ERIKSEN, T.H & NIELSEN, F. S. Historia Da Antropologia. Petropolis. Vozes. 2007 (09-94 p)

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ERIKSEN, T.H & NIELSEN, F. S. Historia Da Antropologia. Petropolis. Vozes. 2007 (09-94 p)

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    ndices para catlogo sistemtico:l.Antropologia:Histria 306.09

    Eriksen, Thomas HyllandHistria da antropologia / Thomas Hylland

    Eriksen; Finn Sivert Nielsen; traduo deEuclides Luiz Calloni ; reviso tcnica de mersonSena da Silveira. Petrpolis, RJ :'Vozes, 2007.

    ISBN 9 78-8s -326-3428-3

    Ttulo original: A History of Anthropology.

    Bibliografia1. Antropologia

    - Filosofia 2. Antropologia

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    Histria I. Nielsen, Finn Sivert. II. Ttulo.

    06-807 I cDD-306.09

    THoTtaS HYLLND EruTsnxF'TTT SIvERT NTELSEN

    HTSToRIA DA ANiTRoPoLoGIA

    Traduo: Euclides Luiz CalloniReviso tecnica: merson Sena da Silveira

    9;a::yPetrpolis

  • @ Thomas Hylland Eriksen e Finn Sivert Nielsen, 2001

    Ttulo original ingls: A History of Anthropologl'-

    A primeira edio de A History of nthropolog,'foi publicada por Pluto Press,2001. Esta traduo foi publicada de acordo com a Pluto Press Ltd., Londres.

    Direitos de publicao em lngua pouguesa:2007, Editora Vozes Ltda'

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    Editorao: Femando Sergio Olivetti da RochaProjeto grafico: AG.SR Desenv' Grfico

    Capa:WM design

    ISBN 978-85 -326-3428-3 (edio brasileira)ISBN 0-7453- 1 385-X (edio inglesa)

    Suuanro

    Prefocio, T

    1. Incios.9

    2. Vitorianos, alemes e um francs, 27

    3. Quatro pais fundadores, 49,

    4. Expanso e institucionalizao,, 69

    5. Formas de mudana, 95

    6. O poder dos smbolos, I l8

    7. Questionando a autoridade, 135

    8. O fim do Modemismo?, 163

    9. Reconstrues, 188

    Posfacio.2ll

    Bibliografia.2l5

    indice renissivo.247

    Este liwo foi composto e impresso peta Editora Vozes Ltda'

  • Vitorianos, alemes e um francs

    Entre as Guerras Napolenicas (1792-1815) e a I Guerra Mundial (1914-1918), vemos o nascimento da Europa moderna - e do mundo moderno. Acima de tudo, porem, essa foi talvez a era da Revoluo Industrial. Nos anos 1700 transformaes profundas se processaram na agricultura e na manufatura, especialmente na Inglaterra. Mquinas a vapor e de fiao haviam se espalhado por toda parte e uma classe cada vez mais numerosa de camponeses sem terra e de trabalhadores urbanos comeou a se fazer ouvir. As mudanas mais importantes, contudo, ocorreriam mais adi- inte. Na dcada de 1830 foram construdas as primeiras grandes ferrovias; uma dcada depois, navios a vapor cruzavam o Atlntico regularmente; e em 1846 foi introduzido o telgrafo. Numa escala que o mundo desconhecia at ento, comeava a ser possvel movimentar enormes quantidades de informaes, de matrias-primas, de mercadorias e de pessoas por distncias globais. Essa efervescncia, por sua vez, significava que a produo podia ser aumentada, tanto na agricultura como na indstria manufatureira. A Europa tinha condies de alimentar mais pessoas, em parte com o lumento da produo e em parte com a expanso das importaes. O resultado foi o crescimento da populao. Em 1800 a Inglaterra contava com 10.5 milhes de pessoas. Em 1901 sua populao chegava a 37 milhes de habitantes, 75 por cento dos quais viviam em cidades. Forados pela presso populacional e pela racionalizao da agricultura, os camponeses abandonaram o interior e migraram para centros urbanos como Londres ou Paris, onde foram ressocializados como operrios. As condi- ces nas cidades em rpido crescimento eram sempre precrias: epidemias eram comuns, e quando foi introduzida a primeira lei britnica contra o trabalho infantil, em1834, ela apenas regulamentou a situao de crianas com idade inferior a 9 anos.

    Com o tempo, protestos contra essas mudanas aumentaram em freqncia e em escala. O exemplo mais extremo foi a Revoluo Francesa, mas a revolta Cartista na Inglaterra nos anos 1840, as revolues francesa, austraca e italiana em 1848-1849, a

  • Comuna de Paris de 1870, tambm indicam claramente o potencial para a violncia desencadeado pela industrializao. Simultaneamente aos protestos desenvolveu-se uma ideologia nova, de carter socialista. Suas razes remontam a filsofos sociais como Rousseau e Henri de Saint-Simon (1760-1825) e aos neo-hegelianos alemes, mas sua formulao definitiva ocorreu com KarI Marx, que abordaremos mais adiante.

    O sucesso do movimento trabalhista durante o sculo dezenove teria sido praticamente impossvel sem o trem e o navio a vapor. Milhes de migrantes se deslocaram por esses meios de transporte para os Estados Unidos, Austrlia, Argentina, frica do Sul, Sibria e outras partes do mundo, aliviando a presso populacional na Europa e possibilitando uma elevao continuada nos padres de vida de todos. Ao mesmo tempo, nas colnias, administraes difundiam a cultura e as instituies europias. Esse impressionante processo de difuso teve efeitos os mais diversos. Novas relaes de poder surgiram - entre o administrador colonial e o comerciante ndio, entre o proprietrio rural e o escravo negro, entre boer, ingls e bantu, entre colonizador e aborgene australiano. Na esteira dessas novas relaes de dominao e dependncia, novas filosofias, ideologias e mitos surgiram para defend-las ou atac-las. A campanha contra a escravatura um dos primeiros exemplos disso, e a escravido foi abolida com sucesso nas possesses inglesas e francesas nos anos 1830. Mas o racismo, que emergiu como ideologia organizada durante o sculo dezenove, foi uma resposta aos mesmos processos. Finalmente, surgiu uma cincia internacionalizada. O pesquisador global se toma uma figura popular - e o prottipo , naturalmente, Charles Darwin (1809-1882), cuja Origem das espcies (1859) se baseava em dados coletados durante uma circunavegao de seis anos ao redor do globo.

    No surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse perodo. O antroplogo um pesquisador global prototpico que depende de dados detalhados sobre pessoas em todo o mundo. Agora que esses dados se tomavam disponveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadmica. E tambm a sociologia podia alar-se a essa condio. Se a antropologia se desenvolveu a partir do imperialismo, a sociologia resultou da mudana das relaes de classe produzida pela industrializao na Europa em si - todos os pais fundadores da sociologia analisam o significado da modernidade e o contrapem s condies pr-modemas.

    Evolucionismo biolgico e social - Morgan

    Enquanto os principais socilogos do sculo dezenove eram em sua maioria alemes ou franceses, os antroplogos mais destacados estavam na Inglaterra (o maior poder colonial, com grande facilidade de acesso aos outros) ou nos Estados Unidos (onde os outros estavam prximos). Os avanos tericos nas duas tradies tam

  • bm eram bastante diferentes. O evolucionismo tpico da antropologia do sculo dezenove construa-se sobre idias de desenvolvimento do sculo dezoito, favorecido pela experincia do colonialismo e (a comear nos anos 1860) pela influncia de Darwin e seu defensor mais clebre, o filsofo social Herbert Spencer (1820-1903), que fundou o Darwinismo Social, uma filosofia social que exalta as virtudes da competio individual. Mas a antropologia no derivou para uma pseudocincia racista. Todos os principais antroplogos da poca apoiavam o princpio da unidade psquica da humanidade - os seres humanos nasciam em toda parte com aproximadamente os mesmos potenciais, e as diferenas herdadas eram negligenciveis. Com efeito, as teorias da evoluo social pressupunham esse princpio, pois se as diferenas raciais eram consideradas como fundamentais, as comparaes culturais sobre as quais essas teorias se baseavam seriam desnecessrias.

    Paralelamente, socilogos continentais seguiam a liderana de Kant e Hegel e exploravam a realidade socialmente construda descoberta pelos dois alemes. Diferentes socilogos compreenderam esse projeto de modos diversos, mas todos tinham em comum a idia de sociedade como uma realidade autnoma que deve ser estudada em seus prprios termos, no com os mtodos da cincia natural. Como os antroplogos, os socilogos defendiam a unidade psquica da humanidade e aceitavam a teoria evolucionista. Diferentemente dos antroplogos, que classificavam e comparavam as caractersticas externas das sociedades em todo o globo, os socilogos dirigiam a ateno para a dinmica interna da sociedade ocidental, industrial. As teorias sofisticadas que assim se desenvolveram exerceriam um impacto fundamental tambm sobre a antropologia a partir do incio do sculo vinte.

    Ilustraremos aqui as diferenas entre essas duas tradies emergentes com a obra de duas de suas figuras pioneiras mais destacadas: o antroplogo americano Lewis Henry Morgan (1818-1881) e o socilogo alemo Karl Marx (1818-1883).

    A vida de Morgan consubstanciou de muitas formas os Estados Unidos de oportunidades iguais que o socilogo francs Alexis de Tocqueville havia descrito em1835. Ele cresceu numa fazenda no Estado de Nova York, formou-se em advocacia e participou de modo ativo e bem-sucedido na poltica local. Um dos primeiros defensores dos direitos polticos dos nativos americanos, ele era fascinado pelos ndios desde a juventude. Na dcada de 1840 ele viveu com os iroqueses durante algum tempo, quando foi adotado por uma das tribos e recebeu o nome Tayadaowuhkuh: aquele que constri pontes.

    Morgan compreendeu que grande parte da complexidade da cultura nativa americana em pouco tempo seria irrecuperavelmente destruda como conseqncia do influxo de europeus, e considerava como tarefa crucial documentar a cultura tradi

  • cional e a vida social desses nativos antes que fosse tarde demais. Essa atitude, muitas vezes denominada antropologia urgente, foi assumida tambm pelo segundo grande antroplogo americano, Franz Boas (captulo 3), e desde ento foi muito utilizada em pesquisas de povos indgenas.

    Morgan tinha contato estreito com o povo que ele estudava, simpatizava com os problemas desse povo e publicava relatos detalhados de sua cultura e vida social. Mas ele tambm fez contribuies tericas substanciais, especialmente em sua obra pioneira sobre o parentesco. O interesse de Morgan pelo parentesco tinha origem em seu convvio com os iroqueses. Mais tarde, ele descobriu semelhanas e diferenas surpreendentes entre o sistema de parentesco desse povo e o de outros povos na Amrica do Norte. Ele ento elaborou um estudo comparativo em larga escala do parentesco dos nativos americanos, no qual acabou incluindo tambm outros grupos. Morgan criou a primeira tipologia de sistemas de parentesco (cf. Holy 1996) e introduziu uma distino entre parentesco classificatrio e descritivo que continua em uso ainda hoje. Numa explicao muito simplificada - sistemas descritivos (como o nosso) diferenciam parentes da linha ascendente ou descendente direta (parentela linear) dos parentes laterais (parentela colateral, como irmos, primos e contraparentes). O parentesco classificatrio (como entre os iroqueses) no faz diferena entre essas duas categorias. Aqui o mesmo termo pode ser usado, por exemplo, para todos os parentes masculinos lineares e colaterais do lado paterno (pai, irmo do pai, filho do irmo do pai, etc.). Mas Morgan fez mais do que formular uma teoria: ele fundamentou sua teoria em anos de estudos intensivos sobre os sistemas de parentesco existentes ao redor do mundo. Ele apresenta os resultados dessas pesquisas em seu influente Systems of Consanguinity andAffinity of the Human Family (1870), onde tambm considera o parentesco, definitivamente, como um tema antropolgico fundamental.

