Eric J. Hobsbawm - Globalização, Democracia e Terrorismo

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GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E TERRORISMO ERIC HOBSBAWM OMPANHIA DAS LETRAS Título original: Globalisation, democracy and terrorism Tradução: José Viegas Gênero: Sociologia e política Numeração: rodapé - 182 pags Contracapa Nos dez textos que compõem este livro, o renomado historiador Eric Hobsbawm, autor do clássico Era dos extremos, analisa a situação mundial no início do novo milênio e trata dos problemas mais agudos que nos confrontam. Nesta esclarecedora aula de história contemporânea, Hobsbawm traça um painel do cenário político internacional ao discorrer sobre temas como guerra e paz, imperialismo, nacionalismo e hegemonia, ordem pública e terrorismo, mercado e democracia, o poder da mídia e até futebol. "O mais importante historiador ainda em atuação." - Sylvia Colombo, Folha de S.Paulo "Com grande lucidez e a concisão que lhe é natural, Hobsbawm esboça o novo cenário do século XXI." - The Guardian "Globalização, democracia e terrorismo dá uma boa idéia do vigor e da paixão com que este grande intelectual investiga o mundo contemporâneo." - Sunday Telegraph Orelhas Nesta coletânea de dez palestras e conferências, Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores vivos, faz um balanço dos principais temas que compõem o cenário internacional contemporâneo. Com a profundidade que o caracteriza, o pensador inglês examina a política atual adotada pelas grandes potências e não se exime de fazer comentários afiados a respeito das tendências que têm marcado a evolução da história recente. Em textos leves e elegantes, Hobsbawm discute a democracia e a anarquia, o nacionalismo e o terrorismo, o estado nacional e as organizações transnacionais, a guerra e a paz, a violência e a ordem pública, o poder da mídia, o futebol e a cultura contemporânea. Para o autor, os efeitos nem sempre positivos da globalização, as dúvidas e problemas que abalam a democracia, e a tragédia ainda não superada do terrorismo, não são tratados apenas como questões teóricas, mas como assuntos concretos ligados diretamente à vida cotidiana, influindo, por exemplo, no aumento da violência urbana, no nível de empregos e nas próximas eleições. Longe de ser um otimista, Hobsbawm considera remotas as perspectivas de uma paz mundial sólida no século XXI e ressalta o forte crescimento das desigualdades econômicas e sociais, acentuadas pela globalização baseada no conceito de mercado livre. Crítico impiedoso do atual governo dos Estados Unidos, o historiador analisa as impressionantes ações imperialistas desenvolvidas por Washington desde

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O mundo conteporâneo

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  • GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E TERRORISMO

    ERIC HOBSBAWM

    OMPANHIA DAS LETRAS

    Ttulo original: Globalisation, democracy and terrorism

    Traduo: Jos Viegas

    Gnero: Sociologia e poltica

    Numerao: rodap - 182 pags

    Contracapa

    Nos dez textos que compem este livro, o renomado historiador Eric

    Hobsbawm, autor do clssico Era dos extremos, analisa a situao mundial

    no incio do novo milnio e trata dos problemas mais agudos que nos

    confrontam. Nesta esclarecedora aula de histria contempornea, Hobsbawm

    traa um painel do cenrio poltico internacional ao discorrer sobre

    temas como guerra e paz, imperialismo, nacionalismo e hegemonia,

    ordem pblica e terrorismo, mercado e democracia, o poder da mdia

    e at futebol.

    "O mais importante historiador ainda em atuao." - Sylvia Colombo,

    Folha de S.Paulo

    "Com grande lucidez e a conciso que lhe natural, Hobsbawm esboa o

    novo cenrio do sculo XXI." - The Guardian "Globalizao, democracia e

    terrorismo d uma boa idia do vigor e da paixo com que este grande

    intelectual investiga o mundo contemporneo." - Sunday

    Telegraph

    Orelhas

    Nesta coletnea de dez palestras e conferncias, Eric Hobsbawm, um dos

    maiores historiadores vivos, faz um balano dos principais

    temas que compem o cenrio internacional contemporneo. Com a

    profundidade que o caracteriza, o pensador ingls examina a poltica

    atual adotada pelas grandes potncias e no se exime de fazer

    comentrios afiados a respeito das tendncias que tm marcado a evoluo

    da histria recente.

    Em textos leves e elegantes, Hobsbawm discute a democracia e a

    anarquia, o nacionalismo e o terrorismo, o estado nacional e as

    organizaes transnacionais, a guerra e a paz, a violncia e a ordem

    pblica, o poder da mdia, o futebol e a cultura contempornea. Para o

    autor, os efeitos nem sempre positivos da globalizao, as dvidas

    e problemas que abalam a democracia, e a tragdia ainda no superada

    do terrorismo, no so tratados apenas como questes tericas, mas como

    assuntos concretos ligados diretamente vida cotidiana, influindo, por

    exemplo, no aumento da violncia urbana, no nvel de empregos e nas

    prximas eleies.

    Longe de ser um otimista, Hobsbawm considera remotas as perspectivas

    de uma paz mundial slida no sculo XXI e ressalta o forte crescimento

    das desigualdades econmicas e sociais, acentuadas pela

    globalizao baseada no conceito de mercado livre. Crtico impiedoso

    do atual governo dos Estados Unidos, o historiador analisa as

    impressionantes aes imperialistas desenvolvidas por Washington desde

  • o trmino da Guerra Fria, os erros que tem cometido e a necessidade

    urgente de que aprenda as lies da histria e evite contribuir para

    que o mundo se torne cada vez mais um lugar de desequilbrio poltico

    e ambiental, caracterizado pela desordem, pelo conflito e pela

    barbrie.

    Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, em 1917, e educou-se na

    ustria, na Alemanha e na Inglaterra. Recebeu o ttulo de doutor

    honoris causa de universidades de diversos pases. Lecionou at se

    aposentar no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e

    posteriormente na New School for Social Research, de Nova York. De

    sua autoria, a Companhia das Letras publicou Era dos extremos (1995),

    Ecos da MarseIhesa (1996), Sobre histria (1998), O novo sculo (2000)

    e Tempos interessantes (2002).

    GLOBALIZAO, DEMOCRACIA

    TERRORISMO

    COMPANHIA DAS LETRAS

    GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E TERRORISMO

    ERIC HOBSBAWM

    Globalizao, democracia e terrorismo

    Traduo

    Jos Viegas

    2 reimpresso

    OMPANHIA DAS LETRAS

    Copyright (c) 2007 by Eric Hobsbawm

    Ttulo original

    Globalisation, democracy and terrorism

    Capa

    Hlio de Almeida

    Foto de capa

    A fachada sul da torre sul (World Trade Center, Nova York), de Joel Meyerowitz.

    Cortesia da

    Galeria Edwynn Houk.

    Preparao

    Cacilda Guerra

    Reviso

    Ana Maria Barbosa

    Valquria Delia Pozza

    ndice remissivo

    Luciano Marchiori,

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Hobsbawm, Eric, 1917

    Globalizao, democracia e terrorismo / Eric Hobsbawm;

    traduo Jos Viegas. - So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    Ttulo original: Globalisation, democracy and terrorism

    ISBN 978-85-359-1130-5

  • 1. Globalizao - Aspectos sociais 2. Globalizao - Aspectos

    polticos 3. Mudana social 4. Terrorismo I. Ttulo.

    07-8664 CDD-327.1

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Globalizao: Aspectos polticos: Cincia poltica 327.1

    [2008]

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA SCHWARCZ LTDA.

    Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32

    04532-002 - So Paulo - SP

    Telefone (11) 3707-3500

    Fax (11) 3707-3501

    www.companhiadasletras.com.br

    Sumrio

    Prefcio____............................................ 9

    1. Guerra e paz no sculo XX ........................... 21

    2. Guerra, paz e hegemonia no incio do sculo XXI ...... 36

    3. Por que a hegemonia dos Estados Unidos difere da do Imprio Britnico

    ............................... 54

    4. Sobre o fim dos imprios ............................ 77

    5. As naes e o nacionalismo no novo sculo ........... 86

    6. As perspectivas da democracia ...................... 97

    7. A disseminao da democracia ...................... 116

    8.0 terror............................................ 121

    9. A ordem pblica em uma era de violncia ............ 138

    10.0 imprio se expande cada vez mais ................. 152

    Notas ................................................. 165

    ndice remissivo ....................................... 171

    Prefcio

    O sculo XX foi a era mais extraordinria da histria da humanidade,

    combinando catstrofes humanas de dimenses inditas, conquistas

    materiais substanciais e um aumento sem precedentes da nossa capacidade

    de transformar e talvez destruir o planeta - e at de penetrar no espao

    exterior. Qual a melhor maneira de refletir sobre essa "era dos

    extremos" e imaginar as perspectivas da nova era que surge a partir da

    antiga? Esta coleo de ensaios a tentativa de um historiador de

    examinar, analisar e compreender a situao do mundo no incio do

    terceiro milnio e alguns dos principais problemas polticos que nos

    confrontam hoje. Eles suplementam e atualizam o que escrevi em

    publicaes anteriores, sobretudo a minha histria do "breve

    sculo XX", Era dos extremos, a entrevista sobre O novo sculo com

    o jornalista italiano Antnio Polito e Naes e nacionalismo desde

    1780. Essas tentativas so necessrias. Qual a contribuio dos

    historiadores para tal tarefa? Sua funo principal, alm de

    relembrar o que outros esqueceram ou querem esquecer, tomar

    distncia, tanto quanto possvel, dos registros da poca

    9

    contempornea e v-los em um contexto mais amplo e com uma

    perspectiva mais longa.

    Nesta coleo de estudos, mais que nada sobre temas polticos,

  • escolhi focalizar cinco conjuntos de questes que hoje requerem um

    pensamento claro e bem informado: a questo genrica da guerra e da paz

    no sculo XXI, o passado e o futuro dos imprios globais, a natureza e

    o contexto cambiante do nacionalismo, o futuro da democracia liberal

    e a questo da violncia poltica e do terror. Todas elas tm lugar em

    um cenrio mundial dominado por dois desenvolvimentos correlatos: a

    acelerao enorme e contnua da capacidade da espcie humana de modificar

    o planeta por meio da tecnologia e da atividade econmica e a

    globalizao. O primeiro deles, infelizmente, no produziu at aqui um

    impacto significativo sobre os que tomam as decises polticas. A

    maximizao do crescimento econmico continua a ser o objetivo dos

    governos, e no existe ainda uma perspectiva realista para que se

    dem passos efetivos que nos permitam enfrentar a crise do aquecimento

    global. Por outro lado, desde a dcada de 1960, o avano acelerado da

    globalizao ou seja, o mundo visto como um conjunto nico de atividades

    interconectadas que no so estorvadas pelas fronteiras locais-provocou

    um profundo impacto poltico e cultural, sobretudo na sua forma

    atualmente dominante de um mercado global livre e sem controles. Estes

    ensaios no discutem esse ponto especificamente, sobretudo porque a

    poltica o principal campo da atividade humana que praticamente no

    foi afetado pela globalizao. Tratando de realizar a duvidosa tarefa de

    quantific-la, o ndice de Globalizao KOF (2007), da Sua, no

    teve dificuldades em encontrar indicadores de fluxos econmicos

    e de informao, contatos pessoais ou difuso cultural (como o nmero de

    lanchonetes McDonald's e de lojas da rede de mveis IKEA por habitante),

    mas no conseguiu nenhuma medida melhor para a "globalizao poltica"

    do que o nmero de embaixadas em

    10

    determinado pas e sua participao em organismos internacionais e em

    misses do Conselho de Segurana das Naes Unidas.

