Esboço Teologia Contemporânea

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FRIEDRICH SCHLEIERMACHER Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, o terceiro grande pensador das primeiras decadas daquele seculo. Sua alternativa elevava a vida intuitiva - uma experiencia humana especial que ele chamava de “sentimento” - a posicao de fundamento teologico. Sua influencia e sutil mas profunda no Cristianismo ocidental. Ele esta para a teologia crista como Newton esta para a fisica, Freud para a psicologia e Darwin para a biologia. Isto e, ele pode nao ter sido a autoridade absoluta, mas foi o desbravador e vanguardista, o pensador que teologos subsequentes nao podem ignorar. O que e importante sobre Schleiermacher nao e especificamente a reconstrucao das doutrinas cristas, mas o metodo e a abordagem que ele utilizou para tentar desemaranhar as crencas cristas dos conflitos com o pensamento moderno, o que constituiu tendencia para os teologos liberais dos proximos duzentos anos. Seus simpatizantes, bem como seus oponentes, o reconhecem como o originador da teologia liberal, por causa do novo método de obter conhecimento teologico que ele formulou. Esse distanciamento de Schleiermacher em relacao a teologia protestante ortodoxa continuou a ocorrer durante os seus estudos na Universidade de Halle. La, ele absorveu profundamente o ceticismo de Kant e leu extensivamente sobre a filosofia iluminista em geral.

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FRIEDRICH SCHLEIERMACHER

Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, o terceiro grande pensador das primeiras

decadas daquele seculo. Sua alternativa elevava a vida intuitiva - uma experiencia

humana especial que ele chamava de “sentimento” - a posicao de fundamento teologico.

Sua influencia e sutil mas profunda no Cristianismo ocidental. Ele esta para a

teologia crista como Newton esta para a fisica, Freud para a psicologia e Darwin para a

biologia. Isto e, ele pode nao ter sido a autoridade absoluta, mas foi o desbravador e

vanguardista, o pensador que teologos subsequentes nao podem ignorar.

O que e importante sobre Schleiermacher nao e especificamente a reconstrucao

das doutrinas cristas, mas o metodo e a abordagem que ele utilizou para tentar

desemaranhar as crencas cristas dos conflitos com o pensamento moderno, o que

constituiu tendencia para os teologos liberais dos proximos duzentos anos. Seus

simpatizantes, bem como seus oponentes, o reconhecem como o originador da teologia

liberal, por causa do novo método de obter conhecimento teologico que ele formulou.

Esse distanciamento de Schleiermacher em relacao a teologia protestante

ortodoxa continuou a ocorrer durante os seus estudos na Universidade de Halle. La, ele

absorveu profundamente o ceticismo de Kant e leu extensivamente sobre a filosofia

iluminista em geral.

Em 1790, Schleiermacher foi ordenado ministro da Igreja Reformada e, a partir

de entao, exerceu seu ministerio em igrejas e junto a familias nobres. Seu primeiro

cargo de maior importancia foi de capelao no Hospital Charite em Berlim de 1796 a

1802. Durante esses anos, um novo movimento - o Romantismo - percorria os circulos

sociais e culturais de Berlim e Schleiermacher nao pode ficar de fora. O Romantismo

era uma reacao ao racionalismo frio da filosofia iluminista. Dava grande enfase aos

sentimentos, imaginacao e intuicao do ser humano.

Schleiermacher era comunicativo, possuia uma personalidade atraente e uma

natureza gregaria. Em Berlim, tornou-se parte de um circulo de amigos em que todos

eram profundamente influenciados pelo Romantismo. Apesar da maioria nao ser de

cristaos devotos e ate mesmo expressar uma certa reserva em relacao a religiao, ele

cultivou um relacionamento muito proximo com esse grupo. Alias, escreveu sua

primeira grande obra Sobre a Religião: Discursos aos Ilustrados que a Desdenham

(1799) em grande parte por causa do desejo de convencer seus amigos de que a religiao

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nao era aquilo que pensavam. No livro, procurou defender a religiao dos conceitos

errados mais comuns de que ela nao passa de ortodoxia morta e moralismo autoritario

que impede a liberdade individual e aliena as pessoas de sua verdadeira humanidade.

O jovem pensador tentou persuadir os “ilustrados que desdenham” (os jovens

romanticos da Alemanha) de que a verdadeira religiao e uma questao de “sentimento”

humano universal (Gefühl) e que pouco tem a ver com dogmas. O livro mescla

“pietismo iluminado” e Romantismo, a fim de demonstrar que a verdadeira religiao e

uma “relacao direta com o Deus vivo, distinta da submissao doutrinaria ou das

proposicoes credais acerca de Deus”.

Sua obra maior foi a teologia sistematica intitulada A Fé Cristã, que foi lancada

pela primeira vez em 1821-1822 e depois revisada em 1830. (...) Nessa obra extensa,

Schleiermacher apresentou um sistema de doutrina crista para os tempos modernos.

Para os tradicionalistas, A Fé Cristã representava a capitulacao ao espirito anti-

supernaturalista da era do Iluminismo, uma tentativa mal-disfarcada de se falar da

humanidade como se estivesse falando sobre Deus. Para os progressistas, a obra

representava uma liberacao dos dogmas autoritarios ultrapassados e uma verdadeira

forma de fe crista moderna que nao entrava em conflito com a ciencia. Sua publicacao

desencadeou um furor de criticas que a acusavam de panteismo e coisas parecidas.

Tambem provocou uma enxurrada de teologias revisionistas que buscavam seguir os

passos de Schleiermacher e remodelar o Cristianismo a fim de toma-lo mais atraente

para o publico secular moderno.

O interesse em A Fé Cristã ainda nao se esgotou. Novos estudos sobre essa obra

continuam a ser publicados todos os anos. Sao raros (ou inexistentes) os teologos que se

consideram discipulos de Schleiermacher, mas muitos reconhecem que quase todas as

teologias que merecem ser chamadas de “liberais” seguem o caminho que ele abriu com

essa obra.

O método teológico

Foi exatamente isso que fez a proposta engenhosa e controversa de

Schleiermacher. Ele procurou basear a teologia na experiência humana - para mostrar

que a religiao esta enraizada a uma experiencia essencial para a verdadeira humanidade

e e identica a ela. Tambem buscou reconstruir a doutrina crista de modo que nao

exaltasse a Deus as custas da humanidade, mas unisse os dois de maneira intrinseca.

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Schleiermacher sugeriu que o impasse entre o racionalismo e a ortodoxia podia

ser resolvido se a experiencia humana (mais especificamente o sentimento de

dependencia total ) - e nao as proposicoes autoritarias sobre Deus - fosse vista como a

fonte da teologia.

Antes de Schleiermacher, pensava-se em teologia de duas maneiras principais. A

ortodoxia via essa disciplina como uma reflexao acerca das verdades reveladas de modo

sobrenatural e assim praticadas numa teologia “vinda do alto”. A teologia do

Iluminismo (deismo), vendo a tarefa como uma reflexao sobre pensamentos racionais

acerca de Deus, acabou envolvendo-se numa teologia “vinda de baixo”. De acordo com

Schleiermacher (e teologos liberais que vieram depois dele), a abordagem da ortodoxia

levava a uma teologia autoritaria que reprimia a criatividade humana e confundia os

dogmas da igreja sobre Deus com o proprio Deus. Foi com razao que o Iluminismo

rebelou-se contra esse sistema. A abordagem deista, entretanto, levou a uma teologia

natural insossa e esteril, muito pouco diferente de uma filosofia religiosa. Kant a

conduzira para uma rua sem saida.

No lugar dessas duas alternativas, Schleiermacher buscou redirecionar

completamente a teologia ao considera-la a reflexao humana da experiencia humana de

Deus. A verdadeira fonte da reflexao teologica deixava de ser o conjunto de proposicoes

autoritarias e passava a ser a experiencia religiosa.

A chave para o sucesso da revolucao teologica de Schleiermacher estava em sua

capacidade de estabelecer a religiao como elemento fundamental para a natureza

humana e que nao podia ser reduzido a qualquer outra coisa. (...) Tentou mostrar que a

essencia da religiao encontra-se nao nas provas racionais da existencia de Deus, nos

dogmas revelados de modo sobrenatural ou nos rituais e formalidades eclesiasticos, mas

num “elemento fundamental, distinto e integrativo da vida e da cultura humana”10 - o

sentimento de dependencia total em algo infinito que se manifesta nas coisas finitas e

atraves delas.

E importante entender corretamente a forma como Schleiermacher igualou

religiao a “sentimento”. O termo original em alemao, Gefühl, nao tem a conotacao de

uma sensacao, como pode sugerir a traducao para a nossa lingua, mas sim de uma

profunda percepcao e consciencia. Portanto, o “sentimento” encontra-se no plano

anterior a reflexao consciente - ou seja, sob o pensamento ou sensacao explicitos e antes

deles. Assim, Schleiermacher argumentava que a verdadeira essencia da religiao esta

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“na consciencia imediata da existencia finita de todas as coisas no infinito e atraves

dele, na consciencia de todas as coisas temporais no eterno e atraves dele”. E ainda,

“buscar e encontrar esse fator infinito e eterno em tudo o que vive e se move, em todo o

crescimento e mudanca, em todas as acoes e paixoes, possuir e conhecer a propria vida

na forma de um sentimento imediato - isso e religiao”.

Schleiermacher acreditava que tal sentimento religioso (que ele muitas vezes

chamava de “devocao”) e fundamental e universal dentro da experiencia humana. Ele

nao pode ser reduzido a algum outro aspecto da natureza humana como a razao ou a

consciencia.13 Ele argumentava que, apesar do sentimento religioso ser totalmente

distinto desses dois aspectos, e tao essencial quanto os outros para uma compreensao

plena da humanidade. A razao e a consciencia dao origem a ciencia e a moralidade; a

devocao da origem a religiao.

Schleiermacher nao apenas desejava distinguir devocao e religiao de ciencia e

moralidade como tambem queria distingui-las de dogmas e sistemas de teologia. Ele

considerava estes ultimos como sendo estranhos a verdadeira religiao e nada mais do

que tentativas humanas de transformar a devocao em discurso. Argumentava que a

religiao pode existir sem os dogmas e conceitos, mas a reflexao sobre o sentimento

religioso acaba os criando, pois precisa deles. Apos estabelecer a autonomia da religiao

e situa-la como uma experiencia humana universal e irredutivel, Schleiermacher voltou-

se para a teologia em si. Num sentido mais amplo e geral, a teologia e simplesmente a

reflexao humana sobre a religiao, ou seja, sobre a devocao. Ele nao acreditava, porem,

na existencia de uma especie de religiao generica, pois a devocao sempre se expressa

em alguma forma concreta de vida religiosa e atraves de alguma comunidade religiosa.

O que Schleiermacher argumentava em seus Discursos se parece um pouco com

a visao de Aristoteles sobre forma e materia: a devocao e a essencia da religiao (forma),

mas sempre se manifesta em uma determinada tradicao religiosa (materia). Em todo

caso, ele se opunha por completo a busca do Iluminismo por uma “religiao natural”

separada de qualquer comunidade religiosa, teologia e forma de adoracao concretas

(“Religiao Positiva”). Assim, a reflexao sobre a religiao e sempre a reflexao sobre

algum tipo especifico de vida religiosa.

Em sua grande obra de teologia sistematica, A Fé Cristã, Schleiermacher definiu

teologia como a tentativa de colocar em forma de discurso as afeicoes religiosas

cristas.20 Em sua essencia, o Cristianismo e uma modificacao da devocao humana

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universal, a consciencia de ser completamente dependente, de estar numa relacao com

Deus. A experiencia crista de consciencia de Deus e consciencia de si proprio formada e

cumprida em Jesus Cristo e atraves dele e a essencia do Cristianismo: “a essencia

distinta do Cristianismo consiste no fato de que nele todas as emocoes religiosas estao

relacionadas a redencao criada por Jesus de Nazare”. Ao inves de ser uma proposta de

sistematizacao de algum conjunto de proposicoes reveladas de modo sobrenatural, a

teologia crista procura oferecer um relato coerente da experiencia religiosa dos cristaos.

Tendo em vista que essa experiencia e fundamentalmente uma experiencia de Deus

mediado em Jesus Cristo e atraves dele, todas as doutrinas devem estar centradas em

torno dele e relacionadas a ele e a sua obra redentora.

A inovacao de Schleiermacher no metodo teologico encontra-se no “voltar-se

para o sujeito que cre”. O assunto e o criterio da teologia nao sao um corpo de

informacoes divinamente reveladas, mas sim a experiencia do crente. Para ele, isso

significava que a teologia deve reexaminar continuamente as formulas doutrinarias do

Cristianismo, a fim de determinar sua adequacao a tarefa de expressar a consciencia

crista de Deus. Nenhuma doutrina e sacrossanta. Tudo esta sujeito a revisao. A tarefa

critica da teologia e manter a pregacao da igreja e as formulacoes doutrinarias em rigida

concordancia com a melhor analise contemporanea possivel da consciencia crista de

Deus, a fim de determinar o que deve ser retido, o que deve ser descartado por completo

e o que precisa ser revisado.

Uma de suas contribuicoes para a teologia contemporanea e sua enfase no

carater cultural e historico das doutrinas. Schleiermacher acreditava que a experiencia

religiosa e primaria; a teologia, por sua vez, e secundaria e deve ser constantemente

reformada em relacao aos aspectos que mudam dentro das comunidades cristas. Para

ele, “Toda forma doutrinaria esta presa a um determinado tempo e nao se pode afirmar

sua validade permanente. E tarefa da teologia em cada era presente usar a reflexao

critica para expressar de maneira nova as implicacoes da consciencia religiosa viva”.

Ao mesmo tempo que o metodo teologico de Schleiermacher incorporou os

avancos do Iluminismo, tambem procurou ir alem dele. Coerente com a Idade da Razao,

seu pensamento centrava-se na experiencia humana, colocava de lado a autoridade e

buscava construir o conhecimento “vindo de baixo”. Ele seguiu os passos de Kant, ao

limitar o conhecimento de Deus aquilo que pode ser experimentado e ao evitar

especulacoes sobre “Deus em si” ou sobre a natureza mais profunda do universo.

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Inovações doutrinárias

A Biblia desempenhava um papel importante, porem nao central na teologia de

Schleiermacher. A doutrina crista nao deve ser extraida primeira e exclusivamente da

Biblia. Pelo contrario, ele escreveu que todas as doutrinas “devem ser tiradas da

consciencia propria da religiao crista, ou seja, da experiencia interior do povo

cristao”.25 A Biblia e especial no sentido de que constitui um registro das experiencias

religiosas das comunidades cristas primitivas. A autoridade das Escrituras, porem, nao e

absoluta. Na verdade, elas servem como modelo para todas as tentativas dos cristaos de

interpretar o significado de Jesus Cristo dentro de circunstancias historicas especificas.

Fica claro que Schleiermacher nao considerava a Biblia infalivel ou escrita sob

inspiracao sobrenatural. Nela, ele encontrou passagens e ate mesmo livros inteiros que

aparentemente contradiziam a verdadeira devocao crista. Para ele, todo o Antigo

Testamento parecia carecer da dignidade normativa encontrada no Novo Testamento.

Alem disso, ele nao acreditava que a Biblia podia ou devia ser considerada

absolutamente singular. A influencia que o Espirito Santo havia exercido em sua

elaboracao devia ser vista apenas como um grau e nao um tipo diferente de influencia,

tendo em vista outras situacoes em que o Espirito tambem havia atuado. Para ele, a

Biblia tem uma autoridade relativa sobre a teologia crista na medida e nas passagens em

que mostra um modelo puro da consciencia crista de Deus. Porem, e essa consciencia do

povo cristao - e nao a Biblia em si - que deve servir de criterio absoluto da verdade para

a teologia.

Deus

A reconstrucao de Schleiermacher da doutrina acerca de Deus e uma de suas

contribuicoes mais controversas. Ela foi determinada pela consciencia crista de Deus

que o povo devoto possui, seu sentimento de dependencia total de Deus. De acordo com

Schleiermacher, os atributos de Deus nao devem ser vistos como uma descricao literal

de Deus. “Descrever” significa limitar e dividir, diminuindo, assim, o carater infinito de

Deus e deixando implicito que Deus depende do mundo. No lugar dessa visao

tradicional, ele ofereceu aquilo que se tomou uma formulacao classica: “Todos os

atributos que damos a Deus devem ser compreendidos nao como uma descricao de algo

especial em Deus, mas apenas como algo especial na maneira como o sentimento de

dependencia absoluta esta relacionado a Ele”. Em outras palavras, falar de Deus e

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sempre falar da experiencia humana com Deus. Tal afirmacao nao descreve Deus em si,

mas um certo modo de se experimentar a Deus.

Sua visao do que e falar sobre Deus deixa ainda mais claro por que, para

Schleiermacher, o teste ou criterio para determinar os atributos apropriados de Deus e o

sentimento de total dependencia.30 Ao tratar das implicacoes dessa experiencia, ele

concluiu que Deus e a realidade que determina todo o resto, e a causa absoluta de tudo -

tanto o que e bom quanto o que e mau; e o que realiza as acoes mas nao esta sujeito a

elas.

A compreensao reformulada de Deus oferecida por Schleiermacher apresenta

serios problemas para o pensamento cristao tradicional. Um exemplo e a inflexibilidade

do teologo alemao em sua posicao ao atribuir o mal a causalidade de Deus. O fato de

Deus ser autor do pecado e do mal e necessario para a dependencia de suas criaturas. Se

elas estivessem sujeitas a qualquer outro poder que nao o de Deus, entao sua

onipotencia seria limitada. Schleiermacher sugeriu que o pecado e ordenado por Deus

como aquilo que torna necessaria a redencao.

Alem disso, Schleiermacher rejeitava completamente a realidade dos milagres.

Acreditar em milagres e negar que tudo o que acontece e ordenado e causado por Deus.

O sentimento de dependencia absoluta requer que toda a natureza, em suas partes e em

seu todo, seja governada, ordenada e causada por Deus. Os milagres como atos

especiais que anulam a ordem natural seriam uma contradicao. Schleiermacher tambem

negava a eficacia da oracao intercessora. Pedir a Deus para mudar o curso dos

acontecimentos implica que esse curso e, de alguma forma, independente de Deus e que

Deus e, de alguma forma, dependente da pessoa que esta orando. E claro que, apesar das

oracoes nao mudarem nada, o fato de as pessoas orarem e de suas preces aparentemente

serem respondidas e “apenas parte do plano original divino. Portanto, nao faz nenhum

sentido a ideia de que se a oracao nao tivesse sido feita talvez outra coisa teria

acontecido”.

A esta altura, ja deve estar claro que Schleiermacher considerava toda a ideia de

sobrenatural como algo perigoso. Para ele, essa nocao era conflitante com uma

consciencia crista correta de Deus. O sobrenatural significa um posicionamento de Deus

alem do mundo e sobre ele e tambem que Deus e a criacao relacionam-se um com o

outro atraves de uma certa independencia. A devocao crista, por outro lado, ve Deus

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como o poder absoluto infinito, do qual depende tudo aquilo que e finito. Esse poder,

por sua vez, nao depende de nada nem de ninguem.

Por fim, Schleiermacher considerava problematica a doutrina da Trindade. Ele

dedicou a ela apenas uma breve conclusao no final de seu livro A Fé Cristã, declarando

friamente que “nao e uma afirmacao que diz respeito a consciencia religiosa”. Ele nao

negou explicitamente a doutrina, mas considerou sua formulacao historica tao fragil e

cheia de contradicoes, que a considerou praticamente inutil para a teologia crista.

Apesar de nao ser panteismo puro, ha um consenso geral de que sua doutrina

possui caracteristicas panenteistas sendo, portanto, o prototipo para grande parte do

pensamento liberal que se seguiu. Schleiermacher recusava-se a separar Deus do mundo

ou o mundo de Deus. Deus e pessoal, mas nao no sentido antropomorfico. Deus nao

deve ser visto como um grande ser com caracteristicas humanas que governa o mundo

de algum lugar distante. Mais importante ainda, Deus nao deve ser tratado como um

objeto de qualquer especie, pois, ao faze-lo, estamos limitando-o e tornando-o finito.

Para Schleiermacher, Deus e o poder imanente em tudo, o absoluto, que tudo determina,

que vai alem do pessoal, poder imanente que esta em tudo mas alem de todas as

distincoes que o carater de criatura impoe sobre a existencia.

