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1359 DISCURSOS SOBRE A LEITURA EM VINHETAS DA GLOBO 1 Erislane Rodrigues RIBEIRO – CAC/UFG Introdução A mídia é, sem dúvida nenhuma, um dos mais importantes instrumentos de formação de opinião em nossa sociedade. Quanto aos discursos que faz circular, sobre a leitura por exemplo, os meios de comunicação, tais como a televisão e os jornais, têm um papel significativo a desempenhar. Segundo Costa (2008, p. 176), o gênero vinheta quando é empregado na televisão, dentre outras formas, pode se constituir de um desenho animado com o propósito de separar as seções de um programa. Em 2007, a Rede Globo de Televisão veiculou, durante a exibição de filmes, uma série de vinhetas com essas características para abordar o tema leitura. Neste trabalho, temos por objetivo identificar alguns dentre os diversos discursos acerca da leitura que perpassam doze dessas vinhetas. A hipótese levantada é que as vinhetas produzidas pela Globo, ao serem apresentadas como um instrumento de incentivo à prática da leitura, revelam discursos míticos sobre o ato de ler bastante arraigados na cultura brasileira. Duas partes fundamentais constituem este texto. Sua fundamentação teórica advém, em especial, da leitura de textos escritos por Bakhtin (1995) e (2000) que, além de desenvolver o conceito de gênero como sendo “... uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301), possibilitando que analisemos as vinhetas ___ cuja constituição se dá no interior da esfera midiática ___ , como uma espécie de gênero bastante usado na modernidade, ressalta a importância de considerarmos o dialogismo como constitutivo de todo e qualquer enunciado; por Britto (2003), que apresenta certos mitos acerca da leitura recorrentes na sociedade e por Poulain (1997) e Pompougnac (1997) que, ao tratarem a leitura como prática cultural, destacam como as escolhas culturais de um povo sofrem influência de múltiplas e complexas contingências. Encerrada a seção dedicada à fundamentação teórica, as doze vinhetas gravadas são agrupadas para a realização das análises. Por último, seguem as referências bibliográficas. 1 Dialogismo e Mito no Gênero Vinhetas Para Bakhtin (2000), gênero são as formas que os enunciados adquirem em determinadas esferas de atividades entre interlocutores que as reconhecem, porque as mesmas se constituíram historicamente, através de processos de interação. Segundo o autor, gênero do discurso é um “tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico”, elaborado por cada esfera em que a língua é utilizada. Conceituando gêneros do discurso em relação às esferas de atividade humana, Bakhtin reconhece que inexistem classificações que partam da observação dessas esferas, provavelmente em razão de serem tão variadas, fazendo com que os gêneros, por sua vez, sejam também inúmeros e heterogêneos, de natureza infinita. (BAKHTIN, 2000, p. 284). A escolha de um gênero do discurso é, segundo Bakhtin (2000, p. 301), decorrente das especificidades de determinada esfera da comunicação verbal, o que significa dizer que existem gêneros, mais ou menos apropriados, tanto em relação às esferas do cotidiano (familiar, íntima, comunitária) como também em relação às esferas dos sistemas ideológicos constituídos (dentre eles, a mídia). Com relação à aquisição dos gêneros, para Bakhtin (2000), não se distancia da aprendizagem das formas de nossa língua materna. Para ele, “as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida”. No processo de aquisição dos gêneros, assim como na aquisição das formas da língua, o locutor não cria novos gêneros do discurso, “[...] eles [gêneros] lhe são dados, não é ele [o locutor] que os cria” (BAKHTIN, 2000, p. 304). 1 Esta pesquisa faz parte de um projeto financiado pelo MCT/FINEP/CT-Infra 2006.

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DISCURSOS SOBRE A LEITURA EM VINHETAS DA GLOBO1

Erislane Rodrigues RIBEIRO – CAC/UFG Introdução

A mídia é, sem dúvida nenhuma, um dos mais importantes instrumentos de formação de opinião em nossa sociedade. Quanto aos discursos que faz circular, sobre a leitura por exemplo, os meios de comunicação, tais como a televisão e os jornais, têm um papel significativo a desempenhar. Segundo Costa (2008, p. 176), o gênero vinheta quando é empregado na televisão, dentre outras formas, pode se constituir de um desenho animado com o propósito de separar as seções de um programa. Em 2007, a Rede Globo de Televisão veiculou, durante a exibição de filmes, uma série de vinhetas com essas características para abordar o tema leitura.

