Escaravelho de Ouro

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O ESCARAVELHO DE OURO E OUTRAS HISTÓRIAS Edgar Allan Poe Tradução de RODRIGO BREUNIG e BIANCA PASQUALINI www.lpm.com.br L&PM POCKET

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Transcript of Escaravelho de Ouro

  • 3O escaravelhO de OurO e Outras histrias

    Edgar Allan Poe

    Traduo de rodrigo BrEunige Bianca Pasqualini

    www.lpm.com.br

    L&PM POCKET

  • 5Sumrio

    Manuscrito encontrado numa garrafa ................................7O encontro ........................................................................21Morella .............................................................................35A conversa de Eiros e Charmion ......................................42Uma descida para dentro do Maelstrm ..........................49O mistrio de Marie Rogt ..............................................69O corao delator ...........................................................122O escaravelho de ouro ....................................................129Um conto das Montanhas Escabrosas ............................171O sepultamento prematuro .............................................183A caixa oblonga .............................................................200Tu s o homem ...........................................................214O demnio da impulsividade .........................................232

  • 7manuScrito encontrado numa garrafa

    Qui na plus quun moment vivreNa plus rien dissimuler.

    Quinault Atys*

    De minha terra e de minha famlia tenho pouco a dizer. Maus costumes e o passar dos anos me afastaram de uma e me alienaram da outra. A riqueza hereditria propor-cionou-me uma educao fora do comum, e um modo de pensar contemplativo habilitou-me a sistematizar o repertrio que o estudo precoce armazenara com muita diligncia. Mais do que todas as coisas, os moralistas alemes deram-me grande deleite; no devido a alguma admirao desavisada por sua loucura eloquente, mas pela naturalidade com que meus rgidos hbitos de pensamento permitiram-me detectar suas falsidades. Fui muitas vezes repreendido devido aridez de meu gnio; uma deficincia de imaginao foi-me impu-tada como um crime; e o pirronismo das minhas opinies me fez sempre notrio. De fato, um forte apego filosofia natural matizou minha mente, receio, com um erro muito comum nestes tempos refiro-me ao hbito de atribuir acon-tecimentos, mesmo os menos suscetveis a tais atribuies, aos princpios dessa cincia. Em sntese, pessoa nenhuma poderia ser menos propensa do que eu a se deixar levar para longe das severas fronteiras da verdade pelos ignes fatui** da superstio. Julguei apropriado fazer esta introduo por temer que a incrvel histria que tenho para contar possa ser considerada antes o desvario de uma imaginao rude

    * Da pera trgica Atys (1676), dos franceses Philippe Quinault e Jean-Baptiste Lully: Para quem s resta um momento de vida/ No h mais nada a dissimular. (N.T.)

    ** Fogos-ftuos. (N.T.)

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    do que a experincia concreta de uma mente para a qual os devaneios da fantasia eram letra morta e nulidade.

    Depois de muitos anos viajando pelo estrangeiro, em-barquei, no ano de 18..., no porto de Batvia, na rica e po-pulosa ilha de Java, numa viagem ao arquiplago de Sonda. Viajei como passageiro no tendo outra motivao seno uma espcie de desassossego nervoso que me assombrava como um demnio.

    Nossa embarcao era um belo navio de cerca de qua-trocentas toneladas, firmado em cobre e construdo em Bom-baim com teca de Malabar. Estava carregado com algodo em rama e leo, das ilhas Laquedivas. Tambm tnhamos a bordo fibra de coco, acar mascavo, manteiga lquida, cocos e algumas caixas de pio. O armazenamento fora feito de modo canhestro, e por isso o navio adernava.

    Partimos com um mero sopro de vento e por muitos dias permanecemos ao longo da costa oriental de Java, sem nenhum incidente que quebrasse a monotonia de nosso avano, nada que no fosse um encontro ocasional com alguns pequenos barcos do arquiplago para o qual nos dirigamos.