    Para Morgan, o parentesco era principalmente uma porta de entrada para o estudo da evoluo social. Ele sustentava que as sociedades primitivas organizavam-se sobre a base do parentesco e que as variaes terminolgicas entre sistemas de parentesco tinham correlao com variaes na estrutura social. Mas ele tambm supunha que a terminologia do parentesco mudava lentamente e que portanto continha indicaes para uma compreenso de estgios anteriores da evoluo social.

    Em sua obra magna Ancient Society (1877), Morgan procura realizar uma grandiosa sntese de toda sua obra. Ele distingue trs grandes estgios da evoluo cultural: selvageria, barbrie e civilizao (com trs subestgios para a selvageria e trs para a barbrie). Os critrios para essas divises eram principalmente tcnicos: seus selvagens eram caadores e coletores, o barbarismo estava associado agricultura e a civilizao formao do Estado e urbanizao. Observando-se retros

  • pectivamente, parece claro que a sntese de Morgan no teve sucesso. Mesmo acei- tando-se o seu esquema evolucionrio bsico, os detalhes geralmente so vagos. As vezes, caractersticas tecnolgicas isoladas recebem um peso alm do razovel - por exemplo, a cermica o critrio de transio entre dois estgios. Com isso, onde se situariam as sociedades de chefia polinsias, com seus sistemas polticos complexos, mas sem nenhum trao de cermica? justo acrescentar que o prprio Morgan tinha conscincia de que suas concluses eram muitas vezes especulativas e ele prprio criticava a qualidade dos seus dados (principalmente os secundrios).

    Morgan exerceu influncia considervel sobre a antropologia posterior, especialmente sobre os estudos relacionados com o parentesco, mas tambm sobre os materialistas culturais americanos e outros antroplogos evolucionistas no sculo vinte (captulo 5). Socilogos tambm o liam, porm. Quando Marx, quase no fim de sua vida, descobriu Morgan, ele e seu companheiro Friedrich Engels tentaram integrar as idias de Morgan em sua prpria teoria evolucionria, ps-hegeliana. Os resultados incompletos dessa tentativa foram publicados por Engels em The Origin of the Family, Private Property, and the State, em 1884, o ano seguinte morte de Marx.

    Marx

    O escopo e os objetivos da obra de Marx contrastam agudamente com os de Morgan, apesar do envolvimento de ambos com explicaes materialistas. Os escritos de Marx sobre as sociedades no-industriais so dispersos e constituem tentativas. Foi com a anlise da sociedade capitalista em sua obra-prima Das Kapital (vols. 1-3, 1867, 1885,1896; O capital, 1906) que ele deu sua contribuio permanente teoria social. Apesar da derrocada do marxismo como movimento poltico no fim dos anos 1980, essa obra continua como influncia acadmica importante.

    Nascido no mesmo ano que Morgan, de famlia judia abastada, numa obscura cidade alem, Marx formou-se em filosofia antes de se dedicar a uma carreira como terico social, panfletrio, editor, jornalista, organizador trabalhista e revolucionrio. Ele se envolveu ativamente na onda revolucionria que abalou o establishment europeu em 1848-1849 e na Comuna de Paris em 1870. Depois da Comuna ele ficou conhecido como uma das figuras mais eminentes do movimento operrio internacional.

    A influncia de Marx sobre a teoria social multiforme e complexa e pode ser detectada em muitas anlises antropolgicas at hoje (embora seja ainda maior sobre a sociologia, a histria e a economia). A confluncia de teoria social e ativismo poltico profunda em Marx e imprime em todo seu projeto um carter paradoxal, insti- gante e provocante (ver Berman 1982). Num sentido, Marx procurou durante toda

  • sua vida conciliar um impulso idealista da filosofia alem (particularmente Hegel) com uma cosmoviso materialista. s vezes se ouve dizer que Marx ps Hegel a seus ps: ele conservou o princpio dialtico de Hegel, mas afirmou que o movimento da histria se deu num nvel material, no num nvel espiritual. Segundo Marx, a sociedade constituda de infra-estrutura e superestrutura. A primeira compreende as condies para a existncia - os recursos materiais e a diviso do trabalho; a segunda inclui todos os tipos de sistemas ideacionais - religio, lei e ideologia. Em todas as sociedades uma contradio fundamental permeia toda a infra-estrutura: a que se constata entre as relaes de produo (que organizam o trabalho e a propriedade) e as foras de produo (por exemplo, a tecnologia e a terra). Quando avanos tecnolgicos tomam relaes de produo anteriores obsoletas surge o conflito de classes, e as relaes de produo ficam alteradas - por exemplo, da escravido ao feudalismo e deste ao capitalismo. Marx afirmou que o sistema capitalista seria substitudo pelo socialismo (dirigido por uma ditadura do proletariado) e finalmente pelo comunismo sem classes - uma utopia em que tudo se toma posse de todos.

    A teoria to ambiciosa, e em muitos aspectos to ambgua, que fatalmente levantaria muitos problemas quando enfrentasse as complexidades do mundo real. Um exemplo disso a anlise de classes marxista. Em termos aproximados, Marx postulava que os que possuem e os que no possuem propriedade dos meios de produo constituem classes discretas com interesses especficos. O interesse objetivo da classe trabalhadora consiste em destituir a classe dirigente atravs da revoluo. Mas a classe trabalhadora est apenas parcialmente consciente da explorao que sofre, uma vez que as verdadeiras relaes de poder so ocultadas por uma ideologia que justifica a ordem existente. Fenmenos superestruturais, como a lei, a religio ou o parentesco so infundidos tipicamente com uma falsa conscincia que pacifica a populao.

    Mas, pergunta o antroplogo, esse modelo aplicvel a contextos no-ociden- tais? Como ele se harmoniza com a afirmao de Morgan de que o parentesco o princpio organizador fundamental nas sociedades primitivas? O parentesco faz parte da infra-estrutura? Como isso possvel, se o parentesco uma ideologia que oculta a infra-estrutura? Toda distino entre infra-estrutura e superestmtura, entre material e espiritual, deve ser abandonada? Em que sentido, se existe um, a ideologia menos real do que o poder? Essas questes conquistaram uma importncia cada vez maior na antropologia, e uma parte significativa da atrao exercida por Marx atualmente est em sua capacidade de levantar questionamentos como esses.

    O prprio Marx no se esqueceu desses problemas. Sua extensa anlise da formao do valor prova suficiente disso. O valor de um objeto em si mesmo, seu valor de uso concreto, sua correspondncia com necessidades humanas reais, trans

  • formado, no capitalismo, num valor de troca abstrato, que o valor em comparao com outros objetos. Objetos materiais so transformados em produtos espirituais, e quanto mais isso continua, mais abstrato, absurdo e alienado parece o mundo. Nessas passagens, valor se toma um conceito profundamente ambguo, em que poder e ideologia, o material e o espiritual se entrelaam inextricavelmente. Entretanto, permanece a dvida se Marx realmente resolveu o problema que ps para si mesmo. Poderamos observar, por exemplo, que suas dificuldades em aproximar o materialismo e o idealismo (hegeliano) lembram o problema de Morgan com as causas materialistas da terminologia do parentesco. Somente nos anos 1980 vimos um esforo combinado para resolver o paradoxo.

    Bastian, Tylor e outros vitorianos

    Morgan e Marx pertenciam primeira gerao de cientistas sociais em atividade nas dcadas de 1850 a 1870. No obstante, embora a contribuio deles ofusque a da maioria dos seus contemporneos, eles estavam longe de ser os nicos:

    Nos anos 1860, enquanto Morgan ainda trabalhava em seu belo volume sobre o parentesco, foram publicados na Europa vrios livros que em parte complementavam Morgan e em parte levantavam questes inteiramente diferentes. Em 1860 o prolfico antroplogo alemo Adolf Bastian (1826-1905) publicou o seu Der Mensch in der Geschichte em trs volumes (Man in History, ver Koepping 1983). Bastian, mdico por formao, tomou-se etngrafo por influncia dos irmos Wilhelm e Alexander von Humboldt, o lingista e o gegrafo que revolucionaram o pensamento humanista e social na Alemanha durante a primeira metade dos anos 1800. Bastian viajou muito, na verdade estima-se que tenha passado vinte anos fora da Alemanhai Koepping 1983: 8). Entre uma viagem e outra, ele escreveu seus livros, foi nomeado professor de Etnologia na Universidade de Berlim e diretor do Museu Imperial, fun- iou o importante Berliner Museum fr Vlkerkunde em 1868 e contribuiu generosamente para formar as colees desse museu. Como os irmos Humboldt antes dele e 3oas depois dele (captulo 3), Bastian continuou a tradio alem de pesquisa sobre Volkskultur que fora inspirada por Herder e criticou duramente os esquemas evolucio- nistas simplistas que comeavam a se destacar nessa poca. Como o nico antroplogo de vulto do sculo dezenove, Bastian foi um crtico vigoroso e incisivo do evolu- cionismo. Sua viso era que todas as culturas tm uma origem comum, da qual se ramificaram em vrias direes - uma viso que mais tarde foi desenvolvida com gran- ie sofisticao por Boas e seus alunos. Ele estava profundamente consciente das relaes histricas entre culturas, e assim antecipou um desdobramento que ocorreu posteriormente na antropologia alem, especificamente, o difusionismo. Bastian in-

  • elusive antecipou o estruturalismo e a psicologia junguiana quando afirmou que todos os seres humanos tm certos padres elementares de pensamento em comum: Elementrgedanken. Foi principalmente na antropologia alem, e em grande parte atravs da obra de Bastian, que o princpio embrionrio do relativismo cultural, evidente em Herder mas ausente do pensamento iluminista e da antropologia an- glo-americana do sculo dezenove, marcou presena na antropologia durante o sculo dezenove. Na Frana, por exemplo, a escola sociolgica de Augusto Comte (1798-1857) foi tudo, menos relativista, operando com um sistema rgido de trs estgios de evoluo social.