    Uma discusso ampla sobre a globalizao est fora do escopo deste

    livro. Contudo, trs observaes de ordem geral a respeito dela so

    particularmente pertinentes para os temas aqui cobertos.

    Primeiro, a globalizao acompanhada de mercados livres, atualmente

    to em voga, trouxe consigo uma dramtica acentuao das desigualdades

    econmicas e sociais no interior das naes e entre elas. No h

    indcios de que essa polarizao no esteja prosseguindo dentro dos

    pases, apesar de uma diminuio geral da pobreza extrema. Este surto

    de desigualdade, especialmente em condies de extrema instabilidade

    econmica como as que se criaram com os mercados livres globais na

    dcada de 1990, est na base das importantes tenses sociais e polticas

    do novo sculo. Na medida em que as desigualdades internacionais podem

    tambm estar sofrendo presses decorrentes da ascenso das novas econo-

    mias asiticas, tanto a ameaa aos nveis de vida relativamente

    astronmicos dos povos do velho Norte quanto a impossibilidade prtica

    de alcanar algo parecido para as vastas populaes de pases como a

    ndia e a China produziro suas prprias tenses internas e

    internacionais.

    Segundo, o impacto dessa globalizao mais sensvel para os

    que menos se beneficiam dela. Da provm a crescente polarizao

    de pontos de vista a seu respeito, entre os que esto potencialmente

    protegidos contra seus efeitos negativos - os empresrios, que

    podem reduzir seus custos utilizando mo-de-obra barata de

    outros pases, os profissionais da alta tecnologia e os formados em

    cursos de educao superior, que podem conseguir trabalho em

    qualquer economia de mercado de alta renda e os que no esto.

    por isso que, para a maior parte daqueles que vivem dos salrios

    provenientes dos seus empregos nos velhos "pases desenvolvidos",

    11

  • o comeo do sculo XXI oferece um quadro sombrio, para no dizer

    sinistro. O mercado livre global afetou a capacidade de seus pases

    e sistemas de bem-estar social para proteger seu estilo de vida. Em

    uma economia global, eles competem com homens e mulheres de

    outros pases que tm as mesmas qualificaes, mas recebem apenas uma

    frao dos salrios vigentes no Ocidente e sofrem nos seus prprios

    pases as presses trazidas pela globalizao do que Marx chamava

    "o exrcito de reserva dos trabalhadores", representado pelos imigrantes

    que chegam das aldeias das grandes zonas globais de pobreza. Situaes

    desse tipo no antecipam uma era de estabilidade poltica e social.

    Terceiro, embora a escala real da globalizao permanea modesta, talvez

    com a exceo de alguns pases em geral pequenos e sobretudo na Europa,

    seu impacto poltico e cultural desproporcionalmente grande. Assim, a

    imigrao um problema poltico substancial na maior parte das

    economias desenvolvidas do Ocidente, ainda que a proporo dos seres

    humanos que vivem em pases diferentes daqueles em que nasceram seja

    de apenas 3%. No KOF de globalizao econmica de 2007, os Estados

    Unidos esto em 39 lugar, a Alemanha em 40, a China em 55, o Brasil

    em 60, a Coria do Sul em 62, o Japo em 67 e a ndia em 105 lugar,

    embora todos, menos o Brasil, ocupem lugares algo mais altos na escala

    de "globalizao social" (o Reino Unido a nica grande economia que

    est entre as dez primeiras tanto na globalizao econmica quanto na

    social). Conquanto, do ponto de vista histrico, esse fenmeno possa

    ser temporrio ou no, a curto prazo esse impacto desproporcionalmente

    grande pode bem ter srias conseqncias polticas nacionais e

    internacionais. Minha opinio a de que, de um modo ou de outro, a

    resistncia poltica, embora provavelmente no logre fazer reviver

    12

    O ranking baseado em dados de 2004.

    prticas protecionistas formais, tender a desacelerar o progresso da

    globalizao dos mercados livres nos prximos dez ou vinte anos.

    Espero que os captulos sobre guerra e hegemonia, imprios e

    imperialismo, o estado atual do nacionalismo e as transforma es

    da violncia pblica e do terrorismo faam sentido para o leitor sem

    a necessidade de comentrios adicionais do autor. O mesmo espero dos

    dois captulos sobre democracia, embora o autor tenha conscincia de

    que tentar demonstrar que uma das maiores vacas sagradas do discurso

    poltico vulgar do Ocidente produz menos leite do que em geral se

    presume algo altamente controverso. No discurso pblico ocidental

    de hoje falam-se mais bobagens e absurdos sobre a democracia, e

    especificamente sobre as qualidades milagrosas atribudas aos governos

    eleitos por maiorias aritmticas de votantes que escolhem entre

    diferentes partidos, do que, praticamente, sobre qualquer outra

    palavra ou conceito poltico. Na retrica recente dos Estados Unidos,

    a palavra perdeu todo contato com a realidade. Meus captulos so uma

    pequena contribuio necessria tarefa de esfriar os nimos por

    meio do uso da razo e do bom senso, conservando, ao mesmo

    tempo, o compromisso firme de um governo para o povo - todo

    o povo, ricos e pobres, estpidos e inteligentes, informados e

    ignorantes -, mediante consulta a ele e com seu consentimento.

    Os artigos aqui reunidos, sobretudo a partir de conferncias

    diante de platias variadas, tentam enquadrar e explicar a situao

    em que o mundo, ou grande parte dele, se encontra hoje. Pode ser

    que eles ajudem a definir os problemas que nos confrontam no

    comeo do novo sculo, mas no propem programas ou solues

    prticas. Eles foram escritos entre 2000 e 2006 e refletem, portanto,

    as preocupaes internacionais especficas desse perodo, que foi

    dominado pela deciso tomada pelo governo dos Estados Unidos

    em 2001 de afirmar uma hegemonia unilateral sobre o mundo,

  • condenando convenes internacionais at ento aceitas, reservando-se

    13

    o direito de fazer guerras de agresso ou outras operaes militares

    sempre que o desejasse e levando-as prtica. Dada

    a derrocada da Guerra do Iraque, j no necessrio demonstrar

    que esse projeto era irrealista e a questo de saber se teramos

    desejado seu xito no , portanto, totalmente acadmica. No obstante,

    deve estar claro, e os leitores precisam ter ateno para isso, que meus

    ensaios foram escritos por um autor que tem crticas profundas a esse

    projeto. Isso se deve em parte fora e indestrutibilidade das minhas

    convices polticas, que incluem a hostilidade ao imperialismo, seja

    o das grandes potncias que afirmam estar fazendo um favor s suas

    vtimas ao conquist-las, seja o do homem branco que pressupe, para si

    prprio e para os arranjos que faz, uma superioridade automtica sobre

    as pessoas cuja pele tem outra cor. Deve-se tambm a uma suspeita

    racionalmente justificvel contra a megalomania, que a doena

    ocupacional dos pases e dos governantes que crem que seu poder e seu

    xito no tm limites.

    A maior parte dos argumentos e mentiras que justificaram as

    aes tomadas pelos Estados Unidos desde 2001, usados por polticos,

    advogados remunerados ou no, articulistas, propagandistas, lobistas e

    idelogos amadores, americanos e britnicos, j no precisa tomar nosso

    tempo. Contudo, fez-se tambm uma defesa, menos desabonadora, no

    tanto

    da Guerra do Iraque, e sim da proposio genrica da legitimidade e da

    eventual necessidade de intervenes armadas internacionais para

    preservar ou impor os direitos humanos em uma era de crescente barbrie,

    violncia e desordem. Para alguns, isso implica a desejabilidade de uma

    hegemonia imperial mundial especificamente exercida pela nica potncia

    capaz de estabelec-la, os Estados Unidos. Essa proposi o, que pode

    ser chamada de imperialismo dos direitos humanos, passou a fazer parte

    do debate pblico no transcurso dos conflitos balcnicos que derivaram

    da desintegrao da Iugoslvia comunista, especialmente na Bsnia, os

    quais pareciam indicar que apenas o uso externo da fora armada poderia

    pr fim a um massacre mtuo e infindvel e que somente os Estados Unidos

    tinham a capacidade e a vontade de usar tal fora. O fato de que os

    americanos no tinham interesses particulares - histricos, polticos

    ou econmicos - na regio tornou a interveno mais vistosa e

    aparentemente desinteressada. Tomei a devida nota disso nos meus

    ensaios. Embora eles, especialmente o que se intitula "A disseminao

    da democracia", contenham razes para rejeit-la, algumas observaes

    adicionais a respeito dessa posio podem ser cabveis. Ela

    fundamentalmente errada porque as grandes potncias que buscam

    implementar seus pontos de vista na poltica internacional podem fazer

    coisas que convm aos defensores dos direitos humanos e tm conscincia

    do valor publicitrio de faz-lo, mas isso no faz propriamente parte

    dos seus propsitos, os quais, quando elas julgam necessrio, so

    perseguidos com a crueza e a barbrie que constituem a herana do sculo

    XX. A relao entre aqueles para quem uma grande causa da humanidade

    essencial e as aes de qualquer Estado pode ser de aliana ou de

    oposio, mas nunca de identificao permanente. Mesmo os raros casos

    de jovens Estados revolucionrios que buscam genuinamente difundir sua

    mensagem universal - a Frana depois de 1792, a Rssia depois de 1917,

    mas no os Estados Unidos isolacionistas de George Washington - tm

    durao curta. A posio tpica de qualquer Estado defender seus

    interesses. Ademais, a defesa da interveno armada de carter

    humanitrio nos assuntos dos Estados baseia-se em trs premissas: o

    surgimento de situaes intolerveis no mundo contemporneo -

    normalmente o massacre ou o genocdio - que clamam por ela; a ausncia

    de modos alternativos para trat-las; e a presuno de que os ganhos a

  • serem obtidos com a interveno, so claramente superiores aos seus

    custos. Todas essas premissas so por vezes justificveis,

    15

    embora, como o debate sobre o Iraque e o Ir comprova, seja rara a

    existncia de acordo universal a respeito do que constitui precisamente

    uma "situao intolervel". Provavelmente houve consenso nos dois casos

    mais bvios de interveno justificada: a invaso do Kampuchea pelo

    Vietn, que deu fim ao regime estar recedor dos "campos da morte" de

    PolPot (1978), e a destruio do regime de terror de Idi Amin na Uganda,

    pela Tanznia (1979).

