Eric Hobsbawm - Bandidos (Português)
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Transcript of Eric Hobsbawm - Bandidos (Português)
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E. J. Hobsbawm
FORENSE-UNIVERSITRIA
Rio de Janeiro
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Traduzido de BANDITS
Copyright (C) 1969 by E. J. Hobsbawm
Traduo de: Donaldson Magalhes Garschagen Primeira Edio brasileira maio de
1975 Segunda Edio brasileira Janeiro de 1976
Reservados os direitos de publicao desta traduo pela
EDITORA FORENSE-UNIVERSITRIA
Av. Erasmo Braga, 227 Gr. 309 Rio de Janeiro, RJ
Impresso no Brasil
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ndice
Prefcio ......................................................................................................... 7
1 O que o Banditismo Social? ................................................................ 10
2 Quem so os Bandidos? ........................................................................ 24
3 O Ladro Nobre ..................................................................................... 36
4 Os Vingadores ....................................................................................... 54
5 Os Haiduks ............................................................................................. 67
6 Os Aspectos Econmicos e Polticos do Banditismo............................... 81
7 Os Bandidos e a Revoluo .................................................................... 96
8 Os Expropriadores ................................................................................. 109
9 O Bandido como Smbolo ...................................................................... 128
Notas ............................................................................................................ 136
Bibliografia Contempornea ........................................................................ 139
OBS: Foi mantida a numerao de pgina original do livro impresso. A numerao est indicando sempre o final de cada pgina.
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Prefcio
Com exceo do Captulo 8, que se baseia em pesquisa original, a maior parte
deste livro fundamenta-se em obras de outros autores, ainda que, em certos casos,
sejam de difcil obteno. No que concerne aos numerosos pases cujo idioma
desconheo, ou cujas publicaes no consegui localizar, desejo expressar minha
gratido a amigos e colegas que, sabedores de meu interesse pelo assunto, me
auxiliaram com entusiasmo. Este auxlio contribuiu para muitas das referncias que
fao ao banditismo na Bulgria, Grcia, Hungria, Rssia, Turquia e Tunsia, e tambm
para muito do que est dito a respeito de vrios pases da Amrica Latina, da ndia,
da Itlia e da Espanha. Agradeo ainda aos especialistas em Robin Hood, e ainda a
numerosos seminrios realizados na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos, nos quais as
teses deste livro foram objeto de debate, e que me remeteram a fontes adicionais.
Cabe ainda uma palavra de agradecimento Biblioteca Widener, da Universidade de
Harvard, um dos melhores locais de pesquisa que conheo. Minhas dvidas
particulares esto registradas em notas de rodap, que reduzi ao mnimo, na
bibliografia e no final deste prefcio. Desejo manifestar um agradecimento especial a
Enzo Crea, de Roma, a Antoine Tellez, de Paris, e ao Sargento Jos Avalos, de Pampa
Grande, Argentina, agricultor e ex-policial, cujas lembranas dos bandidos de
Corrientes e do Chaco, por ele respeitados e perseguidos, confirmam em quase todos
os pontos a anlise do Captulo 3. Lamento s t-lo conhecido pessoalmente depois
de haver completado o texto deste livro.
Agora, duas breves notas metodolgicas. Em primeiro lugar, ficar claro que
minha tese a de que o banditismo
[pg. 7]
-
social constitui fenmeno de notvel uniformidade, em todas as pocas e
Continentes. Pode essa tese ser testada? Sim, na medida em que prev, num sentido
lato, como agiro os bandidos e que histrias sero contadas sobre eles em reas at
agora no pesquisadas. Este livro desenvolve o "modelo" esboado em meu livro
Primitive Rebels, que se baseou apenas em materiais europeus, principalmente
espanhis e italianos; contudo, espero que no haja conflito entre os dois trabalhos.
No obstante, quanto mais ampla a generalizao, tanto maior a probabilidade de
serem esquecidas peculiaridades individuais.
Em segundo lugar, baseei-me bastante numa fonte histrica um tanto
caprichosa poemas e baladas. No que concerne aos aspectos factuais do
banditismo, tais registros da memria pblica e do mito so, naturalmente, pouco
dignos de crdito, ainda que se baseiem, remotamente, em acontecimentos
verdicos; todavia, oferecem muitas informaes incidentais quanto ao meio-
ambiente do banditismo, pelo menos na medida em que no h razo para que tais
informaes estejam deturpadas. No entanto, h outra dificuldade mais sria. At
onde o "mito" do banditismo esclarece quanto ao comportamento real do bandido?
Em outras palavras, at que ponto os bandidos correspondem ao papel social que
lhes foi atribudo no drama da vida camponesa? Evidentemente, existe alguma
relao. Espero que, ao formul-la, eu no tenha ultrapassado os limites do bom
senso.
As informaes acima dirigem-se fundamentalmente aos socilogos e
historiadores sociais, que comeam a demonstrar vivo interesse pelo banditismo.
Entretanto, espero que este livro no interesse somente a eles, mas que possa ser
lido e analisado, com prazer e proveito, por todos que partilham a opinio exposta
por Charles MacFarlane, um dos primeiros a escrever sobre o assunto, em palavras
que podem servir de epgrafe a este ensaio:
-
"Existem poucos assuntos que nos interessem mais, genericamente, do que as aventuras
de salteadores e bandidos".
[pg. 8]
No que toca obteno e identificao das ilustraes, sou grato ao Prof. B.
Cvetkova, de Sofia, a C. A. Curwen, da Escola de Estudos Orientais e Africanos, Sra.
Feiling Black-burn, a Richard Rogers e Sra. Georgina Brckner.
Londres, junho de 1969.
E. J. HOBSBAWN
[pg. 9]
-
1
O que o Banditismo Social?
Somos tristes, verdade, mas porque somos sempre perseguidos. Os nobres usam a pena; ns, a carabina. Eles mandam na plancie; ns, nas montanhas.
Um velho bandido de Roccamandolfi
(Molise) citado em Molfese (1964), pg. 131.
Para a lei, quem quer que pertena a um grupo de homens que atacam e
roubam com violncia um bandido, desde aqueles que se apoderam de dinheiro
destinado a pagamento de empregados, numa esquina de cidade, at rebeldes ou
guerrilheiros organizados que no sejam oficialmente reconhecidos como tal. No
entanto, os historiadores e socilogos no podem utilizar uma definio to vaga.
Ocupar-nos-emos neste livro com apenas alguns tipos de ladres, ou seja, aqueles
que a opinio pblica no considera criminosos comuns. Ocupar-nos-emos
essencialmente com uma forma de rebelio individual ou minoritria nas sociedades
camponesas. Por convenincia, omitiremos o equivalente urbano do bandido-
rebelde rural, e pouco nos referiremos aos inmeros proscritos rurais que no so
camponeses de origem ou por lealdade, e sim cavalheiros-salteadores empobrecidos.
A cidade e o campo so demasiado diferentes, como comunidades humanas, para
serem discutidas facilmente nos mesmos termos, e, seja como for, os bandidos
rurais, como a maioria dos camponeses, no confiam nos citadinos e os odeiam. A
nobreza marginalizada (representada sobretudo pelos "cavalheiros salteadores" da
Alemanha, ao fim da Idade Mdia) mistura-se muito mais aos camponeses, mas o
relacionamento, que ser discutido nos Captulos 2 e 6, obscuro e complexo.
-
[pg. 10]
O ponto bsico a respeito dos bandidos sociais que so proscritos rurais,
encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer
parte da sociedade camponesa, e so considerados por sua gente como heris, como
campees, vingadores, paladinos da Justia, talvez at mesmo como lderes da
libertao e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. essa
ligao entre o campons comum e o rebelde, o proscrito e o ladro que torna o
banditismo social interessante e significativo. Alm disso, ela o distingue de dois
outros tipos de crime rural: as atividades de grupos originrios do "submundo"
profissional ou de meros pilhadores ("ladres comuns") e das comunidades para as
quais o roubo faz parte da vida normal, como, por exemplo, os bedunos. Em ambos
os casos, vtimas e atacantes so estranhos e inimigos. Os ladres profissionais e os
pilhadores consideram os camponeses como sua presa, e os sabem hostis. Por sua
parte, as vtimas consideram os atacantes como criminosos, segundo seus prprios
termos, e no apenas de acordo com que o diz a lei oficial. Seria inimaginvel que um
bandido social se apossasse da colheita dos camponeses (mas no a do senhor) em
seu prprio territrio, ou mesmo em outros lugares. Por conseguinte, aqueles que
assim procedem carecem daquela qualidade peculiar que caracteriza o banditismo
"social", claro que, na prtica, tais distines so muitas vezes menos claras do que
na teoria. Um homem pode ser um bandido social em suas montanhas natais, e um
simples ladro na plancie. No obstante, a anlise exige que estabeleamos a
diferena.
O banditismo social dessa espcie um dos fenmenos sociais mais
universais da Histria, e um daqueles de mais impressionante uniformidade.
Praticamente, todos os casos pertencem a dois ou trs tipos correlatos, e suas
variaes so relativamente superficiais. Ademais, essa uniformidade no decorre de
difuso cultural, mas constitui reflexo de situaes semelhantes nas sociedades
-
camponesas, ocorram elas na China, no Peru, na Siclia, na Ucrnia, ou na Indonsia.
Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Amricas, na Europa,
no mundo islmico, na sia meridional e
[pg. 11]
oriental, e at na Austrlia. Do ponto de vista social, parece ocorrer em todos os tipos
de sociedade humana que se situam entre a fase evolucionria da organizao tribal
e de cl, e a moderna sociedade capitalista e industrial, incluindo porm as fases da
sociedade consangnea em desintegrao e a transio para o capitalismo agrrio.
As sociedades tribais ou consanguneas conhecem a pilhagem, mas lhes falta
a estratificao interna que cria o bandido como uma figura de protesto e rebelio
social. Contudo, quando tais comunidades, especialmente aquelas familiarizadas com
as rixas e a pilhagem, como as de caadores e pastores, desenvolvem seus prprios
sistemas de diferenciao de classe, ou quando so absorvidas em sistemas
econmicos maiores, construdos sobre o conflito de classes, podem gerar um
nmero desproporcionadamente grande de bandidos sociais, como na Sardenha ou
no Kuncsg hngaro (a regio dos Cumans, um dos ltimos grupos de pastores
nmades da sia Central a se estabelecer na Europa). Ao se estudar essas regies,
difcil dizer precisamente em que ponto a prtica da pilhagem e as desavenas
familiares se convertem em banditismo social, quer na forma de resistncia aos ricos,
a conquistadores ou opressores estrangeiros, quer como resistncia a outras foras
que estejam destruindo a ordem tradicional das coisas tudo que pode estar ligado
nas mentes dos bandidos e, com efeito, na realidade. No entanto, com alguma sorte
talvez possamos fixar cronologicamente a transio dentro de uma ou duas geraes.