    Num fim de tarde, debruado no parapeito da popa, observei uma nuvem isolada, muito peculiar, a noroeste. Ela era formidvel, tanto por sua cor quanto por ser a primeira que vamos desde que saramos de Batvia. Olhei para ela com a maior ateno at o pr do sol, quando ela se espalhou de uma s vez a leste e oeste, cingindo o horizonte com uma estreita faixa de vapor, com a aparncia de uma longa linha baixa de praia. Minha ateno foi logo a seguir atrada pela apario avermelhada da lua e pelo aspecto pitoresco do mar. Este ltimo estava passando por uma rpida transformao, e a gua parecia mais transparente do que o normal. Embora eu pudesse enxergar com clareza o fundo, verifiquei, lanando a sonda, que estvamos numa profundidade de trinta metros. Ento o ar se tornou intoleravelmente quente, carregado de exalaes espirais semelhantes s que emanam de ferro aque-cido. medida que a noite caa, os menores sopros de vento

  • 9se esgotavam, e era impossvel conceber uma calmaria maior do que aquela. A chama de uma vela queimava na popa, sem apresentar nem o mais imperceptvel movimento, e um longo fio de cabelo, sustentado com dedo e indicador, pendia sem que houvesse a menor possibilidade de detectarmos uma vibrao. Entretanto, o capito dizia no perceber nenhuma indicao de perigo, e, como estvamos sendo levados pela corrente diretamente para a costa, ele ordenou que as velas fossem recolhidas e que se lanasse ncora. Nenhum vigia foi designado, e a tripulao, constituda na maioria por malaios, ficou descansando vontade no convs. Desci s cabines no sem um palpvel pressentimento de infortnio. De fato, todos aqueles fenmenos me autorizavam a temer a chegada de um simum.* Falei de meus medos ao capito; mas ele no deu ateno ao que eu disse, e se afastou sem sequer me dar resposta. Meu desconforto, no entanto, no me deixava dormir e, por volta da meia-noite, subi para o convs. Assim que botei o p no ltimo degrau da escada do tombadilho, sobressaltei-me com um rudo alto, uma espcie de zumbir, como o som da rpida rotao de uma roda de moinho, e antes que eu pudesse descobrir seu significado, senti que o navio estremecia desde o centro. No momento seguinte, uma vastido de espuma nos arremessou em adernamento e, cobrindo-nos por inteiro, varreu o convs de proa a popa.

    A extrema fria da rajada provou-se, em grande medi-da, a salvao do navio. Embora completamente inundado, ele, no entanto, como os mastros se quebraram e caram no mar, pde se erguer com esforo depois de um minuto e, vacilando um pouco na imensa presso da tempestade, por fim aprumou-se.

    impossvel dizer que espcie de milagre me salvou da morte violenta. Estupefato pelo choque da gua, encontrei-me, quando recobrei os sentidos, prensado entre o cadaste

    * O vento venenoso, um vento violentamente quente e seco, carregado de areia, que vem dos desertos rabes e africanos. (N.T.)