    (Evidentemente, nem todas as intervenes armadas estrangeiras

    rpidas e bem-sucedidas em situao de crise local produziram

    resultados assim satisfatrios-para outros exemplos duvidosos,

    considere-se a Libria e o Timor Leste.) Em ambos os casos, o xito

    foi obtido por meio de incurses breves, que produziram efeitos

    positivos imediatos e provavelmente alguns melhoramentos

    duradouros, sem implicar o abandono sistemtico do princpio

    consagrado da no-interveno nos assuntos internos dos Estados

    soberanos. Na verdade, elas no tiveram implicaes imperiais

    nem envolveram os nveis mais amplos da poltica internacional.

    Com efeito, tanto os Estados Unidos quanto a China continuaram

    a apoiar o deposto Pol Pot. Essas intervenes adhoc no so relevantes

    para quem queira defender a desejabilidade de uma hegemonia mundial

    dos Estados Unidos.

    No esse o caso das intervenes armadas dos anos recentes, que

    foram, alis, seletivas e no tocaram alguns dos casos de atrocidades

    mais cruis, em termos humanitrios, notadamente o genocdio na frica

    central. Nos Blcs da dcada de 1990, as preocupaes humanitrias

    foram decerto um fator significativo, mas no o nico. Provavelmente,

    embora se tenha afirmado o oposto, a interveno externa na Bsnia

    ajudou a terminar a carnificina antes do que teria ocorrido se se

    houvesse permitido o prosseguimento da guerra entre srvios, croatas e

    bsnios muulmanos at sua concluso natural, mas a regio permanece

    instvel. No est claro, de modo algum, se em 1999 a interveno

    16

    armada era o nico caminho para resolver os problemas causados por uma

    rebelio contra a Srvia por parte de um grupo minoritrio extremista

    de nacionalistas albaneses no Kosovo nem, na verdade, se a verdadeira

    razo para o fim da intransigncia srvia foi a ameaa de invaso ou a

    ao da diplomacia russa. A base humanitria da interveno era bem mais

    duvidosa do que na Bsnia, e a prpria situao humanitria pode ter

    piorado, uma vez que a Srvia se viu provocada a promover uma expulso

    em massa de albaneses do Kosovo e em decorrncia das baixas civis

    causadas pela prpria guerra e dos meses de bombardeios destrutivos

    sofridos pelo pas. As relaes entre srvios e albaneses tam pouco se

    estabilizaram. Mas as intervenes nos Blcs pelo menos foram rpidas

    e decisivas a curto prazo, embora at aqui ningum, alm, talvez, da

    Crocia, tenha razes para sentir-se satisfeito com os resultados.

    Por outro lado, as guerras do Afeganisto e do Iraque, a partir

    de 2001, foram operaes militares dos Estados Unidos que no se

    realizaram por razes humanitrias, embora tenham sido justificadas

    perante a opinio pblica humanitria com base na destituio de regimes

    detestveis. Mas, no fosse pelo Onze de Setembro,

    nem mesmo os Estados Unidos teriam considerado a situao em qualquer

    dos dois pases como merecedora de uma invaso imediata. O Afeganisto

    era aceito por outros Estados com base em um "realismo" j um pouco

    antiquado; o Iraque, por sua vez, era condenado quase universalmente.

    Ainda que os regimes do Talib e de Saddam Hussein tenham sido

  • rapidamente derrubados, nenhuma das duas guerras levou vitria, nem

    mesmo ao alcance dos objetivos anunciados inicialmente - o

    estabelecimento de regimes

    democrticos consentneos com os valores ocidentais e um forte sinal

    para outras sociedades ainda no democratizadas da regio. Ambas, mas

    sobretudo a catastrfica Guerra do Iraque, acabaram sendo longas,

    sangrentas, profundamente destrutivas e ainda

    17

    prosseguem, ao tempo em que este texto est sendo escrito, sem

    perspectivas de concluso.

    Em todos esses casos, a interveno armada foi executada por

    pases estrangeiros com poder militar e recursos francamente

    superiores. Em nenhum deles a interveno gerou, at aqui, solues

    estveis. Em todos os pases assinalados, a ocupao militar e a

    superviso estrangeira prosseguem. No melhor dos casos, mas claramente

    no no Afeganisto e no Iraque -, a interveno ps fim a guerras

    sangrentas e produziu algum tipo de paz, porm os resultados positivos,

    como nos Blcs, foram desanimadores. No pior dos casos - o Iraque

    -, nenhuma pessoa sria pode negar que a situao do povo, cuja

    libertao foi a desculpa oficial para a guerra, est pior do que antes.

    A histria recente das intervenes armadas nos assuntos de outros

    pases, mesmo as das superpotncias, no uma histria de xito.

    Isso se deve, em parte, a uma premissa, que tambm est subjacente

    ao imperialismo dos direitos humanos, de que os regimes brbaros e

    tiranos so imunes mudana interna, de modo que apenas a fora

    externa pode extingui-los e produzir a conseqente difuso dos nossos

    valores e instituies polticas e legais. Essas premissas foram

    herdadas dos dias em que os combatentes da Guerra Fria denunciavam o

    "totalitarismo". Elas no deveriam ter sobrevivido ao fim da Unio

    Sovitica, ainda mais com o evidente processo de democratizao interna

    de alguns regimes no-comunistas detestveis, autoritrios, militaristas

    e ditatoriais da sia e da Amrica do Sul, depois da dcada de 1980.

    Elas tambm se fundamentam na crena de que os atos de fora podem

    produzir instantaneamente grandes transformaes culturais. Mas isso

    no verdade. A difuso de valores e de instituies atravs de sua

    sbita imposio por uma fora estranha tarefa quase impossvel, a

    menos que j estejam presentes no local condies que os tornem

    adaptveis e sua introduo, aceitvel. A democracia, os valores

    18

    ocidentais e os direitos humanos no so como produtos tecnolgicos de

    importao, cujos benefcios so bvios desde o incio e que so

    adotados de uma mesma maneira por todos os que tm condies de

    us-los, como uma pacfica bicicleta ou um mortfero AK 47, ou servios

    tcnicos, como os aeroportos. Se fossem, haveria maior similaridade

    poltica entre os numerosos Estados da Europa, da sia e da frica,

    todos vivendo (teoricamente) sob a gide de constituies democrticas

    similares. Em uma palavra, a histria tem muito poucos atalhos: lio

    que o autor aprendeu, em boa medida, por ter vivido durante grande

    parte do ltimo sculo e pensado a respeito.

    Por fim, uma palavra de agradecimento aos que proporcionaram a

    ocasio para a apresentao inicial destes estudos. O captulo 1

    baseia-se em um texto escrito para o colquio comemorativo do

    Centenrio do Prmio Nobel da Paz (Oslo, 2001); o captulo 2,

    na Nikhil Chakravarty Memorial Lecture (Nova Dlhi, 2004), conferncia

    que dei como convidado pela Indian Review of Books; o captulo 3, em

    q uma das conferncias do ciclo Massey, na Universidade de Harvard,

    em 2005; o captulo 4, como discurso inaugural na cerimnia de outorgado

    ttulo de doutor honoris causa na Universidade de Tessalnica, Grcia,

  • em 2004; o captulo 5 uma considervel elaborao de um prefcio

    escrito para uma nova edio alem de Naes e nacionalismo (Campus

    Verlag, Frankfurt, 2004); o captulo 6 foi originalmente apresentado e

    impresso como uma conferncia do Athenaeum, naquele clube, em 2000; o

    captulo 7 foi publicado como contribuio a um nmero de Foreign

    Policy dedicado s "idias mais perigosas do mundo" (setembro/outubro

    de 2004); o captulo 8 teve um ponto de partida remoto em algumas notas

    para um seminrio sobre o terrorismo, na Universidade de Columbia, Nova

    York, no comeo

    19

    da dcada de 1990; o captulo 9 foi apresentado no Birkbeck College

    como conferncia pblica, fazendo parte de uma srie sobre "Violncia ",

    em 2006; e o captulo 10 foi escrito e publicado por Le Monde

    Diplomatique em 2003. Gostaria tambm de agradecer aos colegas e a

    outros que se deram ao trabalho de me ouvir e discutir minhas

    apresentaes, sobretudo em Nova Dlhi, Harvard e Nova York. Como autor

    profissional, devo um agradecimento aos meus editores

    italianos, que foram os primeiros a sugerir que um conjunto de textos

    como este tinha coerncia suficiente para compor um pequeno livro digno

    de ser publicado, e a Bruce Hunter e Ania Corless, que lograram

    persuadir tanto a mim quanto a outros editores.

    Por outro lado, devo desculpar-me pela ocorrncia de duplicaes,

    inevitveis em um livro baseado em diferentes palestras e conferncias

    dadas em ocasies diversas. Eliminei algumas, mas eliminar todas teria

    prejudicado a continuidade da argumentao em cada captulo - e talvez

    a prpria sensao de que o livro forma um todo coerente. possvel

    que elas tambm ajudem a ilustrar a argumentao de alguns captulos,

    por vezes demasiado compacta. Alm do mais, certa dose de repetio faz

    parte do arsenal de um autor que no consegue se libertar do hbito de

    toda uma vida dedicada a ensinar, ou seja, a persuadir medida que

    expe. Espero no ter exagerado na dose.

    E. J. Hobsbawm, Londres, 2007

    20

    i. Guerra e paz no sculo XX.

    O sculo XX foi o mais mortfero de toda a histria documen-tada.

    O nmero total das mortes causadas pelas guerras do sculo ou associadas

    a elas foi estimado em 187 milhes de pessoas, o que eqivale a mais

    de 10% da populao mundial em 1913.' Se consideramos 1914 como seu

    incio real, foi um sculo de guerras praticamente ininterruptas, com

    poucos e breves perodos em que no houve conflitos armados organizados

    em algum lugar. Ele foi dominado por guerras mundiais: ou seja, guerras

    entre Estados territoriais ou alianas de Estados. O perodo entre 1914

    e 1945 pode ser visto como uma nica "Guerra dos Trinta Anos",

    interrompida apenas por uma pausa na dcada de 1920 - entre a retirada

    final dos japoneses do Extremo Oriente sovitico, em 1922, e o ataque

    Manchria, em 1931. A isso seguiram-se, quase imediatamente, uns

    quarenta anos de guerra fria, a qual compatvel com a definio dada

    pelo grande filsofo Thomas Hobbes guerra, como algo que consiste

    "no em batalhas apenas, ou no ato de lutar, mas em um lapso de tempo

    em que a vontade de travar batalhas suficientemente conhecida". At

    que ponto as aes em que

    21

    as Foras Armadas dos Estados Unidos tm se envolvido desde o fim da

    Guerra Fria em vrias partes do mundo constituem uma continuao da era

    da guerra mundial matria de debate. No h dvida, contudo, de que a

    dcada de 1990 se mostrou plena de conflitos militares formais e

    informais na Europa, na frica e na sia ocidental e central. O mundo

  • como um todo no teve paz desde 1914 e no est em paz agora.

    No obstante, o sculo no pode ser tratado como um bloco

    nico, seja do ponto de vista cronolgico, seja do geogrfico.