Cristologia

E quanto a Jesus Cristo? Schleiermacher rejeitava a doutrina tradicional da

Encarnacao, substituindo-a por uma cristologia baseada na experiencia da consciencia

de Deus. Ele criticava a doutrina classica das duas naturezas de Jesus (humana e divina)

como sendo ilogica. Duas “naturezas” nao podem coincidir em um unico individuo.36

No lugar dessa doutrina, Schleiermacher introduziu o conceito de dois aspectos de

Jesus: Urbildlichkeit e Vorbildlichkeit — seu carater ideal e sua capacidade de

reproduzir esse carater em outros. Jesus Cristo e completamente igual ao resto da

humanidade, exceto pelo fato de que, “desde o inicio, ele possuia uma absoluta e

poderosa consciencia de Deus”. Sua consciencia de Deus nao era produto apenas da

humanidade; era resultante da atividade de Deus em sua vida. Era, porem, uma

consciencia completamente humana de Deus. A partir do seu nascimento, ele viveu no

conhecimento pleno de sua dependencia de Deus. Na descricao de Schleiermacher, “o

Redentor e, portanto, como todos os homens em virtude e identidade com a natureza

humana, mas distinto deles pelo poder constante de Sua consciencia de Deus, que era a

autentica existencia de Deus dentro Dele”.

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De acordo com Schleiermacher, essa consciencia ideal de Deus que Jesus

possuia e suficiente para expressar o que o cristao chama de sua “divindade”. E seu

Urbildlichkeit - o fato de ele ser o ideal da consciencia humana de Deus, sua completa e

perfeita devocao. A obra redentora de Jesus e seu Vorbildlichkeit - “O Redentor traz o

crente para dentro do poder de Sua consciencia de Deus e essa e sua atividade

redentora”.

Avaliação

Um de seus grandes opositores foi Karl Barth, que o acusou de tentar falar de

Deus, falando com grandiloquencia sobre a humanidade. Em outras palavras, Barth

acusou seu antecessor de praticar uma teologia radicalmente antropocentrica e de

comecar um processo que levou alguns teologos da metade do seculo 20 a declarar que

Deus estava morto.

Alem disso, nao fica claro se Deus existe sobre o mundo e alem dele. A doutrina

de Deus defendida por Schleiermacher pode ser melhor descrita como panenteísta, no

sentido de que relaciona Deus e o mundo, tomando-os inseparaveis. Como em todo

sistema panenteista, a visao de Schleiermacher do relacionamento entre Deus e o mundo

cria varios problemas serios para a doutrina da graca. Como pode a redencao que Deus

oferece ao mundo ser feita atraves da graca, se essa redencao nao e absolutamente livre?

A enfase de Schleiermacher sobre a imanencia de Deus cria uma tensao direta com sua

enfase no carater absoluto de Deus, sendo seu resultado final a inevitavel perda de um

relacionamento pessoal.

Um relacionamento verdadeiro com Deus torna-se impossivel, pois envolveria

uma reciprocidade de acoes e reacoes. Contrario a isso, o Deus de Schleiermacher

parece estranhamente frio e distante: “Se, por exemplo, fosse possivel comunicar a

natureza divina qualquer coisa humana, como a capacidade para o sofrimento, nao

restaria dentro dessa comunicacao espaco para qualquer coisa divina” .

Em seu prototipo, conhecido nos dias de hoje como “cristologia funcional”, a

divindade de Jesus nao faz parte da essencia de seu ser, mas e uma atividade de Deus

dentro dele - apenas uma atitude em relacao a Deus e aos outros seres humanos. A

grande falha nisso, e claro, encontra-se no fato de que as cristologias funcionais nao

conseguem explicar o carater supremo e absoluto de Jesus como expressao do proprio

Deus.

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AIBRECHT RITSCHL E A TEOLOGIA LIBERAL CLÁSSICA: A

Imanência de Deus na Cultura Ética

Do ponto de vista historico, porem, o “liberalismo” refere-se a um movimento

especifico do protestantismo que dominou a teologia academica entre o final do seculo

19 e o comeco do seculo 20. Ele surgiu primeiramente na Alemanha entre alunos e

seguidores de Schleiermacher e Hegel, e encontrou sua forma de maior influencia na

escola de Albrecht Ritschl.

A melhor maneira de definir a teologia liberal classica e estuda-la historicamente

- atraves de seus pensadores mais representativos. Ha tres pensadores que se destacam

como os mais representativos da essencia da teologia liberal do final do seculo 19 e

inicio do seculo 20: Albrecht Ritschl, Adolf Hamack e Walter Rauschenbusch.

A teologia liberal clássica

Assim como Schleiermacher, os liberais estavam decididos a reconstruir a fe

crista a luz do conhecimento moderno. Acreditavam que certos desenvolvimentos

culturais desde o Iluminismo simplesmente nao podiam ser ignorados pela teologia

crista, mas precisavam ser assimilados de modo positivo. A teologia crista precisava

adaptar-se a nova mentalidade cientifica e filosofica sem se perder.

Uma segunda caracteristica da teologia liberal era sua enfase na liberdade que o

pensador cristao possuia, como individuo, de criticar e reconstmir crencas tradicionais.

Isso implicava uma rejeicao da autoridade da tradicao ou da hierarquia da igreja e do

controle exercido por elas sobre a teologia.

Em terceiro lugar, a teologia liberal concentrava-se na dimensao pratica ou etica

do Cristianismo. Ritschl e seus seguidores tinham a tendencia de evitar aquilo que

consideravam especulacao vazia e tentavam moralizar a doutrina centrando todo o

discurso teologico em torno do conceito do reino de Deus.

Em quarto lugar, a maioria dos teologos liberais procurava basear a teologia em

alguma outra fundacao que nao fosse a autoridade absoluta da Biblia. Acreditavam que

o dogma tradicional da inspiracao sobrenatural das Escrituras havia sido

irremediavelmente enfraquecido pela pesquisa historico-critica. Nao apenas as tradicoes

da igreja, mas tambem grande parte da propria Biblia sao como a "‘palha do milho”, que

esconde dentro de si os “graos” preciosos da verdade imutavel. Os liberais nao

desprezavam a Biblia e nem a consideravam completamente sem valor. Na verdade,

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procuravam dentro dela o “evangelho” - o cerne e referencial eterno da verdade que nao

podia ser corroido pelos acidos do conhecimento cientifico e filosofico moderno. Para

eles, a tarefa da teologia era identificar o grao, a “essencia do Cristianismo”, e separar

claramente toda a palha de ideias culturais e expressoes que o envolviam. Para muitos

teologos liberais, essa palha incluia os milagres, os seres sobrenaturais como anjos e

demonios e os acontecimentos apocalipticos.

O elemento final, que era talvez o fundamento inconsciente de todas as outras

caracteristicas, era o movimento continuo da teologia liberal em direcao a imanencia

divina as custas da transcendencia. (...) Mas sua enfase no reino de Deus como uma

sociedade historica e etica de amor tendia, de fato, a elevar a ligação e nao o

rompimento entre Deus e a humanidade, mantendo, assim, a visao do Iluminismo. Antes

do Iluminismo, os teologos enfatizavam a disjuncao entre aquilo que era radicalmente

sagrado - o Deus transcendente – e os seres humanos finitos e pecadores, e viam a

Encarnacao como o acontecimento dramatico em que Deus havia criado uma ponte

sobre esse abismo. Ao contrario deles, comecando no Iluminismo e encontrando seu

apice no liberalismo, os teologos passaram a construir seus pensamentos sobre a ligacao

entre o divino e o humano manifesta, por exemplo, nas capacidades racionais, intuitivas

ou morais. Em decorrencia disso, Jesus era visto como um ser humano exemplar e nao

como o Cristo interventor.

A Vida e a Carreira de Albrecht Ritschl

Albrecht Ritschl nasceu em 1822 na familia de um bispo da igreja protestante

prussiana. Quando crianca, interessava-se pela musica e logo cedo em sua juventude

mostrou grande capacidade intelectual. O jovem Ritschl comecou seus estudos

teologicos em Bonn e continuou-os em Tubingen e Halle, acabando por voltar para

Bonn, a fim de concluir seu preparo academico. Durante sua formacao universitaria, foi

influenciado por Schleiermacher, Kant e F. C. Baur, um estudioso hegeliano do Novo

Testamento.

Apesar de ter publicado muitos artigos e livros, a obra mais importante de

Ritschl foi um tratado de tres volumes intitulado A Doutrina Cristã da Justificação e

Reconciliação, lancado em etapas entre 1870 e 1874.

O método teológico de Ritschl

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Assim como no caso de Schleiermacher, muita da importância de Ritschl para a

teologia moderna encontra-se em sua abordagem da teologia e não nas suas propostas

doutrinárias específicas.

Ritschl acreditava que o conflito entre a teologia e a ciencia surgia por nao se

distinguir adequadamente entre o que era conhecimento “cientifico” e “religioso”. De

acordo com Ritschl, os conflitos entre as disciplinas cientificas academicas seculares e a

religiao surgem apenas quando nao se observa essa distincao entre o conhecimento

teorico e o conhecimento religioso. Para ele, “toda cognicao do tipo religioso e um

julgamento direto de valores”. Em decorrencia disso, podemos conhecer a natureza de

Deus e sua essencia divina somente quando “determinamos o seu valor para nossa

salvacao”.

Ritschl rejeitava veementemente qualquer dependencia da teologia em relacao a

metafisica. Para ele, essa abordagem era uma fusao ilegitima de conhecimento cientifico

e religioso.6 Argumentava que as provas filosoficas da existencia de Deus pertencem a

esfera do conhecimento cientifico, pois tratam Deus como um objeto de interesse

teorico, enquanto o verdadeiro conhecimento religioso acerca de Deus jamais pode

trata-lo como um objeto, como uma simples parte dos elementos do mundo. A teologia

so esta interessada em Deus a medida que ele afeta moralmente a vida das pessoas,

ajudando-as a alcancar o bem maior. Mas o que e o bem maior da humanidade? Para

Ritschl, o Cristianismo e a comunidade formada pelas pessoas que, coletivamente,

julgam que o bem maior da humanidade encontra-se no reino de Deus revelado em

Jesus Cristo. Nao e possivel e nem desejavel que haja provas teoricas desse julgamento,

mas sua afirmacao tambem nao e produto de um “passo de fe” subjetivo. Na verdade,

essa assercao encontra-se enraizada na experiencia coletiva dos cristaos ao longo dos

seculos. E sua verdade e sustentada pela investigacao historica do singular chamado e

atuacao de Jesus de Nazare, em quem os seres humanos veem realizado com perfeicao o

seu mais alto ideal.

De acordo com Ritschl, a teologia e a investigacao da experiencia coletiva moral

e religiosa do reino de Deus na igreja. Ela e edificada e centrada na avaliacao que a

comunidade crista faz do reino de Deus revelado em Jesus Cristo como o bem maior da

humanidade. A teologia busca construir um sistema de julgamento baseado

exclusivamente no impacto de Deus sobre a vida dos cristaos e no valor desse impacto

para o bem maior. Com essa finalidade, usa a pesquisa historica da consciencia que

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Jesus possuia de si mesmo e o impacto que sua pregacao original a respeito do reino de

Deus teve sobre os primeiros cristaos.

Em resumo, para Ritschl, a teologia procura determinar a verdadeira essencia do

Cristianismo como algo distinto de suas formas e expressoes externas. Qual e a fonte e a

norma da teologia? De acordo com Ritschl, nao e a Biblia como um todo, mas o

“conjunto de ideias apostolicas” determinado atraves de uma solida pesquisa historica.8

Ritschl estava certo de que tal pesquisa poderia demonstrar que o reino de Deus e a

essencia do Cristianismo - o grao dentro da palha - e o centro do conjunto de ideias

apostolicas.

O metodo teologico de Ritschl tem uma afinidade impressionante com a filosofia

de Kant. O contato de Ritschl com Kant deu-se atraves de Hermann Lotze, um filosofo

em Gottingen que procurou aprimorar o ceticismo de Kant e, ao mesmo tempo, manter

sua epistemologia basica. Apesar de haver muita controversia acerca da influencia de

Kant e Lotze sobre Ritschl, uma coisa pode-se dizer com certeza: Ritschl seguiu Kant

ao procurar eliminar a metafisica de dentro da teologia e aproximar ao maximo a

religiao da etica. Ele rejeitou todas as especulacoes sobre a natureza de Deus em si,

isoladas de seu impacto sobre os seres humanos (apesar de, nesse caso, ter apelado mais

para Lutero do que para Kant). Porem, Ritschl diferiu de Kant ao declarar que Deus é

conhecido de fato atraves de seus feitos. Alem disso, ele nao aceitava a separacao que

Kant fazia entre as esferas do “fenomenal” e o “nomenal”. Reagindo a Kant, Ritschl

apoiou-se fortemente em Lotze quanto a ideia de que algo (nesse caso, Deus) esta

presente e manifesta-se em seus feitos (nesse caso, na revelacao e salvacao).

Deus e o Reino de Deus

A doutrina acerca de Deus apresentada por Ritschl foi profundamente afetada

por sua metodologia teologica. A primeira e mais forte evidencia disso e que ele tinha

muito pouco a dizer sobre Deus em si. Ele afirmava que a teologia crista so esta

interessada no impacto que Deus tem sobre as pessoas e no julgamento apropriado desse

impacto. Ritschl tambem nao falou muito sobre a Trindade, por exemplo, pois a via

como uma doutrina sobre o ser interior de Deus, estando acima e alem da relacao de

Deus com o mundo, sendo, portanto, uma doutrina impossivel de se articular em termos

de julgamento de valores. Assim, ele tambem nao via nenhum papel positivo para os

atributos metafisicos tradicionais de Deus como a onipotencia, a onisciencia e a

onipresenca. Apesar de nao nega-los explicitamente, parecia dispensar os atributos,

Page 14: Esboço Teologia Contemporânea

considerando-os parte da esfera do conhecimento teorico e nao religioso. Para Ritschl, a

principal afirmacao teologica do Cristianismo e “Deus e amor”.10 A essa declaracao,

ele acrescentava que a fe crista requer que Deus seja pessoal e transcendente ou “alem

do mundo”.

Ritschl estava muito mais interessado no reino de Deus do que no proprio Deus.

Jesus havia proclamado o reino de Deus, que, de acordo com Ritschl, e a unidade dos

seres humanos organizados de acordo com o amor. A fe crista apropria-se desse reino

revelado em Jesus como sendo o bem maior da humanidade. A fe, portanto, conhece o

Deus proclamado por Jesus como sendo amor. Fora isso, ela nao tem nenhum interesse

no “ser de Deus”.

Para Ritschl, o reino de Deus nao e apenas o bem maior e o mais alto ideal da

humanidade, e tambem o bem maior e o mais alto ideal de Deus. Talvez esse seja o

aspecto que mais chame a atencao na doutrina de Ritschl acerca de Deus. Para ele, a

finalidade propria de Deus, sua razao de ser, por assim dizer, e mesma que a nossa - o

reino de Deus.

Apesar de reconhecer a transcendencia de Deus, essa identificacao do ser de

Deus com o desenvolvimento de seu reino no mundo leva a teologia de Ritschl para a

direcao da imanencia.

Pecado e Salvação

Para Ritschl, o reino de Deus tambem e o significado interior das doutrinas do

pecado e da salvacao. Tendo em vista que o reino de Deus e considerado pelos cristaos

como o bem maior, a teologia deve entender como pecado aquilo que se opoe a esse

reino.14 A visao de que o pecado e, antes de mais nada, um ato intencionalmente errado

torna esse conceito trivial. O pecado tambem nao e uma disposicao inerente para o mal,

ja que essa visao remove o elemento da responsabilidade. No lugar da doutrina

tradicional do pecado, Ritschl propos a existencia de um “reino de pecado”, “uma teia

de acoes e reacoes pecaminosas que surge a partir da inclinacao egoista de todo homem

e aumenta ainda mais essa tendencia”.15 O pecado e, antes de mais nada, egoismo. Seu

carater essencial esta na contradicao do ideal humano de unidade centrado em tomo do

amor, que e o reino de Deus. Porem, esse pecado nao e herdado. Ele e universal, mas

nao existe outra explicacao para sua universalidade alem do fato de que todos os

individuos pecam.

Page 15: Esboço Teologia Contemporânea

Ao longo dos escritos teologicos de Ritschl, o reino de Deus parece ter dois

enfoques - um religioso e outro etico. O enfoque religioso e a justificacao, o momento

da salvacao em que Deus declara que o pecador foi perdoado. O enfoque etico encontra-

se na assercao de que Deus chama os homens e mulheres reconciliados a cumprir o

ideal do amor para com o seu proximo. Para Ritschl, a “salvacao” deve incluir esses

dois enfoques.

E em suas doutrinas sobre o pecado e a salvacao que fica mais evidente o

aspecto “terreno” da teologia de Ritschl. Ele acreditava que a salvacao nao e, em

primeiro lugar, uma questao de se atingir um estado abencoado no pos-vida - apesar de

jamais haver negado esse estado. A salvacao e, antes de mais nada, o pleno frutificar do

reino de Deus na terra. Em consequencia disso, o Cristianismo nao e uma religiao de

outro mundo, mas sim a religiao de um mundo em transformacao atraves da atuacao

etica inspirada pelo amor.

Cristologia

A cristologia classica, de acordo com o Credo de Calcedonia (451 d.C.), afirma

que Jesus Cristo foi a unica pessoa a ter duas naturezas distintas - a humana e a divina.

Sua natureza divina consiste em sua “divindade”. Ritschl rejeitava firmemente essa

formulacao tradicional sobre a divindade de Jesus, afirmando que ela era cientifica e

nao religiosa.

De acordo com ele, a verdadeira avaliacao de Jesus esta interessada em sua

conduta historica, em suas conviccoes religiosas e em seus motivos eticos e nao em suas

supostas qualidades inatas ou em seus poderes, “pois e atraves das primeiras

caracteristicas mencionadas e nao destas ultimas e que ele exerce uma influencia sobre

nos”.

Pelo fato de ter se transformado no portador unico do reino de Deus, ele e visto

pelos cristaos como tendo o mesmo valor que Deus.

Ritschl ressentia-se com a acusacao de que havia reduzido Jesus Cristo a “um

simples homem”. Ele gastou muitas paginas prevendo essas criticas e defendendose

delas. Ritschl interpretava a divindade de Jesus como a “vocacao” singular dada a ele

por Deus, seu Pai, para que fosse a incorporacao perfeita do reino de Deus entre os

homens - uma vocacao que Jesus cumpriu com perfeicao.

Page 16: Esboço Teologia Contemporânea

Assim, os cristaos confessam que Jesus e “Deus”, pois esse e o julgamento de

seu valor baseado no impacto de sua vida para Deus e para a humanidade.

Porem, ele nao se conteve e discutiu o conceito da preexistencia de Cristo. Foi

nessa discussao, mais obviamente do que em qualquer outro ponto, que ele caiu em

contradicao ao permitir que um elemento metafisico influenciasse seu pensamento. Ao

que parece, ele simplesmente nao pode se contentar com a conclusao de que aquilo que

Jesus realizou foi resultado de seu proprio esforco e iniciativa.

Em outras palavras, para Ritschl, Cristo ja existia apenas no sentido de que suas

obras sao eternamente conhecidas por Deus e fazem parte da vontade do Pai. Essa

afirmacao da preexistencia ideal de Cristo parece transgredir descaradamente os limites

estabelecidos pelo proprio Ritschl para a teologia. Ela introduz um elemento da

metafisica ou da ontologia que nao pode ser apoiado apenas pela pesquisa historica do

valor de Cristo para a humanidade. Essa afirmacao vai alem da esfera do julgamento de

valores e afirma a realidade de um ambito transcendente e da origem de Cristo, uma

esfera que Ritschl considerou especulativa em sua critica a doutrina classica da natureza

divina de Cristo.

A salvacao da humanidade atraves de Cristo e elemento central da teologia de

Ritschl. Mas de que maneira isso ocorre? Aqui, Ritschl introduz o conceito da

“obediencia vocacional” de Jesus ao Pai: Jesus demonstrou com perfeicao o modo de

vida apropriado para o reino de Deus. Sua vida sem pecado e morte voluntaria nao

apenas revelaram o reino de Deus na Historia, mas tambem o liberaram na forma de

poder para transformar o mundo. Ao que parece, o interesse principal de Ritschl estava

na vida historica de Cristo como exemplo moral que teve um impacto sobre a Historia.