Neste trabalho, temos por objetivo identificar alguns dentre os diversos discursos acerca da leitura que perpassam doze dessas vinhetas. A hipótese levantada é que as vinhetas produzidas pela Globo, ao serem apresentadas como um instrumento de incentivo à prática da leitura, revelam discursos míticos sobre o ato de ler bastante arraigados na cultura brasileira.

Duas partes fundamentais constituem este texto. Sua fundamentação teórica advém, em especial, da leitura de textos escritos por Bakhtin (1995) e (2000) que, além de desenvolver o conceito de gênero como sendo “... uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN, 2000, p. 301), possibilitando que analisemos as vinhetas ___ cuja constituição se dá no interior da esfera midiática ___, como uma espécie de gênero bastante usado na modernidade, ressalta a importância de considerarmos o dialogismo como constitutivo de todo e qualquer enunciado; por Britto (2003), que apresenta certos mitos acerca da leitura recorrentes na sociedade e por Poulain (1997) e Pompougnac (1997) que, ao tratarem a leitura como prática cultural, destacam como as escolhas culturais de um povo sofrem influência de múltiplas e complexas contingências. Encerrada a seção dedicada à fundamentação teórica, as doze vinhetas gravadas são agrupadas para a realização das análises. Por último, seguem as referências bibliográficas.

1 Dialogismo e Mito no Gênero Vinhetas

Para Bakhtin (2000), gênero são as formas que os enunciados adquirem em determinadas esferas de atividades entre interlocutores que as reconhecem, porque as mesmas se constituíram historicamente, através de processos de interação. Segundo o autor, gênero do discurso é um “tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico”, elaborado por cada esfera em que a língua é utilizada. Conceituando gêneros do discurso em relação às esferas de atividade humana, Bakhtin reconhece que inexistem classificações que partam da observação dessas esferas, provavelmente em razão de serem tão variadas, fazendo com que os gêneros, por sua vez, sejam também inúmeros e heterogêneos, de natureza infinita. (BAKHTIN, 2000, p. 284).

A escolha de um gênero do discurso é, segundo Bakhtin (2000, p. 301), decorrente das especificidades de determinada esfera da comunicação verbal, o que significa dizer que existem gêneros, mais ou menos apropriados, tanto em relação às esferas do cotidiano (familiar, íntima, comunitária) como também em relação às esferas dos sistemas ideológicos constituídos (dentre eles, a mídia).

Com relação à aquisição dos gêneros, para Bakhtin (2000), não se distancia da aprendizagem das formas de nossa língua materna. Para ele, “as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida”. No processo de aquisição dos gêneros, assim como na aquisição das formas da língua, o locutor não cria novos gêneros do discurso, “[...] eles [gêneros] lhe são dados, não é ele [o locutor] que os cria” (BAKHTIN, 2000, p. 304).

1 Esta pesquisa faz parte de um projeto financiado pelo MCT/FINEP/CT-Infra 2006.

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Isso não significa que os gêneros do discurso sejam formas cristalizadas, pois, ao passo que as esferas de atividades vão se ampliando, eles também vão se desenvolvendo. Evoluem com o tempo, com os avanços tecnológicos, com as transformações culturais e com o estilo individual de cada falante, adequando-se à situação de comunicação quando são apropriados por falantes que fazem um uso real e concreto da linguagem.

Com os avanços tecnológicos, passa-se a ter gêneros novos, os quais são totalmente dependentes dos aparelhos e meios produzidos pela tecnologia. Entre os gêneros determinados pelo avanço tecnológico está o que irá constituir o corpus de análise deste artigo, o gênero vinheta televisiva, o qual se apoiou, em sua constituição, em vinhetas veiculadas em outros suportes, tais como livros, jornais e rádio.

