento nacional-

popular, em que pese o radicalismo político deste. Talvez seja excessivo sugerir, como fiz

no título deste estudo, que Ramos combinaria uma “epistemologia conservadora” com um

programa político “radical” ou “progressista”. Trata-se, entretanto, de uma formulação

provocativa que tem por escopo chamar a atenção para uma coincidência que não me

parece acidental. É possível que esse apego ao particular seja um traço constitutivo do

8 É sempre bom lembrar que Wanderley Guilherme dos Santos foi membro do instituto em seus últimos anos de existência. Para as obras que o cientista político publicou como membro do ISEB, ver a bibliografia sistematizada por Bariani Jr., contida em (Toledo, 2005).

próprio nacionalismo – seja ele “de direita” ou “de esquerda” - , já que tal conjunto de

ideologias encontra sua razão de ser justamente no que é peculiar a uma determinada

comunidade humana.

A passagem de um tipo de nacionalismo para o outro pode, também, ser facilitada

pelas próprias condições do Brasil, país de inserção subalterna na economia mundial e com

grande parte de sua população excluída da vida política. Demonstrá-lo-ia, aliás, a própria

trajetória de Guerreiro Ramos, que passou do integralismo na juventude para a esquerda

nacionalista na maturidade. Aliás, esse parece ser um traço geracional, pois outras figuras

de destaque do nacionalismo dos 50 e 60 começaram suas trajetórias na AIB, tais como

Rômulo Almeida, Santiago Dantas e Rolland Corbisier (Oliveira, 1995, pp. 26-27). Tal

dinâmica se poderia explicar pelo fato de o movimento integralista, em que pese sua

inspiração no fascismo, nas condições brasileiras dos anos 30, assumia posturas anti-

oligárquicas. Além disso, Antônio Cândido sublinha que a adesão de muitos jovens de sua

geração ao integralismo exprimia, frequentemente, “um interesse genuíno pelas coisas do

brasil”, motivo que explicaria, em sua opinião, a conversão posterior de muitos deles a

posições de esquerda (Cândido, 2002).

Por outro lado, devo advertir que o risco desse tipo de análise é o de borrar ou ignorar as

grandes distâncias políticas que separam o pensamento de Guerreiro Ramos daquele dos

ensaístas autoritários, as quais, como demonstra a sessão anterior, são tão evidentes

quanto as proximidades. É, pois, para as descontinuidades que me voltarei a seguir

3. Diferenças Contextuais e Divergências Políticas

Ao escrever sobre o conceito de intelligentsia, isto é, a intelectualidade caracterizada pelo

pensar independente e pelo engajamento político, Ramos afirma que esse fenômeno era

ainda muito novo no Brasil, só começando a se expressar na atualidade (Ramos, 1961:

190). A formação de um grupo de intelectuais abertamente militantes contrariaria, segundo o

autor, o senso comum conservador dominante nas elites brasileiras que postularia a

necessidade de distância entre a inteligência e a política. Desse modo, Ramos estava

diagnosticando o caráter recente e ainda incipiente do pensamento radical no Brasil.

Três décadas mais tarde, um diagnóstico similar foi elaborado pelo crítico literário

Antônio Cândido. Ainda que o autor não inclua o nacionalismo reformista do pré-1964

naquilo que denomina como um pensamento radical – identificando este último com autores

como Joaquim Nabuco, Manuel Bonfim e Sérgio Buarque de Hollanda - , o diagnóstico de

Cândido se aproxima ao de Ramos, o qual não chega a ser citado, ao apontar um

predomínio do conservadorismo no pensamento brasileiro, o qual seria, em suas próprias

palavras, o “maciço central” que dominaria a vida intelectual do país(Cândido, 1990).

Isso ajuda a entender o porque do recurso a autores como Vianna ou Torres. Na

ausência de uma intelligentsia brasileira, como ele mesmo lembra que teria existido na

Rússia, Alemanha ou Inglaterra, o sociólogo baiano procuraria seus precedentes naqueles

autores que, pelos motivos acima apontados, estariam mais próximos de seus pontos de

vista nacionalistas: os autoritários dos anos 20 e 30.

Nesse sentido, é útil recordar a diferença entre o caso brasileiro e o de outros países

latino-americanos. Se em Cuba ou no Peru pode-se, partindo das obras de autores como o

escritor e líder independentista José Martí ou o poeta e ensaísta indigenista Manuel

González Prada, reconstituir correntes de pensamento nacionalistas radicais desde o fim do

século XIX, as quais são explicitamente reivindicadas, no primeiro caso pelos

revolucionários de 1959 e, no segundo, pela APRA de Haya de La Torre ou pelo marxismo

indigenista de Mariátegui, o mesmo não ocorre no Brasil, como bem demonstram as

análises do próprio Ramos sobre a ausência de uma intelligentsia no país9.