Avaliação

Como resultado de sua influencia, toda uma geracao de pastores e professores

cristaos desenvolveu o “evangelho social”.

Se a teologia nao pode discutir a realidade interior do ser de Deus, ficara

subentendido que Deus so existe em relacao ao seres humanos.

Apesar de garantir o contrario, ele reduziu Jesus ao ideal religioso e etico da

humanidade. Nao importa quao firmemente ele afirmasse o lugar especial de Jesus na

obra divina da salvacao, Ritschl eliminou tudo o que separava Cristo do resto da

Page 17: Esboço Teologia Contemporânea

humanidade. Como resultado, nao restam mais bases para se crer que Jesus e a

revelacao insuperavel de Deus.

Adolf Harnack

Dois membros da escola Ritschliana destacam-se pelas formas criativas como

desenvolveram ideias a partir de seus fundamentos: o estudioso alemao Adolf Harnack e

o professor americano de origem alema Walter Rauschenbusch.

Adolf Harnack foi, talvez, o mais brilhante e popular defensor da teologia liberal

protestante na virada do seculo. Ele foi professor de historia da igreja na Universidade

de Berlim de 1888 ate aposentar-se, em 1921. Suas palestras atraiam centenas de alunos

e seus escritos (aproximadamente mil e seiscentos titulos) eram grandemente aclamados

no mundo academico. Harnack era amigo intimo do Imperador Wilhelm da Alemanha,

que deixou a seu encargo varias instituicoes culturais importantes, incluindo a

Biblioteca Real de Berlim. Em 1914, ele recebeu do Imperador o titulo de cavaleiro.

Harnack, que escreveu o discurso imperial para o povo alemao anunciando o inicio da

Ia Guerra Mundial, apoiava fortemente a politica de guerra do Imperador. Este foi um

dos fatores que fez com que seu mais notavel aluno, o teologo suico Karl Barth, se

voltasse contra ele.

A influencia mais ampla de Harnack deu-se atraves da publicacao de uma serie

de palestras feitas por ele na Universidade de Berlim entre 1899 e 1900, que foram

transcritas por um aluno e oferecidas como presente ao professor. Em 1901, essas

palestras foram publicadas na America sob o titulo What is Christianity? [O Que e

Cristianismo?].

Nessas dezesseis palestras, Harnack procurou identificar o cerne (“os graos”) do

Cristianismo autentico, que ele chama de “Evangelho”, e separa-lo da palha - as formas

culturais atraves das quais ele e comunicado no Novo Testamento e nas tradicoes

historicas da cristandade. Ele propos a tese de que Jesus proclamou a mensagem sobre

Deus, o Pai, e nao sobre si mesmo: “O Evangelho, conforme foi proclamado por Jesus,

tem a ver somente com o Pai e nao com o Filho”. De acordo com Harnack, esse

evangelho e simples e sublime, consistindo em tres verdades relacionadas entre si: o

reino de Deus e sua vinda; Deus, o Pai, e o valor infinito da alma humana; e a retidao

mais elevada e o mandamento do amor.

Page 18: Esboço Teologia Contemporânea

Harnack encontrou muito pouco do evangelho no Antigo Testamento. Ate

mesmo no Novo Testamento, ele se apresenta incrustado com historias fantasticas de

milagres, anjos, demonios e catastrofes apocalipticas. Ele argumentava que, ao longo da

historia, a igreja havia sido coberta com a palha de conceitos filosoficos estranhos a ela,

como a identificacao grega do Logos com Cristo. Para Hamack, apesar disso tudo, o

evangelho sobreviveu onde quer que a mensagem pura e simples de Jesus sobre o Reino

de Deus tenha sido aceita como o ideal mais alto e glorioso conhecido para a

humanidade. Esse ideal e “a perspectiva da uniao entre os homens, uniao essa que se

mantem nao por ordenancas legais, mas pela regra do amor, e onde o homem conquista

seu inimigo atraves da mansidao”.

Walter Rauschenbush

Harnack recusava-se a aplicar o ideal do reino de Deus a questoes politicas

especificas; ele chegou a criticar duramente aqueles que desejavam usar esse ideal para

alimentar movimentos revolucionarios de Reforma. Walter Rauschenbusch, pelo

contrario, gastou a maior parte de sua energia criativa como teologo fazendo justamente

isso.

O primeiro cargo do jovem pastor foi em Hell’s Kitchen, uma parte

extremamente pobre da cidade de Nova York. La, ele envolveu-se com o crescente

movimento socialista e ajudou a fundar um jornal socialista religioso.

Em 1891, Rauschenbusch passou varios meses estudando o Novo Testamento na

Alemanha, onde recebeu influencia da enfase Ritschliana sobre o reino etico de Deus

como coracao e alma do evangelho. Quando voltou para os Estados Unidos, envolveu-

se por completo no recem-criado movimento do “evangelho social”, tornando-se seu

expoente de maior competencia teologica e principal proclamador.

Os livros de Rauschenbusch, que em grande parte foram escritos para o consumo

popular, nao sao pesados tomos teologicos, mas sim aplicacoes praticas dos objetivos

eticos e ideais do reino de Deus para a vida social concreta. Sua obra de maior

influencia e que o tornou conhecido foi Christianity and Social Crisis [Cristianismo e a

Crise Social], publicada em 1907. Esse livro apresentava em linguagem severa o

enorme abismo entre a riqueza e a pobreza na America e afirmava que ser um cristao

em meio a essa crise social significava trabalhar para a salvacao de estruturas

economicas que perpetuavam a pobreza. A tarefa essencial do cristao, ele escreveu, nao

Page 19: Esboço Teologia Contemporânea

e tanto abolir a bebedeira e o adulterio, mas “transformar a sociedade humana no reino

de Deus atraves da regeneracao do relacionamento entre os homens e a sua

reconciliacao de acordo com a vontade de Deus”.38 Ele dedicou atencao especial ao

capitalismo de laissez-faire [nao-intervencionismo (N. do T.)], afirmando que este era

parte do Reino do Mal na vida americana e chamou os cristaos americanos a liderarem

um novo reavivamento, no qual nao apenas almas individuais, mas entidades

corporativas inteiras e estruturas sociais seriam levadas ao arrependimento e a salvacao.

Em 1912, Rauschenbusch publicou seu segundo maior livro, Christianizing the

Social Oráer [A Cristianizacao da Ordem Social], Nessa obra, ofereceu sugestoes

especificas para o reavivamento que vislumbrava. Pediu, ainda, a socializacao das

principais industrias, apoio por parte dos sindicatos e a abolicao de uma economia

centralizada na cobica, na competicao e no lucro como principal motivacao. Para ele,

todas essas mudancas significavam uma cristianizacao gradual da ordem social - uma

aproximacao progressiva do reino de Deus na sociedade humana. Rauschenbusch

publicou a obra que acabaria por tornar-se a teologia sistematica do movimento do

evangelho social, A Theology fo r the Social Gospel [Uma Teologia para o Evangelho

Social], em 1917. Nela, procurava redefinir cada uma das principais doutrinas cristas

em termos de realidade social e historica do Reino do Amor, que, para ele, equivalia a

“humanidade organizada de acordo com a vontade de Deus”. Ao mesmo tempo que

Rauschenbusch nao negou explicitamente as doutrinas classicas da fe crista, ele as

reinterpretou a luz do tema central unificador que era o reino de Deus. O significado

principal de Jesus, por exemplo, encontrava-se no novo conceito de Deus que ele

ofereceu a humanidade.

Ao inves de retratar a Deus como um monarca, Jesus “democratizou a

concepcao de Deus” ao toma-lo pela mao e chama-lo de “Pai”. Assim, Rauschenbusch

definiu a salvacao como “a socializacao voluntaria da alma”. O movimento do

evangelho social americano representou a expressao mais pratica e concreta da teologia

liberal classica. A maior parte dos metodos teologicos e temas fundamentais desse

movimento tem suas origens em Ritschl, mas esses eram combinados com um fervor

evangelico pela reforma social que nao existia na teologia liberal europeia.

Apesar do liberalismo continuar a ser uma forca que merece reconhecimento, a

Ia Guerra Mundial destruiu uma grande parte da teologia liberal classica e, com ela, o

evangelho social.

Page 20: Esboço Teologia Contemporânea

A REVOLTA CONTRA A IMANÊNCIA: A TRANSCENDÊNCIA NA

NEO-ORTODOXIA

O movimento neo-ortodoxo caracterizou-se pela tentativa dos teologos de

redescobrir o significado para o mundo moderno de certas doutrinas que haviam sido

centrais para a antiga ortodoxia crista. Consequentemente, seus proponentes

apresentavam um relacionamento complexo com o liberalismo que havia precedido o

seu novo pensamento. Por um lado, os teologos neo-ortodoxos seguiam o liberalismo

mais antigo, vendo o Iluminismo com naturalidade e, assim como seus antecessores,

aceitando o criticismo biblico. Por outro lado, os pensadores mais jovens rejeitavam

aquilo que consideravam ser a cultura crista do liberalismo, que surgiu da enfase na

teologia natural. Estavam seriamente preocupados com o fato de o liberalismo

protestante ter se esforcado tanto para tornar a fe crista aceitavel a mentalidade moderna

a ponto de perder o evangelho.

A Palavra de Deus - a voz do Ser Transcendente - nao proclamava mais as boas-

novas de reconciliacao com a humanidade perdida em pecado. A neoortodoxia buscava

reafirmar esses temas esquecidos em um mundo que, mais uma vez, precisava ouvir

Deus falar do alem. Em sua busca por reafirmar temas como o pecado humano, a graca

divina e uma decisao pessoal, a neo-ortodoxia do seculo 20 procurou inspiracao numa

voz antiga e ignorada no seculo 19 que havia falado contra o pensamento dominante de

sua epoca. Era a voz do “dinamarques melancolico” Soren Kierkegaard.

Soren Kierkegaard

Soren Kierkegaard nasceu em Copenhague, em 1813, filho de um prospero

homem de negocios luterano, e morreu em 1855. Ele teve uma infancia infeliz: sofreu

de deformacoes na coluna e era fisicamente fragil. Apesar de ter sido educado para o

ministerio eclesiastico, ao completar seus estudos, em 1840, seu verdadeiro interesse era

pela filosofia e literatura. A infelicidade do jovem Kierkegaard foi ainda mais

intensificada por causa de seu dificil relacionamento amoroso com Regina Olsen.

Apesar do casal ter noivado em 1841, Kierkegaard decidiu que era preciso desfazer esse

compromisso. Mas ele passou a maior parte do resto de sua vida preso a esse amor

perdido.

Kierkegaard era um escritor prolifico. Sua carreira literaria deu-se em tres

estagios. No primeiro, ele tratou principalmente de seu relacionamento com Regina

Page 21: Esboço Teologia Contemporânea

Olsen. O segundo estagio veio depois de sua experiencia de conversao, em 1848, e

concentrou-se na dificuldade de ser cristao. O terceiro estagio foi desencadeado por um

discurso funebre em 1854, no qual um bispo da igreja do Estado dinamarques elogiava

um colega falecido que havia, na verdade, vivido uma existencia mundana. Kierkegaard

lancou um terrivel ataque sobre a igreja do Estado, expondo as disparidades entre o

Cristianismo primitivo e a versao contemporanea dinamarquesa.

Por tras das criticas de Kierkegaard estava sua controversia fundamental com a

filosofia hegeliana aceita pelos intelectuais de sua terra natal. Os filosofos

dinamarqueses rejeitavam a visao predominante de que a razao era capaz de responder

as perguntas basicas religiosas da vida. E, ao contrario do coletivismo que surgiu da

ligacao feita por Hegel entre o progresso espiritual humano e o desenvolvimento proprio

do Espirito Absoluto, Kierkegaard enfatizou o individuo.

Ao inves da sabedoria convencional de sua epoca, Kierkegaard ofereceu uma

nova visao da natureza da verdade, pelo menos de acordo com a forma como ele foi

interpretado no seculo 20. A verdade nao e impessoal e nao pode ser obtida atraves do

pensamento desapaixonado. Pelo contrario, a verdade e subjetividade; surge quando o

sujeito pessoal deseja plenamente fazer parte dessa verdade. Consequentemente, o ponto

de partida na busca pela verdade nao esta na contemplacao imparcial daquilo que e

universal. A verdade comeca, sim, com um individuo concreto em uma situacao de vida

concreta. Dai a conhecida definicao de verdade de Kierkegaard: “A verdade e uma

incerteza objetiva presa a um processo de apropriacao da mais apaixonada origem

interior”.

Em Migalhas Filosóficas, Kierkegaard delineou sua famosa distincao entre

Cristianismo e religiao socratica. Esta ultima, a “Religiosidade A”, e a religiao da

imanencia, pois pressupoe que a verdade esta presente dentro do individuo. Para que a

verdade apareca e preciso apenas que alguem faca as vezes de uma parteira, ajudando o

sujeito sabedor a dar a luz essa verdade. Mas na religiao de Jesus - “Religiosidade B” ou

religiao do outro - o individuo nao possui a verdade, ou pior, vive no engano. Assim, ele

precisa de um mestre que leve a verdade ate ele e, inclusive, ofereca as condicoes

necessarias para que ele a receba. Tal mestre e o Salvador e Redentor e sua vinda e a

“plenitude do tempo”.

E claro que, para Kierkegaard, esse mestre e Jesus Cristo. Mas a confissao crista

de Jesus como Cristo envolve um paradoxo duplo. Ela afirma que Deus tornou-se

Page 22: Esboço Teologia Contemporânea

humano, que o Eterno tornou-se temporal. E ela declara que nossa felicidade eterna esta

fundamentada num acontecimento historico, sendo que a historicidade desse

acontecimento e apenas provavel e nao completamente certa. Por ser um paradoxo, a

verdade do Cristianismo e captada apenas atraves da fe e nao pela razao. Ser um cristao,

portanto, envolve um desejo de ir pela fe a lugares para onde a razao nao pode nos

levar. Kierkegaard concluiu que sua essencia esta na profunda preocupacao, temor e

tremor santo e nao numa seguranca complacente.

Os temas enunciados pelo filosofo dinamarques do seculo 19 - como a

transcendencia do Deus que, no momento do encontro divino, profere ao individuo a

verdade divina infalivel - tornaram-se os fundamentos sobre os quais os teologos da

neo-ortodoxia do seculo 20 construiram seus pensamentos e as teses que expandiram em

suas deliberacoes teologicas.

KARL BARTH: A transcendência como liberdade de Deus

A vida e a carreira de Karl Barth

Karl Barth nasceu em 1886 na Basileia, Suica. Seu pai era professor em uma

universidade para pregadores (semelhante a um seminario) e identificava-se com um

grupo relativamente conservador dentro da Igreja Reformada da Suica.

Ele estudou teologia em universidades em Berna, Berlim, Tubingen e Marburg,

chegando finalmente a um posicionamento teologico dentro da linha ritschiliana de

pensamento liberal. Em Berlim, ele recebeu a influencia de Harnack e, em Marburg,

tornou-se discipulo do grande teologo ritschliano Wilhelm Herrmann.

Em 1908, ele foi ordenado ministro da Igreja Reformada e assumiu um cargo de

pastor assistente em Genebra. Ali, ele pregava de tempos em tempos no mesmo grande

salao em que, tres seculos e meio antes, Calvino havia falado. Como a maioria dos

pastores assistentes, ele nao se sentia realizado em seu trabalho e, em 1911, mudou-se

para uma pequena congregacao em Safenwil, uma vila na fronteira entre a Suica e a

Alemanha. Foi em Safenwil que fez historia na teologia, pois ali, Barth criou uma

revolucao teologica.

Muitos fatores levaram ao rompimento radical de Barth com a teologia liberal.

Entretanto, ha dois que se destacam. Em primeiro lugar, Barth percebeu que a teologia

liberal de nada servia para ajuda-lo em sua tarefa semanal de pregar o evangelho ao

povo de Safenwil. Em decorrencia disso, ele dedicou-se a um estudo cuidadoso e

Page 23: Esboço Teologia Contemporânea

detalhado das Escrituras e, atraves dele, descobriu “O Estranho Mundo Novo Dentro da

Biblia”, titulo que usou para um de seus primeiros artigos. O que encontrou nas

Escrituras nao foi a religiao humana e nem mesmo os mais refinados e elevados

pensamentos de pessoas devotas, mas sim a Palavra de Deus.

O segundo fator que afastou Barth da teologia liberal foi um acontecimento

especifico. Em agosto de 1914, ele leu a publicacao de uma declaracao realizada por

noventa e tres intelectuais alemaes que apoiavam a politica de guerra do imperador

Wilhelm. Entre eles estavam quase todos os seus professores de teologia, os quais, ate

entao, ele havia honrado profundamente. O apoio que ofereceram ao imperialismo

alemao levou Barth a crer que, se podiam ceder tao facilmente a ideologia de guerra,

tinha de haver algo de terrivelmente errado na teologia deles. Desiludido pela conduta

de seus mestres, Barth concluiu que nao podia mais “aceitar suas eticas e dogmas, sua

exegese biblica, sua interpretacao da Historia”. Para ele, toda a teologia liberal do

seculo 19 nao tinha futuro e, assim, ele passou a dedicar seu consideravel (e ate entao

oculto) talento teologico a destrui-la.

Durante a guerra, Barth comecou a trabalhar num comentario sobre a epistola de

Paulo aos Romanos. Ao ser publicado em 1919, ele provocou um furor inesperado por

causa de suas duras criticas a teologia liberal protestante. De acordo com um teologo da

epoca, a obra Der Romerbrief [Epistola aos Romanos] caiu como uma bomba no quintal

onde brincavam os teologos. No comentario, Barth afirmava a validade tanto do metodo

historico-critico de estudo das Escrituras quanto da doutrina da inspiracao verbal, e

declarava que se fosse forcado a escolher entre um dos dois, ficaria com a segunda

opcao. Barth criticou a teologia liberal por transformar o evangelho em uma mensagem

religiosa que fala aos homens de sua propria divindade ao inves de reconhece-lo como

Palavra de Deus, uma mensagem que os seres humanos sao incapazes de prever ou

antecipar, pois vem de um Deus completamente distinto deles. No fundo, Barth estava

pedindo uma revolucao no metodo teologico, uma teologia “do alto” para substituir a

antiga teologia “de baixo” centralizada no ser humano. Ao longo do comentario, ele

enfatizava o carater distinto de Deus, do evangelho, da eternidade e da salvacao.

Argumentava que essas grandes verdades nao podem ser construidas a partir da

experiencia universal humana ou da razao, mas devem ser recebidas pela revelacao de

Deus numa atitude de obediencia. Por causa de sua enfase no confronto entre Deus e a

humanidade, Der Romerbrief foi chamado de “teologia dialetica” e “teologia de crise”.

Page 24: Esboço Teologia Contemporânea

O termo “dialetica” posicionava Barth na esfera do metodo filosofico de Kierkegaard e

nao de Hegel. Para Kierkegaard, por causa da pecaminosidade humana e do carater

distinto de Deus, a verdade de Deus e o pensamento humano nao poderao jamais ser

nivelados atraves da sintese racional. Pelo contrario, as verdades paradoxais da

revelacao de Deus devem ser aceitas pela mente humana finita atraves da fe. No

prefacio da segunda edicao de Der Romerbrief {1922), Barth admitiu ser devedor de

Kierkegaard.

Em 1925, Barth foi convidado para ser professor na Universidade de Munster,

onde ficou apenas cinco anos, mudando-se para Bonn em 1930. Durante esse periodo,

comecou a surgir uma mudanca decisiva na enfase de seus escritos. Mesmo sem deixar

de lado sua rejeicao a teologia liberal, ele comecou a enfatizar mais o “Sim” de Deus

para a humanidade atraves de Cristo do que o carater negativo que havia permeado seu

trabalho durante mais de uma decada.

Barth descartou sua primeira tentativa de apresentar uma teologia sistematica

(Prolegômenos aos Dogmas Cristãos, 1928). Ele a considerou corrompida demais pela

filosofia existencialista quando, na verdade, o que desejava produzir era uma teologia

totalmente bíblica, absolutamente teológica e completamente livre da dependencia de

qualquer sistema de pensamento humano. Alem disso, queria enfatizar a objetividade da

revelacao de Deus mais do que a subjetividade da fe humana.