    No ano seguinte publicao de Der Mensch in der Geschichte, o advogado escocs Henry Maine (1822-1888) publicou Ancient Law. Essa obra era principalmente uma pesquisa sobre a histria cultural baseada em fontes escritas. Maine procurou demonstrar como mudanas na legislao refletem mudanas sociais mais amplas e fez a distino entre sociedades tradicionais baseadas em status e sociedades modernas baseadas em contrato. Nas sociedades baseadas em status, os direitos so distribudos atravs de relacionamentos pessoais, parentesco e posio social herdada. Por outro lado, a sociedade baseada em contrato baseia-se em princpios formais, escritos, que funcionam independentemente das pessoas reais. A distino entre status e contrato continua sendo adotada atualmente, e muitos estudiosos seguem a orientao de Maine ao distinguir entre dois tipos ideais - sociedades simples e complexas - e so, por sua vez, criticados por excesso de simplificao.

    Uma idia evolucionista que influenciou Morgan, Engels e outros, mas foi rejeitada desde ento, foi a teoria do matriarcado original. Essa teoria foi proposta inicialmente pelo advogado suo Johann Jakob Bachofen (1815-1887), em Das Mutter- recht (1861; Mothers Right, ver Bachofen 1968). Bachofen defendia uma teoria evolucionista que passava de um estgio inicial de promiscuidade geral (Hetaris- mus) a uma primeira forma de vida social - matriarcado - em que as mulheres detinham o poder poltico. Ele admitia que no existiam mais matriarcados reais, mas vestgios deles encontravam-se em sistemas de parentesco matrilineares, onde a descendncia segue principalmente a linha materna. Essa idia, implicando que a humanidade progrediu medida que a liderana das mulheres foi sendo substituda pela dos homens, atraiu muitos seguidores, e quase foi considerada como fato natural pela gerao seguinte de antroplogos. Na Inglaterra ela foi promovida por outro advogado interessado em evoluo social, John Ferguson McLennan (1827-1881). Apesar da inexistncia de evidncias etnogrficas a favor dessa idia, ela resistiu tanto que somente na dcada de 1970 antroplogas feministas se convenceram de que ela devia ser extirpada (Bamberger 1974).

  • Assim, Morgan no trabalhou num vcuo intelectual. O interesse pelos estudos comparativos da cultura e da sociedade estava aumentando, especialmente na Inglaterra e na Alemanha, e o acesso a dados empricos confiveis melhorava rapidamente graas ao colonialismo. Ainda assim, o nico antroplogo do sculo dezenove a rivalizar com Morgan em influncia foi Edward Bumett Tylor (1832-1917).

    E.B. Tylor recebeu uma educao quacre, uma crena que o impediu de freqentar a universidade. Enquanto convalescia em Cuba, porm, ele descobriu seu interesse por arqueologia e foi convidado a participar de uma expedio a runas toltecas no Mxico. Num perodo dominado pelo evolucionismo, o passo da pr-histria antropologia foi curto, e a obra de Tylor como antroplogo logo lhe atrairia (e disciplina) prestgio considervel. Em 1896 ele foi nomeado primeiro professor britnico de an- :ropologia na Universidade de Oxford. Em 1912, foi nomeado cavaleiro. Tylor ainda era jovem quando publicou sua primeira grande sntese evolucionista, Researches into the Early History ofMankind and the Development of Civilization (1865); e sua obra mais importante, Primitive Culture (1871), veio apenas alguns anos depois. Tylor propunha aqui um esquema evolucionista que lembrava o de Morgan em Anci- ent Society (os dois livros foram publicados no mesmo ano). Ele e Morgan acreditavam na primazia das condies materiais. Tambm como Morgan, seu conhecimento da variao cultural era vasto (Darwin se refere a Tylor vrias vezes em sua obra os anos 1870 sobre a evoluo humana). Mas, diferentemente de Morgan, Tylor no se interessava pela terminologia do parentesco, e em lugar dela desenvolveu uma :eoria dos sobreviventes culturais. Sobreviventes eram traos culturais que haviam perdido suas funes originais na sociedade, mas haviam sobrevivido, sem nenhuma -azo em particular. Esses traos eram de importncia crucial para o esforo de reconstruo da evoluo humana. Tylor advogava um mtodo comparativo trao a rao, o que lhe permitia isolar sobreviventes do sistema social mais amplo. Embora influente na poca, esse mtodo foi abandonado pela gerao seguinte de antroplo- os. Curiosamente, ele reapareceu em meados da dcada de 1970, quando o socilo- co Edward O. Wilson, numa aventura intelectual comparvel de Tylor, procurou conciliar variao cultural e evolucionismo darwinista (ver Ingold 1986).

    Mas a contribuio mais importante de Tylor antropologia moderna sua defi- r.io de cultura. Essa definio est na primeira pgina de Primitive Culture, com a seguinte redao:

    Cultura, ou civilizao, tomada em seu sentido amplo, etnogrfico, aquele todo complexo que inclui conhecimento, crena, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hbitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade (Tylor 1958 [1871]: 1).

  • Por um lado, cultura assim um termo geral que perpassa estgios evolutivos. Onde a evoluo diferencia sociedades em termos qualitativos, a cultura une a humanidade. Tylor, como Bastian, foi um proponente explcito da unidade psquica da humanidade. E a semelhana com Bastian vai alm disso. Tylor era versado em antropologia alem e em filosofia e havia lido tanto o prprio Bastian como vrios dos professores dele (ver Koepping 1983). Por outro lado, Tylor equipara cultura com civilizao, um termo qualitativo. Cultura assim, pelo menos implicitamente, se toma uma questo de grau: todos tm, mas no em quantidade igual. Esse conceito de cultura contradiz totalmente Bastian e toda a noo herderiana de Volk. Para Herder e seus sucessores, a humanidade consistia em culturas autnomas, limitadas. Para Tylor e outros evolucio- nistas vitorianos a humanidade consistia em grupos que eram aculturados em vrios graus e distribudos nos degraus de uma escada de evoluo cultural.

    Nos anos entre 1840 e 1880 socilogos e antroplogos levantaram todo um conjunto de novos problemas. Enquanto Marx desenvolvia a primeira grande teoria de cunho sociolgico, abrangendo a modernizao, a formao do valor, o poder e a ideologia, e enquanto Darwin formulava os princpios da evoluo biolgica, os antroplogos estavam envolvidos num projeto de duas direes. Em parte, eles se ocupavam em esboar grandes esquemas evolucionrios - unilineares na inteno e universalistas nas pretenses; em parte, tratavam de documentar a imensa amplitude da variao so- ciocultural humana - e do conhecimento assim acumulado emergiram as primeiras teorias de baixo alcance pertencentes a domnios etnogrficos especficos, como o do parentesco, e enraizadas em descries empricas especficas e detalhadas.

    Ainda era raro o prprio antroplogo realizar estudos de campo, embora Morgan e Bastian fossem excees notrias. Outra exceo, menos conhecida, foi o etngra- fo russo Nicolai Nicolaievich Miklukho-Maklai (1846-1888), que em 1871,40 anos antes de Malinowski, realizou um estudo de campo intensivo de 15 meses na costa da Nova Guin e lanou as bases para uma rica tradio etnogrfica na Rssia que praticamente desconhecida no Ocidente (ver Plotkin e Howe 1985). Mas a grande maioria dos antroplogos coletava seus dados atravs de correspondncia com administradores coloniais, colonizadores, oficiais, missionrios e outros brancos residentes em lugares exticos. Dada a qualidade desigual desses dados e as imensas ambies tericas dos autores, esses estudos estavam quase sempre repletos do tipo de especulao que Radcliffe-Brown (captulo 3) mais tarde rejeitaria como histria con- jetural. Apesar desses defeitos, no entanto, os livros eruditos dos vitorianos possuam um enfoque terico e uma base emprica num grau nunca visto at ento.

    A importncia do parentesco nessa fase da evoluo da disciplina no pode ser exagerada. A terminologia do parentesco era um campo emprico limitado. Entretan

  • to, mape-lo e compreend-lo era uma experincia humilhante. Quanto mais o olhar se aproximava desses sistemas estranhamente formais, mais complexos eles pareciam. De fato, para os primeiros praticantes dos estudos do parentesco, principalmente advogados de profisso, a tarefa parecia bastante simples. Eles procuravam um sistema legal que regulasse o comportamento em sociedades primitivas, e o parentesco era o candidato bvio - um sistema emprico de normas formalizadas, verbalizadas. No fim do sculo uma analogia muito comum era a de que o parentesco era um tipo de Pedra de Roseta do antroplogo que possibilitava que costumes primitivos fossem compreendidos e traduzidos em termos racionais.

    The golden bough e A expedio a Torres

    Durante algumas dcadas depois dos prolficos anos 1860 e 1870, pouca coisa importante foi publicada no campo da antropologia. Tambm na sociologia a situao parece no ter sido melhor - com a notvel exceo da obra de Ferdinand Tn- nies, Gemeinschaft und Gesellschaft (1887; Community andSociety, 1963), que propunha uma dicotomia entre o tradicional e o moderno semelhante de McLennan, embora com tom menos crtico. Uma nova gerao surgiu no decorrer desses anos. Muitos dos principais personagens analisados at aqui, entre os quais Marx, Morgan, Bachofen e Maine, estavam mortos. Na antropologia vemos a primeira institucionalizao da disciplina na Inglaterra, Alemanha, Frana e Estados Unidos. Tradies nacionais independentes comeavam a se cristalizar e conjuntos distintos de ques- :es eram formulados em cada um desses quatro pases. Os alemes seguiram a liderana de Bastian e dos lingistas comparativos, cujo xito em deslindar a histria as lnguas indo-europias foi quase to sensacional, em seu tempo, quanto o evolu- cionismo de Darwin. Eles elaboraram um programa de pesquisa para o estudo da pr-histria humana que imitava a difuso e o movimento de lnguas de modo muito prximo forma como o evolucionismo imitava a biologia. Esse programa, o difusio- nismo, estudava a origem e a disseminao de traos culturais. O desafio lanado por esses historiadores concretos s histrias abstratas do evolucionismo fez com que o iifusionismo se tomasse uma inovao efetivamente radical em tomo da virada do >culo. Nos Estados Unidos e na Inglaterra o evolucionismo continuou predominando. mas os estudiosos se especializavam cada vez mais, concentrando-se em sub- campos especficos, como parentesco, religio, magia ou justia. Todos esses programas de pesquisa, porm, passaram por dificuldades muito srias por falta de dados rigorosos e detalhados. Essa lacuna se tomara progressivamente mais evidente ao longo do sculo dezenove, e agora o consenso quase universal nesse campo refletia a necessidade de mais e melhores dados. J em 1857 antroplogos ingleses publi

  • caram a primeira edio daquela que se tomaria a obra autorizada nos mtodos de campo durante quase um sculo -Notes and Queries on Anthropology, que na continuidade foi reeditada em quatro edies revistas e ainda mais detalhadas. Mas a inovao metodolgica que todos esperavam s chegou depois da consolidao de uma concepo radicalmente nova do trabalho de campo antropolgico.