Além de teorizar sobre os gêneros do discurso, o filósofo russo trata a questão do dialogismo. Segundo ele, a língua tem a propriedade de ser dialógica em sua totalidade concreta, sem se limitar ao diálogo, pois esse é apenas uma forma composicional em que o dialogismo ocorre. Ao propor a fundação da translingüística, o autor toma como objeto de estudo os enunciados, através dos quais seria possível examinar o real funcionamento da linguagem em sua unicidade. O objeto da translingüística seria, pois, os aspectos e formas das relações dialógicas e suas formas tipológicas. Isso não significa que Bakhtin (2000) condenasse o uso da língua nem seu estudo, já que este é necessário, na opinião do autor, para se compreender as unidades da língua

Fiorin (2006, p. 18-59) estuda o conceito de dialogismo partindo da perspectiva de Bakhtin (2000). Diz que a orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso e destaca o fato de Bakhtin fazer dele o princípio unificador de sua obra, examinando-o por diferentes ângulos e estudando com minúcias suas diferentes formas de manifestação.

Um primeiro conceito de dialogismo, de acordo com Fiorin (2006, p. 24), relaciona-se ao modo real de funcionamento da linguagem, pois todos os enunciados constituem-se a partir de outros ou, em outras palavras, são sempre heterogêneos. Retomando Bakhtin (1995), Fiorin (2006, p. 27) afirma que todos os fenômenos presentes na comunicação real podem ser analisados à luz das relações dialógicas que os constituem. Todo enunciado se dirige a um destinatário imediato, além de se dirigir a um superdestinatário cuja identidade varia de um grupo social para outro. Ao falar em dialogismo constitutivo, pode-se pensar em relações com enunciados já constituídos, porém um enunciado pode se formar tanto em relação aos enunciados que o precedem como também relacionando-se aos que o sucedem na cadeia de comunicação.

Além desse primeiro conceito de dialogismo, Fiorin (2006) expõe outro com base em Bakhtin (2000). O que o autor russo chama de concepção estreita de dialogismo, Fiorin (2006) explica tratar-se de um Outro que se mostra no fio do discurso. Nas palavras do autor,“[...] trata-se da incorporação pelo enunciador da voz ou das vozes de outro (s) no enunciado. Nesse caso, o dialogismo é uma forma composicional. São maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso”. (FIORIN, 2006, p. 32)

Neste trabalho, interessa, especialmente, o primeiro conceito de dialogismo, pois defende-se a idéia de que as vinhetas que constituem o corpus dialogam constitutivamente com uma série de mitos correntes sobre a leitura. Assim, assume-se a posição de que

Por mais monológico que seja um enunciado [...], por mais que se concentre no seu objeto, ele não pode deixar de ser também, em certo grau, uma resposta ao que já foi dito sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo problema [...] (BAKHTIN, 2000, p. 317).

Luiz Percival Leme Britto (2003), em um texto publicado no livro Contra o consenso:

cultura escrita, educação e participação, destaca alguns discursos que circulam socialmente sobre a leitura. Para ele, trata-se de mitos e, como tais, falseiam a realidade, pois são apresentadas noções vagas e fantásticas, transformadas em frases de efeito para maior aceitação social. Dentre os mitos citados pelo autor, destacam-se os seguintes: “Quem lê viaja por mundos maravilhosos”, “O sujeito que lê é criativo, descobrindo novos caminhos e novas oportunidades”, “Uma sociedade leitora é uma sociedade solidária”.