Nas montanhas da Sardenha, por exemplo, pode-se fixar essa transio no meio
sculo que medeou entre as dcadas de 1880 e 1930.
Na outra extremidade do desenvolvimento histrico, os modernos sistemas
-
agrrios, tanto capitalistas como ps-capitalistas, j no so os da sociedade
camponesa tradicional e deixam de produzir bandidos sociais. No pas que deu ao
mundo Robin Hood, paradigma internacional do banditismo social, no h registros
de bandidos sociais reais aps, digamos, o comeo do sculo XVII, embora a opinio
pblica continuasse a encontrar um substituto mais ou menos inadequado na
idealizao de outros tipos de criminosos, como o salteador de estradas. Num
sentido mais lato, a "modernizaco"
[pg. 12]
(vale dizer, a combinao de desenvolvimento econmico, comunicaes eficientes e
administrao pblica) priva qualquer banditismo, incluso o social, das condies nas
quais floresce. Na Rssia czarista, por exemplo, onde o banditismo era endmico ou
epidmico em quase todo o pas, at meados do sculo XVIII, no final daquele sculo
j desaparecera da vizinhana imediata das cidades, e por volta de meados do sculo
XIX j recuara, de modo geral, para as regies descolonizadas e ainda no pacificadas,
sobretudo para aquelas habitadas por grupos tnicos minoritrios. A abolio da
servido em 1861 assinalou o fim de uma longa srie de decretos governamentais
contra o banditismo; parece que o ltimo deles foi promulgado em 1864.
De outra parte, o banditismo social constitui fenmeno universal, que ocorre
sempre que as sociedades se baseiam na agricultura (inclusive as economias
pastoris), e mobiliza principalmente camponeses e trabalhadores sem terras,
governados, oprimidos e explorados por senhores, burgos, governos, advogados,
ou at mesmo bancos. encontrado em uma ou outra de suas trs formas principais,
cada uma das quais ser discutida num captulo distinto: o ladro nobre, ou Robin
Hood, o combatente primitivo pela resistncia ou a unidade de guerrilheiros formada
por aqueles que chamarei de haiduks e, possivelmente, tambm o vingador que
-
semeia o terror.
No fcil determinar at que ponto tal banditismo comum. Embora as
fontes nos proporcionem, em abundncia, exemplos de bandidos, raramente se
encontram estimativas quanto a seu nmero total, em atividade em dada poca, ou
comparaes quantitativas entre o nvel de banditismo em diferentes pocas.
Evidentemente, porm, esse nvel era quase
[pg. 13]
sempre modesto. A regio mais conturbada da Colmbia, por ocasio do auge da
anrquica guerra civil, depois de 1948, sustentava menos de quarenta grupos de
camponeses armados. Considerando-se que o grupo mdio tivesse entre dez e vinte
homens um nmero surpreendentemente uniforme no decorrer dos tempos, em
todos os Continentes teramos um total entre 400 e 800 homens para uma rea de
aproximadamente 23.000 km2, 166 povoaes rurais e uma populao rural de 6 a 7
milhes de habitantes.* 1 No comeo do sculo XX, a Macednia possua um nmero
substancialmente maior de grupos semelhantes, para uma populao de, digamos, 1
milho de habitantes; no entanto, como eram em grande parte financiados e
organizados por vrios governos, tambm representam muito mais do que o
banditismo espontneo a se esperar em tal rea. Ainda assim, duvidoso que o
nmero total de bandidos ultrapassasse um ou dois mil.2 Se considerarmos que os
bandidos no constituem mais do que 0,1% da populao rural, estaremos com toda
Talvez se deva fazer uma exceo possvel ou parcial para as peculiares sociedades de castas da sia Meridional hindu, onde o banditismo social inibido pela tendncia mostrada pelos ladres, como por todos os outros setores da sociedade, de formar castas ou comunidades fechadas. Contudo, como veremos, h afinidades entre alguns tipos de dacoits e os bandidos sociais.
* O nmero real de rebeldes armados durante esse perodo foi um pouco maior, mas os dados acima no representam boa medida sequer do mximo de banditismo em situaes que no sejam de guerra civil ou desagregao social.
1 Calculado com base em G. Guzman, O. Fals Borda, E. Umana Luna. La Violencia en Colombia. II, pgs.
287-97 (Bogot, 1964).
2 Le Brigandage en Macdoine: Un Raport Confidentiel au Gouvernement Bulgare. pg. 38 (Berlim, 1908);
informao do Prof. D. Dakin, do Birkbeck College.
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certeza, fazendo uma estimativa ultragenerosa.
Existem, decerto, notveis variaes de regio para regio. Tais variaes se
devem em parte geografia, em parte tecnologia e administrao, e em parte
estrutura social e econmica. O banditismo floresce quase invariavelmente em reas
remotas e inacessveis, tais como montanhas, plancies no cortadas por estradas,
reas pantanosas, florestas, ou esturios, com seu labirinto de ribeires, e atrado
por rotas comerciais ou estradas de grande importncia, nas quais a locomoo dos
viajantes, nesses pases pr-industriais, lenta e difcil. Freqentemente, basta a
construo de estradas modernas, que permitam viagens fceis e rpidas, para
reduzir bastante o nvel de banditismo. Favorecem-no a ineficincia administrativa e
a burocracia. No foi por acaso que, no sculo passado, o Imprio dos Habsburgos
resolveu o problema do banditismo com melhor xito do que o decrpito e
descentralizado Imprio Otomano, ou do que regies fronteirias meIhor
[pg. 14]
dizendo, regies de fronteiras mltiplas, como a Alemanha Central ou as partes da
ndia divididas entre os britnicos e os inmeros principados que viviam em
perptuas dificuldades. As condies ideais para o banditismo so aquelas em que os
homens que exercem a autoridade so cidados naturais do lugarejo, operando em
complexas situaes locais, e em que uma viagem de alguns poucos quilmetros
pode colocar o bandido alm da jurisdio ou mesmo do conhecimento de um
conjunto de autoridades e no territrio de outras, que no se importam com o que
acontece "no exterior".*
No obstante, fatores to bvios no explicam inteiramente as acentuadas
disparidades regionais muitas vezes encontradas, e que levaram o cdigo criminal da
China Imperial, por exemplo, a estabelecer distino entre "reas de banditismo"
* D. Eeckaute, "Brigands en Russie du 17
e au 19
e sile (Rev. Hist. Mod. & Contemp., XII, 1965, pgs. 174-5)
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(como as provncias de Szechuan, Honan, Anhwei, Hupeh, Shansi, partes de Kiangsu e
Xantungue) e outras.3 Nos departamentos peruanos de Tacna e Moquegua, em tudo
o mais perfeitamente adequados existncia de bandoleiros, no havia banditismo.
Por qu? Porque, afirma um historiador, "no existem aqui senhores de terras,
contratadores de mo-de-obra ou capatazes, nem domnio pleno, absoluto e
irrevogvel sobre os suprimentos d'gua".4 Em outras palavras, porque era menor a
insatisfao camponesa. Por outro lado, uma rea como Bantam no norte de Java,
era um centro permanente de banditismo no sculo XIX, conquanto fosse tambm
um centro permanente de rebelio. S um cuidadoso estudo regional pode mostrar
porque o banditismo era endmico em certas reas e dbil em outras partes do
mesmo pas ou da mesma regio.
Da mesma forma, somente o estudo histrico pormenorizado pode explicar
todas as suas variaes "diacrnicas". No entanto, podem-se fazer com toda
segurana as seguintes generalizaes:
O banditismo tendia a tornar-se epidmico em pocas de pauperismo ou de
crise econmica. O ntido aumento do
[pg. 15]
banditismo mediterrneo em fins do sculo XVI, para o qual Fernand Braudel chamou
ateno, refletiu o acentuado declnio das condies de vida dos camponeses nesse
perodo. Os Aheriya de Uttar Pradesh (ndia), sempre uma tribo de caadores,
criadores de aves e ladres, "no se transformaram em assaltantes de estradas seno
por ocasio da grande fome de 1833".5 Numa escala temporal muito mais curta, o
fornece boa lista de lugares na Rssia Europia, particularmente ligados ao banditismo.
3 E. Alabaster, Notes and Commentaries on the Chinese Criminal Law, pgs. 400-2 (Londres, 1899).
4 E.Lopez Albujar, Los Caballeros dei delito, pgs. 75-6 (Lima, 1936).
5 W. Crooke,The Tribes and Castes of the North West Provinces and Oudhe, I, pg. 49, 4 vols. (Calcut,
1896).
-
banditismo nas montanhas da Sardenha na dcada de 60 atingia o mximo, a cada
ano, sempre que vencia o arrendamento das terras utilizadas pelos pastores. Essas
observaes so de tal forma bvias que dispensam maiores explicaes. Do ponto
de vista do historiador, mais relevante estabelecer distino entre aquelas crises
que traduzem mudanas histricas de grande envergadura e aquelas de importncia
secundria, embora a distino s lentamente venha a ser percebida pelos
camponeses envolvidos, quando chegam a perceb-la.
Todas as sociedades rurais do passado estavam habituadas escassez
peridica ms colheitas e outras crises naturais e a catstrofes ocasionais,
imprevisveis em si, mas que certamente viriam a ocorrer mais cedo ou mais tarde,
como guerras, conquistas ou o rompimento do sistema administrativo do qual eram
uma parte pequena e remota. Todas essas catstrofes tendiam a multiplicar o
banditismo de um tipo ou de outro. Todas elas tendiam a passar, muito embora as
perturbaes polticas e as guerras tendessem tambm a deixar atrs de si bandos de
saqueadores e outros tipos de marginais por um considervel perodo de tempo,
sobretudo se os governos eram fracos ou divididos. Um eficiente Estado moderno
como a Frana aps a Revoluo foi capaz de liquidar em poucos anos a enorme
epidemia de banditismo (no-social) que assolou a Rennia na dcada de 1790. Por
outro lado, a desagregao social provocada pela Guerra dos Trinta Anos deixou
como saldo, na Alemanha, toda uma rede de bandos de salteadores, alguns dos quais
persistiram durante pelo menos mais um sculo. No obstante, no que tange
sociedade rural, as coisas tendem a voltar ao normal (inclusive ao volume
normalmente esperado de banditismo, social e de outros tipos) aps tais
perturbaes tradicionais do equilbrio.