    O ltimo grande evolucionista vitoriano foi James George Frazer (1854-1941), um aluno de Tylor que se celebrizou muito alm dos crculos antropolgicos por sua obra-prima The Golden Bough; o livro teve sua primeira edio lanada em 1890, em dois volumes, mais tarde ampliados para ocupar doze tomos enormes. The Golden Bough uma extensa investigao comparativa da histria do mito, da religio e de outras crenas exticas, com exemplos tirados de todas as partes do mundo. Como muitos evolucionistas, Frazer acreditava num modelo de evoluo cultural em trs etapas: um estgio mgico seguido por um estgio religioso que d lugar a um estgio cientfico. Esse esquema geral tem suas origens em Vico e desenvolvido por Comte. Embora Frazer considerasse claramente os ritos mgicos como irracionais e tivesse como pressuposto que os primitivos baseavam sua vida numa compreenso totalmente errnea da natureza, seu principal interesse era identificar padres e traos universais no pensamento mtico. Com algumas excees notveis (sendo Lvi-Strauss uma delas), os antroplogos modernos raramente consideram Frazer como algum mais do que uma figura histrica. Sua influncia, porm, foi maior fora da antropologia; dois dos seus admiradores mais entusiasmados foram o poeta T.S. Eliot e o psiclogo Sigmund Freud. No entanto, a fascinante e densa obra de Frazer no teve continuidade em pesquisas posteriores. Ela se ergue solitria, um monumento imponente insegura base emprica do evolucionismo vitoriano.

    Outro empreendimento britnico na virada do sculo, menos observado na poca e muito menos conhecido fora da antropologia, qual seja, a Expedio a Torres, organizada na Universidade de Cambridge em 1898, com destino ao Estreito de Torres, entre a Austrlia e a Nova Guin, teve retrospectivamente repercusses mais amplas. A expedio foi planejada para coletar dados detalhados sobre a populao tradicional das ilhas na rea e inclua vrios antroplogos - embora todos fossem especializados em outras disciplinas, pois a formao acadmica em antropologia ainda era rara. Alfred C. Haddon (1855-1940) era originalmente zologo, William H.R. Rivers (1864-1922), psiclogo, e Charles G. Seligman (1873-1940) era mdico. Em contraste com o ideal individualista do trabalho de campo britnico posterior, a expedio a Torres foi um esforo coletivo em que especialistas de vrias disciplinas exploraram diferentes aspectos da cultura local. No entanto, devido alta qualidade e ao impressionante volume de dados coletados, muitos consideram esses antroplogos

  • como os primeiros pesquisadores de campo verdadeiros. A antropologia social britnica nasceu com o trabalho de campo realizado por eles, escreve um comentador (Hynes 1999).

    Haddon, colega de Frazer na Universidade de Cambridge, havia planejado a expedio a Torres como um projeto de campo ideal, em que os participantes explorariam todos os aspectos da vida nativa: etnografia, psicologia, lingstica, antropologia fsica e musicologia. Ele prprio seria responsvel pelas reas da sociologia, do folclore e da cultura material. Para Seligman, que mais tarde se tomaria figura central no influente departamento de antropologia na London School of Economics (LSE), a expedio foi o incio de uma carreira que, depois das atividades desenvolvidas na Melansia e no Sri Lanka, culminaria em vrios estudos de campo importantes no Sudo. Ele assim contribuiu decisivamente para deslocar o foco da antropologia inglesa das ilhas do Pacfico (onde permaneceu at anos adentro da dcada de 1920) para a frica (que em pouco tempo se tomaria uma mina de ouro etnogrfica). A obra mais importante de Seligman baseada no Sudo, em co-autoria com sua mulher Brenda Seligman (Seligman e Seligman, 1932) ainda hoje considerada um clssico em seu campo.

    Rivers foi o membro mais estranho da expedio. At sua morte prematura em 1922, ele era professor na Universidade de Cambridge, onde investiu muito esforo para desenvolver uma antropologia psicolgica, um projeto muito adiante do seu tempo para ter sucesso. Quase no fim da vida, Rivers foi influenciado pela psicologia de Sigmund Freud. Durante a expedio a Torres, ele se concentrou particularmente nas capacidades mentais dos nativos e de modo especial no uso que faziam dos sentidos. Em 1908 publicou uma monografia descritiva, The Todas, baseado em seu trabalho numa tribo no sul da ndia; e, em 1914, The History of Melanesian Society, uma obra completa que esboava a imensa variao cultural da Melansia e a explicava como resultado de repetidas ondas de migrao, uma hiptese que ainda aceita. com as devidas modificaes, entre os arquelogos atuais. Com essa obra, Rivers comeou a se afastar do evolucionismo e a seguir na direo da nova escola do difu- sionismo, tema dos seus ltimos trabalhos.

    Difusionismo

    Os difusionistas estudavam a distribuio geogrfica e a migrao de traos culturais e postulavam que culturas eram mosaicos de traos com vrias origens e histrias. As partes de uma cultura, portanto, no esto todas necessariamente ligadas a um todo maior. Em contraste, a maioria dos evolucionistas sustentava que as sociedades eram sistemas coerentes, funcionais. Na verdade, os evolucionistas tambm

  • reconheciam a existncia de traos culturais isolados, no-funcionais (os sobreviventes de Tylor) e, na prtica, esses recebiam uma quantidade desproporcional de ateno analtica (considerando que eram atpicos), uma vez que eram a chave para reconstruir as formas sociais do passado. Mas quando a perspectiva evolucionista sucumbiu, a idia de sociedades como todos coerentes tambm ficou desacreditada (embora se mantivesse forte na sociologia e logo reapareceria com fora renovada na antropologia social inglesa). Agora todos os traos culturais eram sobreviventes potenciais. Os difiisionistas ainda os usavam para reconstruir o passado, mas o passado no era mais um movimento unilinear atravs de estgios bem definidos. A histria cultural era uma narrativa fragmentada de encontros culturais, migraes e influncias, cada instncia da qual era nica. Nas primeiras dcadas do sculo vinte o difusionismo foi uma alternativa atraente para o evolucionismo, porque ele respeitava mais os fatos da realidade e porque suas pretenses tericas eram mais modestas.

    O fato de que tecnologia e idias podiam viajar no era uma descoberta nova. No sculo dezoito, fillogos alemes haviam mostrado que lnguas europias e do norte da ndia tinham origens comuns. Os arquelogos haviam descoberto que a cermica e outros artefatos haviam se difundido de centros culturais para as periferias. Os europeus estavam cientes de que a religio dominante do seu prprio continente tinha origens mdio-orientais. O que era novo com relao ao difusionismo antropolgico era seu esforo comparativo sistemtico e sua nfase no conhecimento emprico detalhado. Como Rivers, muitos difusionistas trabalhavam em regies limitadas, onde era possvel demonstrar convincentemente que traos culturais especficos tinham uma histria possvel de identificar.

    O difusionismo foi principalmente uma especializao germnica, com centros nas grandes cidades-museu de Berlim e Viena. Salvo Rivers, o difusionismo teve pouca influncia direta sobre as antropologias inglesa e francesa (mas, como veremos, teve repercusses importantes nos Estados Unidos). Como seus colegas de outros pases, os antroplogos alemes do sculo dezenove tendiam a concordar com algum tipo de estrutura evolucionista. Mas com sua nfase no singular e no local, e com o relativismo que observamos na obra de Bastian, a influncia de Herder neutralizou essa tendncia, e quando o evolucionismo foi questionado na virada do sculo, essa tradio recebeu novo impulso. Estudiosos como Friedrich Ratzel (1844-1904), Fritz Graebner (1877-1934), Leo Frobenius (1873-1938) e Wilhelm Schmidt (1868- 1954) seguiram a orientao de Herder (e Bastian), enfatizando a singularidade da herana cultural de cada povo. Eles sustentavam que a evoluo cultural no era unilinear e que no havia um elo determinista simples entre, digamos, a complexidade tecnolgica e a complexidade em outras reas. Um povo com uma tecnologia simples poderia perfeitamente bem ter um sistema religioso altamente sofisticado.

  • Os difsionistas tinham como objetivo realizar uma descrio completa da difuso de traos culturais dos tempos primitivos at hoje. Eles desenvolveram classificaes complexas (s vezes, diga-se, bastante enigmticas) de crculos culturais (Kulturkrei- se) e acompanharam sua possvel disseminao a partir de um centro original. Em certos casos, como nos estudos de Graebner sobre a Oceania, eles puderam identificar at sete sedimentos historicamente discretos ou Kulturkreise em cada sociedade.

    Observe-se que o difusionismo no se desvinculou de suas bases evolucionistas da noite para o dia. A maioria dos difsionistas ainda acreditava que a mudana social geralmente levava ao progresso e a um aumento da sofisticao. O aspecto a que se opunham no que se refere ao evolucionismo vitoriano era seu carter unilinear e determinista: a idia, encontrada em Tylor e outros, de que todas as sociedades devem passar por certos estgios que seriam mais ou menos semelhantes em todo o mundo. A viso de mundo difusionista era menos metdica do que isso e mais sensvel variao local.

    Como veremos no prximo captulo, tanto o evolucionismo como o difusionismo foram totalmente superados pelas geraes seguintes de antroplogos sociais e culturais. Mas a pesquisa difusionista foi em geral muito mais sofisticada do que antroplogos posteriores se dispuseram a admitir, e na rea de lngua alem, especialmente na ustria, o programa da Kulturkreise continuou vigoroso at a dcada de 1950.

    O difusionismo foi tambm importante para os antroplogos do Leste Europeu, e principalmente para o grande grupo de antroplogos russos que seguiram a orientao de Miklukho-Maklai. Trs nomes de destaque foram Vladimir Ilich Jochelson (1855-1937), Vladimir Germanovich Bogoraz (1865-1936) e Lev Yacovlevich Shtera- berg (1861-1927), todos exilados na Sibria Oriental por ordem do czar; ali aproveitaram a oportunidade para realizar um trabalho de campo prolongado entre os povos indgenas da regio. Em tomo da virada do sculo, eles participaram de uma importante expedio msso-americana aos povos indgenas em tomo do Estreito de Be- ring, organizada por um alemo-americano de nome Franz Boas. Esses pesquisadores eram de orientao difusionista, e de fato o difusionismo ainda hoje uma teoria respeitvel na Rssia, com longas tradies e elevados padres analticos e metodolgicos. No Ocidente, o difusionismo sobrevive na tradio dos estudos do imperialismo, derivada em ltima anlise de Marx e Lnin, mas que tomou a aparecer com nomes como estudos da dependncia, estudos do sistema global e, mais recentemente, estudos da globalizao (ver captulos 7 e 9). A influncia marxista aqui acrescenta poder ao componente herderiano dos difsionistas, com um resultado mais potente e violento.

  • A nova sociologia

    As novas geraes de antroplogos, apresentadas nos prximos captulos, tinham boas razes para se distanciar do evolucionismo e do difsionismo. Elas estavam convencidas de que haviam descoberto uma alternativa terica com maior potencial do que qualquer teoria de variao sociocultural anterior. Antroplogos britnicos (e num grau menor, americanos) haviam descoberto a sociologia continental.