Retomando o tema das descontinuidades entre o autor aqui em exame e os autoritários,

faz-se necessário, para entendê-las, reconstituir os diferentes contextos em que um e outros

atuaram. Nesse sentido, no que concerne aos temas e problemas que articularam as

reflexões dos intelectuais brasileiros, me parece particularmente importante frisar o divisor

de águas representado pelo tema do desenvolvimento.

É bom lembrar, seguindo as indicações de Bresser Pereira, que até a década de 40 a

ideologia dominante afirmava a “vocação agrícola” do Brasil (Bresser-Pereira, 1977: 271).

Segundo essa visão, calcada na teoria liberal das “vantagens comparativas”, a

economia brasileira seria propensa à uma especialização agro-exportadora, sendo a

indústria um elemento secundário e complementar. Os defensores da “vocação agrícola”

argumentavam que o investimento na industrialização seria artificial e imporia um custo com

o qual o país não poderia arcar. Entre os primeiros defensores da industrialização, se

destacou o empresário Roberto C. Simonsen, o qual travará, em meados da década de

1940, uma intensa polêmica com o liberal ortodoxo Eugênio Gudin. Tanto um quanto o outro

eram membros do Conselho Econômico da Presidência da República, e as posições pró-

industrialização de Simonsen acabaram prevalecendo.

Contudo, o grande salto teórico do desenvolvimentismo virá, em 1949, com a criação

da Comissão Econômica Para a América Latina (CEPAL) e a publicação do artigo El

Desarollo de América Latina y Sus Principales Problemas, do criador e primeiro dirigente do

órgão, o argentino Raúl Prebischh (Prébisch, 2000). A crítica de Prebisch à teoria das

9 Para um bom panorama do pensamento político-social latino-americano do final do século XIX até o início do XX, cf. (Hale, 1996).

vantagens comparativas e sua proposição da deterioração dos termos de troca deu aos

defensores da industrialização uma base sólida como nunca haviam tido. Ao longo dos anos

50, homens como Rômulo Almeida, Jesus Soares Pereira, Ignácio Rangel e o próprio

Guerreiro Ramos, engajados na elaboração de políticas públicas, difundirão as concepções

da CEPAL no interior do aparelho de Estado, exercendo grande influência sobre a política

econômica brasileira, calcada na substituição de importações. Em entrevista já citada

anteriormente, concedida no final da vida, Guerreiro Ramos afirma ter participado, ainda que

“de modo pouco profundo”, da Assessoria Econômica de Vargas e que está experiência teve

grande impacto sobre ele (Ramos, 1995: 147). Quanto à CEPAL, o sociólogo afirma que

seua influência foi “enorme”, qualificando o pensamento cepalino como “a coisa mais

eminente na vida cultural da América Latina” (Idem: 150).

Mais do que isso, a ideia do desenvolvimento – não apenas como crescimento

quantitativo da economia – mas como transformação qualitativa das estruturas econômicas

e sociais do país no sentido de uma sociedade industrial moderna ganhará a sociedade civil,

convertendo-se em ponto crucial de um amplo movimento nacionalista. Como exemplos do

vigor desse nacionalismo econômico, podem ser lembradas a campanha pela

nacionalização do petróleo e a polêmica, travada no governo JK, em torno da participação

do capital estrangeiro no processo de desenvolvimento.10 Desse modo, se pode ver como,

além da defesa de uma política industrializante, outro elemento ideológico fundamental do

Brasil, em especial entre 1945-1964, será o nacionalismo econômico. Esse nacionalismo

calcava-se na idéia de que a emancipação econômica do país era o alicerce de uma nação

moderna e soberana. Pode-se pois falar em um ideário “nacional-desenvolvimentista” ou,

como prefere Bresser-Pereira, em uma interpretação “nacional-burguesa” do país, na qual

se incluiriam, tanto os teóricos do ISEB, quanto os ligados ao PCB. Segundo Bresser-

Pereira, essa corrente interpretativa se distingue por sustentar que o Brasil estaria em uma

transição entre um passado “feudal” ou “pré-capitalista” e uma “Revolução burguesa” que

iria conduzir o país a um desenvolvimento autônomo (Bresser-Pereira, 1977: 272-274).

Não cabe dúvida de que Ramos foi um ator intelectual de primeiro plano nesse

contexto histórico. Basta pensar em sua discussão da industrialização como categoria

sociológica. Para o autor, a sociologia autêntica deveria partir da industrialização entendida

como “processo civilizatório” por meio do qual se poderia elevar os níveis de vida das

populações em países sub-desenvolvidos. Portanto, o sociólogo deveria subsidiar

teoricamente o processo de desenvolvimento nacional (Ramos, 1956: 108-113).

10 A polêmica em torno do capital estrangeiro teve grande impacto no ISEB, opondo o cientista político Hélio Jaguaribe, favorável aos investimentos externos, e Guerreiro Ramos, contrário. A disputa, ocorrida em 1958, culminaria com o desligamento de ambos intelectuais da instituição. Cf. os depoimentos de ex-isebianos contidos em (Toledo, 2005).