    Cronologicamente ele se divide em trs perodos: a era da guerra

    mundial, centrada na Alemanha (1914-45), a era da confrontao entre

    as duas superpotncias (1945-89) e a era posterior ao fim do sistema

    clssico de poder internacional. Denominarei esse perodos com as

    cifras i, n e m. Geograficamente, o impacto das operaes militares

    altamente desigual. Com uma exceo (a Guerra do Chaco, de 1932-35),

    no houve guerras significativas entre pases (diferentes, portanto, das

    guerras civis) no hemisfrio ocidental (as Amricas) no sculo XX.

    As operaes militares conduzidas por foras inimigas mal tocaram essas

    terras, razo por que os bombardeios das Torres Gmeas e do Pentgono

    no Onze de Setembro foram to chocantes. Desde 1945, as guerras entre

    pases desapareceram tambm da Europa, que fora, at ento, a regio

    com mais campos de batalha. Embora a guerra tenha retornado ao Sudeste

    da Europa no perodo m, muito pouco provvel que ela ocorra de

    novo no resto do continente. Por outro lado, durante o perodo n,

    guerras entre pases, no necessariamente desvinculadas da confrontao

    global, permaneceram endmicas no Oriente Mdio e no Sul da sia, e

    guerras importantes diretamente derivadas dessa confrontao ocorreram

    no Leste e no Sudeste da sia (Coria, Indochina). Ao mesmo tempo, reas

    como a frica subsaariana, que ficara comparativamente a salvo da guerra

    no perodo I (com exceo da Etipia, tardiamente submetida conquista

    colonial

    22

    pela Itlia em 1935-36), tornaram-se teatro de conflitos armados

    durante o perodo 11, e sofreram fortes episdios de carnificina e

    sofrimento no perodo m.

    Duas outras caractersticas da guerra no sculo XX sobressaem,

    embora a primeira seja menos bvia do que a segunda. No incio do sculo

    XXI, encontramo-nos num mundo em que as operaes armadas j no esto

    essencialmente nas mos dos governos ou dos seus agentes autorizados,

    e as partes disputantes no tm caractersticas, status e objetivos

    em comum, exceto quanto vontade de utilizar a violncia. As guerras

    entre pases dominaram tanto a imagem da guerra nos perodos I e 11 que

    as guerras civis e outros conflitos armados dentro dos territrios dos

    pases e dos imprios existentes ficaram obscurecidos. At as guerras

    civis que ocorreram no Imprio Russo depois da Revoluo de Outubro,

    assim como as que se verificaram aps colapso do Imprio Chins, podem

    caber no marco dos conflitos internacionais, na medida em que no podem

    ser vistas como independentes deles. Por outro lado, a Amrica Latina

    pode no ter visto exrcitos cruzando as suas fronteiras no sculo XX,

    mas foi cenrio de importantes conflitos civis: no Mxico depois de

    1911, por exemplo; na Colmbia desde 1948, e em vrios pases da

    Amrica Central durante o perodo n. No tem sido objeto de

    reconhecimento geral o fato de que o nmero de guerras internacionais

    diminuiu de maneira praticamente contnua desde meados da dcada de

    1960, quando os conflitos internos passaram a ser mais comuns

    do que as guerras entre pases. O nmero de conflitos dentro das

    fronteiras nacionais continuou a subir fortemente at se estabilizar

    na dcada de 1990.

    Mais conhecida a perda de nitidez da distino entre combatentes e

    no-combatentes. As duas guerras mundiais da primeira metade do sculo

    XX envolveram a totalidade das populaes dos pases beligerantes;

    tanto os combatentes quanto os 23 no-combatentes sofreram. No

    transcurso do sculo, no entanto, o preo da guerra deslocou-se cada

    vez mais das foras armadas para a populao civil, no s como vtima,

    mas, de maneira crescente, como objetivo de operaes militares ou

    poltico-militares. O contraste entre as duas grandes guerras mundiais

  • dramtico: apenas 5% dos que morreram na Primeira Guerra Mundial eram

    civis; na Segunda Guerra Mundial esse nmero subiu para 66%.

    Supe-se geralmente que de 80% a 90% das pessoas afetadas pelas

    guerras atuais sejam civis. Essa proporo aumentou a partir do

    fim da Guerra Fria porque a maioria das operaes militares desde

    ento no foi conduzida por exrcitos regulares, e sim por grupos

    diminutos de soldados, regulares ou no, operando, em muitos

    casos, armas de alta tecnologia e protegidos contra o risco de sofrer

    baixas. Se bem que seja verdade que o armamento de alta tecnologia

    tornou possvel, em certos casos, o restabelecimento da distino

    entre objetivos militares e civis e, por conseqncia, entre combatentes

    e no-combatentes, no h razo para duvidar de que as principais

    vtimas das guerras continuaro a ser os civis.

    Alm disso, o sofrimento dos civis no proporcional intensidade

    das operaes militares. Em termos estritamente militares, a guerra de

    duas semanas entre a ndia e o Paquisto em torno da independncia de

    Bangladesh, em 1971, foi um conflito de dimenses

    modestas, mas produziu milhes de refugiados. As lutas entre unidades

    armadas na frica na dcada de 1990 no envolveram muito mais do que

    alguns milhares de soldados, em sua maioria mal armados, mas produziu,

    no seu auge, quase 7 milhes de refugiados - nmero muito maior do que

    em qualquer perodo da Guerra Fria, quando o continente africano era

    cenrio de guerras por procurao entre as superpotncias. Esse

    fenmeno no est restrito s reas pobres e remotas. Em alguns

    aspectos, o efeito da guerra sobre a vida civil amplificado pela

    globalizao e pela crescente dependncia do mundo com

    24

    relao a um fluxo constante e ininterrupto de comunicaes,

    servios, tecnologias, entregas e suprimentos. Mesmo uma interrupo

    relativamente breve desse fluxo - por exemplo, o fechamento do espao

    areo dos Estados Unidos por alguns dias aps o Onze de Setembro-pode

    ocasionar efeitos considerveis e talvez dura douros sobre a economia

    global.

    Seria mais fcil escrever sobre o assunto da guerra e da paz no

    sculo XX se a diferena entre ambas tivesse permanecido to clara

    quanto se esperava ao comear aquele sculo, nos dias em que as

    Convenes de Haia de 1899 e 1907 codificaram as regras da

    guerra. Supunha-se ento que os conflitos ocorreriam sobretudo

    entre pases soberanos, ou, se tivessem lugar dentro do territrio

    de um Estado em particular, entre partes opositoras suficientemente

    bem organizadas para receber o status de beligerantes, reconhecido por

    outros Estados soberanos. Supunha-se que a guerra se distinguia

    flagrantemente da paz, atravs de uma declarao de guerra no incio

    e de um tratado de paz ao final. Supunha-se que as operaes militares

    distinguiriam claramente entre combatentes - reconhecveis como tais

    pelos seus uniformes, ou outros sinais de que pertenciam a foras

    armadas organizadas - e civis no-combatentes. Estes deveriam, na

    medida do possvel, estar protegidos em tempos de guerra. Sempre se

    entendeu que essas convenes no cobriam todos os conflitos armados,

    civis e internacionais, em especial aqueles que derivavam da expanso

    imperial dos pases ocidentais em regies que no estavam sob a

    jurisdio de pases soberanos reconhecidos internacionalmente,

    ainda que alguns (mas claramente no todos) desses conflitos fossem

    chamados de "guerras". Tampouco elas cobriam grandes rebelies contra

    Estados j estabelecidos, como o chamado Motim Indiano; nem as

    atividades armadas recorrentes que tinham lugar em regies que estavam

    fora do controle efetivo dos Estados ou das autoridades imperiais que

    nominalmente os que

    25

  • governavam, tais como os assaltos e as lutas entre grupos rivais nas

    montanhas do Afeganisto e no Marrocos. No obstante, as Convenes de

    Haia serviram ainda como linha de orientao na Primeira Guerra Mundial.

    No transcurso do sculo XX, essa clareza relativa foi substituda pela

    confuso. Em primeiro lugar, a linha que separa os conflitos entre

    pases e os conflitos no interior dos pases - ou seja, entre guerras

    internacionais e guerras civis - tornou-se difusa porque o sculo

    XX teve como caracterstica no s guerras, mas tambm revolues e

    desmembramentos de imprios. As revolues ou as lutas de libertao no

    interior dos Estados tinham implicaes para a situao internacional,

    particularmente durante a Guerra Fria. Reciprocamente, depois da

    Revoluo Russa, as intervenes dos Estados nos assuntos internos de

    outros Estados tornaram-se comuns, pelo menos onde elas pareciam no

    apresentar maiores riscos. Assim continua a ser.

    Em segundo lugar, a distino clara entre guerra e paz tornou-se

    obscura. Exceto em alguns poucos lugares, a Segunda Guerra Mundial

    no comeou com declaraes de guerra nem terminou com tratados de paz.

    A ela seguiu-se um perodo to difcil de classificar, seja como guerra,

    seja como paz, no sentido habitual, que o neologismo "guerra fria"

    teve de ser inventado para descrev-lo. O carter obscuro da situao

    posterior Guerra Fria

    ilustrado pelo atual estado de coisas no Oriente Mdio. Antes da Guerra

    do Iraque, nem a palavra "paz" nem a palavra "guerra" descreviam com

    exatido o que ocorria no Iraque a partir do encerramento formal da

    Guerra do Golfo - o pas continuava sofrendo bombardeios quase dirios

    por parte de potncias estrangeiras -, tampouco se aplicavam plenamente

    s relaes entre palestinos e israelenses, ou ainda entre Israel e

    seus vizinhos Lbano e Sria.

    Tudo isso constitui uma herana infeliz das guerras mundiais do

    sculo XX, e tambm da maquinaria cada vez mais poderosa e

    26

    macia de propaganda de guerra e de um perodo de confrontao entre

    ideologias incompatveis e apaixonantes que trouxeram s guerras

    elementos prprios das cruzadas, por serem comparveis aos que se viram

    nos conflitos religiosos do passado. Esses conflitos, ao contrrio das

    guerras tradicionais sob a vigncia do sistema internacional de poder,

    foram conduzidos com freqncia cada vez maior em torno de finalidades

    no negociveis, como a "rendio incondicional". Como tanto as guerras

    quanto as vitrias eram vistas como totais, quaisquer limitaes

    capacidade de ao dos beligerantes que pudessem ser impostas pelas

    convenes que regularam as guerras dos sculos XVIII e XIX-inclusive

    as declaraes formais de guerra foram rejeitadas. O mesmo aconteceu com

    quaisquer limitaes ao poder dos vitoriosos para impor sua vontade.