    O que os livros-texto e os cursos de graduao chamam de sociologia clssica em geral se refere oeuvre de um punhado de tericos (principalmente alemes ou franceses) que produziu a maior parte de sua obra entre a dcada de 1850 e a I Guerra Mundial. Os expoentes da primeira onda foram Marx, Comte e Spencer, embora os dois ltimos estejam quase esquecidos atualmente. A segunda gerao incluiu Ferdinand Tonnies (1855-1936), mile Drkheim (1858-1917), Georg Simmel (1858- 1918) e Max Weber (1864-1920). Como Marx, todos esses autores ainda so lidos pelo interesse intrnseco de sua obra (mais do que como expresses de um Zeitgeist histrico). Tonnies, na sociologia, analisou a dicotomia simples/complexo da sociedade, acrescentando complexidade e nuana aos esquemas simplistas que o haviam precedido; Simmel (hoje em fase de reabilitao) admirado por seus estudos da modernidade, da cidade e do dinheiro. Drkheim e Weber ainda so considerados importantes o bastante para inspirar comentrios extensos e freqentes. De todos os socilogos clssicos, porm, Durkheim o mais importante para a antropologia, em parte porque ele prprio se interessava por muitos temas antropolgicos, em parte por causa da sua influncia direta e imediata sobre a antropologia inglesa e francesa. Nos Estados Unidos, a influncia da sociologia clssica s se fez sentir muitos anos mais tarde, mas nunca foi to forte como na Europa. A principal influncia aqui foi de Bastian e da escola Vlkerkunde, introduzida na antropologia americana por seu pai fundador (alemo), Franz Boas. Os principais antroplogos americanos do incio do sculo vinte orientavam-se portanto para a histria cultural, para a lingstica e mesmo para a psicologia mais do que para a sociologia.

    Durkheim\Como Marx, Durkheim nasceu numa famlia judia (numa pequena cidade perto

    de Estrasburgo) e seus pais queriam que ele se tomasse rabino. Seu desempenho escolar, porm, foi to bom, que ele foi aceito na prestigiosa cole Normale Suprieure em Paris, fato que lhe possibilitou seguir mais tarde uma carreira acadmica. Durante o perodo de formao ele perdeu a f religiosa e passou a fazer parte de um meio intelectual dinmico e crtico. Ao longo de toda sua vida, Durkheim interessou-se pro-

  • fundamente por questes morais e sempre se empenhou em promover reformas sociais e educacionais. Em 1887 foi nomeado professor assistente de pedagogia e sociologia na Universidade de Bordeaux, tomando-se o primeiro cientista social francs a exercer uma funo acadmica. Durante esse perodo, que se prolongou at sua mudana para Paris em 1902, Durkheim escreveu duas de suas obras mais importantes, De la division du travail social {1893; The division of labour in society, 1964) e Le suicide ( 1897; Suicide, 1951). Ele tambm fundou a influente revista LAnne Sociologique, que continuou a editar depois de transferir-se para Paris. Como professor na Sorbonne, de 1906 at sua morte em 1917, a influncia de Durkheim sobre a sociologia francesa posterior e sobre a antropologia foi enorme. Com seu sobrinho e sucessor intelectual Marcel Mauss ele escreveu extensamente sobre povos no europeus; uma obra notvel nesse sentido Classification primitive (1900; Primitive classification, 1963), um estudo das origens sociais dos sistemas de conhecimento, baseado em dados etnogrficos, especialmente da Austrlia. Esse livro, que postula uma ligao intrnseca entre classificao e estrutura social, ainda ponto de referncia para estudos antropolgicos de classificao.

    Diferentemente tanto de difusionistas como de evolucionistas, Durkheim no tinha um interesse particular pelas origens. Ele procurava mais explicaes sincrni- cas do que diacrnicas.

    Como os difusionistas, mas diferentemente dos evolucionistas, ele estava profundamente empenhado em fundamentar sua reflexo de cunho antropolgico em dados observveis, em geral quantificveis.jDiferentemente dos difusionistas, porm, ele estava convencido de que as sociedades eram sistemas lgicos, integrados, em que todas as partes eram dependentes umas das outras e trabalhavam juntas para manter o todo. Nisso ele se aproximava dos evolucionistas que, como ele, faziam analogias entre os sistemas funcionais do corpo e a sociedade. De fato, Durkheim freqentemente descre-__ via a sociedade como um organismo social, Como Tnnies e Maine, mas diferente- mentede Marx e Morgan, Durkheim admitia uma diviso dicotmica de tipos, sociais - deixando de lado toda essa questo de estgios e evoluo, ele justapunha sociedades tradicionais e modernas sem postular que as primeiras evoluiriam para as segundas. As sociedades primitivas no eram sobreviventes de um passado nebuloso nem passos em direo ao progresso, mas organismos sociais que mereciam ser estudados por seu valor intrnseco. Finalmente, diferentemente de Bastian e da escola Vlkerkunde, Durkheim estava interessado, no com a cultura, mas com a sociedade, no; com smbolos e mitos, mas com organizaes e instituies.

    CO livro sobre a diviso do trabalho concentra-se no estudo da diferena entre organizaes sociais simples e complexas. Na viso de Durkheim, as primeiras se baseiam

  • na solidariedade mecnica. As pessoas apiam a ordem social existente e umas s outras porque tm a mesma vida em comum dia aps dia, realizam as mesmas tarefas e se percebem semelhantes. Nas sociedades complexas, por outro lado, prevalece a solidariedade orgnica^jkqui, sociedade e compromisso mtuo so mantidos pela percepo que as pessoas tm umas das outras como diferentes, com papis complementares. Cada uma realiza uma tarefa diferente que contribui para o todo. Durkheim acrescenta que as duas formas de solidariedade devem ser compreendidas como princpios gerais de interao social mais do que como tipos sociais. A maioria das sociedades tem elementos de ambas. Alm disso, a distino faz mais do que postular um contraste entre ns mesmos e o outro. Tanto Durkheim como muitos de seus sucessores, at Louis Dumont (ver captulo 6), estavam impressionados com as complexidades da sociedade indiana tradicional e sustentavam que o sistema de castas dessa sociedade expressava uma forma avanada de complexidade orgnica.

    A ltima obra de Durkheim, talvez a mais importante, Les Formes lmentaires de la vie rligieuse (1915; The Elementary Forms ofReligious Life, 1995), foi publicada dois anos antes de sua morte. Aqui, ele tenta apanhar o sentido de solidariedade em si, da fora mesma que mantm a sociedade. A solidariedade, afirma Durkheim, surge das representaes coletivas - um termo polmico na poca e tambm nos dias atuais. As representaes so imagens simblicas ou modelos de vida social comuns a um grupo. Essas imagens se desenvolvem atravs de relaes interpessoais, mas adquirem um carter objetivo supra-individual. Elas constituem uma realidade totalizante, virtual, socialmente construda que ecoa Kant e Hegel, e que para as pessoas que vivem na sociedade so to reais quanto o mundo material. Mas elas no so imagens objetivas desse mundo, e sim entidades morais, com poder sobre as emoes. A religio se toma um objeto de pesquisa importante para Durkheim, porque aqui, mais do que em qualquer outra parte, que se estabelece e fortalece o apego emocional dos indivduos a representaes coletivas. Esse apego se forma principalmente no ritual, no qual a religio expressa atravs da interao fsica e a solidariedade se toma uma experincia direta, corporal. O ritual se separa da vida diria profana, traando um crculo mgico protetor em tomo do seu prprio domnio sagrado, proibido. Essa demarcao permite que a experincia do ritual seja intensificada at que uma unio quase mstica seja alcanada. Trazendo a lembrana dessa experincia de volta vida diria, ns lembramos como o mundo realmente.

    A religio e o ritual atraam de longa data o interesse dos antroplogos, que os haviam documentado numa grande variedade de formas empricas. O problema da compreenso da integrao social em sociedades sem Estado fora uma preocupao importante (embora em geral implcita) no evolucionismo. E a perplexidade diante

  • dos smbolos e costumes exticos dos outros foi o ponto de partida de toda pesquisa antropolgica. Agora Durkheim parecia oferecer uma ferramenta analitica que integraria todos esses interesses. O extico podia ser compreendido como um sistema integrado de representaes coletivas cuja funo era criar solidariedade social. E a religio, o fenmeno mais mistifcante e extico de todos, acabou se transformando no dnamo racional propulsor de todo esse processo. J

    Quando antroplogos ingleses aderiram a Durkheim no incio do sculo vinte (captulo 3), eles descobriram um sem-nmero de aplicaes da teoria durkheimiana ao estudo da religio, dos sistemas legais e do prprio parentesco. Assim, Durkheim freqentemente descrito como o fndador do estrutural-funcionalismo, embora este seja de fato uma escola puramente britnica, desenvolvida por Radcliffe-Brown e seus alunos. Mas Durkheim e a Escola Inglesa concordavam em que os fenmenos sociais e as representaes coletivas que os acompanham eram entidades com existncia objetiva. No seu Rgles de la mthode sociologique {1895; Rides ofSocio- logical Method, 1982\Tburkheim sustenta que os fenmenos sociais devem ser estudados como coisas (comme des choses) - e descreve os indivduos mais como produtos da sociedade do que como seus produtores^!eu contemporneo Max Weber, o ultimo grande socilogo clssico com lugar no panteo antropolgico, encarna uma posio contrria em vrios aspectos.

    Weber

    Max Weber cresceu no seio de uma famlia prussiana prspera e autoritria, foi educado nas universidades de Berlim, Heidelberg e Gttingen e projetou-se rapidamente no mundo acadmico alemo. Ele foi nomeado professor com 31 anos de idade (em 1895) e no decorrer de alguns anos publicou obras de erudio sobre temas -Jo diversos como a queda do Imprio Romano e problemas agrcolas na Alemanha Oriental do seu tempo. De sua me, educada numa famlia calvinista rgida, ele herdou ideais de ascetismo e de disciplina rgida no trabalho, o que ps em prtica em ?ua vida acadmica. Em 1898, depois de apenas trs anos de atividade, ele sofreu um colapso mental, e s conseguiu retomar ao trabalho cinco anos mais tarde. Imediatamente aps sua recuperao, Weber escreveu o livro que muitos consideram o melhor: Dieprotestantische Ethik iind der Geist der Kapitalismus (1904-1905; The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, 1976). Trata-se de uma obra de histria cultural e econmica que analisa as razes da modernidade europia. Weber afirma que os calvinistas (e outros cristos puritanos dos sculos dezesseis e dezessete) formularam uma viso da vida que correspondia proximamente imagem do capitalista perfeito. Os calvinistas acreditavam que a vida humana era predestinada, que uns

  • poucos eram escolhidos por Deus para a salvao, mas que era impossvel para os seres humanos compreender quem seria escolhido ou por que as coisas deviam ser assim. O Deus de Calvino era frio e intolerante. Ele exigia obedincia, mas no explicava suas razes. Segundo Weber (e acreditamos que aqui ele possa estar falando por experincia pessoal), essa ambigidade, associada a uma doutrina implacvel, criou uma tenso insuportvel na vida dos calvinistas. Na busca de solues, descobriram que s o trabalho rduo somado a um estilo de vida frugal poderia aproxim-los da graa de Deus. Eles eram estimulados a produzir resultados, mas proibidos de saborear os frutos do seu esforo. Em vez disso, reinvestiam seus ganhos em sua empresa, gerando uma espiral de lucros cada vez maiores para a glria de Deus.