Com relação ao discurso de que por meio da leitura viaja-se “por mundos maravilhosos”, afirma o autor que ele se articula à “imagem de leitura hedonista”. Para o autor,

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Normalmente esta é a imagem mais presente em campanhas de divulgação de livros. É comum em feiras de livros, por exemplo, estilizações de personagens extraídas de histórias tradicionais serem distribuídas por entre o público visitante, ou mesmo episódios destes livros serem teatralizados à moda de teatro alternativo, criando uma espécie de ambiente fantástico, como se fosse a leitura que remetesse a ele, e não o evento em si (BRITTO, 2003, p. 105)

No que diz respeito ao segundo mito, ressalta o autor que faz parte do senso comum a

idéia de que o ato de ler é um hábito saudável que, além de possibilitar aos indivíduos o aumento de sua competência lexical, textual e discursiva, constitui-se em um “veículo de ilustração e uma forma de crescimento intelectual”. Pode-se arriscar a dizer, inclusive que, atrelada a essa concepção de leitura, está a idéia, também bastante difundida no seio da sociedade, de que o ato de ler promove o crescimento intelectual, levando os indivíduos a ascender socialmente.

Por fim, o terceiro mito diz respeito ao discurso corrente ___ marcado pelo senso-comum ___ segundo o qual os verdadeiros leitores são mais afeitos à socialização e solidários.

Veja, a seguir, como se dá o diálogo entre os mitos acerca da leitura sobre os quais pontua Britto (2003) e as vinhetas veiculadas em 2007 pela Rede Globo, que tinha como tema a leitura.

2 A Mitificação da Leitura pela Rede Globo

O corpus utilizado como base para o desenvolvimento deste texto é um conjunto de doze vinhetas exibidas pela emissora Rede Globo, as quais foram divulgadas entre os intervalos dos filmes no ano de 2007. Os referidos textos duravam em média oito segundos a cada vez que apareciam e narravam pequenas estórias com o uso de imagens diversas da cultura nacional versando sobre o tema leitura. Além disso, nas narrativas, aparecia explicitamente a logomarca da emissora.

Nos textos do corpus, há a mistura de semioses, pois acontece uma interação entre imagem, som e movimento. Tais textos constituem o gênero vinhetas, o qual pertence à esfera de atividade midiática com alcance de largo público. Esse gênero designava, originalmente, segundo Costa (2008, p. 176), “pequenos elementos decorativos desenhados por miniaturistas medievais nas margens dos manuscritos”. Mas, hoje em dia, o termo vinhetas é utilizado para nomear um certo número de textos e diz respeito a

[...] um pequeno ornamento, que ilustra um texto, um livro, um capítulo e etc. No discurso jornalístico, cientifico ou técnico, refere-se à forma gráfica usada para caracterizar uma seção na pagina de jornal ou revista: Ilustrada, Esporte, Economia, Ciência, Saúde, etc. (COSTA, 2008, p.176-177).

Quando utilizadas em rádio e televisão, conforme Costa, consistem em um

[...] trecho musical ou pequena música que se toca antes do início de um programa de rádio ou televisão, ou separando suas seções, ou identificando o programa, a estação ou o patrocinador. Especificamente, na televisão, pode ser um desenho animado (v.) ou um texto curto ou plano fixo de curtíssima metragem com os objetivos anteriores (COSTA, 2008, p.176-177).

As doze vinhetas aqui analisadas são deste último tipo e podem ser subdividas em

quatro grupos. Num primeiro, aparecem três vinhetas, em se defende a idéia de que por meio da leitura viaja-se no tempo e no espaço; num segundo grupo, incluem-se duas vinhetas que têm em comum a defesa de que a leitura promove a solidariedade e a socialização; no terceiro grupo, estão quatro vinhetas cuja finalidade é relacionar, explícita e diretamente, a leitura ao desenvolvimento cognitivo, ao sucesso pessoal e às mudanças sociais; por fim, no último grupo, temos três vinhetas que relacionam a leitura à iluminação do indivíduo.

2. 1 “Quem lê viaja por mundos maravilhosos”

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A seguir, cenas obtidas com a fixação de algumas das imagens que compõem três vinhetas, as quais apresentam, em comum, a materialização de um discurso segundo o qual “quem lê viaja por mundos maravilhosos”.

Na primeira delas, em primeiro plano, representa-se um rapazinho com um livro nas mãos e, em segundo plano, uma estante cheia de livros, além de outros objetos. À medida que lê, o rapaz transforma-se em vários personagens, ora um mago, ora um pirata, ora um mergulhador, dentre outros. Observa-se que essa transformação em outros personagens acontece quando o leitor se transporta para o mundo que aparece na história contada no livro.