[pg. 16]
-
A situao se mostra pouco diferente quando os fatos que desencadeiam
uma epidemia de banditismo no so para usarmos comparaes geogrficas
semelhantes aos terremotos no Japo ou s inundaes na Holanda, e sim reflexos de
mudanas de vulto, como o avano de geleiras numa era glacial, ou modificaes
irreversveis como a eroso do solo. Em tais circunstncias, as epidemias de
banditismo representam algo mais que uma simples multiplicao de homens
fisicamente aptos que, a passar fome, preferem tomar pelas armas aquilo de que
necessitam. Podem refletir a desagregao de toda uma sociedade, a ascenso de
novas classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistncia de uma
comunidade inteira ou de povos destruio de suas maneiras de viver. Ou podem
refletir, como se v na histria da China, a exausto do "mandato divino", a
decomposio social que no se deve a foras adventcias, mas que marca o fim
iminente de um ciclo histrico relativamente longo, prenunciando o fim de uma
dinastia e o surgimento de outra. Em tais pocas, o banditismo pode preludiar ou
acompanhar movimentos sociais de vulto, como revolues camponesas.
Alternativamente, ele prprio pode modificar-se, pela adaptao nova situao
social e poltica, ainda que, se tal ocorrer, quase certamente, o banditismo deixar de
ser social. No caso tpico dos dois ltimos sculos, a transio de uma economia pr-
capitalista para uma economia capitalista, a transformao social poder destruir
completamente o tipo de sociedade agrria que d origem aos bandidos, o tipo de
campesinato que os sustenta, e, ao assim fazer, colocar um ponto final na histria
daquilo que constitui o tema deste livro. Os sculos XIX e XX foram o grande
momento do banditismo social em muitas partes do mundo, tal como foram os
sculos XVI, XVII e XVIII, provavelmente, em muitas partes da Europa. No entanto,
hoje em dia, ele j se encontra quase extinto, salvo em algumas poucas reas.
Na Europa, o fenmeno s subsiste, em qualquer escala, nas montanhas da
Sardenha, muito embora as conseqncias de duas guerras mundiais e de revolues
-
tenham feito com que ele renascesse em vrias regies. No entanto, no sul da
[pg. 17]
Itlia, regio clssica dos banditti, o banditismo social s atingiu o auge h um sculo,
por ocasio da grande rebelio camponesa e das guerrilhas dos bandoleiros (1861-
65). Na Espanha, a outra ptria clssica dos bandidos, estes eram conhecidos por
todos os viajantes no sculo XIX. Ainda ocorre, como previsvel perigo para o turismo
da era eduardiana, no Homem e Super-Homem de Bernard Shaw. Na Grcia e nos
Balcs, o fenmeno provoca reminiscncias ainda mais recentes. No Nordeste do
Brasil, onde o banditismo entrou em sua fase epidmica aps 1870, atingindo o
apogeu no primeiro tero do sculo XX, o fenmeno chegou ao fim em 1940 e desde
ento extinguiu-se. Existiro decerto regies sobretudo, talvez, na sia Meridional
e Oriental, e em uma ou duas partes da Amrica Latina onde o banditismo ao
velho estilo ainda pode ser encontrado ocasionalmente, no sendo impossvel que
ele venha a surgir na frica subsarica numa escala mais aprecivel do que se sabe
haver ocorrido no passado. De modo geral, entretanto, o banditismo social um
fenmeno do passado, embora, s vezes, de um passado bastante recente. O mundo
moderno o matou, substituindo-o por suas prprias formas de rebelio primitiva e de
crime.
Que papel, se existe algum, desempenham os bandidos nessas
transformaes da sociedade? Como indivduos, so eles menos rebeldes polticos ou
sociais, e menos ainda revolucionrios, do que camponeses que se recusam
submisso, e que, ao faz-lo se destacam entre seus companheiros; ou so, ainda
mais simplesmente, homens que se vem excludos da carreira habitual que lhes
oferecida, e que, por conseguinte, so forados marginalidade e ao "crime".
Tomados em conjunto, representam pouco mais do que sintomas de crise e tenso
na sociedade em que vivem de fome, peste, guerra ou qualquer outra coisa que
-
abale essa sociedade. Portanto, o banditismo, em si, no constitui um programa para
a sociedade camponesa, e sim uma forma de auto-ajuda, visando a escapar dela, em
dadas circunstncias. Exceo feita sua disposio ou capacidade de rejeitar a
submisso individual, os bandidos no tm outras idias seno as do campesinato
(ou da parte do campesinato) de que fazem parte. So ativistas, e no idelogos ou
profetas dos quais se deve esperar
[pg. 18]
novas vises ou novos planos de organizao poltica. So lderes, na medida em que
homens vigorosos e dotados de autoconfiana, tendem a desempenhar tal papel;
mesmo enquanto lderes, porm, cabe-lhes abrir caminho a faco, e no descobrir a
trilha mais conveniente. Vrios chefes de salteadores do sul da Itlia na dcada de
1860, como Crocco e Ninco Nanco,* demonstraram dons de comando que
granjearam a admirao dos oficiais que os combatiam; mas, embora os "anos dos
bandidos" sejam um dos raros exemplos de um importante levante campons
dirigido por bandidos sociais, em nenhum momento parece que os lderes fora-da-lei
tenham pedido a seus comandados que ocupassem a terra, e s vezes pareciam at
incapazes de imaginar aquilo que hoje seria denominado "reforma agrria".
Se os bandidos tm realmente um "programa", ser tal programa a defesa ou
a restaurao da ordem de coisas tradicionais "como devem ser" (o que nas
sociedades tradicionais significa a maneira como se acredita que tenham sido em
algum passado real ou mtico). Os bandidos corrigem os erros, desagravam as
injustias, e ao assim proceder aplicam um critrio mais geral de relaes justas e
* Carmine Donatelli ("Crocco"), trabalhador rural e vaqueiro, tendo se unido ao exrcito dos Bourbons, matou um companheiro numa contenda, desertou e viveu como proscrito durante dez anos. Uniu-se aos rebeldes liberais em 1860, na esperana de uma anistia para seus crimes do passado, e posteriormente tornou-se um dos mais temveis chefes guerrilheiros e condutor de homens do partido Bourbon. Mais tarde fugiu para os Estados Papais, foi entregue ao governo italiano e sentenciado priso perptua. Muitos anos mais tarde, na priso, escreveu uma interessante autobiografia. Giuseppe Nicola Summa ("Ninco Nanco"), trabalhador sem terras de Avigliano, fugira da cadeia durante a libertao garibaldina de 1860. Na qualidade de lugar-tenente de Crocco, demonstrou tambm extraordinrios dotes como guerrilheiro. Morreu em 1864.
-
eqitativas entre os homens em geral, em particular entre os ricos e os pobres, os
fortes e os fracos. Trata-se de um objetivo modesto, que permite aos ricos
continuarem a explorar os pobres (mas no alm daquilo que tradicionalmente se
aceita como "justo"), aos fortes oprimirem os fracos (mas dentro dos limites do
aceitvel, e tendo-se em mente seus deveres sociais e morais). O objetivo dos
bandidos dispensa que no haja mais senhores, ou mesmo que no seja normal que
os senhores tomem as
[pg. 19]
-
mulheres dos servos, mas apenas que, depois de faz-lo, no fujam obrigao de
dar educao aos filhos bastardos. Nesse sentido, os bandidos sociais so
reformadores, e no revolucionrios.
Contudo, duas coisas podem converter esse objetivo modesto, posto que
violento, dos bandidos e do campesinato a que pertencem em verdadeiros
movimentos revolucionrios. A primeira a possibilidade de ele se tornar o smbolo,
ou mesmo a ponta-de-lana, da resistncia por parte de toda a ordem tradicional
contra as foras que a desagregam ou a destroem. Uma revoluo social no ser
menos revolucionria
[pg. 20]
por ocorrer em nome daquilo que o mundo externo considera como "reao", contra
o que ele considera "progresso". Os bandidos do reino de Npoles, como seus
camponeses, que se levantaram contra os jacobinos e os estrangeiros em nome do
Papa, do Rei e da Santa S, eram revolucionrios, como no o eram o Papa e o Rei
(como um lder de salteadores inusitadamente sutil disse, na dcada de 1860, a um
advogado cativo, que alegava apoiar, tambm ele, os Bourbons: "O senhor um
homem educado e um advogado: o senhor acredita realmente que estejamos
quebrando os ossos por causa de Francisco II?" 6). Combatiam no pela realidade do
reino Bourbon muitos deles, na verdade, haviam ajudado a derrub-lo alguns
meses antes, sob o comando de Garibaldi e sim pelo ideal da sociedade "boa de
antigamente", simbolizada naturalmente pelo ideal da igreja "boa de antigamente" e
do rei "bom de antigamente". Em poltica, os bandidos tendem a ser tradicionalistas
revolucionrios.
Tiro este exemplo de conversas com camponeses do Peru.
Com efeito Cipriano La Gala, "negociante" analfabeto de Nola, condenado por roubo com violncia em 1855, e que fugiu da cadeia em 1860, no era um lder salteador tpico.
6 F.Molfese, Storia del brigantaggio dopo d'Unit (Milo, edio de 1966), pg. 130.
-
O segundo motivo pelo qual os bandidos se tornam revolucionrios
inerente sociedade camponesa. Mesmo aqueles que aceitam a explorao, a
opresso e a submisso como norma da vida humana sonham com um mundo em
que no existam: um mundo de igualdade, fraternidade e liberdade, um mundo
totalmente novo, livre do mal. Raramente isto ser algo mais que um sonho.
Raramente ser mais que uma expectativa apocalptica, embora em muitas
sociedades persista o sonho do milnio: o Imperador Justo um dia aparecer, a
Rainha dos Mares do Sul um dia desembarcar (como na verso javanesa dessa
esperana submersa), e tudo mudar e ficar perfeito. No entanto, h momentos em
que o apocalipse parece iminente; em que toda a estrutura da sociedade existente,
cujo fim total o apocalipse simboliza e prev, parece realmente prestes a desmoronar
e em que a minscula luz da esperana se torna a luz de uma possvel alvorada.
Em tais momentos, os bandidos tambm se empolgam, como todos mais.
No so sangue do sangue de sua gente?
[pg. 21]
No so homens que, em sua prpria maneira limitada, mostraram que a vida
selvagem no agreste pode trazer liberdade, igualdade e fraternidade para aqueles
que pagam o preo da falta do lar, do perigo e da morte quase certa? (Um socilogo
moderno comparou seriamente os cangaceiros brasileiros a "uma espcie de
irmandade de confraternidade leiga", e uma coisa que impressionava os
observadores era a honestidade sem paralelos das relaes pessoais no seio do
bando de cangaceiros7). No reconhecem eles, consciente ou inconscientemente, a
superioridade do milnio ou do movimento revolucionrio em relao s suas
prprias atividades?