    A questo de Weber no necessariamente que o calvinismo era a causa do capitalismo. As razes da ascenso do capitalismo eram muitas, e o reinvestimento no era de modo algum inveno de Calvino. A questo era antes que o calvinismo (e num sentido mais amplo, o protestantismo como um todo) formulou uma ideologia explcita afinada com a tica capitalista.

    Na Alemanha de Weber, as humanidades ou, literalmente, cincias do esprito ('Geisteswissenschaften), gozavam de grande prestgio, e a hermenutica era considerada um componente natural de uma educao refinada. E foi a hermenutica, a cincia que tem como objetivo compreender e interpretar o ponto de vista de uma cultura, pessoa ou texto desconhecidos, que inspirou Weber a pesquisar as motivaes por trs das aes, a maneira como determinado modo de agir podia fazer sentido aos indivduos. Nessa perspectiva, Weber um dos primeiros representantes do que mais tarde se chamaria de individualismo metodolgico. Interessa-lhe no o sistema ou o todo, mas o fato de que, quando indivduos fazem coisas, eles tm razes para faz-las. Por isso, a sociologia de Weber est associada palavra alem Verste- hen (compreenso). uma sociologia da compreenso e da empatia que procura pr-se nos sapatos do outro, apreendendo os motivos desse outro, as escolhas com que ele se defronta e as respostas que seriam naturais para ele em face das circunstncias concretas de sua vida. Em outras palavras, Verstehen implica um foco sobre o que o mundo significa para os indivduos e que tipo de significado ele tem.

    O que o prprio Weber procurava compreender, porm, era acima de tudo o poder. O poder foi um tema dos mais importantes tambm em Marx (o relevo menor em Durkheim), mas ambos atribuam palavra sentidos bem diferentes. Para Marx, a base do poder era o controle dos meios de produo, e por isso estava associado propriedade. O poder sofre contestao, subvertido, e a sociedade se transforma - at aqui Marx e Weber concordavam perfeitamente. Mas de acordo com Marx a mudana no surge de indivduos que buscam valores e se esforam por objetivos, mas

  • de conflitos estruturais de movimento lento nos abismos do sistema social. Marx via o poder como uma fora annima que esconde sua face verdadeira atrs do vu da ideologia. Weber concentrava-se nos efeitos das estratgias individuais para alcanar o poder.

    Como seus contemporneos, os difsionistas, Weber se opunha a esquemas tericos abstratos, distantes da experincia. O que importava era a coincidncia particular, histrica. Weber no via nada irrazovel em supor que poder e propriedade muitas vezes estavam ligados, mas ele se recusou a generalizar alm disso. O poder, conforme definido por ele, a habilidade de levar algum a fazer alguma coisa que, de outro modo, ele no faria. Poder (ou autoridade) legtimo o poder baseado num mnimo de coero fsica e violncia, considerado como legal, moral, natural ou fato da vida produzido por Deus, e aceito por uma populao que foi ensinada a acreditar que as coisas so assim. Em sua segunda grande obra, Wirtschaft und Gesellschaft (publicada postumamente em 1922; Economy and Society, 1968), Weber descreve trs tipos ideais de poder legtimo. O tipo ideal outro neologismo weberiano importante: refere-se a modelos simplificados que podem ser aplicados ao mundo real para revelar aspectos especficos do seu funcionamento - assim, os tipos ideais em si no tm realidade emprica. Os trs tipos ideais de poder legtimo de Weber podem ser descritos resumidamente desse modo: autoridade tradicional o poder legitimado por ritual e parentesco; autoridade burocrtica o poder legitimado pela administrao formalizada; autoridade carismtica o poder do profeta ou do revolucionrio de dominar as massas. Os trs tipos, ressalta Weber, podem muito bem coexistir numa mesma sociedade. Os dois primeiros tipos parecem assemelhar-se s dicotomias primitivo/moderno propostas por Maine, Tnnies ou Durkheim. O terceiro tipo, porm, uma inovao. Ele demonstra que Weber, nos ltimos anos de sua vida, havia lido Nietzsche e Freud, dois pensadores contemporneos de lngua alem que afirmavam vigorosamente a primazia do indivduo. Weber esclarece que existe um tipo de poder que imprevisvel e individual e que se baseia na capacidade de seduo do indivduo excepcional mais do que na propriedade (Marx) ou em normas estveis (Durkheim).

    Assim, para Weber, a sociedade um esforo mais individual e menos coletivo do que para Marx ou Durkheim. A sociedade no , como em Durkheim, uma ordem moral dada de uma vez por todas. Tambm no , como em Marx, produto de foras coletivas ponderosas que os indivduos no podem compreender nem influenciar. A sociedade uma ordem ad hoc gerada quando diferentes pessoas com diferentes interesses e valores se encontram, discutem e tentam (em ltima anlise pela fora) convencer umas s outras e chegam a alguma espcie de acordo. Dessa forma, com-

  • petio e conflito so para Weber fontes potenciais de mudana construtiva. Aqui ele concorda com Marx e se ope a Durkheim, que admitia que mudana e decadncia eram praticamente sinnimos. Mas em Weber conflitos no so, como em Marx, vastos e impessoais, mas provocados por indivduos. Assim, enquanto Marx e Durkheim desenvolveram, cada um, um tipo diferente de coletivismo metodolgico, que estuda a sociedade principalmente como um todo integrado, Weber apresentou um individualismo metodolgico para o qual as sociedades podiam ser confusas, incoerentes e imprevisveis.

    A influncia do legado de Weber sobre a antropologia foi menos direta do que a de Durkheim, ele prprio instrumental na criao da moderna antropologia francesa. Embora Weber se tomasse rapidamente um representante fundamental na sociologia internacional, seu impacto sobre a antropologia ocorreu em grande parte depois da II Guerra Mundial. um testemunho ao seu grande escopo como terico que antroplogos de orientaes to diferentes como o hermeneuta Clifford Geertz e o individualista metodolgico Fredrik Barth sejam profundamente devedores a Weber, embora por razes diferentes.

    Em tomo da virada do sculo vinte socilogos continentais estavam envolvidos num discurso candente sobre questes de teoria social, atingindo nveis de sofisticao difceis de ser alcanados por antroplogos. Em nossos dias, os antroplogos citam Marx, Durkheim e Weber com freqncia muito maior do que citam Morgan, Bastian ou Tylor, que em pouco tempo seriam realmente desacreditados pelos seguidores de Durkheim. Num curto perodo de tempo, o impacto de Durkheim abalaria profundamente a antropologia, enquanto Weber e Marx continuavam envoltos em sombras, s aparecendo como influncias importantes depois da II Guerra Mundial.

    No obstante, a herana da antropologia do sculo dezenove mais rica do que em geral se supe. O evolucionismo nunca desapareceu completamente e teve vrios proponentes influentes no sculo vinte. Como apontamos acima, o difusionismo ainda uma fora a ser levada em considerao. Muitos conceitos subsistiram e continuam sendo adotados: a distino de Maine entre contrato e status, a definio de cultura de Tylor e as formas culturais incipientes de Bastian so todas sobreviventes (para usar um termo nativo) da antropologia vitoriana. No entanto, s com os avanos descritos no prximo captulo que a antropologia social e cultural entra em cena como a conhecemos atualmente.

  • Quatro pais fundadores

    Os longos anos do reinado da rainha Vitria, que comeou duas dcadas depois do fim das Guerras Napolenicas e terminou com a Guerra dos Beres na frica do Sul, foram um tempo de relativa paz e prosperidade na Europa. At esse momento, os avanos tecnolgicos e as inovaes cientificas haviam sido admirveis, os imprios coloniais francs, britnico, alemo e russo haviam se expandido, a economia fora reestruturada e crescera; houvera aumentos enormes de populao e progressos importantes na democracia e na educao. Nas ltimas dcadas do sculo dezenove, sob a liderana inquestionvel da Gr-Bretanha, emergiu um mundo de intercmbio intenso (e explorao global), de internacionalizao cultural (e imperialismo cultural) e de enorme integrao poltica (muitas vezes na forma de colonialismo). Nesse cenrio histrico, as teorias evolucionistas poderiam parecer a expresso de um fato bvio da natureza. Os vitorianos viam sua conquista do mundo como evidncia palpvel de que sua cultura era mais evoluda que a de todos os outros.

    No incio do sculo vinte esse otimismo sofreu fortes abalos e pouco depois se dissipou com as atrocidades da I Guerra Mundial. A teoria dos sonhos e do subconsciente de Sigmund Freud, publicada em 1900, e a teoria da relatividade geral (1905) de Albert Einstein podem ser vistas como passagens simblicas para uma nova e mais ambivalente etapa da modernidade. Essas teorias investiam contra a prpria substncia do mundo vitoriano: Freud dissolveu o indivduo livre e racional, o meio e o fim do progresso, em desejos subconscientes e sexualidade irracional. Albert Einstein desconstruiu a fsica, a mais abstrata das cincias empricas e fundamento da inovao tecnolgica, em incerteza e fluxo. Em 1907, Amold Schoenberg comps os primeiros compassos da msica dodecafnica e Pablo Picasso comeou a fazer experimentos com a pintura no representacional, ou abstrata. O Modernismo nasceu nas artes, um movimento que - apesar de seu nome confuso - oferecia uma viso ambivalente da verdade, da moralidade e do progresso. Na poltica, os anarquistas procla-

  • mavam a destruio do Estado e as feministas exigiam o fim da famlia burguesa. Menos de duas dcadas do incio do novo sculo, uma guerra devastadora deixou a velha Europa em runas e a Revoluo Russa estabeleceu uma nova, assustadora ou atraente verso do racionalismo moderno. Foi nesse perodo turbulento de decadncia e renovao, desiluso e novas utopias que a antropologia se transformou numa cincia social moderna.

    Um olhar retrospectivo revela que a histria da antropologia at por volta de 1900 no transcorreu, definitivamente, segundo os moldes da evoluo unilinear. Questes levantadas com convico por pensadores iluministas e romnticos do sculo dezoito tardio foram efetivamente ignoradas pelos antroplogos nas dcadas de 1800. Esse descaso se aplica de modo especial aos problemas do relativismo e da traduo cultural, que figurariam entre as questes essenciais da antropologia ao longo de todo o sculo vinte. As importantes descobertas na filologia comparada alem, particularmente a inter-relao entre as lnguas indo-europias, foram transformadas em especulaes inconsistentes nas mos de evolucionistas comparativos. (Degenerao era o termo dos evolucionistas para isso.) Para os autores deste livro, a antropologia do sculo vinte parece, em sua orientao e atitude fundamental, mais afinada com o pensamento liberal e tolerante do sculo dezoito do que com a postura autoritria, conformista e evolucionista do sculo seguinte. Tambm achamos significativo que tanto o sculo vinte como o sculo dezoito foram pocas de guerra na Europa, enquanto o sculo dezenove, depois de Napoleo, foi singularmente pacfico. Apesar de seus defeitos, aprendemos do sculo dezenove o valor do raciocnio sistemtico, indutivo, o valor dos modelos e tipos ideais que podemos projetar no mundo real para assegurar sua forma.