A vinheta acima traz uma criança que, no percurso da escola, viaja por diferentes períodos da História ___ passando pela Idade Média, pela Contemporânea, dentre outros ___, a eles tendo acesso através do ato da leitura. Na perspectiva apresentada aqui, a criança vivenciaria a experiência de ser um cavaleiro, um astronauta, além de outros papéis, à medida que se deixa envolver por aquilo que lê.

A terceira vinheta mostra um homem que, ao abrir o livro, tem a possibilidade de ver

um mundo diferente daquele onde vive. Ao abrir o livro, esse se transforma em uma janela para um mundo novo, levando o leitor a contemplar uma realidade diferente da sua.

Nas três vinhetas analisadas, o livro é tido como uma ponte que permite ao leitor fazer uma travessia, deixando para trás o ser humano que é e o mundo em que vive para estar em lugares e tempos diversos, como se outra pessoa fosse.

2.2 “Uma sociedade leitora é uma sociedade solidária”

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Na primeira vinheta do segundo grupo aparecem, inicialmente, algumas pessoas carregando individualmente objetos que não podem ser identificados. Depois, as imagens não deixam dúvidas de que se trata de livros. O número de pessoas que carrega livros nas mãos vai aumentando paulatinamente e cresce também a solidariedade entre elas, que passam a ajudar-se mutuamente na tarefa. Então começam a formar um desenho com o uso dos livros. Por fim, vê-se que o desenho construído é o mapa do Brasil. Com isso, nessa vinheta, retoma-se a idéia de que com a solidariedade entre as pessoas “pode se fazer um país com homens e livros”.

Na vinheta acima, a leitura é concebida como algo que promove a união, a comunhão entre as pessoas. Ela representa uma situação em que dois sujeitos, por serem diferentes, um amarelo e um azul, não se entendem, pondo-se a discutir. Passado algum tempo, cada um dos indivíduos tira do bolso um livro e à medida que vão lendo, vão se misturando as duas cores, amarelo e azul, até tornarem-se uma outra cor, nem azul nem amarelo ou talvez, melhor dizendo, azul mais amarelo, a saber, a cor verde (que resulta da fusão das cores primárias amarelo e azul), sinal do poder de socialização da leitura.

Nesse segundo grupo em análise, a leitura é tida como uma atividade poderosa, capaz de promover a interação social. Juntando-se livro e leitor, seria possível, além da socialização dos indivíduos, o desenvolvimento da cidadania. Essa referência à leitura como sendo uma importante arma em prol da organização social tem sido muito utilizada em campanhas cujo intuito é incentivar a prática da leitura. 2.3 “O sujeito que lê é criativo, descobrindo novos caminhos e novas oportunidades”

As imagens abaixo são de vinhetas que possuem o mesmo tema em comum, a saber,

que a leitura engrandece intelectualmente os sujeitos, tirando-os de uma condição marginal, inferior, possibilitando-lhes alcançar papéis mais relevantes no seio da sociedade.

Acima, vê-se um jovem pichando um muro, atividade condenada pela maioria das pessoas que a vêem como um ato de vandalismo e não como uma forma de expressão artística. Ao ver tal “marginal”, um senhor oferece-lhe um livro em que se lê “Leitura é educação”. O jovem, ao abandonar a pichação, ao aceitar o livro e revelar interesse por ele, ingressa numa prática cultural prestigiada socialmente, além de esquecer aquela condenada pela maioria..

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A vinheta acima traz como tema a importância da leitura para uma formação intelectual bem sucedida. Os livros são dispostos de tal maneira que simulam os degraus de uma escada por onde uma criança vai subindo, subindo e ao fim da mesma, no último degrau, já está formada, tanto fisicamente, pois cresceu e tornou-se um jovem adulto, quanto intelectualmente, pois o jovem se apresenta com uma beca, a qual simboliza a obtenção de um diploma em um curso superior, visto aqui como o último degrau que alguém pode almejar.