    A experincia j revelara que os acordos forjados pelos tratados de

    paz podiam ser facilmente desfeitos. Nos anos recentes, a situao

    complicou-se ainda mais com a tendncia ao emprego do termo "guerra" nos

    discursos polticos para designar o uso da fora armada contra diversas

    atividades nacionais ou internacionais vistas como anti-sociais - a

    "guerra contra a mfia", por exemplo, ou a "guerra contra os cartis das

    drogas". A luta para controlar, ou mesmo para eliminar, essas

    organizaes ou redes, o que inclui grupos terroristas de pequena

    escala, bem diferente das grandes operaes de guerra. Essa

    terminologia imprecisa tambm confunde as aes de dois tipos distintos

    de fora armada. Uma - vamos cham-la de "exrcito" - dirige-se contra

    outras foras armadas com o objetivo de derrot-las. A outra - vamos

    cham-la de "polcia"-dedica-se a manter ou restabelecer o grau

    requerido de respeito lei e ordem pblica dentro de

    uma entidade poltica preexistente, tipicamente um pas. A vitria,

  • que no tem necessariamente uma conotao moral, o objetivo de

    uma fora; a apresentao dos violadores da lei justia, que, sim,

    tem uma conotao moral, o objetivo da outra.

    27

    No entanto, essa distino mais fcil de se fazer na teoria do

    que na prtica. O homicdio cometido por um soldado em batalha

    no constitui, por si s, uma violao lei, ao contrrio do que

    acontece com o homicdio em todos os Estados territoriais que

    funcionam normalmente. Mas o que acontece se um membro do

    Exrcito Republicano Irlands (IRA) considera a si prprio como

    beligerante, ainda que a lei do Reino Unido o considere um assassino?

    As operaes na Irlanda do Norte foram uma guerra, como sustenta o IRA,

    ou uma tentativa de sustentar um governo legtimo de uma provncia do

    Reino Unido diante da ao de violadores da lei? Uma vez que, alm de

    uma formidvel fora policial local, tambm um Exrcito nacional foi

    mobilizado contra o IRA durante mais ou menos trinta anos, poderamos

    concluir que se tratou de uma guerra, a qual, contudo, foi conduzida

    sistematicamente como uma operao policial, de maneira a minimizar as

    baixas e os efeitos negativos sobre a vida da provncia. Afinal, houve

    uma soluo negociada-que, como tpico, ainda no produziu a paz,

    mas simplesmente o prosseguimento da ausncia de luta. Essas so

    as complexidades e confuses das relaes entre a paz e a guerra ao

    iniciar-se o novo sculo. Elas so bem ilustradas pelas operaes,

    militares e outras, em que os Estados Unidos e seus aliados esto

    engajados no momento presente.

    Existe agora, como durante todo o transcurso do sculo XX uma

    ausncia total de qualquer autoridade global efetiva que seja capaz de

    controlar ou resolver disputas armadas. A globalizao avanou em quase

    todos os aspectos - econmico, tecnolgico, cultural, at lingstico,

    menos um: do ponto de vista poltico e militar, os Estados territoriais

    continuam a ser as nicas autoridades efetivas. Existem oficialmente

    cerca de duzentos pases, mas na prtica apenas um punhado deles pesa

    na balana, e h um, os Estados Unidos, que esmagadoramente mais

    poderoso do que os demais. Contudo, nunca nenhum pas ou imprio foi

    grande, rico

    28

    ou poderoso o bastante para manter a hegemonia sobre o mundo

    poltico e muito menos para estabelecer a supremacia poltica e

    militar sobre todo o planeta. O mundo demasiado grande, complexo e

    plural. No existe nenhuma probabilidade de que os Estados Unidos, ou

    qualquer outra potncia singular, possam estabelecer um controle

    duradouro, mesmo que o desejassem.

    Uma nica superpotncia no pode contrabalanar a ausncia de

    autoridades globais, especialmente dada a falta de convenes relativas,

    por exemplo, ao desarmamento ou ao controle de armamentos, com fora

    suficiente para serem voluntariamente aceitas como obrigatrias pelos

    pases principais. Alguma autoridade desse tipo existe, como as Naes

    Unidas, os diversos rgos tcnicos e financeiros, como o Fundo

    Monetrio Internacional, o Banco Mundial e a Organizao Mundial do

    Comrcio, e certos tribunais internacionais. Mas nenhum desses rgos

    tem algum poder efetivo alm daquele que lhe conferido voluntariamente

    pelos Estados, ou por acordos entre eles, ou graas ao apoio de pases

    poderosos. Por mais que seja lamentvel, essa situao no deve sofrer

    modificaes no futuro previsvel.

    Como apenas os Estados tm poder real, o risco que as

    instituies internacionais se mostrem ineficazes ou carentes de

    legitimidade universal ao tentar lidar com questes como os "crimes

    de guerra". Mesmo quando se estabelecem tribunais por acordo geral

  • (como, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional, estabelecido pelas

    Naes Unidas no Estatuto de Roma de 17 de julho de 1998), suas decises

    no sero necessariamente aceitas como legtimas e obrigatrias, ao

    menos enquanto pases poderosos tiverem condies de ignor-las. Um

    consrcio de Estados poderosos pode ter fora suficiente para conseguir

    que alguns violadores nacionais de pases fracos sejam levados a esses

    tribunais, o que talvez contribua para diminuir a crueldade dos

    conflitos armados em certas reas. Mas este um exemplo do exerccio

    tradicional do poder e 29

    da influncia em um sistema internacional de Estados, e no da

    implementao do direito internacional.

    Existe, no entanto, uma diferena marcante entre o sculo

    XXI e o XX: a idia de que a guerra acontece em um mundo dividido em

    reas territoriais que esto sob a autoridade de governos efetivos que

    detm o monoplio dos meios de coero e poder pblico deixou de ter

    aplicao. Ela nunca foi aplicvel a pases em estado de revoluo nem

    aos fragmentos de imprios desintegrados, mas at recentemente, em sua

    maior parte, os novos regimes revolucionrios ou ps-coloniais - com a

    exceo principal da China entre 1911 e 1949 - estabeleceram-se de maneira

    bastante rpida como pases e regimes sucessores mais ou menos

    organizados e funcionais.

    Nos ltimos trinta anos, contudo, o Estado territorial perdeu,

    por vrias razes, o monoplio tradicional da fora armada, boa parte

    da sua prpria estabilidade e do poder que anteriormente tinha e, cada

    vez mais, o sentido fundamental da legitimidade, ou, pelo menos, da

    aceitao da sua permanncia, que permite aos governos impor obrigaes

    consensuais aos cidados, como o pagamento de impostos e o servio

    militar. O equipamento necessrio guerra, assim como os meios para

    financiar guerras no-estatais, est hoje amplamente disponvel a

    entidades privadas.

    Nesse sentido, o equilbrio entre os Estados e as organizaes

    no-estatais modificou-se. Os conflitos armados dentro dos pases

    tornaram-se mais srios e podem prosseguir durante dcadas sem

    perspectivas reais de vitria ou soluo: Caxemira, Angola, Sri Lanka,

    Chechnia, Colmbia. Em casos extremos, como em algumas

    * Esse , tambm, por definio, o caso em que determinados Estados

    aceitam o direito humanitrio internacional e afirmam unilateralmente o

    direito a aplic-los

    a cidados de outros pases em seus prprios tribunais nacionais,

    como fizeram as cortes espanholas, apoiadas pela Cmara dos Lordes da

    Gr-Bretanha, no caso do general Pinochet.

    30

    regies da frica, o Estado pode virtualmente deixar de existir;

    ou, como na Colmbia, deixar de exercer o poder sobre uma parte

    do territrio do pas. Mesmo em pases fortes e estveis tem sido

    difcil eliminar grupos armados no-oficiais, como o IRA, na

    GrBretanha, ou o grupo separatista basco ETA, na Espanha. O carter

    novo dessa situao est demonstrado pelo fato de que o pas mais

    poderoso do mundo, aps ter sofrido um ataque terrorista, viu-se

    obrigado a engajar-se em operaes formais contra uma organizao,

    ou uma rede internacional pequena e no-governamental sem territrio

    prprio e sem um Exrcito reconhecvel como tal.

    Como essas mudanas afetam o equilbrio entre a guerra e a

    paz nos prximos cem anos? Prefiro no fazer previses sobre as

    guerras que podero ocorrer e sobre seus possveis desfechos.

    Contudo, tanto a estrutura dos conflitos armados quanto os mtodos para

    sua resoluo modificaram-se profundamente com as transformaes

  • sofridas pelo sistema internacional de Estados soberanos. A

    dissoluo da Unio Sovitica significa que o sistema de grandes

    potncias, que comandou as relaes internacionais por quase dois

    sculos e que, com bvias excees, exerceu algum controle sobre os

    conflitos internacionais, j no existe. Seu desaparecimento removeu

    um importante entrave s guerras entre pases e s intervenes armadas

    de uns pases nos assuntos de outros, enquanto durante a Guerra Fria

    as fronteiras territoriais internacionais permaneceram basicamente

    invioladas. Mesmo ento o sistema internacional era potencialmente

    instvel, no entanto, graas multiplicao de pases pequenos e por

    vezes demasiado dbeis, que, contudo, eram oficialmente membros

    "soberanos" das Naes Unidas. A desintegrao da Unio Sovitica e dos

    regimes comunistas europeus aumentou claramente essa instabilidade.

    31

    Tendncias separatistas de intensidade variada em Estados nacionais

    at ento estveis, como Gr-Bretanha, Espanha, Blgica e Itlia,

    podem bem ampliar-se no futuro. Ao mesmo tempo, o nmero de atores

    privados no cenrio internacional multiplicou-se.

    Nessas circunstncias, no surpreendente que as guerras

    transfronteirias e as intervenes armadas tenham aumentado depois

    do fim da Guerra Fria.

    Que mecanismos existem para controlar e resolver esses conflitos?

    Os clculos no so promissores. Nenhum dos conflitos armados da dcada

    de 1990 terminou com uma soluo estvel. A sobrevivncia de

    instituies, premissas e retricas da Guerra Fria manteve vivas

    velhas suspeitas, exacerbando a desintegrao ps-comunista do Sudeste

    da Europa e tornando mais difceis as solues para a rea antes

    conhecida como Iugoslvia.

    Essas premissas da Guerra Fria, tanto as ideolgicas quanto as

    relativas poltica de poder, tero de ser abandonadas se quisermos

    desenvolver algum meio de controlar os conflitos armados. Tambm

    evidente que os Estados Unidos no conseguiram e inevitavelmente no

    conseguiro impor uma nova ordem internacional (qualquer que seja ela)

    por meio da fora unilateral, por mais que as relaes de poder

    inclinem-se em seu favor no presente e mesmo que o pas tenha o apoio

    de uma aliana (de durao inevitavelmente curta). O sistema

    internacional permanecer multilateral e seu equilbrio depender de

    que as diversas entidades relevantes logrem concordar entre si, ainda

    que um dos Estados goze de predominncia militar. O grau de dependncia

    das aes militares internacionais tomadas pelos Estados Unidos com

    relao a acordos negociados com outros pases j ficou claro. Tambm

    ficou claro que a soluo poltica para as guerras, mesmo aquelas

    em que os Estados Unidos esto envolvidos, ser dada pela negociao,

    e no pela imposio unilateral. A era das guerras que terminam

    32

    com a rendio incondicional no retornar no futuro previsvel.