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    e o leme. Com grande dificuldade, levantei-me e, olhando em volta, atordoado, fui inicialmente assaltado pela ideia de que estivssemos em rea de rebentao, to aterrorizante e avesso mais louca imaginao era o redemoinho de oceano montanhoso e espumante no qual estvamos engolfados. Depois de um tempo, ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara no momento em que deixamos o porto. Chamei-o com todas as foras, e ele em seguida se aproximou, camba-leando em direo popa. Logo descobrimos que ramos os nicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convs, exceto ns, haviam sido varridos para o mar; o ca-pito e os imediatos deviam ter perecido enquanto dormiam, pois as cabines estavam submersas em gua. Sem assistncia, no tnhamos como fazer muito pela segurana do navio, e nossos esforos foram, num primeiro momento, paralisados pela expectativa temporria de que fssemos afundar. O cabo da ncora, claro, rebentara como um barbante ao primeiro sopro do furaco, e no fosse isso teramos ido a pique na mesma hora. Estvamos sendo arrastados pelo mar numa velocidade assustadora, e a gua elevava ondas ngremes sobre ns. A estrutura da popa estava demasiado danificada e, em quase todos os aspectos, havamos sofrido prejuzos considerveis; mas, para nossa mxima alegria, verificamos que as bombas de gua estavam desobstrudas e que o las-tro ainda podia nos manter estveis. O ataque mais furioso do furaco havia passado, e j no vamos tanto perigo na violncia do vento; mas aguardvamos a total cessao com desnimo, acreditando seriamente que, em condies to avariadas, fatalmente pereceramos na tremenda ondulao que se seguiria. Mas essa justa apreenso no parecia ter grandes probabilidades de se concretizar. Durante cinco dias e cinco noites perodo no qual nossa subsistncia foi garantida apenas por uma pequena quantidade de acar mascavo, resgatado com grande dificuldade no castelo de proa o casco voou pelo mar numa velocidade que desafiava a compreenso, tocado por sucessivas rajadas de vento que,

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    mesmo sem se igualar violncia inicial do simum, eram mais terrveis que qualquer tempestade que eu j havia testemunhado. Nosso rumo, nos primeiros quatro dias, era sudeste para sul; e provavelmente navegamos pela costa da Nova Holanda.* No quinto dia o frio se tornou extremo, embora o vento tivesse virado um ponto para o norte. O sol nasceu com um doentio brilho amarelo e subiu apenas uns poucos graus acima do horizonte sem emitir luz decente. No se viam nuvens, mas o vento ganhava fora e soprava com uma fria espasmdica e instvel. Por volta do meio-dia, segundo a estimativa que fizramos do horrio, nossa ateno foi mais uma vez atrada pela apario do sol. Ele no emitia luz propriamente dita, mas um brilho embotado e sombrio, como se seus raios estivessem polarizados. Pouco antes de afundar no mar trgido, suas chamas centrais se apagaram de sbito, como que extintas por algum poder inexplicvel. Ele era apenas um aro turvo e prateado quando sumiu no oceano insondvel.

    Esperamos em vo pela chegada do sexto dia esse dia ainda no chegou para mim ; para o sueco, no chegou e no chegar. Dali em diante fomos envolvidos por uma escurido to negra que no podamos enxergar um objeto que estivesse a quinze metros do navio. A noite eterna nos abraava sem parar, e no havia o alvio do mar brilhante ao qual tnhamos nos acostumado nos trpicos. Tambm obser-vamos que, embora a tempestade continuasse a nos assolar com violncia incessante, no ocorria mais a usual apario de rebentao ou espuma que nos acompanhara at ali. Tudo em volta era horror e treva espessa e um opressivo e negro deserto de bano. Terrores supersticiosos foram impregnan-do aos poucos o esprito do velho sueco, e minha prpria alma ficou tomada de um assombro silencioso. Desistimos de todos os cuidados com o navio, mais do que inteis, e, segurando-nos to bem quanto possvel no toco do mastro de mezena, ficamos olhando com amargura aquele mundo

    * Austrlia. (N.T.)

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    de oceano. No tnhamos como calcular o tempo nem como adivinhar nossa localizao. Tnhamos, no entanto, plena conscincia de que avanramos mais para o sul do que qual-quer outro navegador, e nos causou grande perplexidade que no topssemos com os usuais obstculos de gelo. Enquanto isso, cada instante nos parecia ser o ltimo cada vagalho montanhoso se precipitava para nos esmagar. A ondulao superava tudo que eu j havia imaginado, e um milagre que no tenhamos sido imediatamente sepultados por ela. Meu companheiro falou da leveza de nossa carga e das excelentes qualidades do nosso navio; mas eu no conseguia deixar de pensar na desesperana da prpria esperana, e estava prepa-rado, com tristeza, para uma morte que, segundo pensei, nada poderia evitar, e que viria em questo de minutos, medida que, a cada metro que avanvamos, a ondulao negra do estupendo mar se tornava mais lgubre e pavorosa. Por vezes ofegvamos, sem ar, numa altitude de voo de albatroz por vezes ficvamos tontos com a velocidade de nossa descida para dentro de um inferno aqutico, onde o ar se estagnava e nenhum som perturbava o sono do kraken.*