Na verdade, nada existe de mais surpreendente que essa coexistncia
7 M. I. P. de Queirs, Os Cangaceiros: les bandits d'honneur brsiliens, pg. 164, 142 (Paris, 1968).
-
subordinada do banditismo e de revolues camponesas de vulto, das quais muitas
vezes ele atua como precursor. A rea de Andaluzia tradicionalmente associada a
bandoleros, nobres ou no, tornou-se a rea tradicionalmente associada ao
anarquismo, dez ou vinte anos depois que eles entraram em declnio. O serto do
nordeste brasileiro, regio clssica dos cangaceiros, era tambm a dos santos, os
lderes messinicos rurais. Ambos os fenmenos floresceram juntos, mas os santos
eram maiores. Em uma das muitas baladas que cantam suas faanhas, Lampio
Jurou vingar-se contra todos, Dizendo "Nesse mundo s respeito O Padim Cio e mais ningum".8
E, como veremos, foi o Padre Ccero, o Messias de Juazeiro, quem segundo a
opinio pblica concedeu credenciais "oficiais" a Lampio. Historicamente,
caminham de mos dadas o banditismo e o mileniarismo as mais primitivas formas
de reforma e de revoluo. E quando sobrevm os grandes momentos apocalpticos,
os grupos de bandidos, aumentados pela fase de tribulao e expectativa, podem
insensivelmente converter-se em outra coisa. Podem, como em Java, fundir-se com
os enormes contigentes de aldees que abandonam campos e casas para vaguear
numa exaltada esperana; podem, como no sul da Itlia em 1861, transformar-se em
exrcitos camponeses. Podem, como Crocco em 1860, deixar
[pg. 22]
de ser bandidos e vestir a farda de soldados da revoluo.
Quando o banditismo se funde assim num movimento de maiores
propores, torna-se parte de uma fora capaz de mudar a sociedade, e que
efetivamente a muda. Uma vez que os horizontes dos bandidos so estreitos e
8 R. Rowland, "'Cantadores' del Nordeste brasileno" (Aportes 3 Jan. 1967, pg. 138). Para as verdadeiras
relaes entre este bandido e o Padre Ccero, mais complexas, cf. Estcio de Lima, O Mundo Estranho dos Cangaceiros, pgs. 113-14 (Salvador, Bahia, 1965) e O. Anselmo, Padre Ccero (Rio, 1968).
-
circunslitos, como os do prprio campesinato, os resultados de suas intervenes na
Histria talvez no sejam o que eles esperavam. Podem mesmo ser o oposto daquilo
que esperavam. Entretanto, isto no faz do banditismo uma fora histrica menor. E,
seja como for, quantos daqueles que realizaram as grandes revolues sociais do
mundo previram os resultados reais de seus esforos?
[pg. 23]
-
2
Quem so os Bandidos?
Na Bulgria, s so livres os pastores, os vaqueiros e os haiduks.
Panayot Hitov
O banditismo a liberdade, mas numa sociedade camponesa, poucos podem
ser livres. A maioria das pessoas est presa aos grilhes da autoridade e do trabalho,
um reforando o outro. O que faz os camponeses sucumbirem autoridade e
coero no tanto sua vulnerabilidade econmica muitas e muitas vezes so
praticamente auto-suficientes quanto sua imobilidade. Suas razes esto fincadas
na terra e na casa patriarcal, e ali devem permanecer como rvores, ou antes como
anmonas do mar ou outros animais aquticos, que se acomodam depois de uma
fase de jovial mobilidade. Assim que um homem se casa e possui uma propriedade,
est amarrado. Os campos tm de ser semeados, e preciso colher; at mesmo as
rebelies camponesas tm de ser interrompidas para que se faam as colheitas. As
cercas no podem ficar muito tempo sem ser reparadas. Mulher e filhos so como
uma ncora que prendem um homem a um local identificvel. Somente a catstrofe,
a aproximao do milnio ou a grave deciso de emigrar podem interromper o ciclo
fixo da vida agrcola, porm mesmo o imigrante tem de logo se reestabelecer em
outra parte, a menos que deixe de ser campons. A cerviz do campons est curvada
socialmente, porque em geral ela deve estar curvada no trabalho fsico em seu
campo.
Isto limita seriamente o recrutamento de bandidos. No impossibilita que um
campons adulto se torne um bandido, mas dificulta-o em muito, tanto mais porque
o ciclo anual do
-
[pg. 24]
roubo segue o mesmo ritmo do da agricultura, chegando ao auge na primavera e no
vero, decaindo durante o outono e o inverno (Contudo, as comunidades para as
quais as excurses de rapina proporcionam parte regular da renda, devem combin-
las com a agricultura ou o pastoralismo, e por isso suas atividades rapinantes
ocorrem fora da estao regular, como acontecia com os chuars tribais de Midnapur
(Bengala) no comeo do sculo XIX; ou so efetuadas por grupos especiais que
deixam atrs de si um nmero de gente suficiente para levar adiante a faina agrcola).
Para que possamos compreender a composio social do banditismo, ento,
devemos examinar basicamente a margem mvel da sociedade camponesa. A fonte
bsica de bandidos, e talvez a mais importante, se encontra naquelas formas de
economia ou de meio-ambiente rural onde a procura de mo-de-obra
relativamente pequena, ou que so demasiado pobres para empregar todos seus
homens aptos; em outras palavras, na populao rural excedente. As economias
pastoris e as reas de montanhas e solo pobre, duas coisas que geralmente
aparecem juntas, proporcionam um excedente permanente dessa espcie, que tende
a criar suas solues institucionalizadas nas sociedades tradicionais: emigrao
sazonal (como nos Alpes ou nas Montanhas Kabyle, na Arglia), o alistamento militar
(como na Sua, Albnia, Crsega e Nepal), rapina ou banditismo. O "mini-fundismo"
(preponderncia de propriedades demasiado pequenas para manter uma famlia)
pode ter o mesmo efeito. Provoca-o tambm, por motivos ainda mais bvios, a falta
de terras. O proletrio rural, desempregado durante grande parte do ano,
"mobilizvel", de uma forma como no o o campons. Dos 328 "malfeitores" (ou
antes rebeldes e guerrilheiros rurais), cujos processos foram previstos em 1863 pela
Corte de Apelao de Catanzaro (Calbria, Itlia), 201 foram caracterizados como
ajudantes de roa ou diaristas, apenas 51 como camponeses, quatro como
-
fazendeiros, 24 como artesos.9 bvio que em tais ambientes existe no s
abundncia de homens que podem abandonar, pelo menos temporariamente, a
economia rural, mas que tm de procurar outras fontes de renda. Nada mais natural
que alguns deles se trans
[pg. 25]
formem em bandidos, ou que as regies montanhosas e pastoris devam ser as zonas
clssicas de suas atividades.
Ainda assim, nem todos os homens de tais regies tendem igualmente a se
tornarem bandidos, ainda que sempre haja grupos cuja posio social lhes d a
necessria liberdade de ao. O mais importante desses grupos compreende os
homens jovens, entre a puberdade e o casamento, isto , antes que as
responsabilidades de famlia lhes pesem nas costas (Fui informado de que nos pases
onde se permite um fcil divrcio unilateral, o perodo entre o repdio de uma
esposa e outro casamento pode constituir outro episdio de relativa liberdade, mas,
como acontece na situao anloga dos vivos,
[pg. 26]
9 Molfese, ob. cit., pgs. 127-28.
-
tal liberdade s poder sobrevir quando no existem filhos pequenos a cuidar ou
quando se encontram parentes que se encarreguem deles). Mesmo nas sociedades
camponesas, a juventude uma fase de independncia e de rebelio em potencial.
Muitas vezes unidos em grupos formais o informais da mesma idade, os jovens
podem borboletear de emprego para emprego, brigar e errar pelo mundo. Os
szgeny lgeny ("rapazes pobres") das plancies hngaras representavam um
-
exemplo desses bandidos em embrio; inofensivos quando ss, embora no avessos
a furtar um ou dois cavalos, passavam facilmente ao banditismo quando unidos em
bandos de vinte ou trinta, com um esconderijo inacessvel. Houve mesmo quem
afirmasse (Eberhard) que os grupos de bandidos chineses eram formados,
essencialmente, por esses dissidentes temporrios rurais. Seja como for, no resta
qualquer dvida de que o bandido tpico era jovem. Dois teros dos salteadores de
Basilicata, na dcada de 1860, tinham menos de 25 anos. De 59 bandidos de
Lambayeque (Peru), 49 eram solteiros.10 Diego Corrientes, o bandido-heri clssico
de Andaluzia, morreu com 24 anos; Janosik, seu equivalente eslovaco, com 25; e
Lampio, o famoso cangaceiro do nordeste brasileiro, comeou sua carreira entre os
17 e os 20 anos. Os escritores podem ser bons observadores: "Mehmed Magro", o
heri de uma saga popular turca, homiziou-se nas Montanhas Taurus na
adolescncia.
O segundo grupo de homens livres mobilizveis para o banditismo, em
importncia, so aqueles que, por um motivo ou outro, no se acham integrados na
sociedade rural e que, por isso, so tambm forados marginalidade legal. Os
bandos de rasboiniki que infestavam as reas sem estradas e esparsamente
populadas da velha Rssia se compunham de tais elementos muitas vezes
migrantes em demanda dos espaos livres do sul e do leste, onde ainda no haviam
chegado a senhoria, a servido e o governo, em busca daquilo que mais tarde se
tornaria a perspectiva conscientemente revolucionria de Zemlya i Volya (Terra e
Liberdade). Alguns jamais chegavam l, e todos tinham de viver enquanto para ali se
dirigiam. Assim, servos foragidos, homens livres arruinados,
[pg. 27]
fugitivos de fbricas senhoriais ou governamentais, evadidos de seminrios, prises,
10
E. Hobsbawm, Primitive Rebels, pg. 18 (Manchester, 1959); Lopez Albujar, ob. cit., pg. 126.
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do Exrcito ou da Marinha, homens sem lugar determinado na sociedade, como
filhos de popes, formavam ou se uniam a bandos de salteadores, que se podiam
fundir com as atividades de rapina de comunidades fronteirias como os cossacos e
minorias nacionais ou tribais (Com relao aos cossacos, vide o Captulo 5).