    * O papel dos organismos internacionais existentes, sobretudo

    a Organizao das Naes Unidas, tem de ser repensado. Embora

    esteja sempre presente e normalmente se recorra a ela, sua atuao

    na resoluo de disputas no clara. Sua estratgia e sua operao

    esto sempre merc das instabilidades da poltica de poder. A

    ausncia de um intermedirio internacional considerado genui- namente

    neutro e capaz de agir sem a autorizao prvia do Con selho de

    Segurana constitui a carncia mais bvia do sistema de soluo de

    controvrsias.

    Desde o fim da Guerra Fria as decises sobre a paz e a guerra

    tm sido improvisadas. No melhor dos casos, como nos Blcs, os

    conflitos armados tiveram fim graas interveno armada

    externa, e o status quo ao final das hostilidades foi mantido pelos

  • exrcitos de terceiras partes. Esse tipo de interveno a longo prazo

    foi aplicado por muitos anos pela ao de pases fortes nas suas

    esferas de influncia (pela Sria no Lbano, por exemplo). Como

    forma de ao coletiva, no entanto, s foi usado pelos Estados

    Unidos e seus aliados (s vezes com o beneplcito das Naes Unidas,

    s vezes no). O resultado at aqui tem sido insatisfatrio para

    todas as partes. Obriga os interventores a manter suas tropas

    inde finidamente e a custos desproporcionais em reas nas quais no

    tm nenhum interesse particular e das quais no podem extrair

    nenhum benefcio. Torna-os dependentes da passividade da

    populao ocupada, a qual no se pode garantir; se houver

    resis tncia armada, foras relativamente reduzidas de "manuteno da

    paz" dotadas de armamentos tero de ser substitudas por foras

    muito maiores. Os pases pobres e fracos podem se ressentir com

    esse tipo de interveno, pela lembrana que lhes traz dos dias do

    colonialismo e dos protetorados, especialmente quando grande

    parte da economia local se transforma em parasita das

    33

    necessidades das tropas de ocupao. No est claro se de tais

    intervenes pode resultar um modelo geral para o controle futuro dos

    conflitos armados.

    O equilbrio entre a guerra e a paz no sculo XXI depender muito

    mais da estabilidade interna dos pases e da capacidade de evitar os

    conflitos militares do que da construo de mecanismos mais eficazes

    para a negociao e a soluo de controvrsias. Com algumas poucas

    excees, as rivalidades e frices internacionais que levaram a

    conflitos armados no passado tm menos probabilidade de faz-lo agora.

    Comparativamente, hoje existem, por exemplo, menos disputas candentes a

    respeito de fronteiras internacionais. Por outro lado, os conflitos

    internos podem facilmente tornar-se violentos: o maior perigo de guerra

    est no envolvimento de outros pases ou de outros agentes militares

    nesse tipo de conflito.

    Os pases que tm economias pujantes e estveis e uma distribuio

    de renda relativamente eqitativa entre seus habitantes tendem a ser

    menos vulnerveis - social e politicamente - do que os pases pobres,

    economicamente instveis e com distribuio interna de riquezas

    fortemente desigual. O aumento significativo da desigualdade econmica

    e social dentro dos pases ou entre eles reduzir as possibilidades de

    paz. Evitar ou controlar a violncia armada interna depende ainda mais

    imediatamente, contudo, dos poderes e da efetividade do desempenho dos

    governos nacionais e da sua legitimidade perante a maioria dos

    habitantes dos respectivos pases. Nenhum governo pode, hoje, dar por

    garantida a existncia de uma populao civil desarmada ou o grau de

    ordem pblica h tanto tempo vigente em grande parte da Europa.

    Nenhum governo est, hoje, em condies de ignorar ou eliminar

    minorias internas armadas. No entanto, o mundo est cada vez

    mais dividido em pases capazes de administrar seus territrios e

    seus cidados efetivamente - mesmo quando afetados, como

    34

    estava o Reino Unido, durante dcadas por aes armadas efetuadas por

    um inimigo interno - e um nmero crescente de territrios cujo entorno

    demarcado por fronteiras oficialmente reconhecidas com governos

    nacionais que flutuam entre a debilidade, a corrupo e a no-existncia.

    Essas reas produzem lutas internas sangrentas e conflitos

    internacionais, como os que temos visto na frica central. No h,

    apesar de tudo, perspectivas imediatas de melhoras duradouras nessas

    regies, e a continuao do enfraquecimento dos governos centrais nos

    pases instveis, assim como o prosseguimento da balcanizao do mapa

    do mundo, sem dvida provocaro um aumento do perigo de conflitos

  • armados. Um prognstico tentativo: no sculo XXI, as guerras

    provavelmente no sero to mortferas quanto foram no sculo XX. Mas a

    violncia armada, gerando sofrimentos e perdas desproporcio nais,

    persistir, onipresente e endmica-ocasionalmente epidmica -, em

    grande parte do mundo. A perspectiva de um sculo de paz remota.

    35

    2. Guerra, paz e hegemonia no incio

    do sculo XXI

    O tema a guerra, a paz e a hegemonia, mas considerarei os

    problemas atuais na perspectiva do passado, como a prtica entre

    os historiadores. No podemos falar sobre o futuro poltico do mundo, a

    menos que tenhamos em mente que estamos vivendo um perodo em que a

    histria, ou seja, o processo de mudanas na vida e na sociedade humana

    e o impacto que os homens impem ao meio ambiente global, est se

    acelerando a um ritmo estonteante. Neste momento, ela est evoluindo a

    uma velocidade que pe em risco o futuro da raa humana e do meio

    ambiente natural.

    Quando caiu o muro de Berlim, um americano incauto anunciou o fim da

    histria. Evito, portanto, usar uma expresso to claramente

    desacreditada. No obstante, no meio do sculo passado entramos

    subitamente em uma fase nova da histria que acarretou o fim da histria

    como a conhecemos nos ltimos 10 mil anos, isto , desde a inveno

    da agricultura sedentria. No sabemos para onde estamos indo.

    Tentei esboar os contornos dessa quebra dramtica e sbita

    na histria do mundo no meu livro sobre o "breve sculo XX" (Era

    36

    dos extremos). As transformaes tecnolgicas e produtivas so bvias.

    Basta pensar na velocidade da revoluo das comunicaes, que

    virtualmente aboliu o tempo e a distncia. Em 2004, a internet mal

    completou dez anos. Tambm assinalei quatro aspectos sociais desse

    processo, que so relevantes para o futuro das naes. Refiro-me ao

    forte declnio do campesinato, que at o sculo XIX formava a grande

    base da raa humana e o alicerce da economia; correspondente ascenso

    de uma sociedade predominantemente urbana e sobretudo ao aparecimento

    das hipercidades, cuja populao se mede em oito cifras; substituio

    de um mundo de comunicao oral por um mundo baseado na leitura e na

    escrita universais, mo ou mquina; e, finalmente, transformao

    da situao das mulheres.

    O declnio do nmero de pessoas que trabalham no setor agrcola da

    humanidade bvio no mundo desenvolvido. Hoje, ele representa 4% da

    populao ocupada nos pases da OCDE (Organizao para a Cooperao e

    o Desenvolvimento Econmico) e 2% nos Estados Unidos. Mas isso tambm

    se faz notar em outras regies. Em meados da dcada de 1960, ainda

    havia cinco pases europeus com mais da metade da populao ocupada

    nessa rea, onze nas Amricas, dezoito na sia e, com trs excees

    (Lbia, Tunsia e frica do Sul), toda a frica. A situao

    de hoje inteiramente diferente. Praticamente j no existe nenhum pas

    com mais de 50% de agricultores na Europa, nas Amricas e inclusive

    no mundo islmico-at no Paquisto o nmero caiu para menos de 50% e

    na Turquia a populao camponesa caiu de trs quartos para um tero

    do total. Mesmo as grandes fortalezas da agricultura camponesa do

    Sudeste Asitico foram tomadas em diversos lugares - na Indonsia,

    caram de 67% para 44%, nas Filipinas, de 53% para 37%, na Tailndia,

    de 82% para 46%, na Malsia, de 51% para 18%. Em 2006, at a China, cuja

    populao tinha 85% de camponeses em 1950, tem hoje cerca de 50%

    nesse setor. Com

    37

  • efeito, com exceo da maior parte da frica subsaariana, os nicos

    basties slidos que restam da sociedade rural - digamos, com mais de

    60% da populao ocupada em 2000 - esto nos antigos imprios britnico

    e francs no Sul da sia - ndia, Bangladesh, Mianmar e os pases da

    Indochina. Mas, em vista da acelerao da industrializao, por quanto

    tempo mais? No final da dcada de 1960, a populao agrcola de Taiwan

    e da Coria do Sul era a metade da populao total; hoje ela representa

    8% e 10%, respectivamente. Dentro de poucas dcadas, teremos deixado de

    ser o que a humanidade sempre foi desde seu surgimento - uma espcie

    cujos membros se dedicam sobretudo coleta, caa e produo de

    alimentos. Deixaremos tambm de ser uma espcie essencialmente

    rural. Em 1900, apenas 16% da populao mundial vivia em

    cidades. Em 1950, esse nmero j havia crescido para quase 26%, e hoje

    ele est prximo da metade (48 %).1 Nos pases desenvolvidos e em

    muitas outras regies do globo, as zonas rurais, mesmo nas reas

    agrcolas produtivas, so desertos verdes, em que praticamente

    no se vem seres humanos fora dos seus veculos ou de pequenos

    ajuntamentos populacionais. Mas a extrapolao aqui se torna

    mais difcil. verdade que os velhos pases desenvolvidos so fortemente

    urbanizados, mas eles j no tipificam a urbanizao atual, que toma a

    forma de uma fuga desesperada do interior em direo ao que chamamos

    hipercidades. O que est acontecendo com as cidades no mundo

    desenvolvido - mesmo aquelas que crescem nominalmente - a

    suburbanizao de reas cada vez maiores no entorno dos centros

    originais. Hoje, apenas dez das cinqenta maiores cidades e apenas

    duas das dezoito cidades com mais de 10 milhes de habitantes esto na

    Europa ou na Amrica do Norte. As cidades com mais de 1 milho de

    habitantes que mais crescem esto (com a nica exceo do Porto, em

    Portugal) na sia (vinte), na frica (seis) e na Amrica Latina (cinco).

    Sem falar nas 3" outras conseqncias dessa evoluo, ela altera

    fortemente - e de maneiras difceis de prever, em especial nos pases em

    que os chefes de governo e os parlamentos so eleitos-o equilbrio

    poltico entre a populao urbana, altamente concentrada, e a populao

    rural, geograficamente dispersa.

    Falarei pouco sobre a transformao educacional, uma vez

    que os efeitos sociais e culturais da alfabetizao generalizada no

    podem ser facilmente separados dos efeitos sociais e culturais da

    revoluo sbita e totalmente sem precedentes nos meios de

    comunicao pblicos e pessoais, da qual estamos todos participando.