Nada mais distante do contexto político-intelectual de autores como Oliveira

Vianna ou, ainda mais, de Alberto Torres. Embora a crise da economia primário-

exportadora tenha por marco a crise de 1929, a argumentação aqui adotada sugere que a

hegemonia da tese da vocação agrícola ainda perduraria até a segunda metade dos anos

40, mesmo que o Estado, na prática, já levasse a cabo políticas de industrialização (Love,

1996). Além disso, os conflitos sociais e políticos que afloraram no bojo do processo de

desenvolvimento, estavam, na melhor das hipóteses, apenas anunciados na década de 30.

Dessa maneira se entende como, ainda que partilhando preocupações de

fundo, o nacionalismo de Oliveira Vianna e o de Guerreiro Ramos tenham seguido em

sentidos políticos divergentes, senão opostos.

Conclusão

Ao longo deste ensaio analisei a articulação, na obra do sociólogo Alberto Guerreiro

Ramos, de uma história das ideias, na qual se valorizava o pensamento autoritário, com um

projeto político nacional-popular, eminentemente progressista. Embora tal conexão possa

parecer estranha, meu argumento foi justamente o de que, nas condições brasileiras de

rarefação de um pensamento radical e aceleração do processo de desenvolvimento, esse

vínculo nada teria de incoerente, na medida em que formas de nacionalismo conservador e

de nacionalismo popular compartilham algumas afinidades eletivas: notadamente, a

priorização da análise da particularidade de um contexto sócio-histórico e a rejeição das

abstrações cosmopolitas.

Com isso, espero ter contribuído para o esclarecimento das idéias desse destacado

pensador do nacionalismo e do desenvolvimentismo brasileiros. Tal entendimento é tão

mais importante na medida em que uma parte da bibliografia acadêmica sobre o período

pré-1964 e, mais especificamente sobre o nacionalismo daquela época, se dedicou a

desqualificar ou diminuir obras como as de Guerreiro Ramos, em particular, e do ISEB, de

modo mais geral. Para Weffort, por exemplo, o nacional-reformismo, do qual as ideias

isebianas, entre as quais as de Guerreiro Ramos são explicitamente citadas, seriam formas

ideologicamente sistematizadas ou mais sofisticadas do populismo, entendido como culto

pequeno burguês do Estado (Weffort, 2003: 46-47). Para o cientista político uspiano, teria

sido justamente esta aliança entre a esquerda e o populismo uma das principais

responsáveis pela derrota daquelas em 1964.

Um juízo semelhante pode ser visto na obra de Toledo(1979), para quem o ISEB

teria sido um “aparelho ideológico”, em sentido althusseriano, a serviço do Estado

desenvolvimentista. Por fim, embora não utilize explicitamente o termo “populismo”, Maria

Sylvia Carvalho Franco parece seguir a mesma linha de raciocínio ao pensar o ISEB como

um grupo de intelectuais a serviço do capital, por promoverem a conciliação de classes em

nome de um suposto “interesse nacional” (Franco, 1978: 178 197).

Por trás desse juízo, está o pressuposto de que o nacionalismo é uma ideologia, no

sentido marxista de “falsa consciência”, ou seja, uma mistificação da realidade. Nessa

chave, haveria uma “realidade”, as classes sociais em conflito, e uma “ilusão”, a nação como

harmonização das classes. Ora, a análise do projeto político esposado por Guerreiro Ramos

em inícios dos anos 60 não autoriza sua caracterização como “conciliador”. O autor chega,

inclusive, a reconhecer a diferenciação dos interesses das classes como um fato novo e

positivo no cenário político da época. Quanto a responsabilizar o nacionalismo reformista

por sua própria derrota, como o faz Weffort, é a espécie de raciocínio que lê a história ex

post, sustentando que os resultados provam que os derrotados o foram porque sempre

estiveram errados. Dessa maneira, a bibliografia especializada careceu, por algum tempo,

de trabalhos que levassem as reflexões de autores como o sociólogo baiano devidamente a

sério, procurando fazer uma análise mais objetiva do conteúdo e alcance das suas obras.

Nesse sentido, como bem apontou Santos (1978), é útil sublinhar que Ramos

foi um dos pioneiros dos estudos de pensamento político brasileiro. Esse fato, por si

só, justificaria uma análise de como esse autor escreveu a história das ideias em seu

país. Como bem aponta Oliveira, o traço mais característico das reflexões de Ramos

sobre o a ciência social no Brasil é a busca de continuidades como parte do

processo mais amplo de construção nacional. Essa marca distingue sua contribuição,

por exemplo, da de Florestan Fernandes, o qual, como já se viu acima, enfatizava o

corte entre a produção “pré-científica” e a “científica (Oliveira, 1995: 124-125). Além

disso, a preocupação do sociólogo baiano em apontar as continuidades subjacentes

a obras produzidas em distintos contextos e, frequentemente, com sinais políticos

opostos, antecipa em boa medida esforços mais recentes de investigação, como os

de Santos e Brandão, aqui discutidos. Espero, nos limites deste trabalho, ter feito

justiça a seu esforço intelectual.

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