    Estvamos no fundo de um desses abismos quando um grito intenso do meu companheiro irrompeu medonhamente na noite.

    Veja! Veja! ele disse, berrando em meus ouvidos. Deus todo-poderoso! Veja! Veja!

    Enquanto ele falava, tomei conscincia do brilho de uma luz vermelha, embotada e sombria, que jorrava pelas paredes do vasto precipcio em que caramos e iluminava em espasmos o nosso convs. Olhando para cima, contemplei um espetculo que congelou o sangue em minhas veias. A uma altura assustadora, diretamente acima de ns, e bem na margem do precipcio, estava suspenso um navio gigan-tesco, de umas quatro mil toneladas. Embora estivesse no topo de uma onda cuja altura devia ser cem vezes maior do que a sua, seu tamanho aparente, mesmo assim, excedia o

    * Monstro marinho nrdico. (N.T.)

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    de qualquer navio de guerra ou da Companhia das ndias. Seu enorme casco era de um preto sujo e profundo, e era desprovido dos entalhes habituais de um navio. Uma nica fileira de canhes de bronze se projetava das portinholas abertas, que refletiam, nas superfcies polidas, as chamas de inumerveis lanternas de batalha, que balanavam para l e para c no cordame. Mas o que mais nos encheu de horror e perplexidade foi que ele se sustentava, com todo o pano nos mastros, na superfcie de um mar sobrenatural, nas garras de um furaco incontornvel. Quando comeamos a avist-lo, s vamos a proa, enquanto ele subia devagar e deixava atrs de si um abismo obscuro e horrvel. Durante um momento de intenso terror, ele parou sobre o vertiginoso pinculo, como que contemplando sua prpria sublimidade; ento estremeceu e vacilou e caiu.

    Nesse instante, passei a sentir em meu esprito um au-tocontrole inexplicvel. Cambaleando, recuei para a popa o mais que pude e aguardei sem medo a runa que esmagaria tudo. Nossa prpria embarcao estava agora desistindo de lutar e afundava de cabea no oceano. O choque daquela massa descendente a atingiu, assim, na poro de sua estru-tura que j estava submersa, e o resultado inevitvel foi que fui arremessado, com irresistvel violncia, at o cordame do navio estranho.

    Quando ca nele, o navio girou, virou de bordo e prosseguiu; confuso que se deu atribu o fato de minha presena no ter sido percebida pela tripulao. Com pouca dificuldade, caminhei, despercebido, at a escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e logo tive oportunidade de me esconder no poro de carga. No sei bem como explicar por que fiz isso. Um sentimento indefinido, um temor que senti quando olhei pela primeira vez para os marinheiros do navio, foi, quem sabe, o que me fez procurar refgio. Eu no estava disposto a confiar numa espcie de gente que, ao meu olhar apressado, inspirava tantas impresses vagas de novidade, de dvida e de apreen so. Julguei que o mais

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    apropriado, portanto, era arranjar um es conderijo no poro de carga. Para tanto, arranquei umas poucas pranchas do cho, de modo que pudesse obter um abrigo conveniente entre as enormes vigas do navio.