    Quero mencionar apenas um fato significativo. H hoje vinte pases em

    que mais de 55% dos grupos de idade mais avanada continuam estudando

    depois da educao secundria. Mas, com a nica exceo da Coria do

    Sul, todos esto na Europa (tradicionalmente capitalista e ex-

    socialista), Amrica do Norte e Oceania. No que diz respeito capacidade de

    gerar capital humano, o velho mundo desenvolvido ainda mantm uma

    vantagem substancial sobre os principais pases emergentes do sculo

    XXI.

    Com que velocidade a sia, e particularmente a China e a ndia,

    podero aproximar-se dele?

    No quero dizer nada aqui sobre a maior de todas as mudanas

    sociais do ltimo sculo, a emancipao da mulher, exceto quanto a uma

    nica observao que suplementa o que acabo de dizer. A emancipao das

    mulheres encontra seu melhor indicador no grau em que elas alcanaram,

    ou mesmo ultrapassaram, a educao dos homens. No necessrio frisar,

    aqui na ndia, que h certas partes do mundo que ainda esto atrasadas

    a esse respeito.

    Dentro desta nossa perspectiva ampla das transformaes

    inditas que ocorreram nestes ltimos cinqenta anos, vamos

    enfocar com maior detalhe os fatores que afetam a guerra, a paz e

  • 39

    o poder no comeo do sculo XXI. Aqui, as tendncias gerais no

    valem necessariamente como orientao para o exame das realidades

    prticas. evidente, por exemplo, que no transcurso do sculo XX a

    populao mundial (fora das Amricas) deixou de ser governada, como

    quase toda ela o era, de cima para baixo, por monarcas hereditrios ou

    por agentes de potncias estrangeiras. Ela agora vive em uma srie

    de Estados tecnicamente independentes, cujos governos reivindicam sua

    legitimidade fazendo referncia ao "povo" ou "nao", na maioria

    dos casos (o que inclui at os chamados regimes totalitrios), e buscam

    confirm-la por meio de eleies ou plebiscitos, reais ou esprios, ou

    atravs de grandes cerimnias pblicas realizadas periodicamente para

    simbolizar o vnculo entre a autoridade e "o povo". De uma maneira ou

    de outra, o povo deixou de ser composto por sditos, que se

    transformaram em cidados e que passaram a incluir no sculo XX no s

    os homens, mas tambm as mulheres. At que ponto, contudo, isso nos d

    uma idia da realidade, mesmo hoje, quando a maior parte dos governos

    ostenta, tecnicamente falando, variados tipos de Constituies liberal-

    democrticas, com eleies plurais, embora algumas vezes suspensas

    por perodos de governos militares, que se proclamam temporrios mas

    muitas vezes duram longo tempo? No muito.

    No obstante, existe uma tendncia geral que se observa

    provavelmente em quase todo o planeta. Trata-se da mudana da posio

    do prprio Estado territorial independente, que, no transcurso do sculo

    XX, tornou-se a unidade poltica e institucional bsica na qual viviam

    os seres humanos. Em seu bero original, na regio do Atlntico Norte,

    ele se baseava em vrias inovaes que se implantaram a partir da

    Revoluo Francesa. Tinha o monoplio do poder e dos meios de coero -

    armas, homens armados e prises - e exercia controle crescente, por meio

    de uma autoridade central e de seus agentes, sobre o que acontecia

    no territrio

    40

    do pas com base em uma capacidade cada vez maior de reunir

    informaes. O mbito de suas atividades e seu impacto sobre a

    vida diria dos cidados cresceu, assim como sua capacidade de

    mobilizar os habitantes em funo da lealdade destes ao Estado e

    nao. Essa fase do desenvolvimento do Estado alcanou o auge

    cerca de quarenta anos atrs.

    Pense, por um lado, no sistema de "bem-estar social" da

    Europa ocidental da dcada de 1970, no qual o "consumo pblico"

    - ou seja, a proporo do produto interno bruto usada para propsitos

    pblicos e no para consumo ou investimento privados - chegava

    basicamente a 20% ou 30%. Pense, por outro lado, na disposio dos

    cidados no apenas para deixar que as autoridades pblicas lhes

    cobrassem impostos que permitiam a arrecadao dessas somas enormes,

    mas tambm para deixar-se recrutar aos milhes para lutar e morrer

    "pelo pas", durante as grandes guerras do ltimo sculo. Por mais

    de duzentos anos, at a dcada de 1970, a ascenso do Estado moderno

    deu-se de forma contnua e independentemente da ideologia e da

    organizao poltica - liberal, socialdemocrata, comunista ou fascista.

    Isso j no acontece. A tendncia se reverteu. Temos uma economia

    mundial em rpida globalizao, baseada em empresas privadas

    transnacionais que se esforam ao mximo para viver fora do alcance das

    leis e dos impostos do Estado, o que limita fortemente a capacidade

    dos governos, mesmo os mais poderosos, de controlar as economias

    nacionais. Com efeito, graas prevalncia da teologia do mercado

    livre, os Estados esto, na verdade, abandonando muitas das suas

    atividades diretas tradicionais - servios postais, polcia, prises

    e mesmo setores importantes das Foras Armadas - em favor de empresas

  • privadas com fins lucrativos. Estima-se que atualmente 30 mil ou

    mais desses "contratados privados" armados estejam atuando no Iraque.

    Graas a esse desenvolvimento e inundao do planeta com armas leves mas

    41

    altamente efetivas durante a Guerra Fria, a fora armada j no um

    monoplio dos Estados e de seus agentes. Mesmo Estados fortes e

    estveis, como a Gr-Bretanha, a Espanha e a ndia, aprenderam a

    conviver por longos perodos com organizaes de dissidentes

    armados efetivamente indestrutveis e por vezes portadores de

    ameaas diretas ao prprio Estado. Testemunhamos a rpida

    desintegrao, por diversas razes, de numerosos Estados-membros das

    Naes Unidas, na maior parte dos casos, mas no na totalidade deles,

    produtos da desintegrao dos imprios do sculo XX nos quais os

    governos nominais so incapazes de exercer controle real sobre boa parte

    do territrio, da populao e at de suas prprias instituies.

    Impressiona muito, tambm, o declnio da aceitao da legitimidade

    do Estado e da aceitao voluntria de obrigaes perante as autoridades

    governamentais por parte dos habitantes, seja como cidados, seja como

    sditos. Se no houvesse, por parte de vastas populaes e durante a

    maior parte do tempo, essa disposio de aceitar como legtimo qualquer

    poder estatal efetivamente estabelecido - mesmo o poder de um pequeno

    grupo de estrangeiros -, a era do imperialismo dos sculos XIX e XX

    teria sido impossvel. As potncias estrangeiras tiveram dificuldades

    graves apenas nas raras reas em que tal disposio no estava presente,

    como o Afeganisto e o Curdisto. Mas, como o Iraque demonstra, a

    obedincia natural das pessoas diante do poder, mesmo um poder com

    superioridade militar incontrastvel, desapareceu, e com ela tambm os

    imprios. E no s a obedincia dos sditos que est erodindo

    rapidamente, mas tambm a dos cidados. Duvido muito que qualquer pas

    possa hoje empreender grandes guerras com exrcitos recrutados prontos

    para lutar e morrer sem vacilao "pelo pas". Poucos pases do

    Ocidente ainda podem confiar, como a maior parte dos chamados "pases

    desen- volvidos" antes podia faz-lo, em uma populao que era ordeira e

    42

    imbuda do respeito lei, exceto nos casos de criminosos e outros

    marginais que sempre existem nos desvos da sociedade. A proliferao

    extraordinria de meios tecnolgicos, e outros, de manter os cidados

    sob vigilncia o tempo todo (com cmeras em locais

    pblicos, escuta

    telefnica, acesso a dados pessoais e a computadores etc.) no aumentou

    a efetividade do Estado e da lei, mas tornou os cidados menos livres.

    Tudo isso est ocorrendo na era de uma globalizao dramaticamente

    acelerada, que gera crescentes disparidades regionais no nosso planeta. A

    globalizao produz, pela sua prpria natureza, crescimentos

    desequilibrados e assimtricos. Isso tambm pe em destaque a

    contradio entre os aspectos da vida contempornea que esto sujeitos

    globalizao e s presses da padronizao global - a cincia, a

    tecnologia, a economia, vrias infra-estruturas tcnicas e, em menor

    medida, as instituies culturais - e os que no esto sujeitos a ela,

    principalmente o Estado e a poltica. A globalizao leva logicamente,

    por exemplo, a um fluxo crescente de trabalhadores migrantes das reas

    pobres para as ricas, mas isso produz tenses polticas e sociais

    em diversos pases afetados, sobretudo entre os pases ricos da velha

    regio do Atlntico Norte, ainda que, em termos globais, esse movimento

    seja modesto: mesmo hoje, apenas 3% da populao mundial vive fora do pas de

    nascimento. Ao contrrio do que acontece com as movimentaes do

    capital, das trocas comerciais e das comunicaes, os Estados e a

    poltica tm logrado, at aqui, impor obstculos eficazes s migraes

    dos trabalhadores.

  • O desequilbrio novo e mais notvel que a globalizao econmica

    criou, alm da enorme desindustrializao da economia sovitica e das

    economias socialistas da Europa oriental na dcada de 1990, a

    progressiva mudana do centro de gravidade da economia mundial das

    regies lindeiras do Atlntico Norte para regies da sia. Isso ainda

    est em seus estgios iniciais, mas vem se

    43

    acelerando. No h dvida de que o crescimento da economia mundial nos

    ltimos dez anos foi puxado em grande medida pelos dnamos asiticos e,

    acima de tudo, pela extraordinria taxa de crescimento da produo

    industrial da China - 30% em 2003, em comparao com 3% para o mundo

    como um todo e 0,5% para a Amrica do Norte e Alemanha.

    * claro que isso ainda no modificou de maneira mais profunda os

    pesos relativos da sia e do velho Atlntico Norte - os Estados Unidos, a

    Unio Europia e o Japo continuam a representar entre si 70% do produto

    mundial -, mas o simples tamanho da sia j est se fazendo sentir. Em

    termos de poder de compra, o Sul, o Sudeste e o Leste da sia j

    representam um mercado que dois teros maior do que o dos Estados Unidos.

    Como essa mudana global afetar a fora relativa da economia americana

    , naturalmente, uma questo vital para as perspectivas

    internacionais do sculo XXI. Retornarei a este ponto mais adiante.

    Aproximemo-nos ainda mais do problema da guerra, da paz e da

    possibilidade de uma ordem internacional no novo sculo. primeira

    vista, pareceria que as perspectivas de paz mundial devem ser superiores

    s do sculo XX, com seu registro sem paralelos de guerras mundiais e

    outras formas de morte em escala astronmica. Contudo, uma pesquisa

    recente na Gr-Bretanha, que compara as respostas dadas em 2004 a

    perguntas formuladas inicialmente em 1954, revela que o medo de uma

    guerra mundial hoje maior do que era ento.3 Esse medo se deve,

    em grande parte, ao fato cada vez mais evidente de que vivemos em uma

    era de conflitos armados endmicos de extenso mundial, que em geral se

    travam no interior dos pases, mas que so magnificados por

    * Austrlia, Frana, Itlia, Reino Unido e Benelux tiveram crescimento negativo

    (CIA World Facibook at 19 de outubro de 2004).