    A disciplina da antropologia como a conhecemos hoje desenvolveu-se nos anos em tomo da I Guerra Mundial. Sem entrar em polmicas, descreveremos seu desenvolvimento voltando nossa ateno para quatro homens de destaque - dois na Inglaterra, um nos Estados Unidos e um na Frana. H outras tradies nacionais e outros estudiosos nos pases metropolitanos que pareciam to importantes quanto esses na poca, mas que no deixaram descendncia intelectual suficiente para ser tratados com a mesma deferncia aqui. Apenas com uma viso retrospectiva oferecida pela passagem do tempo que podemos avaliar a importncia histrica de eventos passados; a importncia contempornea deles, porm, pode ter sido diferente. Lembre, por exemplo, que Herbert Spencer foi o nico intelectual europeu de notoriedade nas ltimas dcadas do sculo dezenove, do mesmo modo que Henri Bergson foi o filsofo mais famoso nas primeiras dcadas do sculo vinte. Atualmente, um sculo depois, nenhum dos dois considerado um jogador na Academia da Primeira Diviso.

  • Os homens cuja obra constitui a espinha dorsal deste captulo foram Franz Boas (1858-1942), Bronislaw Malinowski (1884-1942), A.R. Radcliffe-Brown (1881 - 1955) e Mareei Mauss (1872-1950). Em conjunto, eles realizaram uma renovao quase total de trs das quatro tradies nacionais analisadas no captulo anterior - a americana, a britnica e a francesa. Na quarta tradio, a alem, o difusionismo conservou sua hegemonia. Momentos nefastos estavam reservados para ela e para a tradio difusionista russa. Em pouco tempo, os livros de Boas seriam queimados em Berlim, uma gerao de etngrafos russos morreria no Gulag e, depois da II Guerra Mundial, alguns etnlogos alemes seriam acusados de colaborao com os nazistas. Por essas e outras razes as antropologias alem e russa desenvolveram-se lentamente durante grande parte do sculo vinte e s raramente comunicaram-se com as tradies predominantes. No entanto, Boas era alemo e Malinowski polons, e como ambos levaram consigo um conhecimento profundo da tradio alem quando emigraram para os Estados Unidos e para a Inglaterra, a antropologia alem subsistiu ao longo do sculo vinte, embora transplantada em formas hbridas.

    Os nossos quatro jogadores eram at certo ponto socialmente marginalizados nos ambientes em que viviam. Mauss era judeu, Radcliffe-Brown provinha de uma classe trabalhadora, Malinowski era estrangeiro e Boas era estrangeiro e judeu. Talvez previsivelmente, os quatro no tinham um programa comum. Havia diferenas metodolgicas e tericas importantes entre as escolas fundadas por eles, traos das quais podem ser encontrados ainda hoje na antropologia francesa, inglesa e americana. No havia (e no h) fronteiras precisas, como mostra com toda clareza a influncia de Durkheim sobre a antropologia britnica. Paralelamente, havia contatos pessoais significativos entre as divises, como testemunha o acalorado debate entre Rivers e o colaborador de Boas, Kroeber, sobre o uso de modelos psicolgicos e sociolgicos na pesquisa antropolgica. Finalmente, os nossos quatro heris tinham em comum o legado intelectual do sculo dezenove. O consenso quase universal agora era que o evolucionismo havia fracassado. Mas havia tambm um reconhecimento silencioso de que os evolucionistas, de Morgan a Tylor, haviam afinal definido alguns parmetros bsicos da disciplina.

    A transio para uma cincia social moderna, em grande parte no-evolucionis- ta, ocorreu de modos diferentes nos trs pases. Na Gr-Bretanha, a ruptura com o passado foi radical. Radcliffe-Brown e Malinowski proclamaram uma revoluo intelectual e criticaram acerbamente alguns dos seus professores. Nos Estados Unidos e na Frana houve uma continuidade maior. Nos Estados Unidos Boas foi o mentor respeitado por todos e o ponto de referncia da antropologia acadmica ao longo de toda a transio. Na Frana Mauss simplesmente continuou a obra de seu tio depois

  • da morte deste, mas enfatizando o estudo de povos no-europeus muito mais do que Durkheim o fizera.

    s vezes, antroplogos sociais ingleses, principalmente, sustentam que Radclif- fe-Brown e Malinowski, mais ou menos independentemente, criaram a antropologia moderna. Essa talvez fosse a impresso na metade do sculo, quando a antropologia americana se subdividira em muitas reas especializadas e os alunos de Mauss ainda no haviam se destacado. Em contraste, a cincia do parentesco (kinshipology) (captulos 4 e 5) britnica parecia firmar-se sobre um mtodo criado por Malinowski e uma teoria desenvolvida por Radcliffe-Brown, consolidando-se como uma cincia da sociedade.

    Boas e o particularismo histrico

    Em 1886 Franz Boas, ento com 28 anos de idade, viu-se em Nova York. Ele estava a caminho da Alemanha, destinado a uma carreira acadmica de sucesso. Ele j era doutorado por Kiel, exercia uma funo acadmica em Berlim e havia participado de vrias expedies etnogrficas no norte e no oeste do Canad. Boas, porm, optou por permanecer em Nova York, possivelmente porque essa era uma cidade onde ser judeu no constitua uma desvantagem maior; certamente, em parte, porque ele estaria mais perto de povos que o fascinavam, os ndios norte-americanos e os inutes. Em Nova York, Boas trabalhou inicialmente como editor de uma revista cientfica, depois como professor numa pequena universidade. Em 1899 ele se tomou professor de Antropologia na prestigiosa Universidade de Colmbia, em Nova York, onde permaneceu at sua morte em 1942. Durante os 43 anos intermedirios, Boas seria professor e mentor de duas geraes de antroplogos americanos. A mensagem que passava a seus alunos era simples. Ele havia estudado com professores alemes que eram cticos com relao ao evolucionismo e viam o difusionismo com simpatia. Como muitos outros de sua gerao, ele estava convencido de que o desenvolvimento da teoria geral dependia totalmente de uma base emprica slida. Assim, a principal tarefa do antroplogo consistia em coletar e sistematizar dados detalhados sobre culturas particulares. S ento seria possvel dedicar-se a generalizaes tericas. Nesses e em outros aspectos Boas era um legtimo filho do humanismo romntico alemo segundo a interpretao de Bastian.

    Na Inglaterra, a antropologia seria remodelada em antropologia social nos anos entre as duas grandes guerras - uma disciplina comparativa, de base sociolgica, com conceitos nucleares como estrutura social, normas, estatutos e interao social. Nos Estados Unidos, a disciplina se tomou conhecida como antropologia cultural.

  • Aqui, a definio ampla de cultura enunciada por Tylor, substituda na Inglaterra por um conceito de sociedade, foi mantida. No sentido americano (e tyloriano), cultura um conceito muito mais amplo do que sociedade. Se a sociedade constituda de normas sociais, instituies e relaes, a cultura consiste em tudo o que os seres humanos criaram, inclusive a sociedade - fenmenos materiais (um campo, um arado, uma pintura...), condies sociais (casamento, famlias, o Estado...) e significado simblico (lngua, ritual, crena...). A antropologia - a cincia da humanidade - dizia respeito, bem literalmente, a tudo o que fosse humano. Boas admitia que ningum teria condies de contribuir de modo igual com todas as ramificaes dessa matria (embora ele prprio fizesse tentativas hericas para chegar a esse ponto) e por isso defendia uma abordagem de quatro campos que dividia a antropologia em lingstica, antropologia fsica, arqueologia e antropologia cultural. Os alunos estudavam contedos dos quatro campos e mais tarde se especializavam naquele que mais os atraa. A especializao, portanto, fazia parte da antropologia americana desde o incio, ao passo que tanto na Inglaterra como na Frana prevaleceu uma abordagem generalista. Reflexo disso que, j na dcada de 1930, existiam grupos de pesquisa constitudos que se especializavam, por exemplo, em lnguas norte-americanas nativas.

    Os prprios escritos de Boas abrangiam um campo vasto, embora com uma tendncia evidente para a antropologia cultural.

    Ele havia realizado pesquisas de campo individuais entre os inutes e os kwaki- utls da costa noroeste americana, mas tambm trabalhava com assistentes que coletavam materiais sobre muitos outros povos indgenas. Durante os trabalhos de campo ele freqentemente recorria colaborao de membros lingisticamente proficientes da tribo em estudo, os quais registravam, discutiam e interpretavam as palavras dos informantes. Alguns desses colaboradores, especialmente o prodigioso George Hunt, co-autor de vrios livros de Boas sobre os kwakiutls, s recentemente foram reconhecidos como autoridades de pleno direito em antropologia.

    O trabalho de campo realizado por Boas era em geral uma atividade de grupo, no pressupondo um indivduo sozinho sujeito a uma imerso contnua e prolongada no campo. A permanncia no local era quase sempre curta. Normalmente ela era prolongada em outro sentido, porm, ou seja, no sentido de que as idas ao campo eram repetidas muitas vezes ao longo dos anos, ocasionalmente envolvendo pessoas diferentes, todas atuando no mesmo projeto (ver Foster et al. 1979). Essa estratgia metodolgica talvez fosse perfeitamente natural, visto que, nos Estados Unidos, o campo estava prximo, e no no outro lado do globo, como na Inglaterra.

    Boas era menos avesso s reconstrues histricas do que seus contemporneos britnicos mais jovens (ver p. 54-62). Com efeito, manteve a antropologia fsica e a

  • arqueologia como partes do empreendimento antropolgico holstico. No obstante, ele concordava com a crtica britnica ao evolucionismo. Em substituio ao evolucio- nismo, props o princpio do particularismo histrico. Como sustentava que cada cultura continha em si seus prprios valores e sua prpria histria nica, em alguns casos poderia ser reconstruda pelos antroplogos. Ele via valor intrnseco na pluralidade das prticas culturais no mundo e era profundamente ctico com relao a qualquer tentativa, poltica ou acadmica, de interferir nessa diversidade. Ao escrever sobre a dana kwakiutl, por exemplo, ele diz que a dana um exemplo da relao da cultura com o ritmo, e por isso ela no pode ser reduzida a uma mera funo da sociedade (como pareciam preferir os antroplogos sociais ingleses). Em vez disso, preciso perguntar o que esse ritmo para a pessoa que dana, e a resposta s pode ser encontrada examinando os estados emocionais que geram e so gerados pelo ritmo (Boas 1927).

    Boas foi um dos primeiros e mais incansveis crticos do racismo e da cincia inspirada por ele - esta contava com defensores entre o establishment da antropologia vitoriana. Esses antroplogos haviam afirmado que cada raa tinha um potencial inato distintivo para desenvolvimento cultural. Boas respondeu que a cultura era sui generis - sua prpria fonte - e que diferenas inatas no podiam explicar o volume impressionante de variao cultural que os antroplogos j haviam documentado. O termo rela- tivismo cultural, a que nos referimos vrias vezes acima, foi efetivamente cunhado por Boas. Mesmo atualmente, a pergunta que muitos fazem se o relativismo deve ser compreendido como um imperativo metodolgico ou moral, e a resposta mais freqente que o relativismo cultural um mtodo. Para Boas isso sem dvida soaria estranho, pois mtodo e moralidade eram para ele dois lados da mesma moeda.