Em 1931, Barth escreveu aquilo que muitos estudiosos consideram sua mais

importante afirmacao de um metodo teologico maduro: Fides quarens intellectum (a fe

buscando o entendimento), um estudo sobre o teologo escolastico medieval Anselmo de

Canterbury. Ao contrario de muitas interpretacoes de Anselmo, Barth argumentou que o

grande lider da igreja nao era um racionalista, mas sim um estudioso devoto que

procurou colocar a razao a servico da fe. O argumento ontologico de Anselmo em favor

da existencia de Deus nao era uma tentativa de provar Deus independente da fe, mas

sim de entender com a mente aquilo em que ja se acreditava pela fe.

Barth argumentou que, para Anselmo, toda a teologia deve ser feita num

contexto de oracao e obediencia. Isso significa que a teologia cristã nao pode ser uma

ciencia objetiva e desapaixonada, mas deve ser a compreensao da revelacao objetiva de

Deus em Jesus Cristo, possivel somente atraves da graca e da fe. Para se encontrar

respostas teologicas e preciso ter “um coracao puro, olhos que foram abertos,

obediencia como de uma crianca, uma vida no Espirito e rico sustento recebido das

Page 25: Esboço Teologia Contemporânea

Escrituras Sagradas”. Em outras palavras, Barth afirmou que o pre-requisito para a

teologia correta e uma vida de fe e sua marca e o desejo de jamais contradizer

explicitamente a Biblia “que e a base textual do objeto revelado da fe”.

O elemento negativo permaneceu no sentido de que Barth sempre se opos a

qualquer fomia de teologia natural - a tentativa de conhecer a Deus atraves da natureza,

cultura e filosofia. Porem, sua enfase havia mudado em direcao a possibilidade de um

verdadeiro conhecimento de Deus em Jesus Cristo atraves da fe.

Logo depois de concluir seu livro sobre Anselmo, Barth comecou a trabalhar

numa teologia sistematica, A Dogmática da Igreja, que ficou inacabada com treze

volumes quando ele faleceu em 1968. O aspecto mais notavel dessa obra (alem, e claro,

de seu tamanho) e a falta dos tradicionais prolegomenos ou introducao filosofica. Barth

omitiu propositadamente essa secao, pois estava convencido de que a verdadeira

teologia deve ser a explicacao da Palavra de Deus e nada mais. Qualquer tentativa de

fundamentar a verdade da Palavra de Deus no raciocinio humano leva a sujeicao dessa

teologia aos modos humanos e historicos de pensamento e, assim, gera uma “teologia

antropocentrica”, o grande mal contra o qual Barth havia lutado tanto.

Os pressupostos de todo o esforco de Barth em A Dogmática da Igreja baseiam-

se no fato de que, em Jesus Cristo, Deus estabelece uma analogia entre si e a

humanidade. Barth contrastou essa “analogia da fe” com o conceito mais antigo de

“analogia do ser”. O conhecimento de Deus nao e uma capacidade inata da natureza ou

da experiencia humana, mas e possivel apenas porque Deus graciosamente o concede

em Jesus Cristo, que e tanto Deus quanto homem. Ou a pessoa “ve” Jesus Cristo como o

Caminho, a Verdade e a Vida ou ela nao o ve de forma alguma. Nao ha como provar

essa verdade. Alias, toda tentativa de provar a pessoa de Cristo beira a idolatria pois

coloca Deus e sua revelacao sob a analise da razao humana.

Durante o comeco dos anos 30, Barth envolveu-se profundamente com o

movimento eclesiastico antinazista na Alemanha. Em 1934, ele ajudou a redigir a

Declaracao de Barmen, que afirmava que Jesus Cristo e o unico Senhor para o cristao e,

assim, fazia uma critica implicita a elevacao de Hitler a posicao de messias pelos

cristaos alemaes. Barth encarava a aceitacao da ideologia nazista pelos cristaos alemaes

como uma forma de Cristianismo de cultura - o resultado esperado da teologia natural -

e apoiava fortemente os dissidentes dentro da igreja do Estado que se opunham aos

nazistas. Devido a sua recusa em saudar Hitler no inicio de suas palestras ou de assinar

Page 26: Esboço Teologia Contemporânea

um juramento de lealdade a Hitler, em 1935 o governo alemao emitiu a demissao

sumaria de Barth de seu cargo em Bonn. Ele foi convidado a trabalhar como professor

na Universidade da Basileia e voltou a sua cidade natal, onde viveu e lecionou o resto

da vida.

Método Teológico

Como vimos anteriormente, o metodo teologico de Barth tinha um polo negativo

e outro positivo. No aspecto negativo ele rejeitava qualquer forma de teologia natural e

nao se cansava de analisar e anunciar como, de modo sutil e inevitavel, ela acabava

levando a uma sujeicao do evangelho a cultura.

Barth procurou mostrar como essa sujeicao da revelacao havia ocorrido na

teologia catolica romana classica, na teologia protestante liberal classica e ate mesmo na

abertura dos cristaos alemaes ao nazismo.

Barth resumiu seu proprio posicionamento ao declarar: “A possibilidade de se

conhecer a Palavra de Deus esta na Palavra de Deus e em mais nenhum outro lugar”.

Essa declaracao expressa o lado positivo e o negativo de seu metodo teologico. Apesar

da falta de disposicao da humanidade para com Deus e da impossibilidade de se

conhecer a Deus atraves da razao, natureza e cultura, em sua liberdade e graca

soberanas, Deus se revelou na historia humana e tornou possivel o milagre de conhece-

lo. De acordo com Barth, o acontecimento singular da Historia no qual Deus se revelou

e o advento de Jesus Cristo. E, em Cristo, Deus revela a si mesmo e nao somente

algumas informacoes ou um modo de vida. Para Barth, isso significa que “o Deus eterno

deve ser conhecido atraves de Jesus Cristo e nao de qualquer outra forma”.

Mas como saber que isso e verdade? Barth responde: “A prova da fe consiste na

proclamacao da fe. A prova do conhecimento da Palavra [de Deus] consiste em sua

confissao”.

A Palavra de Deus e a Bíblia

Para Barth, a unica fonte de teologia crista e a Palavra de Deus. Essa Palavra,

entretanto, consiste em tres formas ou modos. A primeira forma e Jesus Cristo e toda a

historia dos atos de Deus que levaram ate a vida de Jesus e estao relacionados a ela, bem

como a sua morte e ressurreicao. Essa e a propria revelacao, o evangelho em si. A

segunda forma consiste nas Escrituras, a testemunha privilegiada de toda a revelacao

divina. Por fim, a proclamacao do evangelho atraves da igreja constitui a terceira forma.

Page 27: Esboço Teologia Contemporânea

As duas ultimas formas sao Palavra de Deus apenas num sentido instrumental, pois

tornam-se Palavra de Deus quando Deus as utiliza para revelar a Jesus Cristo.

Em decorrencia disso, a Biblia nao e a Palavra de Deus numa forma estatica. A

Palavra de Deus tem sempre um carater de acontecimento', de certo modo, e o proprio

Deus relatando seu agir. A Biblia torna-se Palavra de Deus em um acontecimento: “A

Biblia e a Palavra de Deus a medida que Deus faz com que ela seja sua Palavra, a

medida que Ele fala atraves dela”.

A visao de Barth sobre as Escrituras foi motivo de muita critica e controversia.

Os liberais o acusavam de elevar a Biblia a uma posicao especial que quase a igualava a

doutrina tradicional da inspiracao verbal, removendo-a, desta forma, de uma perspectiva

historico-critica. Os conservadores, por outro lado, atacavam a forma como Barth

subordinava as Escrituras a uma revelacao indeterminada e como negava explicitamente

a sua infalibilidade, sendo que alguns chegaram a rotular sua teologia de “novo

modernismo”.

Na verdade, ambas as criticas chegaram perto, mas nao atingiram o cerne da

questao. Por um lado, Barth, de fato, negava a posicao dada as Escrituras pela ortodoxia

classica. Ele fazia distincao entre a Biblia e a Palavra de Deus, afirmando que “aquilo

que temos na Biblia e, de qualquer maneira, uma serie de tentativas humanas de se

repetir e reproduzir essa Palavra de Deus em palavras e pensamentos humanos e em

situacoes humanas especificas”. Por outro lado, ele advertia seriamente contra o perigo

de se concluir que a inspiracao divina das Escrituras - sua posicao especial como

testemunha privilegiada de Jesus Cristo – e meramente um julgamento humano. Barth

afirmava que sua inspiracao nao e uma questao de quanto valor damos a elas ou como

nos sentimos em relacao a elas. Certamente, nao e nossa fe que faz da Biblia a Palavra

de Deus. Mas nao ha maneira melhor de salvaguardar a objetividade da verdade de que

ela e a Palavra de Deus do que insistindo que ela exige e ao mesmo tempo fundamenta

nossa fe, de que e ela que da substancia e vida a nossa fe. Pois, ao faze-lo, afirmamos

que ela e a verdade do Deus vivo, alem do qual nao ha nenhum outro, de cujo poder nao

nos e permitido duvidar mesmo diante da forca da subjetividade humana, para a qual

precisamos estar atentos, reconhecendo-a como tal. Se isso e verdade, devemos, entao,

compreender a inspiracao da Biblia como uma decisao divina que e tomada

continuamente na vida da igreja e de seus membros”. O fato de a Biblia ser a Palavra de

Deus, portanto, nao depende de forma alguma da experiencia individual ou das

Page 28: Esboço Teologia Contemporânea

conclusoes de estudiosos baseadas em evidencias externas ou internas. Para Barth, a

Biblia e a Palavra de Deus, pois sempre de novo, independente de qualquer decisao ou

iniciativa humana, Deus a usa para realizar o milagre da fe em Jesus Cristo. A atitude

apropriada da igreja em relacao as Escrituras deve ser de obediencia e submissao, pois a

unica autoridade acima delas e o proprio Jesus Cristo. A Biblia e mediadora da

autoridade de Jesus Cristo sobre a igreja.

Teologia Cristocentrica e Trinitariana

A estrutura da teologia de Barth e completamente cristocêntrica. O comeco, o

meio e o fim de toda doutrina e a figura de Jesus Cristo - sua vida, morte, ressurreicao,

exaltacao e uniao eterna com Deus, o Pai.

Para o teologo suico, Jesus Cristo e a unica e singular revelação de Deus sobre

si mesmo, a Palavra de Deus em pessoa. A partir dessa declaracao basica de fe, Barth

deduziu a divindade de Jesus Cristo: “a revelacao e a interpretacao desse Deus acerca de

si mesmo. Se estamos tratando de sua revelacao, estamos tratando do proprio Deus e

nao... de uma entidade distinta dele”. Um dos axiomas basicos de Barth e que por tras

da realidade deve haver a possibilidade correspondente. Assim, se Jesus Cristo e quem a

fe indica que ele e - a inigualavel revelacao do proprio Deus entao, de algum modo, ele

deve ser identico a Deus e nao simplesmente um agente ou representante de Deus. Por

tras da realidade da revelacao e dentro dela, portanto, esta a sua possibilidade - o Deus

Triuno. Barth via na doutrina da Trindade a unica resposta possivel para a pergunta:

Quem e esse Deus que se revela? Ele afirmava: “Assim, e o proprio Deus, o mesmo

Deus sem prejuizo de sua unidade, que, de acordo com a compreensao biblica de

revelacao, e, ao mesmo tempo, o Deus que se revela, a revelacao em si e tambem o seu

impacto sobre os homens”. Contradizendo diretamente a abordagem de Schleiermacher,

Barth colocou a doutrina da Trindade como ponto de partida para a teologia.

De acordo com Barth, portanto, a revelacao de Deus e o proprio Deus. Deus é

quem ele se revela ser. Em decorrencia disso, Jesus Cristo, como unica e inigualavel

revelacao de Deus, e identico a Deus e, portanto, verdadeiramente humano e

verdadeiramente divino: “Jesus Cristo nao e um semideus. Ele nao e um anjo. Tambem

nao e um homem ideal” . “A realidade de Jesus Cristo esta no fato de o proprio Deus

encontrar-se presente encarnado. O proprio Deus e Sujeito, sendo e agindo de modo

humano”.

Page 29: Esboço Teologia Contemporânea

Barth deixou claro que, ao falar sobre Jesus Cristo, ele estava falando sobre a

encarnacao da “Segunda forma do Ser” (Seinsweise) de Deus. Ele preferia o termo

“forma” ao inves de “pessoa” pois, aos ouvidos modernos, a palavra pessoa

inevitavelmente implica “personalidade” e Deus tem apenas uma personalidade. Se

Jesus Cristo fosse uma outra personalidade, diferente do Pai, ele nao poderia ser a

revelação do Pai. De acordo com Barth, Pai, Filho e Espirito Santo sao formas divinas

de ser que existem eternamente dentro da unidade absoluta de Deus.

Deus como “aquele que ama em liberdade”

Apesar da doutrina da Trindade ser o centro e o coracao de sua doutrina sobre

Deus, Barth dedicou a maior parte de um volume inteiro aos atributos ou perfeicoes do

ser de Deus (A Dogmática da Igreja 2/1). Ele definiu o Ser de Deus como “Aquele que

Ama em Liberdade” e dividiu as perfeicoes divinas em duas categorias, as perfeicoes do

amor divino e as perfeicoes da liberdade divina. Essa marca substituia a tradicional

dualidade divina de imanencia e transcendencia.

Barth afirmava que a liberdade e o amor de Deus devem ser igualmente

enfatizados e equilibrados a fim de se fazer justica ao Deus de Jesus Cristo. O amor de

Deus e sua livre escolha de criar a comunhao entre os seres humanos e ele proprio

atraves de Jesus Cristo.33 Deus deseja ser nosso e quer que sejamos dele.34 Isto se

revela sobretudo na graca de Deus ao identificar-se com a humanidade pecaminosa na

cruz de Jesus Cristo: “O Caminho do Filho de Deus para dentro do Pais Distante”.35 As

perfeicoes que expressam esse grande amor de Deus sao santidade, misericordia,

retidao, paciencia e sabedoria. Sem de modo algum qualificar o ser de Deus como amor,

Barth prosseguiu enfatizando a liberdade desse amor. Enquanto o amor de Deus pelo

mundo e real e eterno, ele nao e necessario. Deus continuaria sendo amor mesmo que

ele nao optasse por amar o mundo. Barth estava claramente pensando na teologia

liberal, especialmente naquela influenciada por Hegel, quando advertiu: “Se nao

tivermos cuidado nesse ponto, acabaremos inevitavelmente roubando de Deus a sua

divindade”. Deus ja possuia amor perfeito e comunhao em si mesmo - em sua existencia

triuna - antes de seu amor pelo mundo e comunhao com ele e independente desse

amor.39 Barth argumentava que e so assim que se pode evitar o panteismo e o amor de

Deus pode ser verdadeiramente gracioso. Se Deus precisasse do mundo como objeto do

seu amor, entao esse amor nao seria resultado de graca pura e o mundo tornar-se-ia

necessario para o ser de Deus. Deus seria privado de sua divindade.

Page 30: Esboço Teologia Contemporânea

Indo contra toda a corrente de pensamento liberal sobre Deus desde

Schleiermacher e Hegel, Barth afirmava a transcendencia absoluta de Deus sobre o

mundo, considerando-a em termos relacionados a liberdade de Deus.

A doutrina da eleição

De acordo com Barth, a cruz de Jesus Cristo e o acontecimento supremo da

entrada de Deus na historia da humanidade - o Filho de Deus vai para o “pais distante”

para tomar sobre si a ira e a rejeicao divinas que a humanidade tanto merecia. Assim,

Jesus Cristo e o homem eleito e rejeitado (maldito), sendo que todos os seres humanos

estao incluidos nele e sao por ele representados.

Como sua teologia de um modo geral, a doutrina da eleicao apresentada por

Barth e “cristomonistica”. Para ele, Jesus Cristo e o unico objeto da eleicao e da

maldicao de Deus. Nenhum decreto terrivel de predestinacao dupla divide a humanidade

em salva e maldita. Pelo contrario, todos estao incluidos em Jesus Cristo, que e tanto o

Deus que elege como o ser humano eleito por ele, e os beneficios de sua obra salvadora

estendem-se sobre todos eles.

Barth deixou absolutamente claro que Jesus Cristo e a unica pessoa

verdadeiramente rejeitada e que, nele, todos os seres humanos sao eleitos.49 As pessoas

podem tentar viver uma existencia perversa de rejeicao a Deus, mas “seus desejos e

intentos foram anulados por Deus antes do comeco do mundo... o que esta reservado a

humanidade e a vida eterna em comunhao com Deus”.

Avaliação

A forca do metodo teologico de Barth esta em sua total dependencia da

revelacao. Por causa disso, sua teologia e verdadeiramente “teologica”, livre da

dependencia de sistemas filosoficos ou modismos culturais e intelectuais.

No geral, portanto, o metodo teologico de Barth preserva a autonomia da

teologia sobre as outras disciplinas. A teologia continua sendo a ciencia irredutivel da

Palavra de Deus.

A maior forca da teologia tambem e a fonte da maior fraqueza do metodo

teologico de Barth, uma fraqueza que surge do extremo ao qual ele leva a autonomia

teologica. Sua recusa a todo tipo de justificacao racional da verdade da revelacao

conduz a uma teologia que vai alem da autonomia e acaba no isolamento. Se nao ha

Page 31: Esboço Teologia Contemporânea

pontes inteligiveis ligando a teologia com a experiencia humana comum ou com as

outras disciplinas, de que maneira a fe crista pode ser algo mais do que esoterismo para

aqueles que estao do lado de fora? Uma coisa e Barth rejeitar a forma como a teologia

liberal reduzia a fe crista aquilo que podia ser antecipado dentro dos horizontes da

experiencia humana; mas outra coisa bem diferente e eliminar qualquer ligacao entre

crenca e experiencia.

Um segundo ponto controverso do metodo teologico de Barth e seu suposto

cristomonismo. Alguns dos criticos de Barth usaram esse termo para descrever a

concentracao exagerada sobre a figura de Jesus Cristo, presente ao longo de toda a sua

teologia. Barth nao apenas fez de Jesus Cristo o centro e o coracao de sua teologia,

tomando-a “cristocentrica”, como tambem restringiu o conhecimento de Deus aquilo

que e revelado em Cristo. Hans Urs von Balthasar descreveu o pensamento de Barth

como uma ampulheta intelectual “em que Deus e o homem encontram-se no centro

atraves de Jesus Cristo. Nao ha nenhum outro ponto de encontro na parte superior ou

inferior da ampulheta”. O problema dessa posicao e que ela conduz a uma negacao de

qualquer revelacao geral, daquela forma de revelacao que parece constituir o cerne de

toda a argumentacao de Paulo no primeiro capitulo de Romanos.

Emil Brunner: transcendência no encontro entre o divino e o humano

A vida e a carreira de Brunner

Emil Brunner nasceu dois dias apos o Natal de 1889, em Zurique, na Suica.

Cresceu e foi educado dentro da tradicao reformada de Zwingli e Calvino e recebeu o

doutorado em teologia pela Universidade de Zurique em 1913. Passou a maior parte de

sua vida lecionando teologia na mesma universidade, onde ocupou uma catedra de 1924

ate sua aposentadoria em 1955. Lecionou tambem na Universidade de Princeton,

durante um ano (1938-1939), e na Universidade Crista de Toquio, de 1953 a 1955. Ele

pregava com frequencia na grande catedral de Zurique, onde Ulrich Zwingli havia dado

seus poderosos sermoes durante a Reforma, e tanto suas aulas quanto sua casa estavam

sempre de portas abertas para alunos estrangeiros, muitos deles americanos. Um grande

numero de teologos dos Estados Unidos foi a Zurique e, atraves deles, sua influencia

sobre a teologia americana continuou ate os anos 60 e 70. Brunner morreu em sua

cidade natal, Zurique, em abril de 1966, no fim de uma longa enfermidade que havia

afetado seriamente sua capacidade de trabalhar apos sua aposentadoria.

Page 32: Esboço Teologia Contemporânea

Brunner foi um autor muito proficuo, tendo escrito diversos tratados e artigos

sobre teologia, etica social e vida crista. Estes incluem The Mediator [O Mediador], um

longo tratado sobre a pessoa e a obra de Cristo; Man in Revolt [Homem em Revolta],

uma antropologia crista; The Divine Imperative [O Imperativo Divino], uma etica crista

sistematica e Revelation and Reason [Revelacao e Razao], um estudo do metodo

teologico. Mais para o fim de sua carreira, ele compilou o trabalho de toda a sua vida

em Dogmatics [A Dogmatica], uma obra de tres volumes. Esses volumes contem o seu

pensamento maduro sobre os mais importantes credos, bem como muitas das

controversias da teologia do seculo 20. Um aspecto notavel e seu constante esforco no

sentido de distinguir sua propria teologia daquela do homem sob cuja sombra ele lutava

por reconhecimento - Karl Barth.