Entre esses marginais, desempenhavam papel importante os soldados, os
desertores e ex-militares. Boas razes tinha o Czar para fazer com que a conscrio
de seus soldados fosse perptua, ou praticamente perptua, de modo que seus
parentes liam o servio fnebre ao se despedirem deles sada da aldeia. Homens
que voltam de longe, sem amo nem terra, representam um perigo para a
estabilidade da hierarquia social. Os ex-militares, tal como os desertores, constituem
matria-prima natural para engrossar as fileiras do banditismo. Com desusada
freqncia, vemos lderes dos salteadores do sul da Itlia, depois de 1860, serem
descritos como "ex-soldado do Exrcito Bourbon" ou "trabalhador sem terras, ex-
soldado". Na verdade, em certas reas essa transformao era normal. Por que,
perguntava um boliviano progressista em 1929, os ex-militares que voltam para suas
povoaes entre os ndios aimar no atuam como educadores e agentes da
civilizao, em lugar de "se transformarem em parasitas e degenerados que se
convertem em lderes dos bandidos dessa regio?"11 A pergunta era justa, mas
retrica. Os ex-militares podem servir como lderes, educadores ou funcionrios
municipais, e todos os regimes socialmente revolucionrios usam seus exrcitos
como escolas de treinamento com este fim. Mas quem esperaria que tal acontecesse
na Bolvia feudal?
Com exceo dos soldados que regressam, poucas pessoas se acham de todo,
posto que, temporariamente, alheias economia da aldeia, embora ainda integradas
sociedade camponesa (como normalmente no ocorre aos ciganos e outros Volk
11
Alejandro Franco, "El Aymara dei Siglo XX", Amauta, Lima, 23, 1929, pg. 88.
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fahrendes, ou nmades). No obstante, a economia rural oferece algumas funes
que se acham fora da rotina comum do trabalho e da faixa imediata de controle
social, quer pelos governantes, quer pela opinio pblica dos governados.
[pg. 28]
L esto, mais uma vez, os pastores, sozinhos ou em grupos grupos especiais, s
vezes secretos nos planaltos durante o vero, ou vagueando como seminmades
pelas amplas plancies. Existem os homens armados e os guardas dos campos, cuja
funo no trabalhar nas plantaes, os tropeiros, os carroceiros e os
contrabandistas, os menestris e outros. No so vigiados, mas antes vigiam. Na
verdade, na maioria das vezes as montanhas constituem seu mundo comum, no qual
no entram os senhores das terras e os lavradores, e onde os homens no comentam
muito o que vem ou que fazem. Nesse meio os bandidos se encontram com
pastores, e os pastores imaginam se devem tornar-se bandidos.
As fontes de bandidos em potencial que at aqui consideramos, so todas
coletivas, ou seja, categorias sociais de homens mais tendentes a abraar o
banditismo do que os membros de alguma outra categoria. Evidentemente, so da
mxima importncia. Permitem-nos, por exemplo, formular generalizaes breves,
aproximadas, porm no fundamentalmente tendenciosas como: "O grupo de
bandidos tpico de uma rea montanhosa consiste de pastores jovens, trabalhadores
sem terras e ex-soldados, no sendo verossmil que possua artesos ou homens
casados com filhos". Tais frmulas no esgotam o problema, mas cobrem parte
surpreendentemente grande do campo. Por exemplo, dos lderes de bandoleiros do
sul da Itlia na dcada de 1860, aqueles dos quais dispomos de descries
ocupacionais, incluem 28 "pastores", "boiadeiros", "ex-militares", "trabalhadores
sem terras" e "guardas de campos" (ou combinaes dessas ocupaes), apenas cinco
-
outras.12 Entretanto, h outra categoria de bandidos em potencial, de certa forma a
mais importante; a participao nessa categoria , por assim dizer, individual e
voluntria, ainda que possa combinar em parte com as outras. Formam-na os
homens que no esto dispostos a aceitar o papel social dcil e passivo do campons
submisso; os arrogantes e recalcitrantes, os rebeldes individuais. So eles, na frase
familiar clssica do campons, os "homens que se fazem respeitar".
Talvez no haja muitos deles na sociedade, camponesa comum, mas sempre
se encontram alguns. So eles os homens
[pg. 29]
que, diante de um ato de injustia ou de perseguio, no se curvam docilmente
fora ou superioridade social, preferindo tomar o caminho da resistncia e da
marginalidade. Pois cumpre lembrar que, se a resistncia a tais atos de opresso o
ponto de partida caracterstico da carreira de um ladro "nobre", para cada
campons que resiste deve haver dezenas e dezenas que aceitam a injustia. Um
Pancho Villa, que defende a honra de uma me violada, constitui a exceo em
sociedades em que os senhores e seus asseclas fazem o que querem com as moas
aldes. So estes os homens que firmam seu direito de serem respeitados, inclusive
por outros camponeses, pela luta declarada e que ao tomar essa atitude usurpam
automaticamente o papel social de seus "superiores", que, como no sistema social
clssico da Idade Mdia, possuem o monoplio das armas. Eles podem ser os dures,
que apregoam sua valentia com fanfarronadas, portando armas ou bastes, mesmo
quando os camponeses no tm o direito de us-los, vestindo-se de maneira
descuidada e bizarra, assumindo gestos que simbolizam a valentia. O "porrete" da
velha aldeia chinesa (geralmente traduzido como "tirano de aldeia" na velha China)
usava o rabicho solto, com a extremidade enrolada em volta da cabea e do pescoo;
12
Baseado em Molfese, ob. cit., pg. 367-82.
-
os sapatos deliberadamente gastos no salto; as perneiras abertas para deixar
aparecer o caro revestimento. Muitas vezes se dizia que ele provocava o magistrado
"por pura gabolice".13 A roupa de vaquem dos boiadeiros mexicanos, que se tornou o
traje clssico dos cowboys dos filmes de faroestes, e as vestimentas mais ou menos
equivalentes dos gachos e llaneros dos pampas sul-americanos, dos btyars da
puszta hngara, dos majos e flamencos da Espanha, so exemplos de smbolos
semelhantes de inconformsmo no mundo ocidental. possvel que esse simbolismo
tenha encontrado sua expresso mais elaborada nas roupas adornadas de ouro e ao
do haiduk ou klepht balcnico. Isto porque, como em todas as sociedades tradicionais
e de lenta transformao, at mesmo o grupo fluido dos pobres inconformistas se
formaliza e se faz reconhecer atravs de sinais exteriores. A roupa do valento rural
um cdigo que diz: "Este homem no um fraco".
[pg. 30]
Aqueles "que se fazem respeitar" no se tornam automaticamente bandidos,
ou pelo menos bandidos sociais. Podem fugir ao destino dos camponeses tornando-
se guardas da aldeia, servidores do senhor ou soldados (o que significa bandidos
oficiais de vrias espcies). Podem cuidar de sua prpria vida e transformar-se numa
burguesia rural desptica, como os mafiosi da Siclia. Podem ainda tornar-se o tipo de
marginal a respeito dos quais os homens cantam baladas: paladinos, heris e
vingadores. A rebelio que movem individual, solapada social e politicamente, e em
condies normais isto , no-revolucionrias no constitui uma vanguarda de
revolta popular, e sim o produto e contrapartida da passividade geral dos pobres.
Representam esses homens a exceo que confirma a regra.
As categorias analisadas acima mais ou menos esgotam as fontes das quais
so recrutados os bandidos camponeses. Contudo, cabe-nos considerar
13
A. H. Smith, Village Life in China, pgs. 213-17 (Nova lorque-Chicago-Toronto, 1899).
-
sucintamente outros dois reservatrios de violncia e roubo rural, s vezes
corretamente, mas quase sempre erroneamente, confundidos com o banditismo
campons: robber barons e criminosos.
Salta aos olhos que fidalgos rurais empobrecidos proporcionam uma fonte
inesgotvel de elementos marginalizados. As armas so privilgio seu; a luta, sua
vocao e a base de seu sistema de valores. Boa parte dessa violncia
institucionalizada em atividades como a caa, a defesa da "honra" pessoal e familiar,
duelos, desagravos, etc, ou canalizada por governos cuidadosos para fins
politicamente teis ou pelo menos inofensivos, como o servio militar ou a
administrao colonial. Os Mosqueteiros de Dumas, produto do notrio bero de
cavalheiros sem vintm, a Gasconha, eram evidentemente pouco mais do que
valentes bem-nascidos e portadores de licena oficial, em tudo o mais semelhantes
aos desordeiros contratados como guardas pelos latifundirios italianos ou ibricos.
Assim eram tambm muitos dos conquistadores espanhis. Contudo, h situaes
em que tais fidalgotes empobrecidos se tornam verdadeiros marginais ou ladres
(vide Captulo 6). Podemos conjecturar que mais provvel que os cavalheiros fora-
da-lei ingressem no domnio do mito e da
[pg. 31]
balada populares a) quando podem fazer parte de um movimento geral de
resistncia de alguma sociedade arcaica contra forasteiros ou contra conquista
externa, ou b) quando s existe dbil tradio de rebelio camponesa ativa contra a
injustia senhorial. menos provvel que tal acontea quando o elemento de luta de
classes mais acentuado, ainda que, naturalmente, em pases com alta proporo de
"fidalgos", como a Polnia, a Hungria ou a Espanha, onde formavam talvez 10% da
populao, constitussem grande pblico para as baladas e romances a respeito deles
-
prprios.*
H ainda uma diviso mais ntida entre os bandidos rurais e o submundo de
elementos urbanos ou nmades, que existia nos interstcios da sociedade rural, mas
que claramente no pertencia a ela. Nas sociedades tradicionais, os criminosos so,
quase por definio, marginais que formam sua prpria sociedade isolada, seno
uma anti-sociedade de "tortos", que reflete a dos "honrados". Normalmente, falam
sua prpria linguagem (argot, cant, cal, Rotwelsch, gria). Suas associaes se fazem
com outras ocupaes ou comunidades marginais, como os ciganos, cujo idioma
forneceu to forte contribuio para a gria dos criminosos franceses e espanhis, e
os judeus, que contriburam ainda mais para o vocabulrio alemo (A maior parte dos
bandidos camponeses no fala nenhum tipo de gria, mas simplesmente uma verso
do dialeto local). So inconformistas, ou, antes, anticonformistas, por prtica e por
ideologia; tomam o lado do diabo, e no o de Deus;** se so religiosos, favorecem a
heresia, em oposio
[pg. 32]
ortodoxia. No sculo XVII, os vilos cristos da Alemanha pediam para participar
dos servios religiosos dos judeus na cadeia, e h bons indcios (que ecoam na pea
Os Ladres, de Schiller), que bandos alemes do sculo XVIII constituam abrigo para
sectrios libertinistas ou antinmicos, tal como os sobreviventes do anabatismo da
Alemanha central.14 Em nenhum sentido, os bandidos camponeses so heterodoxos,
* Dois fatores complicam a classificao das canes e baladas sobre bandidos. O primeiro a tendncia da cultura "oficial" para elev-los socialmente como preo de assimil-los; ou seja, transformar Robin Hood num injustiado Conde de Huntingdon; o segundo a tendncia de todos os homens livres das sociedades rurais do tipo feudal para assimilar seu prprio status ao nico modelo familiar de "liberdade", isto , o status da "nobreza". possvel que o ltimo fator explique a crena de que legtimos bandidos camponeses hngaros do sculo XIX, como Rosza Sandor e Sbry Jszi, fossem nobres de velha cepa.