    Eu mal acabara de completar meu trabalho quando ouvi passos no poro e me vi obrigado a fazer uso do abrigo. Um homem passou por meu esconderijo com um andar lento e irregular. No consegui enxergar seu rosto, mas tive opor-tunidade de observar sua aparncia geral. Havia nela uma evidncia de idade avanada e de enfermidade. Seus joelhos vacilavam com o peso dos anos, e toda a figura do homem tremia em funo do fardo. Ele murmurava para si, num tom baixo e entrecortado, palavras de uma lngua que eu no entendia, e tateou, num canto, em meio a um monte de instrumentos estranhos e mapas de navegao deteriorados. Suas maneiras eram uma mistura bizarra de rabugice senil com a solene dignidade de um deus. Por fim ele subiu ao convs, e no o vi mais.

    * * *

    Um sentimento, para o qual no tenho nome, tomou posse de minha alma uma sensao que no admite anlise, para a qual as lies do passado so inadequadas e para a qual, eu temo, nem mesmo a futuridade trar a chave. Para uma mente constituda como a minha, esta ltima considera-o uma desgraa. Nunca estarei sei que nunca estarei satisfeito no que concerne natureza de minhas concepes. E, contudo, no de estranhar que essas concepes sejam indefinidas, visto que se originam de fontes to completa-mente inditas. Um novo sentimento uma nova entidade foi adicionada a minha alma.

    * * *

    Faz muito tempo que andei pela primeira vez pelo convs deste terrvel navio, e os raios do meu destino esto, creio, convergindo para um foco. Homens incompreens-veis! Afogados em meditaes de um tipo que no consigo

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    compreender, eles passam por mim e no notam minha presena. Esconder-me puro desatino de minha parte, pois estas pessoas no querem ver. Foi agora mesmo que passei bem diante dos olhos do imediato; no foi muito tempo atrs que me aventurei a entrar na cabine privada do capito e de l tirei os materiais com que escrevo e venho escrevendo. De tempos em tempos darei continuidade a este dirio. verdade que eu posso no vir a ter oportunidade de transmiti-lo ao mundo, mas no abrirei mo de tentar. No ltimo momento, acondicionarei o manuscrito numa garrafa, e lanarei a garrafa ao mar.

    * * *

    Ocorreu um incidente que me forneceu novos pontos para meditao. Ser tudo isto a operao de um acaso desgovernado? Eu me aventurara pelo convs e me dei-tara, sem despertar nenhuma ateno, entre um monte de enfrechates e velame velho, no fundo do escaler. Cismando na singularidade do meu destino, pincelei distraidamente, com uma brocha de alcatro, as extremidades de uma vela leve, dobrada com cuidado, que vi perto de mim, sobre uma barrica. Essa vela est agora iada no navio, e as pinceladas impensadas formam a palavra DESCOBERTA.

    Observei muito, nos ltimos tempos, a estrutura do navio. Embora bem armado, ele no , creio, um navio de guerra. O cordame, a construo, os equipamentos em geral, tudo refuta uma suposio desse tipo. O que ele no , posso perceber com facilidade; o que ele , temo que seja impossvel dizer. No sei como pode ser, mas, quando analiso seu estranho modelo e sua singular mastreao, seu vasto tamanho e seu enorme conjunto de velas, sua proa bastante simples e sua popa antiquada, dispara ocasionalmente pelo meu crebro uma sensao de familiaridade, e, a essas indistintas sombras de recordao, mistura-se sempre uma memria inexplicvel de velhas crnicas estrangeiras e de eras muito remotas.

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    Tenho reparado no madeirame desta nau. Ela feita de um material que me estranho. H uma caracterstica peculiar na madeira que me surpreende por parecer torn-la imprpria para o propsito ao qual foi aplicada. Refiro-me a sua extrema porosidade, considerada independentemente de sua condio de poder ser devorada por vermes, o que uma consequncia da navegao por estes mares, e parte da podrido que chega com o tempo. Parecer, talvez, uma observao algo extravagante, mas essa madeira teria todas as caractersticas do carvalho espanhol, se o carvalho espa-nhol pudesse se dilatar por meios artificiais.