Preocupações teológicas

Quase todo teologo e influenciado pela preocupacao com o rumo incorreto que

ele ve a teologia tomar. Fica claro que a principal preocupacao de Brunner era ir contra

o movimento da teologia do seculo 19 e comeco do seculo 20 em direcao a uma especie

de imanencia que, nas palavras de Paul Jewett, “considera Deus e o homem metafisica,

epistemologica e eticamente continuos, de forma que o homem possa chegar ao

verdadeiro conhecimento de Deus dentro da estrutura de suas proprias capacidades

inatas”.1 Uma teologia de imanencia como essa foi epitomada nos varios ramos do

pensamento hegeliano e ficou implicita em toda a metodologia teologica do liberalismo

protestante classico na virada do seculo.

Apesar de ser apenas mencionado ocasionalmente, Schleiermacher parece ter

sido alvo de grande parte do desprezo de Brunner como o paradigma dos teologos

cristaos que transformam o conhecimento sobre de Deus numa capacidade natural da

humanidade. A teologia de Brunner e um ataque continuo a todas as tentativas de se

captar o ser de Deus com a razao natural e de modo independente da revelacao ou

transformar qualquer filosofia humana em uma estrutura necessaria para a compreensao

da Palavra de Deus. Ele repetiu Tertuliano, Pascal e Kierkegaard ao afirmar: “Se Deus e

aquilo.... que o Teismo afirma que Ele e, entao Ele nao e o Deus da revelacao biblica, o

Senhor soberano e Criador, Santo e Misericordioso. Mas, se Ele e o Deus da revelacao,

entao Ele nao e o Deus do Teismo filosofico.”

Alem de sua luta contra a teologia da imanencia, Brunner encarou mais dois

oponentes: a “ortodoxia” e Karl Barth. Como acontece com frequencia entre os

Page 33: Esboço Teologia Contemporânea

pensadores, Brunner viu em seus aliados mais proximos os seus maiores inimigos. Em

muitos sentidos, sua teologia e paralela aquela dos teologos protestantes ortodoxos.

Ainda assim, ele os condenava por identificarem as palavras das Escrituras com

a Palavra de Deus. Conforme mostraremos mais adiante, Brunner nunca foi tao

veemente e nem tao injusto quanto nas suas criticas em relacao a doutrina das Escrituras

da ortodoxia. Ele nao possuia nenhuma hostilidade pessoal contra Barth, que vivia a

poucos quilometros de sua casa e cuja teologia acabou por eclipsar a sua. Porem, Barth

nunca foi tao veemente e nem tao injusto quanto em seu ataque a doutrina de Brunner

acerca da revelacao no livreto Nein! (Nao!).

Depois de suas desavencas na metade dos anos 30, Brunner e Barth trataram-se

com frieza ate os anos 60, quando estudantes americanos organizaram um encontro

entre os dois. Ao longo de A Dogmática, Brunner enfatizou de modo um tanto

exagerado o quanto discordava de Barth. Ate seus ultimos dias, ele permaneceu

extremamente critico em relacao a doutrina de Barth acerca da eleicao, que, para ele,

acabaria inevitavelmente no universalismo, tornando desnecessaria uma decisao pessoal

a favor ou contra Jesus Cristo.

Personalismo Bíblico

A teologia de Brunner nao deve ser definida em termos daquilo a que ele se

opunha. De um modo geral, suas preocupacoes com o rumo que os teologos estavam

tomando foi o que o direcionou na enfase que escolheu dar ao seu trabalho. Porem, sua

contribuicao a teologia contemporanea tem seu lado positivo e original. Essa comeca

quando ele identifica a revelacao como um “Encontro Eu-Tu” que acontece entre o

individuo e Deus. Ao apresentar aquilo que ele acreditava ser a definicao biblica da

verdade da revelacao, Brunner tomou emprestadas diversas ideias de dois pensadores

existencialistas do seculo 20: Ferdinand Ebner e Martin Buber.

Mas foi o teologo e filosofo judeu Martin Buber que influenciou Brunner mais

diretamente em sua “descoberta” do conceito biblico de verdade como um encontro

entre o divino e o humano. Buber desenvolveu essa visao de modo mais completo em

seu livro Eu e Vós, e Brunner explicou o seu significado para a doutrina crista da

revelacao em A Verdade como um Encontro.

A fim de compreender a natureza da revelacao de modo consoante com o

pensamento de Buber, Brunner argumentava que e preciso, antes de mais nada, fazer-se

Page 34: Esboço Teologia Contemporânea

uma distincao entre a “verdade-objeto” e a “verdade-Vos”. A primeira e o

conhecimento adequado dos objetos do mundo, enquanto a segunda refere-se ao mundo

das pessoas. Existe uma diferenca fundamental entre as pessoas e os objetos; o nao

reconhecimento dessa diferenca e de suas consequencias para todas as areas da vida e a

base dos grandes erros da filosofia.

Consequentemente, desenvolvendo o pensamento de Ebner e Buber, Brunner

afirmava que qualquer teologia que trate o conhecimento de Deus de maneira analoga

ao conhecimento de objetos (como, por exemplo, planetas distantes ou particulas

subatomicas) e fundamentalmente equivocada. A propria essencia do Cristianismo esta

na ocorrencia do encontro entre Deus e a humanidade. O conhecimento de Deus e

pessoal - no sentido de que transcende o plano dos objetos e o dualismo sujeito/objeto

existente no conhecimento desses objetos – exigindo uma decisao pessoal, uma resposta

e um compromisso.

De acordo com Brunner, pelo fato de Deus ser pessoal, a verdade e o

conhecimento sobre ele devem estar de acordo com o “Tu”. Consequentemente, a

verdade crista deve ser a verdade vista como um encontro, uma verdade que acontece

durante a crise gerada pelo encontro entre Deus e a pessoa humana, em que Deus fala e

a pessoa responde. Somente essa verdade pode fazer justica a liberdade e

responsabilidade das pessoas; somente essa verdade preserva o centro do evangelho, a

saber, o relacionamento pessoal com Deus: “Essa verdade chega ate o homem sob a

forma de uma convocacao pessoal; ela nao e fruto da reflexao; portanto, desde o inicio,

ela o torna diretamente responsavel.” A partir de seu conceito de revelacao como um

encontro Eu-Tu, toda a abordagem teologica de Brunner passou a ser chamada de

“personalismo biblico”.

Brunner acreditava que grande parte dos problemas da teologia moderna

originou-se de um tipo de pensamento que colocava o sujeito e o objeto do

conhecimento um contra o outro, e depois subordinava um ao outro. Esse modelo de

conhecimento foi tirado da esfera dos objetos impessoais. Como resultado disso, as

ciencias naturais tornaram-se a medida da verdade e a razao autonoma transformou-se

no unico metodo apropriado de conhecer a realidade. Mas isso naturalmente leva a uma

distorcao da fe, fazendo dela um tipo de conhecimento objetivo quer sobre as doutrinas,

quer sobre as verdades eternas. Ele argumentava que, tanto num caso como no outro, o

carater pessoal da fe e da revelacao e violado.

Page 35: Esboço Teologia Contemporânea

Revelação como um encontro

De acordo com Brunner, palavras e proposicoes sobre Deus nao podem ser

consideradas revelacao, pois, inevitavelmente, transformam Deus em um objeto e

acabam caindo na esfera do “conhecimento do objeto”. Ele afirmava: “Nenhum

discurso, nenhuma palavra e adequada para o misterio de Deus como Pessoa.” A

revelacao autentica, portanto, e sempre um acontecimento pessoal, um relacionamento

de encontro que supera qualquer barreira sujeito-objeto e comunica verdadeiramente o

ser de Deus a pessoa humana: “A revelacao nunca e apenas a mera comunicacao de

conhecimento, mas sim uma comunhao vivificante e renovadora.”

O tipo de revelacao que Brunner enfatizava acontece em dois momentos:

historicamente, na encarnacao de Deus em Jesus Cristo e, no tempo presente, no

testimonium spiritus internum, o testemunho interior do Espirito Santo sobre Jesus

Cristo que toma Cristo um contemporaneo do crente.

O ponto mais importante da doutrina de Brunner acerca da revelacao e que,

nela, Deus nao comunica algo sobre si mesmo, ele comunica o seu proprio

ser.14

Uma critica obvia e repetida com frequencia sobre essa visao e de que ninguem

pode receber uma comunicacao de uma pessoa sem saber algo sobre a pessoa. E

possivel a revelacao ser completamente nao-proposicional?15 Brunner concordava que

o conhecimento proposicional de Deus surge natural e necessariamente do encontro

entre o divino e o humano, que e a propria revelacao. Porem, ele afirmava que tal

conhecimento proposicional deve ser diferenciado da revelacao em si. Ele declarava que

“a palavra falada e uma revelacao indireta, quando serve de testemunha para a

verdadeira revelacao: Jesus Cristo, a manifestacao pessoal de Deus, Emanuel”.16 E “a

Palavra que foi formulada no discurso humano agora e apenas revelacao num sentido

indireto; e revelacao sob a forma de testemunho Dele”.

O que Brunner estava tentando evitar era a heresia do “Teologismo” – colocar a

doutrina ou teologia no lugar da fe pessoal.18 Assim, ele afirmava que a fe pessoal que

surge do encontro Eu-Tu com Deus atraves de Jesus Cristo da origem a uma reflexao e a

palavras sobre Deus. Mas estas nao devem jamais ser confundidas com a revelacao em

si; do contrario, a crenca nessas palavras pode acabar por substituir a verdadeira fe.

Mesmo o testemunho dos apostolos, indispensavel a fe, nao e objeto da fe em si. A

Page 36: Esboço Teologia Contemporânea

doutrina, que e a reflexao racional sobre o testemunho e os ensinamentos dos apostolos

esta ainda mais distante da essencia da fe. A doutrina esta na esfera da “verdade-objeto”

e nao da “verdade-Vos”.

Consequentemente, ela nao pode ser o objeto da fe e a crenca nela nao pode

substituir a verdadeira fe. Brunner afirmava, porem, que esses instrumentos secundarios

de revelacao tem papel indispensavel no exercicio da fe. Diante disso, onde se situa a

Biblia? Brunner oferecia um posicionamento duplo em relacao as Escrituras. Por um

lado, elas sao testemunho absolutamente indispensavel de Jesus Cristo. Portanto, sao

tanto fonte de fe quanto de teologia.

Mas, por outro lado, as Escrituras nao sao verbalmente inspiradas por Deus e

nem proposicao infalivel da Palavra a humanidade. Brunner recusava-se

terminantemente a identificar a revelacao com as palavras das Escrituras. As Escrituras

sao um veiculo singular e instrumento de revelacao no sentido de que contem o primeiro

testemunho da revelacao de Deus em Jesus Cristo.20 Porem, isso significava para ele

que nem tudo nas Escrituras tem igual valor ou mesmo carater verdadeiro.

A doutrina da inspiracao foi alvo especifico dos ataques de Brunner. Ele se

queixava dela por causa de seus supostos “resultados desastrosos”, incluindo a aridez

intelectual e confusao entre revelacao e “doutrinas reveladas”.22 Todavia, tinha em alta

consideracao a autoridade das Escrituras como testemunho indispensavel da revelacao

original - Jesus Cristo - e como instrumento de revelacao - o encontro Eu-Tu com Deus

em que o crente se torna contemporaneo de Jesus Cristo. Brunner afirmava que, em

decorrencia dessa funcao das Escrituras, a Biblia e a base e a norma para a doutrina

crista.

Depois de fazer uma avaliacao tao positiva da autoridade da Biblia, ao que

parece, Brunner preocupou-se com o fato de que talvez tivesse chegado perto demais de

uma doutrina ortodoxa tradicional das Escrituras, arriscando com isso, coloca-las em pe

de igualdade com a revelacao. Assim, ele voltou-se para Jesus Cristo como a unica e

verdadeira norma e autoridade para a fe crista, relegando a um segundo plano tanto o

testemunho apostolico quanto a Biblia que o contem, sendo, portanto, autoridades

relativas abertas a criticas e correcoes.

Brunner desejava evitar qualquer traco de imanencia em sua doutrina da

revelacao. Por outro lado, queria eliminar a imanencia da revelacao no conhecimento

Page 37: Esboço Teologia Contemporânea

natural e na experiencia humana e, ao mesmo tempo, preservar a transcendencia dessa

revelacao, igualando-a a singular Palavra de Deus em Cristo, ao testemunho apostolico

sobre Cristo e ao encontro Eu-Tu entre o individuo e Deus. Isso o levou a uma completa

e inequivoca rejeicao de todo o “conhecimento natural de Deus”.

Paul King Jewett, que estudou com Brunner em Zurique, argumentou que a

doutrina de Brunner acerca da revelacao e das Escrituras e fundamentalmente

incoerente.25 Ao inves de conseguir manter a autoridade das Escrituras separada da

doutrina da inspiracao verbal, Brunner simplesmente ia de um lado para o outro,

variando entre uma forma de “teopneustia” (inspiracao divina) e um abandono total da

autoridade escrituristica.

O proprio Brunner, por vezes, parecia reconhecer essa dificuldade. Ele admitia a

confissao dos discipulos de que Jesus e o Filho de Deus como sendo o testemunho do

Espirito de Deus em forma de palavras humanas.28 Ou seja, ate mesmo para Brunner, a

confissao “Tu es o Cristo, o Filho do Deus vivo” e a Palavra de Deus sendo falada por

seres humanos; ela e testemunho divinamente inspirado.29 Uma vez que Brunner

admitiu esse caso unico de identidade entre o discurso humano e a Palavra de Deus,

perdeu-se definitivamente a “separacao dimensional” entre a verdade proposicional e a

revelacao divina.30 Brunner escorregou nesse ponto, pois ate mesmo ele reconheceu

que, sem a presenca de um certo elemento proposicional, a revelacao divina nao pode

servir de “fonte e norma” da doutrina crista. A revelacao fica sendo apenas uma

experiencia subjetiva.

Apesar de ter consciencia da questao, Brunner continuou a insistir na natureza

nao-proposicional da revelacao e na ausencia de identificacao entre a Palavra de Deus e

as palavras humanas dentro da Biblia. Assim, Jewett certamente estava certo quando

concluiu que “num gesto de vontade consciente, Brunner suspende o processo de

rompimento com a tradicao, quando esta a beira de abandonar completamente a

autoridade da Biblia”.

Controvérsias com Barth

Como mencionamos anteriormente, Brunner buscava distinguir sua propria

contribuicao a teologia da contribuicao de Barth, ao enfatizar duas importantes

diferencas: o lugar da “revelacao geral” e a doutrina de Deus, especialmente acerca da

eleicao e da predestinacao.

Page 38: Esboço Teologia Contemporânea

Brunner publicou um ensaio com o titulo “Natureza e Graca”, no qual

argumentava que Barth estava errado ao negar qualquer tipo de revelacao verdadeira de

Deus atraves da natureza pois:

... a Palavra de Deus nao poderia alcancar o homem que perdeu completamente sua consciencia de Deus. Um homem sem consciencia nao pode ser tocado pelo chamado “Arrependei-vos e crede no Evangelho”. Aquilo que o homem natural conhece sobre Deus, sobre a lei e sobre sua propria dependencia de Deus pode ser muito confuso e distorcido. Mas, ainda assim, e um ponto de contato necessario e indispensavel para a graca divina.33

Contrario a Barth, Brunner apresentou uma perspectiva da revelacao geral que

para ele era plenamente coerente com o Novo Testamento e com os reformadores

protestantes, especialmente Calvino e Lutero. Ele rejeitou qualquer ideia de

“conhecimento natural de Deus” no sentido de provar a existencia de Deus, mas, ao

mesmo tempo, afirmou que a imagem de Deus na humanidade - a capacidade que o ser

humano tem de receber a Palavra de Deus - permanecia apesar da queda.34 Ele

acreditava que o reconhecimento de tal consciencia minima de Deus e indispensavel

para a missao da igreja e da teologia, pois e o que as leva a uma articulacao inteligivel

da fe. Apesar dos pensamentos e questoes humanas nao poderem determinar o conteudo

do evangelho que a igreja proclama, eles devem ser levados em conta para determinar

de que forma sera feita essa proclamacao.

Alem disso, tambem acusou Brunner de negar implicitamente a salvacao pela

graca e somente atraves da fe e de estar voltando a teologia catolica ou (pior ainda!) a

teologia neoprotestante (liberal) da salvacao, ao defender a cooperacao entre a graca e o

esforco humano.

Brunner desenvolveu sua propria doutrina da eleicao divina em consciente

oposicao tanto a Barth quanto a doutrina classica de predestinacao dupla de Calvino. Ele

afirmava que o problema em ambos os casos era que, ao especularem acerca das origens

da graciosa eleicao de Deus, eles foram alem de qualquer coisa afirmada ou implicita na

revelacao divina.44 Brunner rejeitava qualquer “teoria logicamente satisfatoria” da

eleicao45, favorecendo aquilo que ele considerava ser uma visao completamente

dialetica e, portanto, biblica.

RUDOLF BULTMANN: A TRANSCENDENCIA DO Kerygma7

Ao contrario de outros grandes articuladores da neo-ortodoxia, Rudolf Bultmann

nao era, em primeiro lugar, um teologo sistematico, mas sim um estudioso do Novo

Page 39: Esboço Teologia Contemporânea

Testamento. Sua principal preocupacao era tornar a fe crista e biblica compreensivel a

mentalidade moderna. Ele procurou alcancar esse objetivo empregando uma

interpretacao existencialista do Novo Testamento, que ve a mensagem do antigo

documento como a Palavra de Deus dirigida ao individuo e pedindo uma resposta de fe

individual.

Apesar de certas diferencas entre eles, Bultmann considerava-se um aliado de

Karl Barth no desafio neo-ortodoxo ao liberalismo. Juntamente com Barth, ele

acreditava que a teologia do seculo 19 havia feito do ser humano - ao inves de Deus - o

seu centro.2 Assim como Barth, ele declarava que podemos conhecer a Deus apenas em

resposta a revelacao divina, que chega ate nos atraves da Palavra de Deus, o kerygma,

dirigida a cada ser humano. Ao mesmo tempo, ele foi alem de Barth. Seguindo as ideias

do filosofo existencialista Martin Heidegger, Bultmann interpretou essa mensagem

exclusivamente em termos de condicao humana, que ele via caracterizada pela

ansiedade e ate mesmo pelo desespero.

A carreira de Bultmann e seu cenário

Rudolf Bultmann era herdeiro de uma grande tradicao eclesiastica.4 Filho mais

velho de um pastor luterano na provincia de Oldenburg, no norte da Alemanha, seus

avos paternos foram missionarios na Africa e seu avo materno tinha sido pastor na

pietista regiao sul da Alemanha. Bultmann foi educado nas melhores universidades da

Alemanha - Tubingen, Berlim e Marburg. Sua carreira de professor o levou a Breslau e

Giessen, antes de voltar a Marburg em 1921, onde trabalhou ate aposentar-se, em 1951.

Ao contrario de muitos dos seus colegas, Bultmann nao foi forcado a deixar seu

cargo de professor durante o regime ditatorial de Hitler. Como o proprio Bultmann

sugeriu, talvez isso tenha acontecido, em parte, por ele nunca ter direta ou ativamente

participado de qualquer assunto relacionado a politica,5 apesar de falar contra certos

aspectos do programa nazista.6

A fé e o Jesus Histórico

Um primeiro problema que se apresentava diante dos estudiosos do Novo

Testamento no final do seculo 19 era a questao do Jesus historico.

Essa mudanca de ponto de vista criou uma dificuldade para a teologia: qual e

normativo, o Cristo proclamado nos textos do Novo Testamento ou o verdadeiro Jesus

historico por tras desses textos? Tomando por base o legado de Schleiermacher, o

Page 40: Esboço Teologia Contemporânea

liberalismo havia optado pela segunda alternativa, determinando que o Jesus historico

era a figura normativa para a teologia, especialmente a personalidade de Jesus que, para

eles, podia ser reconstruida a partir de seus ensinamentos, conduta, desenvolvimento

interior e das impressoes de seus contemporaneos.7 Dentro dessa visao, os estudiosos

lancaram o que passou a ser chamado de “busca pelo Jesus historico”, uma tentativa de

investigar o que havia por tras dos Evangelhos para determinar exatamente o que Jesus

havia dito e feito.