A terceira vinheta desse grupo também relaciona a leitura ao crescimento intelectual e

social do indivíduo. Mostra um indivíduo que, a partir da leitura, passa a ocupar um lugar melhor na sociedade, saindo de uma condição de miséria absoluta ___ representada pela falta de roupas, pela magreza da personagem, por sua postura de submissão ___ para uma melhora significativa em sua qualidade de vida ___ representada pelas boas roupas e pela postura altiva da personagem com o livro na mão.

Na última vinheta deste grupo, é apresentada uma escala evolutiva do ser humano. Vemos a imagem de um homem contemporâneo, leitor, portanto civilizado, bem sucedido e feliz. Em outros tempos, quando não lia, era homem das cavernas, macaco. Antes disso, havia dinossauros. Todos eles, enfim, seres broncos ou irracionais, sem nenhum verniz social. Nas quatro vinhetas dadas acima, investe-se no caráter emancipatório da leitura. Superam-se a condição marginal, a ignorância, o atraso, com o ingresso à cultura dominante, acessada via palavra impressa nos livros. A leitura adquire, assim, uma conotação mais política, pois revestida da função social de funcionar como uma ferramenta para o crescimento intelectual e social das pessoas. 2.4 Quem lê ilumina-se

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Observando-se apenas a primeira cena da vinheta acima, é possível afirmar que se trata de uma imagem da lua começando a iluminar um céu coberto de estrelas. Na seqüência, vê-se que o que se ilumina é a cabeça de um indivíduo que se põe a ler.

Nessa vinheta, inicialmente aparece um indivíduo visivelmente assustado, sozinho frente a uma noite escura e chuvosa. Em suas mãos, um objeto que se assemelha a um guarda-chuva. No entanto, quando a personagem decide abri-lo, percebe-se que se trata de um livro, o qual lança luz sobre o indivíduo que o porta. Outras pessoas, todas elas portando seus próprios livros abertos e iluminados, vão se juntando, trazendo luz para todo ambiente.

Na terceira vinheta desse último grupo, podem ser vistos, na imensa escuridão da primeira cena, cinco pares de olhos, medrosos, tristonhos, preocupados. Na segunda, eles se arregalam e se alegram. Na terceira, descobre-se a razão de tal mudança: um livro aberto à frente de um homem (seguido por pessoas dos dois sexos e de várias idades) vem iluminando tudo por onde passa. Nessas três últimas vinhetas o tempo está cindido. Há o momento que antecede a presença do livro e o momento que a sucede. Antes de o objeto livro aparecer tudo são trevas, mas com seu surgimento tudo se ilumina, deixando felizes quem por sua luz é tocado. 3 Problematização A crise da leitura, de que tanto ainda se ouve falar hoje em dia, foi identificada no fim da década de 1970, em decorrência da constatação de que “... os jovens, sobretudo os estudantes, não freqüentavam com a desejada assiduidade os livros postos à sua disposição (ZILBERMAN, 1991, p. 15). Em razão dessa observação, muitas ações têm sido desenvolvidas desde então, tanto por esferas públicas como por privadas. São realizados debates sobre o tema, desenvolvem-se projetos de leitura, fazem-se campanhas publicitárias de incentivo à prática do ato de ler. Nesse contexto, inserem-se as vinhetas elaboradas pela Rede Globo de Televisão que foram ao ar em 2007. As vinhetas agrupadas sob a denominação “Quem lê viaja por mundos maravilhosos” podem ser analisadas, com base em Britto (2003, p. 105-106), como uma forma de leitura “... mais fácil, porque não exige senão conhecimentos adquiridos na experiência cotidiana”.