** Um ladro que no houvesse feito pacto com o diabo era algo de inimaginvel, sobretudo no sculo XVI, e
at pocas recentes o diabo tem ocupado o lugar preponderante no sistema dogmtico dos ladres". Esta era a opinio de Av-Lallemant, cuja obra, em quatro volumes, Das Deutsche Caunerthum (1858-62), constitui fonte inestimvel para o estudo do submundo pr-industrial.
14 Para detalhes, V. G. Kraft, Historische Studien zu Schillers Schauspiel 'Die Rauber' (Weimar, 1959).
-
mas partilham do sistema de valores dos camponeses comuns, o que inclui sua
carolice e sua desconfiana em relao a estranhos (Assim, exceto nos Balcs, a
maioria dos bandidos sociais da Europa central e oriental antisemita).
Onde bandos de ladres criminosos vagueiam pelos campos, como em partes
da Europa central nos sculos XVII e XVIII, ou na ndia, podem, portanto, ser
normalmente diferenciados dos bandidos sociais, tanto por seus membros, como por
sua maneira de atuar. Tendem a ser formados por membros de "tribos e castas
criminosas" ou por indivduos de grupos proscritos. Assim, o grupo de Crefeld e
Neuss, da dcada de 1790, tal como o grupo de Keil, era composto em sua maior
parte de amoladores de facas, ao passo que, em Hesse-Waldeck, havia um bando
formado principalmente por maltrapilhos. Cerca de metade do bando de Salembier,
que aterrorizava o Pas-de-Calais no mesmo perodo, era constitudo de bufarinheiros,
receptadores, saltimbancos, etc. O temvel bando dos Pases Baixos, como a maioria
de suas diversas subunidades, era em grande parte judeu. E assim por diante. As
vocaes criminosas eram freqentemente hereditrias: a ladra bvara Schattinger
mantinha uma tradio familiar de 200 anos, e mais de 20 de seus parentes, inclusive
o pai e uma irm, estavam na cadeia ou haviam sido executados.15 No surpreende
que no procurassem as boas graas dos camponeses que, como todas as pessoas "de
bem", eram seus inimigos, opressores e vtimas. Assim, os bandos de criminosos
careciam das razes locais dos bandidos sociais, mas ao mesmo tempo no estavam
confinados pelos limites do territrio alm do qual os bandidos sociais raramente
podiam aventurar-se com segurana. Faziam parte de redes, amplas, posto que
frouxas, de um submundo que se podia estender sobre meio Continente,
[pg. 33]
15
F. Av-Lallemant, Das deutsche Gaunerthum, I, 241 (Leipzig, 1858-62). Para confirmao das diferenas entre criminosos e bandidos, expostas por um perito mdico-legal, com experincia de ambos, V. E. de Lima, ob. cit., passim; G. Sangnier, Le brigandade dans le Pas-de-Calais, pgs. 172, 196 (Blangermont, 1962).
-
e que certamente adentravam nas cidades que constituam terra incgnita para os
bandidos camponeses, que as temiam e odiavam. Para os vagamundos, nmades,
criminosos e outros elementos dessa estirpe, a espcie de rea em que atuava a
maioria dos bandidos sociais representava to-somente local de mercados ou feiras
anuais, uma rea a ser ocasionalmente pilhada, ou, no mximo (por exemplo, se
colocada estrategicamente perto de vrias fronteiras), quartel-general adequado
para operaes mais amplas.
Entretanto, no se pode simplesmente excluir os criminosos do estudo do
banditismo social. Em primeiro lugar, onde, por um motivo ou outro, o banditismo
social no florescera ou se extinguira, criminosos comuns adequados podiam ser
idealizados e ganhar os atributos de Robin Hood, sobretudo quando se concentravam
em assaltar mercadores, viajantes ricos e outras pessoas que no desfrutavam de
muita simpatia dos pobres. Assim, na Frana, Inglaterra e Alemanha do sculo XVIII
celebravam-se personagens como Dick Turpin, Cartouche e Schinderhannes, que
substituam os verdadeiros Robin. Hoods que na poca j haviam desaparecido
nesses pases.*
Em segundo lugar, os proscritos involuntrios do campesinato, como os ex-
soldados, desertores e pilhadores, que abundavam nos perodos de desordem e de
guerras, serviam como elo entre o banditismo social e o anti-social. Tais homens ter-
se-iam ajustado facilmente a bandos sociais, mas ligavam-se com a mesma facilidade
aos outros, levando para eles alguns dos valores e pressupostos de seu meio-
ambiente nativo. Em terceiro lugar, os imprios pr-industriais estabelecidos e
permanentes haviam desde muito criado um submundo duplo: no s o do proscrito,
mas tambm aquele da defesa mtua e da oposio no oficial, exemplificado pelas
* Dick Turpin, 1705-39; Cartouche, 1693-1721; Johannes Bckler (Schinderhannes), 1783-1803. O outro heri-bandido francs do sculo XVIII, Robert Mandrin (1724-55), era um candidato um pouco menos conveniente idealizao. Era um contrabandista profissional da regio de fronteira franco-sua, profisso que ningum jamais considerou criminosa, exceto os governos; alm disso, estava empenhado numa campanha de vingana.
-
grandes e duradouras sociedades secretas da China Imperial
[pg. 34]
ou do Vietnam, ou talvez por organizaes como a Mfia siciliana. Tais sistemas e
redes polticas no-oficiais, ainda muito mal compreendidos e conhecidos, podiam
alcanar todos aqueles que se encontravam fora da estrutura oficial do poder e
contra ela, inclusive os bandidos sociais e os grupos marginais. Podiam, por exemplo,
proporcionar a uns e a outros alianas e recursos que, em certas circunstncias,
transformavam o banditismo num ncleo de efetiva rebelio poltica.
Todavia, ainda que na prtica o banditismo social nem sempre possa ser
separado nitidamente de outros tipos de banditismo, isto no afeta a anlise
fundamental do bandido social como um tipo especial de protesto e rebelio
camponesa. E este o tema principal deste livro.
[pg. 35]
-
3
O Ladro Nobre
Naquela noite a lua estava baa e a luz das estrelas enchia o cu. Haviam avanado pouco mais de
cinco quilmetros quando viram o grande nmero de carroas, e nos estandartes sobre eles se lia
claramente: "O gro dos justos e a Toca dos Ladres Leais".
O Shui Hu Chuan
PERVERSO: Um homem que mata cristos sem um motivo profundo. De um teste de
associao de palavras dado ao famoso bandido calabrs Musolino (E. Morsello
e S. de Sanctis, Biografia di un Bandito: Giusepe Musolino de fronte alia
psichiatria ed alla sociologia, Milo, sem data).
Robin Hood, o ladro nobre, o tipo de bandido mais famoso e popular em
todo mundo, o heri mais comum de baladas e canes na teoria, ainda que no seja
assim na prtica. Nenhum mistrio existe nessa desproporo entre a lenda e o fato,
no mais do que na divergncia entre as realidades da cavalaria medieval e o sonho
cavalheiresco. Robin Hood aquilo que todos os bandidos camponeses deviam ser;
entretanto, sendo as coisas como so, poucos deles possuem o idealismo, a
abnegao ou a conscincia social para corresponder a seu papel, e talvez poucos
possam dar-se a esse luxo. No entanto, aqueles que o fazem e h registros de
autnticos Robin Hoods recebem a venerao devida aos heris, e at aos santos.
Diego Corrientes (1757-81), o ladro nobre da Andaluzia, foi, segundo a opinio
popular, semelhante a Cristo: foi trado, entregue a Sevilha num domingo, julgado
-
numa sexta-feira de maro, e jamais matara algum.16 O verdadeiro Juro Janosik
(1688-1713) era, como a maioria dos bandidos
[pg. 36]
sociais, um ladro provinciano de algum confim perdido dos Crpatos, cuja existncia
dificilmente atrairia a ateno das autoridades da capital. Entretanto, centenas de
canes a seu respeito sobrevivem at nossos dias. Por outro lado, tamanha a
necessidade de heris e campees que, no existindo autnticos, candidatos pouco
adequados so levados a representar o papel fora. Na vida real, a maioria dos
16
C. Bernaldo de Quiros, El Bandolerismo en Espaha y Mxico, pg. 59 (Mxico, 1959).
-
Robin Hoods era tudo, menos nobre.
Convm, portanto, que comecemos com a "imagem" do ladro nobre, que
define tanto seu papel social como sua relao com os camponeses comuns. Seu
papel o do campeo, aquele que corrige os erros, que dispensa a justia e promove
a eqidade social. Sua relao com os camponeses de solidariedade e identidade
totais. A "imagem" reflete ambas as coisas, e pode ser sintetizada em nove pontos.
Primeiro, o ladro nobre inicia sua carreira de marginalidade no pelo crime,
mas como vtima de injustia, ou pela
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perseguio, pelas autoridades, devido a algum ato que consideram criminoso, mas
que aceito pelo costume local.
Segundo, ele "corrige os erros".
Terceiro, "tira dos ricos e d aos pobres".
Quarto, "nunca mata, a no ser em legtima defesa ou vingana justa".
Quinto, "se sobrevive, retorna a sua gente como cidado honrado e membro
da comunidade. Na verdade, ele nunca chega realmente a deixar a comunidade".
Sexto, "ele admirado, ajudado e mantido por seu povo!".
Stimo, "morre invariavelmente, e apenas por traio, uma vez que nenhum
membro decente da comunidade auxiliaria as autoridades contra ele".
Oitavo, ele " pelo menos em teoria invisvel e invulnervel".
Nono, ele "no inimigo do rei ou imperador, fontes da Justia, mas apenas
da nobreza local, do clero e de outros opressores".