Com a chegada do final do seculo, porem, alguns estudiosos comecaram a

questionar essa proposta. Em sua obra monumental, A Busca do Jesus Histórico (1906),

Albert Schweitzer conclui que a busca havia sido um grande fracasso. A pessoa de Jesus

que os estudiosos haviam reconstruido a partir dos textos nao passava de um reflexo da

imagem que eles proprios possuiam desse Jesus. Ao contrario dos retratos liberais,

Schweitzer afirmava que o verdadeiro Jesus da Historia era um pregador apocaliptico

que proclamava que o fim do mundo estava proximo. Como tal, ele nao tinha ligacao

com a humanidade moderna e, portanto, sua mensagem nao servia para os nossos dias.

Martin Kahler tomou um rumo um pouco diferente do de Schweitzer. Em O

Chamado Jesus Histórico e o Cristo Histórico e Bíblico (1896), ele argumentava que a

chave para o significado do Novo Testamento nao surge atraves da Historia que ele

retrata e do metodo historico de estudo, mas sim da mensagem proclamada pela igreja.

Ele afirmava que “esse verdadeiro Cristo e o Cristo que e pregado”.8

Bultmann entrou nessa discussao tomando o lado de Kahler e, em certo sentido,

radicalizando a posicao dele. Nesse contexto, ele e conhecido por aplicar de maneira

extremamente minuciosa a tecnica da “critica a forma” no estudo dos Evangelhos.

Como estudioso do Novo Testamento, Bultmann chegou, em grande parte, a conclusoes

negativas sobre o que podia se saber sobre o Jesus historico. Ele afirmava que o

conteudo dos Evangelhos apresentava um Jesus que ja havia sido encoberto pelas

formas de pensamento do contexto helenista em que os livros tinham sido escritos. Na

verdade, o Novo Testamento nao se preocupa, de fato, com o Jesus da Historia. Ele se

concentra no Cristo da fe.

Para Bultmann, porem, essa falta de conhecimento sobre o Jesus historico nao

era um detrimento para a fe crista. Ele argumentava que, ao inves do Jesus historico, e o

kerygma ou a mensagem da igreja primitiva que e essencial a fe. Essa conclusao surgiu

a partir de duas consideracoes. De acordo com Bultmann, ate mesmo o Novo

Page 41: Esboço Teologia Contemporânea

Testamento, na posicao de documento de proclamacao da igreja primitiva, concentra-se

no Cristo do kerygma e nao nos fatos relativos ao Jesus historico. Alem disso, essa

conclusao e coerente com a visao de Bultmann sobre a natureza da fe, visao esta

construida sobre os elementos existencialistas. A fe nao surge a partir dos resultados da

pesquisa historica. A questao principal da fe nao e a capacidade de se adquirir

conhecimento sobre o Jesus historico, mas sim um confronto pessoal com Cristo no

presente. Como resultado disso, o Jesus historico tem pouca relevancia para a fe. A fe

nao e o conhecimento de fatos historicos, mas a resposta pessoal ao Cristo com o qual

nos deparamos na mensagem do evangelho, a proclamacao do agir de Deus em Jesus.

Desse modo, Bultmann afirmava que estava aplicando ao universo do

conhecimento e do pensamento o tema da justificacao pela fe de acordo com Lutero. Ele

dizia que sua proposta “destroi todo anseio por seguranca”, quer seja baseada nas boas

obras ou no “conhecimento objetificante”. Nao temos a nosso dispor qualquer coisa

sobre a qual possamos construir nossa fe; estamos, por assim dizer, “dentro de um

vacuo”.9 Nessa situacao, a fe so pode ser uma dadiva da graca de Deus, vinda ate nos

no kerygma.

Porem, isso nao significa que as ocorrencias do passado nao tem nenhuma

consequencia para a fe.10 Bultmann nao defendia que o Cristianismo podia existir sem

o acontecimento passado da cruz, por exemplo.11 O que ele se recusava a afirmar era

que a fe pode ser ancorada na pesquisa historica, pois nenhuma atividade desse tipo

pode provar que Deus agiu em um acontecimento passado. Na verdade, a Historia forma

um circulo continuo de causa e efeito. Portanto, o agir de Deus nos acontecimentos

historicos nao pode ser determinado atraves da pesquisa historica, mas se revela apenas

aos olhos da fe.

Mantendo-se firme no seu ceticismo radical quanto aos possiveis resultados da

pesquisa historica, Bultmann afirmava que o Jesus historico em si nao deve ser visto

como o centro da revelacao de Deus. Nesse ponto, ele permaneceu um representante fiel

da compreensao neo-ortodoxa de revelacao como kerygma. Argumentava que a

revelacao de Deus esta no encontro presente entre o individuo e a pregacao acerca de

Cristo. A unica coisa importante sobre os acontecimentos passados e o fato de que, em

Jesus, Deus agiu de modo redentor. Para Bultmann, quaisquer detalhes sobre o agir de

Deus que fossem descobertos atraves de uma pesquisa sobre a vida de Jesus eram

irrelevantes para a fe. Por esse motivo, ele situou a propria pregacao de Jesus dentro do

Page 42: Esboço Teologia Contemporânea

contexto do judaismo e nao do Cristianismo primitivo,12 fazendo a conhecida assercao:

“A mensagem de Jesus e um pressuposto para a teologia do Novo Testamento e nao

uma parte dessa teologia em si.”13

Escatologia

Um outro assunto tratado por Bultmann foi o da escatologia. O seculo 19 foi

uma epoca de otimismo. Apesar de reconhecerem a presenca dos elementos

apocalipticos entre os documentos do Novo Testamento (como, por exemplo, a

expectativa de um final catastrofico para o mundo), os teologos do movimento liberal

consideravam essas declaracoes apendices pouco importantes da verdadeira mensagem

de Jesus.

Com a chegada do fim do seculo, esse aspecto do metodo liberal tambem passou

a ser questionado. Os estudiosos redescobriram a centralidade do elemento apocaliptico

no Novo Testamento. Duas figuras importantes para essa redescoberta foram Johannes

Weiss e Albert Schweitzer, que argumentaram de modo convincente que os temas

apocalipticos nao eram meramente elementos perifericos da proclamacao de Jesus; na

verdade, o enfoque de sua mensagem era completamente apocaliptico ou escatologico.

De acordo com Schweitzer, porem, essa descoberta serviu para tirar toda a credibilidade

do Novo Testamento, no sentido de que seu conteudo central - a crenca na iminencia do

fim do mundo - havia se mostrado falso.

Bultmann desenvolveu o seu material, partindo das descobertas de Weiss e

Schweitzer. Ele concordava que Jesus e a comunidade crista primitiva aguardavam a

vinda proxima do reino de Deus, uma esperanca que nao se realizou.

Mitologia

A carreira de Bultmann desenvolveu-se durante uma epoca em que os estudiosos

biblicos e teologos debatiam-se com um terceiro problema, a mitologia.

Varios teoricos, incluindo Bultmann, afirmavam que o Novo Testamento refletia

o uso de mitos e religioes de misterios – especialmente o mito da vinda de um deus

redentor - para descrever a obra de Jesus Cristo. A teologia liberal havia reagido a essa

descoberta, defendendo a eliminacao da mitologia, para que fosse possivel, entao,

visualizar as verdades eternas presentes em meio aos mitos. Bultmann rejeitou esse

procedimento. Ele afirmava que era impossivel remover os mitos sem perder o kerygma,

a verdadeira mensagem do Novo Testamento. Argumentava que a teologia liberal havia

Page 43: Esboço Teologia Contemporânea

perdido essa mensagem ao reduzir o kerygma a principios de religiao e etica,

transformando, assim, o Cristianismo numa religiao nao-historica. Bultmann defendia,

portanto, nao a remocao, mas a interpretacao do mito, a fim de visualizar o verdadeiro

sentido dos textos apresentados nessa forma literaria. A esse processo ele chamava

desmitologização. Ele nao desejava livrar os textos de seus elementos miticos, mas sim

compreender esses elementos corretamente, isto e, de acordo com o seu significado

existencial fundamental.16

Bultmann dizia que tal reinterpretacao era necessaria por causa do grande

abismo que separava a visao de mundo em que os textos antigos haviam sido escritos e

a mentalidade moderna.17 Ele definia o mito como uma forma de pensamento que

representa a realidade transcendente em termos deste mundo. Mas essa definicao podia

levar prontamente a conclusao de que qualquer discussao sobre Deus pertence a esfera

dos mitos, um ponto de vista que Bultmann refutava com firmeza. Para evitar essa

possibilidade, ele ofereceu uma outra compreensao de mito, usando o termo para referir-

se a qualquer expressao que possa comprovadamente ser excluida pelo enfoque na

ciencia natural caracteristica da mentalidade moderna.18

De acordo com Bultmann, uma desmitologizacao adequada compreende a

terminologia mitologica. O mito e problematico nao apenas porque torna a mensagem

crista inaceitavel para a mente moderna, mas porque tambem distorce a propria

mensagem, impedindo um encontro verdadeiro com o kerygma. Bultmann argumentava

que o processo de desmitologizacao e justificado, pois facilita a tarefa do evangelho de

falar as pessoas nos dias de hoje. A preocupacao maior de Bultmann era de que cada

ouvinte do evangelho fosse confrontado existencialmente com a realidade do Deus

transcendente. A proposta de desmitologizacao e vital, pois facilita esse encontro.

Bultmann acrescentava ainda que a desmitologizacao tem precedencia biblica. Ja

no proprio Novo Testamento nota-se o desenvolvimento desse processo, especialmente

nos escritos de Paulo e Joao.

Hermenêutica

O problema da mitologia tratado por Bultmann estava relacionado a uma questao

teologica correspondente, a hermeneutica.

Ele considerou ingenua essa visao, no sentido de que ela supunha haver dentro

do texto principios eternos e universais que estavam la, esperando para serem

Page 44: Esboço Teologia Contemporânea

descobertos por meio da hermeneutica. Bultmann, pelo contrario, argumentava que a

relacao entre o leitor e o texto era muito mais complexa. Ele afirmava que as perguntas

que trazemos conosco ao nos posicionarmos diante do texto e que determinam as

respostas que receberemos dele e e nossa relacao com o assunto que determina nossas

questoes.20

Bultmann dizia que o abismo entre o texto antigo e o mundo moderno podia ser

transposto somente ao empregarmos um pre-entendimento adequado em nossa busca

exegetica. Para ele, o que liga o texto antigo ao leitor moderno e a questao da existencia

humana.

Bultmann conclui que, por esse motivo, o existencialismo oferece o pre-

entendimento apropriado para a leitura dos documentos biblicos, pois ele contem “a

perspectiva e os conceitos adequados para a compreensao da existencia humana”.22 Ao

trazer a questao crucial da existencia humana para dentro dos textos, podemos ouvir a

Palavra de Deus dirigindo-se a nos atraves do kerygma biblico, confrontando-nos,

assim, com o Ser Transcendente.

A transcendência de Deus

A ultima questao para a qual Bultmann procurou uma resposta esta na doutrina

de Deus. Conforme vimos no capitulo anterior, a teologia do seculo 19 dava grande

enfase a imanencia de Deus. Nos primeiros anos de seu trabalho, Karl Barth lancou uma

campanha contra essa enfase, tomando por base o conceito de Kierkegaard de “distincao

qualitativa infinita” (Deus e qualitativamente diferente da criacao, de modo que a razao

filosofica nao e capaz de oferecer o conhecimento de Deus). Desse modo, Barth

reintroduziu o conceito de transcendencia de Deus. Bultmann juntou-se a Barth nesse

projeto. Na verdade, Bultmann procurou usar uma aplicacao radical e minuciosa da

ideia de transcendencia de Deus em todo o espectro do pensamento religioso.

Num certo sentido, porem, o conceito de transcendencia proposto por Bultmann

diferia daquele apresentado pelos documentos biblicos.

Ele argumentava que, contraria a concepcao grega de transcendencia divina

como algo atemporal - como uma mente oposta a materia e mundo sensorial - , a

transcendencia biblica refere-se a autoridade absoluta de Deus.24 Como resultado,

Bultmann apresentou uma visao existencial. Transcendencia significa que Deus esta

diante de nos no momento existencial da decisao, dirigindo-se a nos com sua Palavra e

Page 45: Esboço Teologia Contemporânea

confrontando-nos com o desafio de responder pela fe, criando desse modo a verdadeira

existencia. Essa compreensao de Deus, entretanto, significa que nao podemos, de forma

alguma, falar de Deus de modo objetivo, mas apenas em termos daquilo que ele faz em

nos.25 Deus e desconhecido quando visto a parte da resposta individual de fe a

revelacao divina em sua Palavra. Essa revelacao nao e a comunicacao de verdades

acerca de Deus, nao e um conjunto de conhecimentos, mas sim um acontecimento que

chama o individuo a responder. Assim, ele argumentava que nao podemos falar sobre

Deus - nao podemos falar em termos distantes, impessoais e objetivos - , podemos

apenas falar de Deus. Para Bultmann, qualquer discussao teorica sobre Deus e

impossivel, pois falar de Deus exige que estejamos face a face com ele. Do mesmo

modo, Cristo e a Palavra de Deus, nao um conjunto de ideias, mas Deus dirigindo-se ao

individuo.

As declaracoes teologicas so sao possiveis quando sao, ao mesmo tempo,

afirmacoes antropologicas.

Heidegger e o Novo Testamento

Heidegger deu a ele uma alternativa em relacao as ontologias tradicionais, que

ofereciam apenas o que ele chamava de visao “objetificada” da humanidade, ou seja,

que ve o homem em termos universais, focalizando o lugar que ele ocupa dentro da

natureza - e nao uma visao em termos de historicidade, em termos de conceitos que

focalizam cada ser humano como um individuo que determina sua propria

personalidade atraves de uma decisao pessoal.

Bultmann nao via o existencialismo exercendo uma influencia externa sobre a

teologia, mas sim refletindo o proprio cerne da mensagem do Novo Testamento.31

Os elementos do existencialismo

Os escritos de Heidegger forneceram varios conceitos a Bultmann, os quais ele

empregou com grande sucesso no desenvolvimento de sua proposta teologica. O

primeiro elemento existencialista de grande ajuda foi o proprio conceito de “existencia”.

Para Heidegger, a existencia nunca esta concentrada no geral ou no universal, mas

sempre no individual e pessoal, na pessoa como possuidora de capacidade de decisao.

Portanto, ele nao via a existencia humana de modo cientifico, mas sim existencialista,

tratando da existencia pessoal e das escolhas pessoais. Como resultado disso, a

existencia e um acontecimento que ocorre a cada momento - e nao um desenvolvimento

Page 46: Esboço Teologia Contemporânea

linear. Ela e determinada pela decisao que um individuo toma num determinado

momento. Dentro dessa visao, Heidegger fez uma distincao entre o ser do homem e o

ser de todos os objetos no mundo. Ao primeiro ele chamou de “existencia”, enquanto ao

segundo deu o nome de “existente”. 33 Por causa da influencia de Heidegger, a

dicotomia entre “existencia” e “mundo” e central a teologia de Bultmann.

Bultmann tambem desenvolveu a visao de Heidegger acerca da historicidade.

Ele afirmava que cada individuo e um ser historico. Isso significa que devemos ver cada

pessoa em relacao a Historia e nao em relacao a estrutura eterna da natureza. Mas, alem

disso, cada um e historico no sentido de que esta inserido em sua historia individual.

Dentro da linha de Heidegger, Bultmann argumentava que o importante sobre cada

individuo e a capacidade dessa pessoa responder aos acontecimentos que ocorrem ao

longo do curso de sua vida, que sao, na verdade, acontecimentos historicos. E essa

resposta, e nao uma essencia fixa, que determina o que o individuo e.34 Assim, a vida

deve ser vista como algo que surge nao do passado, mas sim do futuro e que e moldada

pelas decisoes pessoais.

Existência Autentica

Relacionada aos conceitos de existencia e historicidade, encontramos a

importante dialetica entre a existencia autentica e nao-autentica. De acordo com

Heidegger, ha dois modos de ser. As pessoas desenvolvem uma existência autêntica

sempre que aceitam o desafio de serem lancadas no mundo. Por outro lado, elas

desenvolvem uma existência não-autêntica sempre que nao conseguem mais estabelecer

distincao entre o proprio ser e o mundo. Bultmann usou esse esquema para compreender

a distincao entre os termos biblicos pecado (que para Bultmann significa, basicamente,

“incredulidade”) e/e. Ele afirmava que a existencia nao-autentica consiste em uma busca

por seguranca e satisfacao no “mundo”, que se encontra na esfera tangivel das proprias

realizacoes ou no passado. Isto e pecado - ver-se em termos do eu proprio, separado de

Deus. A existencia autentica, pelo contrario, e a recusa em basear a vida no “mundo”,

firmando-se em realidades intangiveis, juntamente com a renuncia a seguranca centrada

no proprio eu e uma abertura para o futuro. E viver no mundo, mas, ao mesmo tempo, e

viver alem do mundo, vendo o mundo “como se nao estivesse la”, nas proprias palavras

de Bultmann. Isto e fe - compromisso pessoal com Deus. E atraves da fe surge uma

nova compreensao de si mesmo, pois a fe e uma resposta a Deus e e em Deus que os

individuos encontram o seu verdadeiro ser.

Page 47: Esboço Teologia Contemporânea

História

Outro importante elemento existencialista utilizado por Bultmann e o conceito

de “Historia”. Nesse caso, ele seguiu Heidegger e rompeu com a perspectiva do seculo

19. A Historia nao e simplesmente a ciencia de fatos referentes ao passado exercida de

modo impessoal e distante. Pelo contrario, o conhecimento historico relevante e sempre

um conhecimento existencial; ele conduz a um encontro pessoal e acontece atraves do

envolvimento com a Historia. Um aspecto fundamental de seu pensamento e a diferenca

entre Historie e Geschichte, que Bultmann parece ter aceito de Martin Kahler.36 O

proprio Bultmann empregou os adjetivos correspondentes a esses termos para referir-se

a dois diferentes metodos de se abordar a Historia, compreendida como o campo das

acoes humanas e os tipos de acontecimentos que delas resultam.37 A observacao

impessoal e neutra gera uma serie de informacoes fatuais que caracterizam o passado

como uma cadeia de causa e efeito (historisch). Quando os acontecimentos sao

abordados tendo em mente a questao da existencia humana, porem, eles deixam de ser

ocorrencias passadas e passam a ser acontecimentos presentes (geschichtlich) capazes

de desvendar a propria existencia pessoal. Assim, Historia significativa - os

acontecimentos que continuam a ter influencia ou significado - e mais importante do

que um simples conjunto de fatos. Para ser relevante, portanto, a Historia precisa ser um

acontecimento significativo ou interpretado. Bultmann afirmava que tal significado nao

pode ser encontrado atraves da observacao feita a partir de um ponto externo ao fluxo

da Historia. Pelo contrario, o unico ponto de partida e a propria historia individual.

Como resultado, a questao principal que se deve ter em mente ao realizar os estudos

historicos so pode ser a questao da existencia humana. E, no final, o que realmente

importa e a historia pessoal e individual, ou seja, a existencia pessoal autentica. Essa

perspectiva da Historia relaciona-se ainda a visao de Bultmann sobre temporalidade,

que ele desenvolveu a partir de uma triade de “cuidado” de Heidegger. De acordo com

Bultmann, a divisao comum do tempo em passado, presente e futuro e problematica,

pois dela resulta um “presente” que nada mais e do que um ponto matematico sem

qualquer dimensao, que simplesmente separa o passado do futuro. A visao

existencialista de Heidegger sobre o tempo, por outro lado, concentrava-se no presente

como sendo o ponto de decisao. Ao contrario de ser uma referencia a algo que

aconteceu de uma vez por todas, o “passado” e importante por causa de sua relacao com

a esfera do que nao e autentico. Esse aspecto surge quando o passado representa uma

Page 48: Esboço Teologia Contemporânea

falta de decisao ou falta de possibilidade. Por ser um ponto fixo, o passado nao oferece

nenhuma possibilidade. A inaltenticidade relacionada ao passado insere-se na existencia

pessoal atraves da aceitacao da culpa. Do mesmo modo, o “futuro” e mais do que um

“ainda nao”. Ele e o universo das possibilidades que exigem decisao. Na existencia

presente, o individuo e confrontado com o futuro, a esfera das possibilidades. Em

decorrencia disso, cada pessoa e chamada a viver a partir desse futuro. O “presente”,

por sua vez, nao e simplesmente o “agora” ; e a situacao de decisao responsavel, a

saber, a decisao de unir o passado e o futuro de modo a criar uma existencia autentica.