    44

    impervertCN estrangeiras. Embora a dimenso militar desses conflitos

    Ifijit pequena, quando avaliada nos termos do sculo XX, eles cauiHili

    um impacto relativamente enorme e duradouro sobre a poptiluco civil,

    que , cada vez mais, sua maior vtima. Desde a qucdti do muro de

    Berlim, voltamos a viver em uma era de genocdio c de transferncias

    compulsrias e macias de populaes, como as que ocorreram em regies

    da frica, do Sudeste da luropa e da sia. Estima-se que ao final de

    2003 havia cerca de 38 milhes de refugiados, dentro e fora de seus

    prprios pases, cifra que comparvel ao vasto nmero de pessoas

    deslocadas ao final du Segunda Guerra Mundial. Uma ilustrao simples:

    em 2000, o nmero de mortes relacionadas com a guerra em Mianmar no

    ditava acima de quinhentos, mas o nmero de "deslocados internamente",

    sobretudo devido s atividades do Exrcito de Mianmar, era de cerca

    de 1 milho. A Guerra do Iraque confirma essa caracterstica: guerras

    menores, nos padres do sculo XX, provocam vastas catstrofes.

    A forma tpica de guerra do sculo XX, a guerra entre pases,

    est em forte declnio. Neste momento, nenhum desses conflitos

    tradicionais est ocorrendo, embora eles no possam ser excludos

    em diversos cenrios da frica e da sia, ou onde a estabilidade

    interna ou a coeso dos pases existentes esteja em risco. Por outro

    lado, o perigo de uma grande guerra global, provavelmente decorrente

  • da falta de vontade dos Estados Unidos de aceitar o surgimento da

    China como superpotncia rival, no diminuiu, embora no seja imediato.

    As possibilidades de evitar tal conflito so melhores do que as de

    evitar a Segunda Guerra Mundial depois de 1929. No obstante, essa

    guerra permanece como uma possibilidade real dentro das prximas dcadas.

    Mesmo sem as guerras tradicionais entre pases, pequenas ou

    grandes, atualmente poucos observadores realistas esperam que o

    novo sculo nos traga um mundo sem a presena constante de

    45

    armas e violncia. No entanto, devemos resistir retrica do medo

    irracional com a qual governos como os do presidente Bush e do

    primeiro-ministro Blair buscam justificar uma poltica imperial

    para o mundo. Exceto como metfora, no pode haver algo como

    a "guerra contra o terror", ou o "terrorismo", mas apenas contra

    atores polticos particulares que o empregam como ttica, no

    como programa. Como ttica, o terror indiscriminado e moralmente

    inaceitvel, quer seja usado por pases, quer por grupos no oficiais.

    A Cruz Vermelha Internacional reconhece a mar montante da barbrie ao

    condenar ambos os lados na Guerra do Iraque. H tambm muito medo

    de que pequenos grupos terroristas possam empregar agentes biolgicos

    letais; mas, infelizmente, h muito menos medo com relao aos perigos

    maiores e imprevisveis que surgiro se e quando a nova e crescente

    capacidade cientfica de manipular os processos vitais, inclusive a

    vida humana, escapar ao controle, o que certamente ocorrer. Contudo,

    so irrisrios os perigos reais para a estabilidade do mundo, ou para

    qualquer pas estvel, que decorrem das atividades das redes terroristas

    pan-islmicas contra as quais os Estados Unidos proclamaram sua

    guerra global, ou mesmo da soma de todos os movimentos terroristas

    que atuam hoje, qualquer que seja o lugar. Embora eles matem muito mais

    gente do que seus predecessores - mas muito menos do que os Estados -,

    o risco de vida que causam mnimo do ponto de vista estatstico.

    E, do ponto de vista da agresso militar, eles praticamente no

    contam. A menos que esses grupos ganhassem acesso a armas nucleares - o

    que no impensvel, mas no chega a ser uma perspectiva imediata

    q-, o terrorismo pede cabea fria, e no histeria.

    E, no entanto, a desordem mundial real, assim como a perspectiva

    de outro sculo de conflitos armados e de calamidades

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    humanas. Ser possvel colocar essas tendncias novamente sob algum

    tipo de controle global, como aconteceu, salvo por um perodo de trinta

    anos, durante os 175 anos que transcorreram entre Waterloo e o colapso

    da Unio Sovitica?

    O problema hoje mais difcil por duas razes. Primeiro, as

    desigualdades geradas pela globalizao descontrolada dos mercados

    livres, que crescem muito rpido, so incubadoras naturais de

    descontentamentos e instabilidades. Recentemente observou-se

    que "no se pode esperar que nem mesmo as instituies militares

    mais avanadas sejam capazes de superar uma situao de colapso

    geral da ordem jurdica",5 e a crise dos Estados a que me referi torna

    essa possibilidade mais plausvel do que no passado. E, segundo, j

    no existe um sistema internacional plural de grandes potncias

    como o que logrou evitar que um colapso geral se transformasse

    em guerra mundial, exceto na era das catstrofes, de 1914 a 1945.

    Esse sistema baseava-se na presuno, que vem desde os tratados

    que encerraram a Guerra dos Trinta Anos, no sculo XV, de um

    mundo constitudo por Estados cujas relaes se pautavam por

    regras, especialmente a no-interveno nos assuntos internos de

    cada um, e em uma clara distino entre guerra e paz. Nenhum

  • desses dois pontos mantm-se vlido em nossos dias. Ele baseava-se

    tambm na realidade de um mundo de poder plural, mesmo na pequena

    "primeira diviso" dos pases, o punhado de "grandes potncias" que se

    reduziu aps 1945 a duas superpotncias. Ningum podia prevalecer de

    maneira absoluta, e mesmo as hegemonias regionais (com exceo de uma

    boa parte do continente americano) mostravam-se apenas temporrias.

    O fim da Unio Sovitica e a superioridade militar incontrastvel dos

    Estados Uni-dos puseram termo a esse sistema de poder. Por outro lado, a

    ao poltica dos Estados Unidos a partir de 2002 levou condenao

    das obrigaes contradas em tratados e tambm das prprias convenes

    que compunham a arquitetura do sistema internacional,

    47

    em funo de uma supremacia supostamente duradoura na

    guerra ofensiva de alta tecnologia que fez desse pas o nico capaz

    de empreender aes militares importantes e com rapidez em

    qualquer parte do mundo.

    Os idelogos americanos e os que os apoiam vem esses desdobramentos

    como o incio de uma nova era de paz mundial e de crescimento econmico

    sob o comando de um imprio americano global e benevolente, que eles

    comparam, erroneamente, kpaxbritannica do sculo XIX. Erroneamente

    porque, do ponto de vista histrico, os imprios no criam paz e

    estabilidade no mundo sua volta, ao contrrio de seus prprios

    territrios. Inversamente, era sobretudo a ausncia de conflitos

    internacionais de grande porte o que os mantinha em existncia, como

    aconteceu no caso do Imprio Britnico. Quanto s boas intenes dos

    conquistadores e s suas realizaes positivas, isso pertence esfera da

    retrica imperial. Os imprios sempre se justificam, e s vezes com

    grande sinceridade, em termos morais - seja afirmando que promovem a

    disseminao (na verso deles) da civilizao ou da religio entre

    os brbaros, seja (na verso deles) da liberdade entre as vtimas da

    opresso (alheia), ou como campees dos direitos humanos. Claro que os

    imprios alcanaram alguns resultados positivos. A afirmao de que o

    imperialismo levou idias modernas a um mundo atrasado, que no tem

    validade hoje, no era inteiramente espria no sculo XIX. Por outro

    lado, a afirmao de que ele acelerou significativamente o crescimento

    econmico dos clientes imperiais no resiste anlise, pelo menos fora

    das reas em que os prprios europeus se estabeleceram no ultramar.

    Entre 1820 e 1950, o produto per capita mdio de doze pases da Europa

    ocidental multiplicou-se por 4,5, enquanto na ndia e no Egito ele mal

    chegou a crescer.6 Quanto democracia, todos sabemos que os imprios

    fortes a mantm em casa; s os imprios em declnio a concederam, e

    na menor dose possvel.

    48

    Mas a verdadeira questo refere-se a saber se o projeto, sem

    precedentes histricos, de dominao do mundo por um nico

    pas possvel e se a superioridade militar admitidamente incon

    trastvel dos Estados Unidos adequada para estabelec-la e mant-la.

    A resposta em ambos os casos no. Com freqncia armas criam

    imprios, mas preciso mais do que armas para mant-los, como diz o

    velho ditado do tempo de Napoleo: "Voc pode fazer qualquer coisa

    com baionetas, menos sentar em cima delas". Especialmente hoje, quando

    at uma fora militar esmagadora no consegue produzir por si s a

    aquiescncia tcita. Na verdade, a maioria dos imprios da histria

    governou indiretamente, por meio das elites nativas que muitas vezes

    operavam as instituies locais. Quando se perde a capacidade de

    conseguir amigos e colaboradores suficientes entre os sditos, as

    armas por si ss no bastam. Os franceses aprenderam que nem mesmo 1

    milho de colonizadores brancos, um exrcito de ocupao de 800 mil

    homens e a derrota militar dos insurgentes, mediante o massacre e a

  • tortura sistemticas, no lograram manter a Arglia francesa. Mas p

    or que temos de fazer essas perguntas? Isso nos traz ao enigma com

    o qual quero concluir minha conferncia. Por que os Estados Unidos

    abandonaram as polticas que mantiveram uma hegemonia real sobre a

    maior parte do globo, ou seja, as partes no-comunistas e no-

    neutralistas, depois de 1945? A capacidade americana de exercer essa

    hegemonia no estava baseada na destruio dos inimigos nem em forar

    seus dependentes a alinhar-se devido aplicao da fora militar.

    O uso desse instrumento estava ento limitado pelo medo do suicdio

    nuclear. O poder militar dos Estados Unidos era relevante para a

    hegemonia apenas na medida em que era prefervel a outros poderes

    militares, ou seja, na Guerra Fria, a Europa da OTAN (Organizao do

    Tratado do Atlntico Norte) desejava seu apoio contra o poderio militar

    da Unio Sovitica.

    A hegemonia americana na segunda metade do sculo XX no

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    se deveu s bombas, e sim sua enorme riqueza e ao papel crucial

    que sua gigantesca economia desempenhou no mundo, especialmente nas

    dcadas posteriores a 1945. Alm disso, do ponto de vista poltico, ela

    se deveu a um consenso geral dos pases ricos do Norte no sentido de

    que suas sociedades eram preferveis s dos regimes comunistas. E onde

    esse consenso no existia, como na Amrica Latina, resultou de uma

    aliana com as elites governantes e os exrcitos locais, que temiam

    a revoluo social. Do ponto de vista cultural, ela teve por base