Com efeito, os fatos em grande parte confirmam a imagem, na medida em
que ela representa a realidade e no a expresso de uma fantasia. Na grande maioria
-
dos casos registrados, os bandidos sociais realmente comeam suas carreiras com
alguma disputa de carter no-criminal, questo de honra ou como vtimas daquilo
que eles e seus vizinhos tm na conta de injustia (e que pode no passar da
conseqncia automtica de uma disputa entre um pobre e um rico). Angelo Duca ou
"Angiolillo" (1760-84), bandido napolitano do sculo XVIII, tornou-se um proscrito
devido a um litgio, a respeito de reses extraviadas, com um guarda de campo do
Duque de Martina; Pancho Villa, no Mxico, vingando a honra de sua me, vtima de
um proprietrio de terras; Labareda, como praticamente todos Os cangaceiros do
Brasil, por causa de uma questo de honra familiar; Giuliano um simples
contrabandista, ocupao to honrosa quanto qualquer outra nas montanhas
por resistir a um coletor de impostos, a quem no podia subornar, por no ter
dinheiro. E assim por diante. E, na verdade, essencial que o Robin Hood comece
dessa maneira, pois se fosse um criminoso de verdade, segundo
[pg. 38]
os padres ticos de sua comunidade, como poderia valer-se do apoio inequvoco
dela?
Comear como vtima da injustia significa estar imbudo da necessidade de
desagravar pelo menos uma afronta: a que foi cometida contra o prprio bandido.
muito natural que os verdadeiros bandidos demonstrem muitas vezes aquele
"esprito selvagem de justia" que os observadores percebiam em Jos Maria "El
Tempranillo" (o Don Jos, original de Carmen), que atuava nas montanhas andaluzas
entre 1816 e 1832. Na lenda, muitas vezes esse desagravo de afrontas toma a forma
de uma literal transferncia de riqueza. Consta que Jesse James (1847-82) haja
emprestado a uma viva pobre 800 dlares para que ela saldasse sua dvida com um
banqueiro, e depois assaltado o banqueiro e recuperado o dinheiro; por tudo que
-
sabemos a respeito dos irmos James, trata-se de uma histria pouco plausvel.* Em
casos extremos, como no drama Os Ladres, de Schiller, o bandido nobre oferece sua
prpria vida em troca de justia para algum pobre. Da mesma forma, na vida real (ou
ter sido na lenda contempornea), Zelim Khan, o Robin Hood do Daguesto do
comeo do sculo XX, encurralado numa caverna, mandou uma mensagem ao
comandante opositor, atravs de um pastor:
"V dizer ao chefe do distrito que eu me entregarei a ele quando me mostrar um telegrama ou um documento do Czar, dizendo que suspender todas as multas impostas a inocentes; e, alm disso, que sero perdoados todos os que foram presos ou exilados por minha causa. Mas se isso no acontecer, diz ento ao Prncipe Karavlov que esta mesma noite, antes da meia-noite, fugirei desta caverna, a despeito de tudo e de todos. At l, espero sua resposta."
Na prtica, o mais comum que a justia dos bandidos tome a forma de
vingana e retaliao, como no caso de Zelim
[pg. 39]
Khan, que escreveu a um oficial muulmano, um certo
Donugayev:
"Observe que mato os representantes da autoridade porque ilegalmente exilaram minha pobre gente para a Sibria. Quando o Coronel Popov administrava o distrito de Grozniy, houve um levante e os representantes da autoridade e do Exrcito acharam que tinham de se afirmar massacrando vrios infelizes. Ao saber disto, juntei meu grupo e saqueei um trem em Kadi-Yurt, onde matei russos por vingana."17
Seja como for, no h dvida de que o bandido visto como um agente de
justia, um restaurador da moralidade, e que muitas vezes considera-se assim ele
prprio.
Se ele tira dos ricos para dar aos pobres, outra coisa; exceto, claro, na
medida em que ele no se pode permitir tirar dos pobres do lugar, para que conserve
* A mesma histria narrada tendo como protagonista Mate Cosido, o principal bandido social do Chaco argentino na dcada de 1930.
17 M. Pavlovich, "Zelim Khan et le brigandade au Caucase", Rev. du Monde Musulman, XX, 1912, pgs. 144,
146.
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seu apoio contra as autoridades. E, afinal, pouco h para tirar deles. No resta dvida
de que s vezes os bandidos do aos pobres. Pancho Villa distribuiu da seguinte
forma o botim de seu primeiro grande golpe: 5.000 pesos para sua me, 4.000 para
parentes prximos e
"Comprei uma alfaiataria para um homem chamado Antonio Retana, que tinha a vista muito ruim e uma famlia grande e necessitada. Contratei um homem para dirigi-la e lhe dei a mesma soma de dinheiro."18
Nas sociedades pr-industriais, naturalmente, a liberalidade e a caridade so
uma obrigao moral para o rico e o poderoso que deseja mostrar-se "bom". s
vezes, como ocorre entre os dacoits da ndia, tais qualidades se acham formalmente
institucionalizadas. Os Badhaks a mais famosa comunidade de ladres da ndia
Setentrional separaram 4.500 rpias de um botim de 40.000 para caridade e
sacrifcios aos deuses. Os Minas eram conhecidos por sua caridade.19 Por outro lado,
no existem baladas a respeito dos insolventes bandidos de Piura, fato que o
estudioso do banditismo peruano
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explica constatando serem eles demasiado pobres para distribuir algum quinho
entre outros pobres. Em outras palavras, tirar dos ricos para dar aos pobres
costume familiar e arraigado, ou pelo menos uma obrigao moral ideal, seja na
verdejante Floresta de Sherwood, seja no sudoeste norte-americano de Billy the Kid,
que, segundo consta, "era bom para os mexicanos. Era como Robin Hood; roubava
dos brancos ricos e dava aos mexicanos, que por isso julgava, que ele agia certo".20
A moderao no uso da violncia, constitui parte igualmente importante da
imagem de Robin Hood. "Ele rouba os ricos, ajuda os pobres e no mata ningum",
18
M. L. Guzman, The Memoirs of Pancho Villa, pg. 8 (Austin, 1965).
19 R. V. Russell, The Castes and Tribes of the Central Provinces of ndia, I, pg. 60 (4 vols., Londres, 1916);
Gen. Charles Hervey, Some Records of Crime, I, pg. 331 (Londres, 1892).
20 Kent L. Steckmesser,"Robin Hood and the American Outlaw, Journal of American Folklore, 79, abril-junho
de 1966, pg. 350.
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dizia uma frase corrente a respeito de Diego Corrientes, de Andaluzia. Ch'ao Kai, um
dos lderes de salteadores da novelstica chinesa clssica, da novela Margem d'gua
pergunta aps uma incurso: "Ningum morreu?", e respondem-lhe que ningum foi
ferido. "Ch'ao Kai, ao ouvir isso, exultou e disse 'Deste dia em diante, no feriremos
pessoas'"21. Melnikov, um ex-cossaco, que agia perto de Orenburgo, "s raramente
matava". Pelo menos nas baladas, os rufies catales dos sculos XVI e XVII, s
podiam matar em defesa da honra; at mesmo Jesse James e Billy the Kid, segundo a
lenda, s matavam em legtima defesa e por outras razes justas. Essa absteno de
violncia indiscriminada tanto mais surpreendente quanto se sabe, que no
ambiente onde os bandidos atuam, todos os homens andam armados, o assassinato
fato corriqueiro e a mxima mais segura aquela que manda atirar primeiro e fazer
perguntas depois. Seja como for, custa acreditar que contemporneos que os
conhecessem, julgassem seriamente que os irmos James ou Billy the Kid pensassem
duas vezes antes de matar algum.
Por conseguinte, muito pouco provvel, que qualquer bandido real jamais
tenha estado em condies de obedecer continuamente, a esse requisito moral
imposto por seu status. Tampouco se pode afirmar com certeza se realmente se
esperava que ele se comportasse desse modo; isto porque, embora os imperativos
de uma sociedade camponesa sejam claros e definidos, homens habituados misria
e desproteo geralmente
[pg. 41]
fazem tambm clara distino entre os mandamentos que so genuinamente
compulsrios em todas as circunstncias por exemplo, no falar Polcia e
aqueles que, por necessidade ou desuso, podem ser abandonados.* 22 E, no entanto,
21
All Men Are Brothers, traduo de Pearl Buck, pg. 328 (Nova Iorque, 1937).
* Juan Martinez Alier desenvolveu essa questo com base numa srie de entrevistas com trabalhadores rurais da Andaluzia em 1964-65.
-
a prpria familiaridade com a morte e a violncia torna os homens extremamente
sensveis a distines morais, no percebidas por sociedades mais pacficas. Existe a
morte justa e legtima, como tambm o assassinato injusto, desnecessrio e
indiscriminado; h atos louvveis e atos vergonhosos. Tal distino se aplica tanto ao
julgamento daqueles que so vtimas potenciais da violncia armada, o campesinato
submisso e dcil, como aos prprios combatentes, cujo cdigo bem pode ser o de um
grosseiro cavalheirismo, que desaprova a morte infligida a pessoas desprotegidas e
at mesmo ataques "desleais" contra adversrios reconhecidos como a Polcia local,
com a qual o bandido pode manter uma relao de mtuo respeito (As regras que se
aplicam aos forasteiros so um tanto diferentes).** Qualquer que seja a definio de
assassinato "justo", o "bandido nobre" deve pelo menos procurar permanecer dentro
dela, e provvel que o verdadeiro bandido social o faa. Mais tarde, teremos
oportunidade de examinar o tipo de bandido a quem no se aplica esse tipo de
restrio.
Como o bandido social no um criminoso, encontra pouca dificuldade para
regressar sua comunidade, como membro respeitado, quando deixa de estar fora
da lei. Quanto a esse ponto, os documentos so unnimes. Na verdade, s vezes ele
jamais deixa de fato a comunidade. Na maioria dos casos, ele tende a atuar dentro do
territrio de sua aldeia ou
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parentela, as quais o mantm como questo de dever familiar, bem como de bom
senso, pois, se no o alimentarem, no se tornar ele um ladro comum? Um
22
J. Martinez-Alier, La Estabilidad del Latifundismo, Captulos l-VI (Paris, 1968).
** O romance Mehmed, my Hawk, de Yashar Kemal's, oferece bons exemplos desse tipo de relao. Ao
surpreender, por acaso, o sargento local, que passa a maior parte do tempo a persegui-lo, o heri manda que ele busque proteo. Em outra passagem, o sargento encurrala Mehmed numa caverna, juntamente com sua mulher, seu filho recm-nascido e outra mulher. Para salv-los, Mehmed oferece sua rendio. O sargento adianta-se para prend-lo, mas uma das mulheres zomba dele: "Voc pensa que o capturou numa luta leal, mas s venceu porque ele no pode deixar a criana morrer". E o sargento v-se impossibilitado de efetuar a captura do famoso bandido, pois no haveria glria nessa vitria, e deixa que ele fuja.