A fé e o Evangelho

Nessa encruzilhada decisiva, Bultmann separou-se de seu mentor existencialista,

pois foi nesse ponto que ele introduziu o kerygma cristao como elemento essencial. Ao

contrario de Heidegger, que tinha esperancas da verdadeira existencia estar ao alcance

do individuo por seu proprio esforco, Bultmann afirmava que a existencia autentica era

produto exclusivo de uma resposta de fe a graca de Deus oferecida na proclamacao

crista, sendo essa resposta, em si, um milagre de Deus.38 Essa afirmacao, porem, nos

leva de volta a visao de Bultmann sobre kerygma cristao e sua relacao com a fe. Em

concordancia com Paulo, ele afirmava que o kerygma é a pregacao da cruz e da

ressurreicao como o evento salvifico, um evento que forma uma unidade inseparavel.39

Mas, com isso, ele nao estava se referindo apenas aos “fatos” objetivos daquilo que

havia acontecido com Jesus de Nazare. Conforme observamos anteriormente, para

Bultmann, a Historia nao pode ser igualada aos fatos nao interpretados do passado.

Desde cedo em sua carreira, ele rejeitou todas as teorias que procuram provar que a

morte e ressurreicao de Jesus tem o poder de expiacao e salvacao.40 O que importa e o

sentido da cruz e da ressurreicao, o significado continuo que possuem como Palavra de

Deus dirigida aos individuos de nossos dias. Ao respondermos ao kerygma, a cruz e a

ressurreicao tornam-se nossa experiencia pessoal. Desse ponto de vista, a cruz (que

Bultmann aceitava como um fato da vida de Jesus) e o julgamento libertador de Deus

sobre a humanidade.41 A ressurreicao (sobre a qual Bultmann se recusava a falar em

termos de um acontecimento na historia passada)42 nao se refere a um homem que

voltou dos mortos neste mundo e nem a passagem de Jesus para uma vida alem.43 Ao

inves disso, a ressurreicao e a exaltacao do Crucificado a posicao de Senhor. Bultmann

dizia que, por isso, “a fe na ressurreicao e, na verdade, a mesma coisa que a fe na

eficacia salvadora da cruz”.44

Page 49: Esboço Teologia Contemporânea

Bultmann afirmava que a proclamacao dessa mensagem crista faz surgir a fe.

Por “fe” ele queria dizer o desejo de compreender a si mesmo como tendo sido

crucificado e ressurreto com Cristo. O kerygma, portanto, e o lugar em que Jesus Cristo

e encontrado e torna-se para o ouvinte o “acontecimento escatologico”. Atraves do

kerygma, o Senhor Vivo poe um fim no (antigo) mundo do crente. Conforme

observamos anteriormente, para Bultmann, o encontro nao depende de um

conhecimento pessoal sobre a vida de Jesus na terra. Assim, a fe crista e liberta de

qualquer dependencia das inconstancias dos estudos historico-criticos.

Crítica

Um comentario de Young ressalta essa questao:

De acordo com Bultmann, a historia de Israel nao e a historia da revelacao para os cristaos; Jesus nao e o Cristo dentro da historia do mundo, mas torna-se tal dentro da proclamacao e do ouvir da Palavra; o carater extra nos de Deus mantem-se apenas num sentido especifico; a ressurreicao de Cristo nao e um acontecimento historico que ocorre logo depois da crucificacao, mas a dimensao do significado da cruz; e assim por diante.47

Independente da questao das formulacoes doutrinarias corretas e criticas

relacionadas a varios aspectos de sua posicao, o principal problema teologico esta no

centro da proposta de Bultmann. Esse problema torna-se evidente em tres principais

pontos fracos. O primeiro esta relacionado a exegese, o segundo a vida de fe e o terceiro

a natureza de Deus.

Exegese Universal

Em primeiro lugar, o uso do esquema existencialista de Bultmann nos estudos do

Novo Testamento resultou numa tendencia a simplificacao extrema da exegese que, por

sua vez, levou a uma teologia unilateral. Sua afirmacao de que o kerygma do Novo

Testamento e essencialmente uma mensagem existencial, ao mesmo tempo que reflete

uma preocupacao vital com os documentos, acaba limitando aquilo que esses

documentos apresentam. Muitos textos simplesmente nao tratam de questoes

existenciais como insiste a formulacao de Bultmann, mas sim de outros temas. Como

resultado disso, a teologia nao pode ser reduzida a soterologia, como sua proposta

parece exigir. Bultmann chegou a admitir esse problema, mas passou entao a empregar

o enfoque existencialista que encontrou em Paulo e Joao como uma especie de “canon

dentro do canon”.

Page 50: Esboço Teologia Contemporânea

O esquema de existencia humana tambem resultou numa separacao muito

radical entre os acontecimentos historicos do passado e as experiencias contemporaneas

de fe. Bultmann foi longe demais em sua tentativa de livrar a fe da dependencia das

descobertas da pesquisa historica. Mesmo mantendo a importancia da cruz de Jesus para

a fe, ele ainda assim tomou o conteudo da vida de Jesus irrelevante, ao considerar a fe

exclusivamente como resposta a mensagem que Deus havia proferido em Cristo. Mas,

como Jurgen Moltmann apontou corretamente, esse ponto de vista “deixa de observar

que a historicidade concreta e revelada, possibilitada e limitada atraves da historia que

de fato ocorreu e viceversa”. Nossa fe nao produz a historia de Jesus como forma de

expressao, mas sim deve sua existencia a essa historia.

A fé privatizada

Em segundo lugar, a abordagem teologica de Bultmann, com sua visao restrita

demais da mensagem do evangelho, resulta prontamente numa fe igualmente restrita e

privatizada. Para ele, a fe e uma decisao pessoal sobre o viver autentico, compreendida

de modo extremamente individualizado. Essa afirmacao resume uma dimensao do

kerygma do Novo Testamento e um aspecto da fe. Mas a mensagem biblica e mais do

que isso. Ela nao diz respeito apenas a esfera privada de decisao individual, mas dirige-

se a vida como um todo. A enfase existencialista de Bultmann corre o risco de excluir as

dimensoes comunitarias e sociais da fe crista.49 Ele deu pouca enfase a abrangencia da

fe sobre a vida do crente ou sobre a vida corporativa dos crentes em comunidade.

Tambem nao encontramos em sua proposta os fundamentos para um

envolvimento com a sociedade em geral. Pelo contrario, sua visao existencialista

incentiva uma enfase interior que pode facilmente levar a falta de consideracao para

com as implicacoes politicas e sociais do evangelho.

Em termos teologicos, a proposta de Bultmann ressaltou a necessidade de

justificacao pessoal (a decisao do individuo de ser transformado em alguem autentico),

mas nao conduzia a uma santificacao, a dinamica do viver cristao em si e do

crescimento espiritual como discipulos do Senhor dentro de um relacionamento

comunitario uns com os outros e com o mundo. Do ponto de vista de avancos teologicos

subsequentes, podemos concluir apenas que a teologia de Bultmann oferece uma

soterologia util, ainda que parcial, mas fica devendo uma eclesiologia satisfatoria.

Um Deus limitado

Page 51: Esboço Teologia Contemporânea

Finalmente, sob influencia da perspectiva existencialista, Bultmann usou de

modo radical o tema da distincao qualitativa infinita, o que levou a uma visao limitada

de Deus. Sua restricao do discurso teologico a dimensao da existencia humana acabou

eliminando as assercoes tanto sobre a realidade eterna de Deus quanto sobre o agir de

Deus no mundo.

Mas Bultmann equivocou-se quando afirmou que esse Deus so pode ser

conhecido a medida que ele age dentro do individuo, ou seja, a medida que ele cria a

existencia autentica, de modo que a teologia torna-se a reflexao sobre a experiencia do

encontro que leva a existencia autentica.

A declaracao de Bultmann de que so podemos falar de Deus a medida que

falamos de nos mesmos coloca a natureza eterna de Deus fora dos limites da articulacao

teologica humana. Assim, torna-se impossivel conhecer a Deus em sua divina realidade

eterna. Bultmann afirmava que essa situacao esta de acordo com os propositos da fe: “O

misterio pelo qual a fe se interessa nao e o que Deus vem a ser em Si mesmo, mas sim

como ele age em relacao aos homens.”

Nao apenas as declaracoes sobre a realidade divina tem sua abrangencia

reduzida, como tambem a proposta de Bultmann limita as afirmacoes sobre o agir de

Deus no mundo. Ao mesmo tempo que classificava a maior parte das afirmacoes sobre

o agir de Deus como sendo mitologicas, Bultmann insistia que Deus agiu em Cristo “de

uma vez por todas em favor do mundo”.52 E, insistentemente, tentou mostrar como as

afirmacoes sobre a acao divina devem ser compreendidas em termos de existencia

humana.

Conclusão

Ao limitar as declaracoes acerca do agir de Deus na Historia somente a esfera da

fe, seu desejo era possibilitar que o evangelho pudesse ir de encontro ao individuo de

nossos dias. Para isso, era preciso que ele seguisse o exemplo de Kant e criasse uma

barreira impenetravel entre o mundo natural autonomo e o universo transcendente da fe.

Avancos subsequentes nas ciencias e na filosofia demonstraram como esse foi um

procedimento infeliz e desnecessario. O proprio “mundo natural autonomo”, visto como

uma cadeia fechada de causas e efeitos ja e considerado um mito. E sao cada vez mais

evidentes os perigos de uma teologia que confina Deus ao universo das crencas

pessoais.

Page 52: Esboço Teologia Contemporânea

Tendo em vista que no sistema de Bultmann nao se pode falar de Deus a nao ser

em relacao ao ser humano, e que Deus nao age no mundo a nao ser na esfera privada da

fe pessoal, as dimensoes mais amplas da transcendencia de Deus face a face com sua

criacao acabam sendo eliminadas do campo de atuacao do teologo.

Ele nao foi capaz de reafirmar a transcendencia de Deus em seu sentido pleno e

biblico.

REINHOLD NIEBUHR: A Transcendencia Revelada atraves do Mito

Sua missao nao era apresentar uma teologia nova e criativa, mas sim aplicar a fe

crista como ele a entendia na dimensao social da vida.

A carreira e o desenvolvimento intelectual de Niebuhr Assim como Walter

Rauschenbusch, com o qual tinha certa afinidade (apesar da rejeicao explicita de

Niebuhr ao movimento do evangelho social), Niebuhr foi criado no contexto de um

ambiente repleto de cristianismo pietista. Seu pai era pastor no Sinodo Evangelico (que

hoje e parte da Igreja Unida de Cristo), cujas raizes encontram-se na uniao das tradicoes

Luteranas e Reformadas na Prussia. Apos terminar o ensino medio em Lincoln, Illinois,

Reinhold frequentou o Elmhurst College e o Eden Seminary antes de ir para Yale, em

1913, onde completou o Bacharelado em Teologia e o Mestrado em Ciencias Humanas,

em 1915. A carreira de Niebuhr teve inicio em Detroit. Mais uma vez, e impressionante

a semelhanca de sua historia com a de Rauschenbusch. Depois de se formar em Yale,

ele tornou-se pastor de uma congregacao constituida, em sua maioria, por operarios da

montadora Ford. La, ele teve contato direto com a luta daqueles que estavam sendo

explorados pelos grandes industriais do pais, uma experiencia que influenciou

profundamente tanto seu enfoque social quanto sua teologia. Assim como o pastorado

de Rauschenbusch no bairro pobre de “Hell’s Kitchen”, em Nova York, o levou na

direcao do socialismo, o jovem pastor Niebuhr tornou-se defensor de uma proposta

semelhante de mudancas sociais. Porem, numa encruzilhada importante, o caminho de

Niebuhr tomou um rumo diferente daquele seguido pelo pastor batista alemao. As

experiencias de Rauschenbusch o conduziram para a esquerda da teologia - no sentido

do “evangelho social”, um movimento que empregava certos elementos centrais do

liberalismo teologico. A metamorfose de Niebuhr (assim como a de Karl Barth), por

outro lado, acabou conduzindo a um movimento de direita - a redescoberta da

ortodoxia.

Page 53: Esboço Teologia Contemporânea

Um estudioso de Niebuhr, Ronald H. Stone, divide sua vida em quatro fases: a

liberal, a socialista, a pragmatica e, finalmente, a pragmatica-liberal.12 Essas fases,

porem, estao entretecidas de modo a formar um todo. Em todas elas, Niebuhr lutou

contra a sua heranca liberal em termos de relacao entre o ideal e o real, que ele via na

religiao da Biblia.

Cristianismo prático

Ao longo de seus escritos, ha tres temas predominantes relacionados entre si e

que fazem parte da tarefa basica e central de Niebuhr. Em primeiro lugar, ele estava

profundamente interessado nas implicacoes praticas da fe crista. Seu objetivo

fundamental era apresentar o que podia ser compreendido atraves da tradicao crista

dentro da situacao moderna e praticar em sua propria vida as conviccoes resultantes de

sua fe. Seu alvo era sempre “determinar a relevancia da fe crista para os problemas

contemporaneos”.15 Por causa disso, ele se recusava a ficar limitado as discussoes

teologicas abstratas e tornou-se um ativista, procurando aplicar o que pudesse ser

apreendido a partir da teologia a diferentes areas como a politica, questoes

internacionais, direitos humanos e sistemas economicos. Em cada uma delas, entretanto,

ele buscava sempre agir como pregador profetico, indo de encontro a vida social

contemporanea com a critica oferecida pela fe crista. Ao faze-lo, ele atuou como uma

especie de apologista, pois procurava mostrar a importancia e o valor da fe crista numa

sociedade que havia, de um modo geral, rejeitado o evangelho. Em suas proprias

palavras, ele estava interessado em “defender e justificar a fe crista numa sociedade

secular”.16 Mas a sua apologetica empregava uma abordagem completamente diferente

do apelo classico a racionalidade do Cristianismo. Niebuhr procurava mostrar que a fe

crista oferece o sentido de vida, mas afirmava que “nao existe um sentido maior de vida

que seja capaz de compelir a razao”.

Ele criticou repetidamente dois elementos da fé moderna: a idéia de progresso e

a idéia de aperfeiçoamento da humanidade.

Justiça parcial

Em segundo lugar, a “justiça parcial” é uma ênfase contínua, presente ao longo

de todos os seus escritos. (...) Ele afirmava que, independente de nossas boas inteções,

só podemos esperar encontrar uma experiência parcial de justiça em nossa sociedade.

Page 54: Esboço Teologia Contemporânea

Por isso, não devemos acreditar ingenuamente que as soluções que propomos

parar os males sociais ou nossos esforços intensos para mudar a sociedade irão dar

início a uma ordem perfeita. Nossas tentativas de lidar com o mal dentro da sociedade

acabarão gerando outras injustiças. O melhor que podemos esperar é tornar a situação

de hoje mais justa do que era ontem. Em termos teológicos, o reino de Deus é um alvo

alcançável, um padrão que não conseguiremos atingir, mas está sempre presente para

julgar a sociedade humana.

Antropologia Cristã

Em terceiro lugar, conforme indicado acima, os escritos de Niebuhr exploram

constantemente a condição humana por trás da impossibilidade não apenas de se criar

uma sociedade completamente justa, mas também de se alcançar qualquer ideal em

termos concretos. Sua busca por entender essa impossibilidade levou Niebuhr à teologia

cristã clássica, mais especificamente à antropologia, a doutrina da natureza do ser

humano. Aliás, a antropologia não é apenas o centro de sua principal obra, A natureza e

destino do homem; sua compreensão da situação do homem é um tema constante e

unificador de praticamente todos os seus escritos. (...) A contribuição mais importante

de Niebuhr para a releitura da teologia cristã de nossa geração é sua exposição da

doutrina do homem.

A contradição humana

No centro da antropologia de Niebuhr, encontra-se a sua visao da contradicao

que caracteriza a condicao humana. Baseado no livro de Genesis e no apostolo Paulo,

Niebuhr argumentava que a humanidade acarreta tanto um potencial quanto um

problema, duas realidades que nao podem ser separadas. Na obra A Natureza e Destino

do Homem ele resume a antropologia biblica em tres teses.30 Primeiro, o ser humano e

uma existencia criada e finita tanto em corpo quanto em espirito. Assim, todas as

antropologias dualistas - pontos de vista que dividem o ser humano em corpo e alma -

devem ser rejeitadas. Em segundo lugar, os seres humanos devem ser vistos, antes de

mais nada, do ponto de vista de Deus (ou seja, como imagem de Deus), e nao em termos

de suas faculdades racionais ou em relacao a natureza. Assim, cada ser humano e um

individuo capaz de se posicionar fora de si mesmo e do mundo e que nao e capaz de

encontrar significado em si mesmo ou no mundo. Em terceiro lugar, os seres humanos

sao pecadores. E, por causa do pecado, eles devem ser amados, mas nao considerados

dignos de confianca.

Page 55: Esboço Teologia Contemporânea

O pecado humano

Das tres dimensoes de antropologia biblica, para Niebuhr, era o conceito de

pecado que estava mais em falta na mentalidade moderna. Por isso, ele tratou

repetidamente dessa questao. Entretanto, essa dimensao da visao biblica da realidade

humana estava intrinsecamente ligada as outras duas. Ao contrario das antropologias

dualistas, para ele, o pecado estava enraizado no coracao do ser humano, no mal uso da

capacidade que constitui a singularidade humana - a transcendencia de si mesmo.33 De

acordo com Niebuhr, esse e o ponto central da historia da Queda.34 Atraves do mal uso

da capacidade de nos transcendermos, nos recusamos a reconhecer nossa condicao de

criaturas. Traidos por nossa capacidade de examinar o todo, nos imaginamos como

sendo esse todo. Assim, dentro do melhor estilo reformado, e em contraste com aquilo

que ele via como a tendencia do liberalismo, Niebuhr considerava o pecado um ato da

pessoa como um todo, de modo que nenhuma parte do ser humano pode ser exonerada

da cumplicidade dessa rebeliao contra Deus.35 Ele argumentava que, como resultado da

natureza absoluta de nossa rebeliao na condicao de criaturas, o problema humano nao

esta em como os seres finitos podem conhecer a Deus, mas em como um povo pecador

pode ser reconciliado com Deus.

Entretanto, Niebuhr rejeitava a interpretacao tradicional de pecado original como

sendo um desvio moral herdado e preferia o conceito de ansiedade proposto por

Kierkegaard para explicar a experiencia universal da origem do pecado. 40 Ele afirmava

que o paradoxo de liberdade e finitude caracteristico da condicao humana gera a

inseguranca. Estamos envolvidos nas contingencias do processo natural da vida

(finitude). Mas tambem somos capazes de nos posicionarmos fora dele e ver seus

perigos (liberdade). Somos, por natureza, presos e limitados; porem, somos tambem

livres e dotados da capacidade de nos elevarmos acima da natureza. O sentimento de

inseguranca resultante dessa situacao e que gera a ansiedade. No estado de ansiedade,

somos tentados a nos voltarmos para assercoes pecaminosas sobre nos mesmos -

transformamos nosso carater finito em eterno, nossa fraqueza em forca, nossa

dependencia em independencia ao inves de confiarmos na fonte suprema de seguranca

que e o amor de Deus. Em termos biblicos, somos capazes tanto do pecado quanto da fe.

Assim, para Niebuhr, o pecado deve ser visto em relacao a fe. A fe e a aceitacao

de nossa dependencia de Deus, enquanto o pecado e a negacao de nossa condicao de

criaturas. O pecado aparece sob duas formas, dois meios atraves dos quais procuramos

Page 56: Esboço Teologia Contemporânea

escapar da ansiedade. O primeiro e a sensualidade, a tentativa de negar a liberdade

humana ao regredirmos a natureza animal.41 A segunda abordagem e mais basica e

universal - a negacao de nossas limitacoes humanas atraves da afirmacao de nossa

independencia. Esse e o pecado do orgulho, que aparece sob varias formas:42 o orgulho

do poder (buscar o poder como tentativa de sentir seguranca), o orgulho do

conhecimento (declarar como absoluto e final coisas que nao passam de conhecimento

finito) e o orgulho da virtude (declarar como absolutos os nossos padroes morais

relativos), levando ao orgulho espiritual (conferir carater divino a nossos padroes

limitados).