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Pompugnac (1997, p. 34) cita Michel Ragon que relata a experiência de sua mãe com a leitura. Segundo o romancista, “a leitura ‘ingênua’ da mãe, apenas baseada na identificação com os personagens, levava à escolha de uma literatura sentimental, de evasão, em que as relações sociais são negadas ou idealizadas”. Em sua opinião, tal modo de ler caracteriza-se pela resignação dos indivíduos, os quais mantêm uma atitude conformada em relação aos problemas sociais existentes. Como ressalta Britto (2003, p. 105-106), a prática leitora comentada acima não difere de outras formas de consumo de cultura de massa. É como se, por intermédio da leitura, assim como faz assistindo à televisão, o sujeito se libertasse de um cotidiano a que se vê assujeitado e engajasse em um mundo novo e melhor. Por isso mesmo, muitas vezes, essa leitura de evasão nem costuma ser considerada leitura. Quando se trata da leitura de best-sellers, romances de faroeste ou sentimentais, vendidos em bancas de revista, por exemplo, são tidas como práticas diferentes daquelas consideradas canonicamente como leituras legítimas. O que se propõe, neste caso, “... não é tanto o de considerar como não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores (...) a encontrar outras leituras” (CHARTIER, 1999, p. 104). Com relação às vinhetas do segundo grupo, pode-se dizer que qualquer defesa taxativa de efeitos tão-somente positivos da leitura sobre as ações das pessoas deve ser questionada. Assim, quando se ouve dizer que a leitura torna os homens melhores, esquece-se que os grandes responsáveis pela criação da bomba atômica, pelo extermínio de judeus durante a Segunda Guerra, pela tortura e perseguição política durante a ditadura militar no Brasil eram exímios leitores. Assim, outro equivocado mito concernente à leitura é aquele que a relaciona a sua capacidade de promover a socialização e a solidariedades entre sujeitos. Em nossa sociedade, é freqüente a defesa de que a leitura torna os indivíduos melhores, menos alienados e mais solidários, capazes de se tornarem agentes de transformação social. No entanto, além de aceitar que a leitura não tornará todos os indivíduos solidários, é preciso considerar, em especial se se leva em conta a leitura de evasão comentada a pouco, que não é qualquer leitura que trará contribuições para a formação de sujeitos solidários. Conforme afirma Britto (2003):

Se, por um lado, a capacidade de articular criticamente elementos do mundo exige informação, já que não se constrói conhecimento do nada, por outro lado o conhecimento só pode ser construído porque o sujeito, num determinado contexto histórico, dispõe de condições de manipulação de informações de diversos graus de complexidade (BRITTO, 2003, p. 102).

No que diz respeito às vinhetas do penúltimo grupo, pode-se afirmar que o Iluminismo, movimento que se desenvolveu, principalmente, no início do século XVIII, tem uma forte ascendência sobre o modo como se concebe a leitura, quando vista como forma de melhorar as condições existenciais do ser humano. Conforme nota Zilberman (1993, p. 14), a ideologia dos iluministas até hoje “... sedimenta a validação da leitura em nossa sociedade”, pois propunham que ela fosse emancipadora, sendo o conhecimento concebido como “a ponte para a liberdade e para a ação libertadora”. Ao citar Michel Ragon, Pompugnac (1997, p. 34) observa que, “diferentemente da mãe, o autor vê a leitura como ‘um meio de conhecimento’ e o saber, para alguém de sua classe social desprivilegiada, como um meio de obter ‘ascensão ao poder’. Para ele, “o livro sempre tem sido sinal de poder social ou de saber intelectual”, se observamos sua representação em retratos. Essa maneira de enxergar o livro como “expressão de um poder social e não mais de uma fé religiosa”, nas palavras do autor, aparece com o advento das Luzes. A crítica que se pode fazer a essa ideologia é no sentido de que as mudanças sociais significativas não resultam da competência leitora de cada indivíduo considerado isoladamente. Apesar do que se diz continuamente, a leitura não pode ser tomada como condição sine qua non para as mudanças sociais ou sucesso profissional, apesar de, às vezes, serem premiados aqueles que, por intermédio da leitura conseguiram obter uma boa formação intelectual, “graus e diplomas