-
estudioso da Bsnia e um oficial corso, da Repblica Francesa, coonestam essa
questo: " melhor aliment-lo, para que ele no venha a roubar".23 Em reas
remotas ou inacessveis, onde os agentes da lei s podem penetrar em incurses
ocasionais, o bandido poder inclusive morar na aldeia, a menos que chegue aviso de
que a Polcia se aproxima; assim acontece nos ermos da Calbria ou da Siclia. Na
verdade, nas provncias mais remotas, onde a lei e o governo exercem pouqussima
influncia, o bandido pode no s ser tolerado e protegido, como tambm ser
membro influente da comunidade, como tantas vezes ocorre nos Balcs.
Vejamos o caso de um certo Kota Christov, de Roulia, no interior da
Macednia, no sculo passado. Christov era o bandido mais temido da regio, mas ao
mesmo tempo o cidado mais eminente de sua aldeia, seu alcaide, mercador,
estlajadeiro e homem de sete instrumentos. Em defesa de sua aldeia, ele resistia aos
proprietrios de terras locais (na maioria albaneses) e desafiava os funcionrios
turcos que vinham requisitar alimentos para soldados e gendarmes, com os quais ele
sempre passava o dia e que nunca tentavam perturb-lo. Cristo devoto, ajoelhava-
se diante do santurio do mosteiro bizantino da Santssima Trindade aps cada uma
de suas faanhas, e lamentava a matana de cristos (ainda que no deplorasse,
podemos supor, a morte de albaneses de qualquer religio).* Incontestavelmente,
Kota no era um ladro comum, e embora extremamente vacilante, segundo os
padres ideolgicos modernos lutou primeiro pelos turcos, depois pela
Organizao Revolucionria Macednia Interna, e ainda mais tarde pelos gregos
defendia sistematicamente os direitos de "seu" povo contra a injustia e a opresso.
Alm disso, parece que fazia clara distino entre ataques permissveis e no-
permissveis, o que pode refletir tanto um senso de justia quanto
23
A. V. Schweiger-Lerchenfeld, Bosnien, pg. 122 (Viena, 1878; P. Bourde, Em Corse, pgs. 218-19 (Paris, 1887).
* Curiosamente, ele se tornou heri entre os albaneses, que tm uma cano a seu respeito. Extraio essa informao de The Greek Struggle in Macedonia, de Douglas Dakin (Salnia, 1966).
-
[pg. 43]
sensibilidade s convenincias da poltica local. Seja como for, expulsou de seu bando
dois elementos que haviam matado um certo Abdin Bey, embora ele prprio j
houvesse mandado desta para melhor vrios outros tiranos locais. O nico motivo
pelo qual tal homem no pode ser classificado simplesmente como um bandido
social que, nas condies polticas da Macednia turca, no se pode afirmar que ele
estivesse fora da lei, ou ao menos continuamente. Onde a fora do governo e da
senhoria se mostrava dbil, o Robin Hood era um lder reconhecido da comunidade.
muito natural, que o paladino do povo fosse pelos padres locais, no s
honesto e respeitvel, como digno de toda admirao. Como vimos, a "imagem" de
Robin Hood insiste em aes moralmente positivas, como roubar os ricos e no levar
o morticnio ao exagero; mais que isso, porm, insiste nos atributos padres do
cidado que obedece ao sistema tico. As sociedades camponesas no estabelecem
distines muito claras, entre os bandidos sociais que merecem tal aprovao (ou
que so tidos como merecedores dela) e aqueles que, embora s vezes reputados,
temidos ou mesmo admirados, no a merecem. Com efeito, em muitas lnguas h
palavras diferentes para esses diversos tipos de ladres. Abundam as baladas que
terminam com o ladro de renome confessando seus pecados no leito de morte, ou
expiando feitos tenebrosos, como o voivode haiduk Indje, que a terra expeliu de suas
entranhas trs vezes, s encontrando repouso no tmulo quando um cachorro morto
foi colocado ali.24 Contudo, no este o destino do ladro nobre, que no cometeu
crime algum. Pelo contrrio, as pessoas rezam por ele, como as mulheres de San
Stefano, em Aspromonte (Calbria), que oram pelo grande Musolino.25
Musolino inocente E o condenaram injustamente;
24
F. Kanitz, La Bulgarie danubienne, pg. 346 (Paris, 1882).
25 Nmero especial sobre a Calbria de II Ponte (1950), pg. 1.350.
-
Nossa Senhora, So Jos, Guardai-o sempre sob Vossa proteo . . . Oh, Jesus, oh, minha Nossa Senhora, Protejei-o de todo mal Agora e sempre, amm.
[pg. 44]
-
Isto natural, pois o bandido nobre bom. Para citarmos um caso em que h
algum conflito entre a realidade e a imagem, afirma-se que Jesse James jamais
roubou pregadores, vivas, rfos e ex-Confederados. Alm disso, diz-se dele ter sido
batista devoto, que dava aulas numa escola de canto da igreja. Dificilmente haver
gente melhor que os lavradores do Missouri para estabelecer boas reputaes
morais ...
Obviamente, um homem de tais qualidades contaria com a ajuda de todos, e
uma vez que ningum auxiliaria a lei contra ele, o bandido estaria praticamente
prova de descoberta por soldados canhestros na regio que ele conhecia to bem, e
s a traio poderia ensejar sua captura. Diz uma balada espanhola:
Apenas por sua cabea Daro dois mil escudos de prata. Muitos conquistariam o prmio, Mas ningum o consegue. S um companheiro poderia.26
26
Joan Fuster, El Bandolerisme Catal, II, pg. 35 (Barcelona, 1963).
-
Na prtica, bem como na teoria, os bandidos morrem pela traio, ainda que
a polcia possa reivindicar para si o
[pg. 45]
triunfo, como no caso de Giuiiano (Na Crsega, existe at um provrbio a respeito:
"Morto depois da morte, como um bandido pela Polcia"). As baladas e os contos
esto cheios desses traidores execrados, desde o tempo do prprio Robin Hood at o
sculo XX: Robert Ford, que traiu Jesse James; Pat Garret, o Judas de Billy the Kid; Jim
Murphy, que entregou Sam Bass:
Ah, como Jim se escaldar Quando Gabriel soprar sua trombeta.
Tambm encontramos os traidores nas histrias documentadas da morte de
bandidos: Oleksa Dobvs, o bandido crpato do sculo XVIII, no morreu por causa
da traio de sua amante Erzika, como dizem as canes, mas com um tiro pelas
costas dado pelo campons Stepan Dzvinka, a quem ele ajudara. Salvatore Giuliano
foi trado, bem como Angiolillo e Diego Corrientes. De outra forma, como poderiam
tais homens morrer?
No eram eles invisveis e invulnerveis? Assim se cr que sejam todos os
"Bandidos do povo", provavelmente ao contrrio de outros fora-da-lei, e a crena
reflete sua identificao com o campesinato. Sempre viajam pelo interior do pas
vestindo disfarces impenetrveis, ou com roupas comuns, sem serem reconhecidos
pelos agentes da lei, at eles prprios se identificarem. Assim, como ningum os
denunciar, e como so indistinguveis do homem comum, so praticamente
invisveis. As histrias que deles se contam apenas do expresso simblica a esta
relao. Sua invulnerabilidade parece ser fenmeno um mais complexo. Em certa
medida, tambm reflete a segurana que os bandidos desfrutam entre sua gente e
-
em seu prprio territrio. De certa forma, expressa o desejo de que o paladino do
povo no possa ser derrotado, a mesma espcie de desejo que produz os mitos
eternos do rei bom e do bandido bom que na verdade no morreu e um dia
retornar, a fim de restaurar a Justia. A recusa de aceitar a morte de um ladro
constitui critrio seguro dessa "nobreza". Assim, o Sargento Romano na verdade no
morreu, e pode ser visto ainda vagando pelos campos em segredo e solido;
[pg. 46]
Pernales (um dos vrios bandidos andaluzos a respeito dos quais se contam tais
histrias) "na verdade" fugiu para o Mxico; Jesse James, para a Califrnia. Isto
porque a derrota e a morte do bandido a derrota de sua gente; e, pior ainda, a
morte da esperana. Os homens podem viver sem justia e geralmente tm de
aceitar a situao mas no podem viver sem esperana.
Contudo, a invulnerabilidade do bandido nem sempre simblica. Quase
invariavelmente ela se deve magia, que reflete o interesse das divindades em seus
negcios. Os bandidos do sul da Itlia portavam amuletos bentos pelo Papa ou pelo
Rei, e consideravam-se sob a proteo da Virgem; os do sul do Peru apelavam
Nossa Senhora de Luren, e os do Nordeste brasileiro aos beatos locais. Em certas
sociedades possuidoras de banditismo fortemente institucionalizado, como no
Sudeste Asitico e na sia Meridional, o elemento mgico se encontra ainda mais
desenvolvido, e sua significao talvez seja mais clara. Assim, o tradicional bando
javans dos "rampok" constitui essencialmente uma "formao grupai de natureza
mgico-mstica", e seus membros esto unidos, alm de outros laos, pelo ilmoe, um
encantamento mgico que pode consistir em uma palavra, num amuleto, num
adgio, porm s vezes simplesmente na convico pessoal, adquirida por sua vez
atravs de exerccios espirituais, meditao, etc, por ddiva ou compra, ou que
advm a um homem do nascimento, designando-o para sua vocao. isto que torna
-
os ladres invisveis e invulnerveis, que paralisa suas vtimas ou as faz dormir, e lhes
permite fixar, por adivinhao, o lugar, o dia e a hora de suas atividades mas que
tambm lhes probe modificar o plano depois de determinado por inspirao divina.
O curioso nessa magia dos bandidos indonsios que, em certas circunstncias, ela
pode ser generalizada. Em momentos de intensa excitao escatolgica, quando as
prprias massas se colocam em expectativa, tambm elas se crem magicamente
invulnerveis. Por conseguinte, a magia pode exprimir a legitimidade espiritual da
ao do bandido, a funo de liderana no bando, a fora propulsora da causa. Mas
talvez ela possa tambm ser vista como uma
[pg. 47]
dupla aplice de seguro: um seguro que suplementa a habilidade humana,* 27 mas
que tambm explica o fracasso. Pois se os augrios tiverem sido interpretados
erradamente, ou se uma ou outra das condies mgicas no tiverem sido
cumpridas, a derrota do heri invulnervel no implica na derrota do ideal que ele
representa. E os pobres e os fracos sabem que seus campees e defensores na
verdade, e desafortunadamente, no so invulnerveis. Podem sempre reerguer-se
mas tambm sero derrotados e mortos.
Finalmente, como o ladro nobre justo, no pode encontrar em conflito real
com a fonte da Justia, seja ela divina ou humana. Existem vrias verses da histria
de conflito e reconciliao entre bandido e rei. Apenas o ciclo de Robin Hood contm
diversas. O rei, aconselhado por maus consultores, como Xerife de Nottingham,