Neo-ortodoxia modificada

Nesse assunto tao relevante, ele concordava com a enfase principal da neo-

ortodoxia europeia sem ser tao radical no enfoque da separacao entre Deus e o mundo,

como acontecia com os gigantes teologos da Europa. Na Biblia, ele via uma enfase a

transcendencia de Deus que era equilibrada pela enfase na “relacao intima de Deus com

o mundo”.45 Niebuhr, portanto, afirmava os dois aspectos da revelacao de Deus.46 A

revelacao privada (ou “geral”) e “o testemunho na consciencia de cada pessoa” de que a

vida toca uma transcendencia que vai alem do sistema natural em que cada pessoa

existe. Essa revelacao privada, por sua vez, afirma uma outra dimensao da revelacao, a

saber, a revelacao publica ou historica (“especial”). Assim, enquanto, para Barth, nao

havia um ponto de contato entre Deus e o ser humano, para Niebuhr, havia areas inteiras

desse contato.47 Ao mesmo tempo em que concordava que os seres humanos sao

pecadores, ele tambem via o potencial do ser humano, ate mesmo potencial para

considerar-se um pecador. 48 Enquanto enfatizava a transcendencia divina, ele nao

afastava Deus a ponto de eliminar a possibilidade de se conhecer Deus. Ele concordava

que a revelacao ia totalmente contra a razao, mas nao de modo que tornasse impossivel

o reconhecimento da verdade. Acreditava, ainda, que a teologia natural nao era tao

equivocada a ponto de tornar a eternidade algo irrelevante a Historia.

Em resumo, ao mesmo tempo em que se juntava a critica neo-ortodoxa do

liberalismo, para o bem da teologia, ele recusava-se a ir para o outro extremo: se tempo

e eternidade sao totalmente desconexos, entao e impossivel haver um discurso

significativo sobre Deus.

Apesar de Barth ter sido o alvo principal de suas criticas a neo-ortodoxia,

Niebuhr tambem expressou certa reserva em relacao a alternativa apresentada por

Page 57: Esboço Teologia Contemporânea

Rudolf Bultmann.51 Alem de diferentes enfoques no tocante as disciplinas academicas

(Bultmann via a teologia do ponto de vista do estudo do Novo Testamento, enquanto

Niebuhr partia da etica social), o ponto principal em que os dois divergiam era sua

compreensao de mito. Bultmann desejava desmitologizar a mensagem do Novo

Testamento, de modo a torna-la compreensivel a mente moderna nao-mitologica.

Niebuhr, por outro lado, procurava mostrar como os mitos biblicos ainda falam a

situacao moderna, que tambem apresenta seus proprios (e muitas vezes falsos) mitos.

Ele criticava o estudioso alemao por nao fazer uma distincao clara o suficiente entre

mitos pre-cientificos (que “desconsideram aquilo que sempre se soube ou que agora

tornou-se conhecido sobre a ordem dos acontecimentos”) e mitos permanentes (aqueles

que “descrevem algum significado da realidade, que nao estao sujeitos a uma analise

exata, mas que podem, ainda assim, ser verificados pela experiencia”). Niebuhr

concluiu que, ao nao fazer essa divisao, Bultmann estava sendo negligente na tarefa de

“proteger a verdade contida no kerygma”.

A rejeição ao liberalismo

Um ponto central dessa critica era sua percepcao de que, em seu otimismo

ingenuo, o liberalismo havia perdido a verdadeira mensagem biblica, especialmente a

visao realista da Biblia sobre a natureza humana. No principio (durante a decada de 30),

porem, Niebuhr atacou o liberalismo a partir de uma perspectiva marxista-socialista.

Nesses dois casos, foi na perspectiva de Agostinho que Niebuhr encontrou uma

visao que refletia com mais precisao a situacao atual, o que resultou num ataque a

tradicao liberal realizado a partir de um ponto de vista agostiniano (durante a decada de

40). Niebuhr resumiu sua insatisfacao inicial com o liberalismo no livro Moral Man and

Immoral Society [Homem Moral e Sociedade Imoral] (1932). Essa obra nao foi sua

primeira incursao literaria; porem ela o colocou entre os mais importantes teologos.

Apesar de mais tarde ele ter modificado alguns de seus pontos, Niebuhr nunca abriu

mao da tese central do livro de que “se deve tracar uma linha bem clara entre o

comportamento moral e social dos individuos e dos grupos sociais”.53 Enquanto os

individuos podem ser morais no sentido de “serem capazes de considerar os interesses

dos outros e nao so os seus proprios, ao determinarem problemas de conduta”, as

sociedades e grupos sociais estao mais susceptiveis a “um egoismo desenfreado”.54

Ao contrario do que o titulo do livro pode sugerir, Niebuhr nao era um

romantico ingenuo quanto a moralidade dos individuos. Na verdade, ele afirmava que

Page 58: Esboço Teologia Contemporânea

cada individuo e dotado de um impulso nao-egoista bem como de um impulso

egoista.55 Esse impulso egoista encontra ainda menos restricao dentro de um grupo

social do que no individuo. Em decorrencia disso, todas as propostas de autoajuda,

como aquelas apresentadas por antecessores liberais de Niebuhr e alguns de seus

contemporaneos, estao condenadas a ficarem aquem do ideal. Baseado nessa analise,

Niebuhr propos um “enfoque duplo da vida moral”, que consistia em duas diferentes

perspectivas e dois ideais eticos correspondentes. Para a vida interior do individuo o

ideal e a ausencia de egoismo. Mas a vida social do ser humano requer um outro ideal,

que so pode ser o de justica.56 Esse tema foi mais desenvolvido em sua obra seguinte,

que deu continuidade ao seu ataque ao liberalismo, An Interpretation o f Christian

Ethics [Uma Interpretacao da Etica Crista] (1934). Nela, Niebuhr apresentou a tese de

que, enquanto o “amor pode motivar a acao social... a justica deve ser o instrumento do

amor em um mundo dentro do qual os interesses proprios desafiam os canones do amor

em todos os niveis”.57

Ele rejeitou aquilo que chamava de “utopia moralista”59 e sentimentalismo da

igreja liberal, descobrindo que em suas origens encontrava-se o conceito equivocado de

que o amor e uma simples possibilidade historica e nao uma “possibilidade

impossivel”.60 Niebuhr afirmava que o moralismo liberal era sentimental por tres

razoes.61 Em primeiro lugar, fiel as suas diferencas antropologicas com o liberalismo,

ele via uma falta de consciencia da profundidade e poder do pecado. Essa falta de

consciencia nao vai ao encontro das necessidades dos individuos em sua jornada

espiritual e de justica na sociedade. Em segundo lugar, o moralismo liberal nao reflete

as verdadeiras dimensoes religiosas apresentadas no evangelho. Em resposta a condicao

humana, ele simplesmente apresenta o mandamento de amar a Deus e ao proximo, sem

proclamar a misericordia de Deus revelada em Cristo como fonte tanto do perdao dos

pecados quanto do poder para vencer o pecado. Em terceiro lugar, tendo em vista que o

liberalismo nao compreendia corretamente a ruptura radical entre o ideal e o verdadeiro

- a maneira radical como o amor transcende todos as ideias e realizacoes humanas - , ele

carecia de realismo social e politico.

A alternativa de Niebuhr

Niebuhr nao apenas ofereceu uma critica ao liberalismo como tambem propos

uma alternativa que, a seu ver, estava mais de acordo com o “realismo cristao”. Em sua

proposta, ele voltou-se para a fe biblica, principalmente suas raizes hebraicas, em busca

Page 59: Esboço Teologia Contemporânea

de ajuda. Ele afirmava que a cultura ocidental devia a essa tradicao religiosa duas de

suas enfases fundamentais: “a nocao de individualidade e a nocao de historia

significativa”.62 Mantendo-se fiel a sua heranca, ele procurou restabelecer essas enfases

dentro da situacao contemporanea.

Assim como outros teologos neo-ortodoxos, a proposta construtiva de Niebuhr

lancava mao de uma visao dialetica da relacao entre o tempo e a eternidade.63 O eterno

e revelado no temporal, mas nao se limita a ele. A Historia e a existencia humana sao

significativas, mas sua fonte e seu cumprimento encontram-se alem da Historia.64

Como resultado, esse relacionamento pode ser expressado somente em termos

simbolicos. Assim, a relacao dialetica entre eternidade e tempo abre caminho para o uso

do mito.

O mito

De acordo com Niebuhr, o mito e necessario, pois certos aspectos da realidade,

como a natureza da condicao humana e a fonte transcendente do significado da Historia,

sao paradoxais e, portanto, nao podem ser compreendidos atraves de termos cientificos

ou racionais.65 Ele afirmava que o carater significativo da vida requer uma fonte que

esteja alem de si mesma. Mas, por esse centro transcender tanto a experiencia imediata

como os termos que usamos para descreve-la, as abordagens puramente racionais sao

inadequadas para a busca da transcendencia. So se pode falar do transcendente atraves

do uso de mitos, que servem como simbolos da verdadeira realidade. Assim, Niebuhr

encontrou nos simbolos cristaos um modo de referir-se a fonte transcendente de

significado.

Foi com essa visao que Niebuhr afastou-se tanto do liberalismo quanto da

ortodoxia tradicional. Ele argumentava que, em seu caso de amor com o metodo

cientifico, na abordagem puramente racionalista da vida e da mentalidade moderna, o

liberalismo havia rejeitado os mitos da fe crista.

De acordo com Niebuhr, quando entendidos corretamente como afirmacoes da

relacao entre o eterno e o temporal, os mitos da fe crista sao relevantes para nossa

epoca. Um desses mitos e o da Queda. Conforme vimos anteriormente, a importancia

desse mito para Niebuhr nao estava em seu uso como uma descricao literal de um

acontecimento que havia ocorrido no comeco da historia da humanidade. Ao inves

disso, ele via esse episodio como uma afirmacao profunda sobre a universalidade do

Page 60: Esboço Teologia Contemporânea

pecado e suas origens na finitude e na liberdade do homem. A Queda, portanto, e uma

declaracao poderosa da condicao humana ao longo da Historia em cada situacao.

A vida de Fé

Como a neo-ortodoxia em geral, ele rejeitava a tentativa racionalista de ver a

salvacao em termos de conhecimento de Deus, escolhendo, ao inves disso, descreve-la

em termos de vida de fe em meio as contradicoes da existencia no mundo. Assim, de

acordo com Niebuhr, a fe “deve continuar sendo um compromisso do individuo e nao

uma conclusao de sua mente”. (...) em ultima instancia, a fe nao pode ser provada; ela

so pode ser vivida.

A fe, portanto, implica encarar de maneira realista as insegurancas da vida e

perceber que elas podem ser superadas apenas por Deus. Essa fe protege do orgulho,

pois e somente Deus que pode ser considerado a fonte de seguranca.

A cruz

Para Niebuhr, porem, o ponto central da fe crista e a cruz, pois o Cristianismo

proclama o evangelho, do qual esse acontecimento e a essencia. Fiel a sua rejeicao a

abordagem racionalista do misterio da realidade, ele advertia que o significado da cruz

nao e consequencia logica de fatos observaveis da Historia,72 sendo visivel apenas

atraves dos olhos da fe, assim como o carater absoluto do evangelho, como significado

para a historia da humanidade, nao pode ser provado atraves da analise racional.73

A cruz e importante, pois e reveladora; ela desvenda a verdade profunda acerca

da humanidade e de Deus. Por um lado, ela fala da condicao humana. A cruz e, ao

mesmo tempo, a revelacao da nossa natureza essencial e do nosso pecado. E na cruz que

vemos aquilo que somos essencialmente, nao em termos daquilo que possuimos agora,

mas daquilo que ainda vamos ser, descobrindo tambem a extensao de nossa propria

contradicao.74 Como resultado, esse acontecimento mostra a profundidade da perdicao

humana e a perfeicao do homem que nao pode de forma alguma ser obtida atraves da

Historia.75 A cruz declara que, por causa do poder do pecado, o amor permanece na

Historia como um amor sofredor. Em resumo, a cruz e a declaracao do julgamento

divino sobre o pecado humano. Por outro lado, esse simbolo proclama o amor divino e o

perdao do pecado. E “a revelacao do amor de Deus”, mas somente para aqueles “que,

primeiramente, se submeteram ao seu julgamento”.76

Page 61: Esboço Teologia Contemporânea

Para Niebuhr, o evento da cruz e o apice da revelacao biblica da soberania de

Deus sobre a Historia.

Em sua forma classica, a teologia crista explica o significado da cruz na doutrina

da expiacao, uma doutrina que e embaraco e pedra de tropeco para a mente moderna.

(...)Para ele, ela oferecia a chave para a compreensao da Historia. Ela declara que a

Historia e incapaz de prover seu proprio significado e, portanto, tem na misericordia e

no julgamento de Deus o seu cumprimento final. O julgamento de Deus, por sua vez, e

simbolo da importancia da Historia e do significado absoluto do bem e do mal. A

misericordia de Deus, pelo contrario, fala do carater incompleto e corrupto presente em

todas as acoes historicas, mas tambem do amor que toma sobre si todo o mal.

A transcendência divina

A visao de Niebuhr acerca da natureza do significado e sua revelacao a

humanidade resultou naquilo que talvez seja sua mais profunda e completa critica a

mentalidade moderna. A seu ver, a idade moderna era culpada de substituir “o Deus da

religiao revelada pelo Deus da razao e da natureza”.82 Ela havia, portanto, esquecido o

carater finito e a condicao de criatura da humanidade. Em decorrencia disso, havia

perdido o senso de transcendencia, ou seja, nao era capaz de “sujeitar a retidao humana

a uma retidao transcendente, a retidao de Deus”.83 Diante da negacao moderna,

Niebuhr procurava reafirmar a ideia biblica de transcendencia divina como base tanto

para a avaliacao como para a superacao da condicao humana. Para ele, essa dimensao e

apresentada no conceito do reino de Deus, que veio em Cristo e vira no climax da

Historia. Por um lado, somente a ideia de um Deus transcendente e do reino de Deus

sobre a humanidade e alem dela pode oferecer a perspectiva necessaria para que a

humanidade julgue sua propria tendencia a auto-afirmacao e orgulho, quer

individualmente ou em grupos. 84 A proclamacao crista do Alfa e Ômega como origem

do significado maior da Historia e a referencia para toda a humanidade, dando a ela

significados, julgamentos e cumprimentos historicos provisionais.85 A cada momento,

o reino de Deus continua sendo o ideal inatingivel.86

Por outro lado, o conceito de transcendencia determina que o significado da

Historia e desvendado no presente, iluminando a “escuridao das contradicoes da propria

Historia”,87 e oferece esperanca do cumprimento final da Historia. Niebuhr via essa

esperanca expressada nos tres principais simbolos escatologicos encontrados na Biblia,

sendo que nenhum deles deve ser entendido literalmente, mas, ainda assim, todos os tres

Page 62: Esboço Teologia Contemporânea

devem ser levados em consideracao.88 O simbolo da volta de Cristo e uma expressao de

fe na suficiencia da soberania de Deus e na supremacia absoluta do amor. O julgamento

final afirma a importancia da distincao entre o bem e o mal. E a ressurreicao implica

que a “eternidade completara e nao anulara” a variedade encontrada no processo

temporal e que a dialetica da finitude e liberdade nao tem uma solucao humanamente

concebivel.89

No final das contas, a revelacao do significado da Historia, ainda que vista pela

fe, tambem serve a vida de fe e ao testemunho cristao no mundo. E foi nesse tom que

Niebuhr concluiu sua principal obra A Natureza e Destino do Homem. Em suas

palavras, viver pela fe significa encontrar “a seguranca absoluta alem de todas as

segurancas e insegurancas da Historia”,90 isto e, no Deus transcendente da Historia.

Crítica

Atraves de uma compreensao maior da altura da transcendencia divina e da

profundidade da condicao humana, Niebuhr procurou inserir uma nota de realismo

naquilo que via como um clima religioso e cultural ingenuamente otimista. Essa

tentativa ja foi tanto elogiada como sua maior contribuicao quanto criticada como sua

maior fraqueza. Sem duvida, o conceito de realismo de Niebuhr teve grande influencia

na esfera da politica americana, especialmente na formacao de uma politica

internacional nos Estados Unidos nos anos imediatamente apos a 2a Guerra Mundial.

Quanto ao legado de Niebuhr, e preciso que facamos dois comentarios criticos, sendo

que ambos estao relacionados a sua visao de tempo e eternidade e a natureza da

transcendencia apresentadas por sua orientacao teologica.

Símbolos Irreais

Assim como Bultmann, Niebuhr argumentava que a chave para o significado da

Historia nao podia ser encontrada na propria Historia, mas era desvendada apenas para

os olhos da fe, para aqueles que pudessem enxergar seu significado transcendente alem

dos processos da vida. Mas, qualquer proposta desse tipo levanta algumas questoes

teologicas criticas. Uma delas e a questao do fideismo.92 E possivel para qualquer

proposta mitologica de compreensao da historia da salvacao ir alem do subjetivismo?

Para Niebuhr, os acontecimentos que desvendam o significado da Historia, justamente

por serem acontecimentos revelatorios, sao supra-historicos. Eles revelam o significado

Page 63: Esboço Teologia Contemporânea

da Historia nao porque sao acontecimentos literais e historicos, mas porque tornam-se

acontecimentos revelatorios apenas para a fé.

Lehmann e outros determinaram que a origem desse problema no pensamento de

Niebuhr pode ser encontrado numa dificuldade teologica mais profunda, a saber, uma

pneumatologia limitada. Niebuhr simplesmente nao desenvolveu a conexao do Espirito

Santo com a afirmacao de Cristo como Segundo Adao e nem com sua propria visao do

estarmos em Cristo.95 Como resultado disso, sua teologia era, em ultima analise,

“binitariana”.96 Talvez aquilo que varios criticos detectaram no nivel cristologico era

algo que permeava toda a doutrina de Niebuhr acerca de Deus. Ao colocar os

acontecimentos revelatorios da Historia na esfera do mito, ele parece ter eliminado a

possibilidade de tais acontecimentos desvendarem a realidade de um Deus

transcendente, que e verdadeiramente capaz de agir no mundo.

Transcendência Sombria

Em segundo lugar, a historia teologica subsequente sugere que a opcao de

Niebuhr pela cruz como simbolo teologico central carecia de ampliacao. Por ser

motivada pela cruz, sua visao da historia crista concentrava-se naquilo que Paul Jersild

chamou de “carater tragico da luta entre o amor divino e a resistencia humana”.97

Portanto, nao e completamente sem justificativa que Niebuhr foi tachado de teologo

pessimista e que muitos criticos afirmaram que seu tema teologico central era o pecado

humano.

Com base nessa perspectiva, Niebuhr apresentou uma apologetica realista –

porem bastante negativa - a democracia: “A capacidade do homem de fazer justica e o

que torna possivel a democracia; mas a inclinacao do homem a injustica e o que torna a

democracia necessaria.”

A Historia subsequente confirma que, enquanto esse tipo de teologia da cruz tem

sua importancia, ela precisa sempre ser apresentada em conjunto com uma teologia de

ressurreicao.'00 Isso significa que a enfase na autocritica deve aparecer em conjunto

com uma enfase no otimismo e auto-apreciacao.101 Ao nosso clamor de

arrependimento, que surge quando nos tornamos conscientes de nossa pecaminosidade,

deve ser acrescentada a palavra de absolvicao. Alem da declaracao de impossibilidade

da tarefa do reino de Deus, precisamos tambem ouvir a mensagem da promessa divina e

poder divino atuante na transformacao do mundo. E, a desconfianca de Niebuhr em

Page 64: Esboço Teologia Contemporânea

relacao a todos os grupos sociais, deve-se acrescentar a promessa da presenca de Cristo

na comunidade de fe a medida que ela batalha no poder do Espirito Santo em favor do

senhorio de Cristo sobre o mundo. Em resumo, ao deslocamento da escatologia para

uma esfera que vai alem da Historia, como fez Niebuhr, deve-se acrescentar a esperanca

de cumprimento da Historia dentro da Historia - parte no presente e tambem em sua

plenitude no dia final.

Conclusão