    Boas dominou a antropologia americana durante quatro dcadas, mas no deixou nenhuma grande teoria ou obra monumental que seja lida pelas geraes seguintes de antroplogos. A principal razo disso talvez seja sua desconfiana das generalizaes grandiosas. Durante seus estudos com Bastian ele fora advertido contra os perigos da teorizao vazia, e em seus escritos ele procurou identificar as circunstncias nicas que haviam gerado culturas particulares, em vez de ir diretamente a concluses gerais. Ele tambm era cauteloso com o uso da comparao, que com muita facilidade estabelecia semelhanas artificiais entre sociedades que eram fundamentalmente diferentes. Boas era assim um individualista metodolgico autntico, no sentido de que procurava a instncia particular e no o esquema geral, o que explica seu ceticismo irredutvel com relao a Durkheim.

    Quase todos os antroplogos americanos importantes da gerao seguinte (com algumas excees notveis, s quais voltaremos) foram alunos de Boas. Entre eles estavam Alfred L. Kroeber (1876-1960), que criou o Departamento de Antropologia

  • em Berkeley, com a colaborao de Robert H. Lowie (1883-1957), historiador cultural e seu colega de longa data; Edward Sapir (1884-1939), fundador do Departamento de Antropologia em Yale e da escola de etnolingstica; Melville Herskovits 11895-1963), fundador dos estudos afro-americanos nos Estados Unidos e professor no Departamento de Antropologia na Northwestern University; Ruth Benedict (1887-1948), sucessora de Boas na Universidade de Colmbia e organizadora da escola cultura e personalidade; e Margaret Mead (1901-1978) (the runt of the litter) cue continuou a obra de Benedict e possivelmente se tomou a figura pblica mais influente na histria da antropologia.

    Como mostra essa lista, a antropologia cultural proposta por Boas evoluiu em diversas direes durante sua prpria vida (captulo 4). Outra variao ocorreu na dcada de 1950, quando Morgan foi redescoberto e quando os alunos de Radclif- :e-Brown em Chicago desenvolveram sua prpria verso da antropologia social de estilo britnico. No obstante, o legado de Boas continua no mago da antropologia americana at hoje.

    Malinowski e os nativos das Ilhas Trobriand - )

    Em 1910,24 anos depois que Boas tomou sua importante deciso de permanecer -os Estados Unidos, um jovem intelectual polons mudou-se de Leipzig para Londres. Bronislaw Malinowski havia se doutorado em fsica e filosofia alguns anos antes em Cracvia, parte do Imprio Austro-Hngaro (agora pertencente Polnia). Em Leipzig ele havia estudado psicologia e economia, e por influncia do psiclogo social Wilhelm Wundt (1832-1920) ele se convencera de que a sociedade devia ser entendida holisticamente, como uma unidade constituda de partes entrelaadas, e que a anlise devia ser sincrnica (no histrica). Nesse mesmo perodo Malinowski .eu The Golden Bough e mudou-se para estudar com Seligman na London School of Economics, ento j famosa por oferecer boas condies para trabalho de campo em regies exticas.

    Quatro anos mais tarde, Malinowski realizou um estudo de campo de seis meses sobre uma ilha na costa da Nova Guin, por ele considerado um fracasso. Depois de breve estada na Austrlia, ocupada com reflexes sobre seus mtodos, ele partiu no-

    amente, dessa vez para as Ilhas Trobriand, localizadas na mesma regio, onde permaneceria por quase dois anos, entre 1915 e 1918. Finda a guerra, ele voltou para a Europa para escrever Argonauts of the Western Pacific (Malinowski 1984 [1922]), possivelmente a obra mais revolucionria na histria da antropologia. Com o sucesso de Argonauts, ele atraiu para a LSE um pequeno grupo de alunos muito bem prepara

  • dos e entusiasmados, os quais, em sua maioria, deixariam suas marcas na disciplina nas dcadas seguintes. Malinowski morreu nos Estados Unidos, num momento em que realizava estudos sobre mudana social entre camponeses ndios no Mxico.

    Argonauts..., a primeira grande obra de Malinowski, continua sendo tambm a mais famosa. O livro foi prefaciado por Sir James Frazer, que no poupou elogios ao jovem polons, claramente inconsciente de que, num sentido acadmico, ele estava assinando sua prpria sentena de morte. O volumoso livro escrito com fluncia. Ele nos conduz por uma anlise vigorosamente concentrada e extremamente detalhada de uma nica instituio entre os trobriandeses, o sistema de comrcio kula, em que objetos de valor simblico circulam por uma extensa rea entre as ilhas da Mela- nsia. Malinowski descreve o planejamento de expedies, as rotas seguidas, os ritos e prticas a elas associados, e estuda as relaes entre o comrcio kula e outras instituies dessas ilhas, como liderana poltica, economia domstica, parentesco e posio social. Contemporneo e conterrneo do romancista Joseph Conrad, Malinowski produziu informaes do corao das trevas, na forma de imagens matizadas e naturalistas dos trobriandeses, os quais no fim emergem no como espetaculares, exticos, nem como radicalmente diferentes dos ocidentais, mas simplesmente como diferentes.

    H quem diga que Malinowski ficou praticamente confinado nas Ilhas Trobriand durante a I Guerra Mundial, uma vez que, como cidado do Imprio Habsburgo, ele era tecnicamente inimigo da Inglaterra. Essa uma distoro dos fatos (Kuper 1996: 12). Malinowski no era um romntico confuso que descobriu por acaso o princpio do trabalho de campo moderno. Seu aluno, Raymond Firth (1957), o descreve como um etngrafo meticuloso e sistemtico, com uma capacidade excepcional para aprender lnguas e uma faculdade de observao extraordinria. Outro equvoco comum dizer que Malinowski inventou o trabalho de campo. Como vimos, expedies etnogrficas eram comuns muito antes dele, e algumas, como a expedio a Torres, haviam seguido padres metodolgicos rigorosos. O que Malinowski inventou no foi o trabalho de campo, mas um mtodo de trabalho de campo especfico, que ele denominou observao participante. A idia simples, mas revolucionria, que inspirava esse mtodo consistia em viver com as pessoas que estavam sendo estudadas e em aprender a participar o mximo possvel de suas vidas e atividades. Para Malinowski, era essencial permanecer tempo suficiente no campo para familiarizar-se totalmente com o modo de vida local e capacitar-se a usar o idioma local como instrumento de trabalho. Intrpretes, entrevistas formais e distanciamento social no teriam mais razo de ser. Malinowski morou sozinho numa cabana no meio de uma aldeia trobriandesa por meses a fio - embora mantivesse seu temo tropical e seu chapu imaculadamente brancos

  • e apesar de seus dirios publicados postumamente (Malinowski 1967) revelarem que ele muitas vezes sentia saudades de casa e passava por momentos de desnimo, aborrecimento e cansao por causa dos nativos.

    A observao participante de Malinowski estabeleceu um novo padro para a pesquisa etnogrfica. Todo fato, mesmo o mais insignificante, devia ser registrado. Na medida em que fosse praticamente possvel, o etngrafo devia participar do fluxo contnuo da vida do dia-a-dia, evitando questes especficas que pudessem desviar o curso dos eventos e sem restringir a ateno a partes especficas da cena. Mas Malinowski no se limitou a mtodos no-estruturados. Ele coletou dados precisos sobre produo de inhame, direitos territoriais, troca de presentes, padres de comrcio e conflitos polticos, entre outras coisas, e realizou entrevistas estruturadas sempre que julgava necessrio. O que ele no fez de forma significativa foi contextualizar os tro- briandeses dentro de um contexto histrico e regional mais amplo. Nisso, ele ocupa uma posio diametralmente oposta do seu colega francs, Mareei Mauss, que era um especialista sobre o Pacfico, com um conhecimento mais vasto e mais profundo da histria cultural da regio do que Malinowski, mesmo sem nunca ter estado l.

    Praticamente tudo o que Malinowski publicou, dos Argonauts... em diante, baseou-se extensamente nos dados coletados nas Ilhas Trobriand. Ele escreveu sobre economia e comrcio, casamento e sexo, magia e vises de mundo, poltica e poder, necessidades humanas e estrutura social, parentesco e esttica. Suas descries ocupam vrias centenas de pginas e demonstram conclusivamente o potencial do trabalho de campo intensivo e prolongado. O mero nmero de instituies, crenas e prticas tro- briandesas mostrou alm de qualquer dvida que uma sociedade primitiva, simples, quase na base da escada evolucionria, era de fato um universo altamente complexo e multifacetado em si mesmo. De forma mais convincente do que qualquer argumento terico, a obra de Malinowski revelou o absurdo de um projeto comparativo que se propusesse a comparar caractersticas individuais. De agora em diante, contexto e inter-relaes seriam qualidades essenciais de qualquer explicao antropolgica.

    De modo geral, os antroplogos posteriores a Malinowski receberam suas concepes tericas com menos entusiasmo do que seus mtodos e sua etnografia. Sua posio terica era basicamente ecltica, mas seguindo os padres correntes ele denominou seu programa de funcionalismo. Todas as prticas e instituies sociais eram funcionais no sentido de que se ajustavam num todo operante, ajudando a mant-lo. Diferentemente de outros fncionalistas que seguiam Durkheim, porm, para Malinowski o objetivo ltimo do sistema eram os indivduos, no a sociedade. As instituies existiam para as pessoas, no o contrrio, e eram as necessidades das pessoas, em ltima anlise suas necessidades biolgicas, que constituam o motor

  • primeiro da estabilidade social e da mudana. Isso era individualismo metodolgico sob outro disfarce, e num clima acadmico coletivista dominado pelos durkheimia- nos, o programa no teve boa acolhida. Durante algumas dcadas depois de sua morte a estrela de Malinowski continuou seu ocaso, at que a desiluso com a Grande Teoria tomou conta de todos durante a dcada de 1970, fato que o levou reabilitao em comunidades antropolgicas nos dois lados do Atlntico - s custas do seu colega e rival Radcliffe-Brown. Malinowski chamou a ateno para o detalhe e para a importncia de captar o ponto de vista do nativo, e parte de sua reao contra seus predecessores imediatos nasceu de um profundo ceticismo com relao a teorias ambiciosas. Percebemos aqui a semelhana com Boas, reflexo da educao alem de ambos. Malinowski se distinguia de Boas, porm, em sua relutncia em envolver-se com qualquer forma de reconstruo histrica. Com Radcliffe-Brown ele empreendeu uma campanha an- tievolucionria - e anti-histrica - to bem-sucedida que o tema ficou mais ou menos proibido na antropologia britnica durante quase meio sculo.

    Malinowski se autodenominava funcionalista, mas suas idias diferiam fundamentalmente do programa rival do estrutural-fimcionalismo. Para Malinowski, o indivduo era o fundamento da sociedade. Para os estruturais-funcionalistas durkhei- mianos o indivduo era um epifenmeno da sociedade e de pouco interesse intrnseco - o que interessava era inferir os elementos da estrutura social. Essas duas linhagens da antropologia social britnica - funcionalismo biopsicolgico e estrutural-funcio- nalismo sociolgico - evidenciam uma tenso bsica na disciplina entre o que mais tarde foi chamado de agncia e estrutura. O in