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universitários”, uma vez que, de fato, alterações importantes no seio da sociedade só se dão por intermédio de “uma ação coletiva e reivindicatória” (ZILBERMAN, 1993, p. 15). Também as vinhetas do último grupo são elaboradas sob alicerces construídos pelo Iluminismo. Constrói-se uma metáfora a partir da oposição trevas versus luzes. As trevas simbolizam a ausência da leitura e se relacionam à angústia, ao medo, ao mau, à tristeza, à ignorância, enquanto a luz, símbolo de sua presença, significa a salvação, o bom, a vida, a felicidade, o conhecimento. Nesse sentido, a metáfora é aplicada também no momento em que a logomarca da Globo aparece, no final da exibição de cada vinheta, quando emite sua luz. Sendo assim, a Globo constrói para si uma imagem positiva junto ao público, reforçando que o que há de bom se relaciona à luz, incluindo a si mesma, e o que há de mau liga-se à escuridão. Com relação a esse modo de ver a leitura, há que se procurar relativizar o seu poder, pois nenhuma prática leitora pode ser analisada sem que se leve em consideração seus diversos condicionamentos. Há que se pensar, segundo Poulain (1997, p. 93), que

A leitura se conjuga no plural. Tudo é leitura: ler um livro ou um jornal (...) ler um mapa da cidade (...) ler um cartaz (...) ler uma imagem (...) ler um manuscrito (...) ler um catálogo telefônico (...) um cardápio (...) Nada mais de leituras ilegítimas. A leitura é ao mesmo tempo, recreativa, de trabalho, de informação, de cultura (...) Lê-se em qualquer posição: sentado, de pé, deitado (...) Lê-se em toda parte: na praia (...) nos meios de transporte; no local de trabalho (...) na prisão (...) Livrarias, supermercados e bibliotecas de todos os gêneros, clássicos ou modernos, não são mais concorrentes, mas complementares (...) E todo mundo lê: homens e mulheres; jovens e velhos; crianças e adultos; letrados e operários; enxergando bem ou não (...) A leitura dissolveu-se nas multiplicidades do ler. A letra invadiu a vida.

Considerações Finais

As vinhetas aqui analisadas foram vistas por milhares de pessoas devido à grande audiência obtida pelo canal em que foram divulgadas. Em textos que aliam imagem, som e movimento são neles materializados discursos do senso comum sobre o fenômeno da leitura.

Nesses textos veiculados pela Rede Globo de Televisão predominam concepções em que a leitura é vista como portal de acesso para um mundo maravilhoso, garantia de uma sociedade mais solidária, “degraus” para a ascensão social, luz que tira o indivíduo das trevas. Neles, acerca da leitura se repetem os mesmos discursos que se observam, cotidianamente, na fala das pessoas comuns.

Pode-se afirmar, com base em Britto (2003, p. 106), que essas concepções de leitura têm sobrevivido em razão de dois fatores determinantes: primeiramente, mascara-se o aspecto político da leitura, com a admissão de que qualquer leitura pode ser considerada boa e, depois, desconsideram-se os objetos sobre os quais ela incide.

Ao propagar vinhetas que revelam concepções míticas da leitura, a Rede Globo não apenas promove o diálogo com discursos já vistos e ouvidos, como também tenta construir uma imagem favorável de si mesma para estabelecer uma relação de empatia com o público.

Para finalizar, acredita-se que para um redimensionamento da leitura como prática social há que se valorizar “... a leitura como um bem público, como possibilidade de cidadania”. Para isso, “... tem-se que abandonar visões ingênuas de leitura, fortemente ideológicas, e investir no conhecimento objetivo das práticas de leitura e num movimento pelo direito de poder ler (BRITTO, 2003, p.114).

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POMPOUGNAC, J. Relatos de aprendizado. In: ______; POULAIN, M.; FRAISSE, E. Representações e imagens da leitura. São Paulo: Ática, 1997. p. 11-55. POULAIN, M.. Estudo de caso: dois exemplos de discurso sobre a leitura: a imprensa diante da portaria Monory e da lei Lang . In: ______; FRAISSE, E.; POMPOUGNAC, J. Representações e imagens da leitura. São Paulo: Ática, 1997. p. 155-172. ZILBERMAN, R. A formação do leitor. In: ______. A leitura e o ensino da Literatura. São Paulo: Contexto, 1991. p. 15-20. ______. A leitura na escola. In ______ (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. São Paulo: Mercado Aberto, 1993. p. 9-22.