    Lendo a sentena acima, um curioso aforismo de um navegador holands, um velho calejado pelas intempries, vem na hora minha cabea: to certo, ele tinha o cos-tume de dizer, quando alguma dvida era levantada acerca da veracidade de sua histria, como certo que h um mar onde o prprio navio aumenta de volume, como o corpo vivo do marinheiro.

    * * *

    Cerca de uma hora atrs, tive a audcia de me intro-duzir num grupo de tripulantes. Eles no me deram ateno e, embora eu me parasse exatamente no meio de todos eles, simplesmente no tomaram conhecimento da minha presena, ao que pareceu. Como aquele que eu vira no poro, todos carregam com eles as marcas de uma velhice encanecida. Seus joelhos tremiam por enfermidade; seus ombros se curvavam por decrepitude; suas peles enrugadas estalavam no vento; suas vozes eram baixas, trmulas e entrecortadas; seus olhos reluziam com a reuma dos anos; e seus cabelos grisalhos ondeavam de uma forma horrvel na tempestade. Em volta deles, em todos os cantos do convs, espalhavam-se instrumentos matemticos de configurao esquisita e obsoleta.

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    Mencionei, algum tempo atrs, o envergamento de uma vela leve. De l para c, o navio, arrastado a toda pelo vento, continuou seu aterrorizante avano para o sul, com todas as velas esfarrapadas sendo utilizadas, todo o pano largado nos mastros principais e nos botals baixos e, a todo momento, balanando as vergas do mastaru no inferno de gua mais apavorante que a mente de um homem j pde conceber. Acabei de sair do convs, onde me parece ser impossvel ficar de p, embora a tripulao no esteja passando por maiores inconvenientes. para mim o milagre dos milagres que o nosso enorme casco no seja engolido de uma s vez e para sempre. Estamos condenados a pairar continuamente beira da eternidade, sem nunca efetuar o mergulho final no abismo. Por vagalhes mil vezes mais estupendos do que qualquer um que eu j tenha visto, planamos com a agilidade certeira de uma gaivota; e as guas colossais elevam suas cabeas sobre ns como demnios das profundezas, mas como demnios que se limitam a ameaar e esto proibidos de destruir. Inclino-me a atribuir nossas salvaes frequentes nica causa natural que pode dar conta de tal efeito. Su-ponho que o navio avana sob a influncia de alguma forte corrente, ou de alguma impetuosa ressaca.

    * * *

    Estive com o capito frente a frente e em sua prpria cabine mas, como eu j esperava, ele no me deu ateno. Embora em sua aparncia no haja, para um observador casual, nada que possa indicar que ele seja mais ou menos humano, um sentimento de irreprimvel reverncia e temor se misturava sensao de espanto com que eu o encarava. Sua altura quase idntica minha: ele tem cerca de um metro e setenta. Sua compleio fsica compacta e bem-formada, nem robusta nem muito franzina. Mas a singularidade da expresso que reina em seu rosto, a intensa, a maravilhosa e a vibrante evidncia de velhice, to funda, to extremada,

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    o que excita em meu esprito uma sensao um sentimento inefvel. Sua fronte, apesar de pouco enrugada, parece trazer consigo a estampa de uma mirade de anos. Seus cabelos grisalhos so registros do passado, e seus olhos, ainda mais cinzentos, so as sibilas do futuro. O cho da cabine estava abarrotado de in-flios estranhos com fechos de ferro, de instrumentos cientficos deteriorados e de mapas obsoletos e h muito esquecidos. O capito tinha a cabea apoiada nas mos e estudava atentamente, com um olhar vibrante e inquieto, um papel que julguei ser uma procurao e que, em todo caso, trazia a assinatura de um monarca. Ele murmurava consigo, em voz baixa como fazia aquele marinheiro que vi no poro , algumas slabas rabugentas de uma lngua estrangeira; e embora ele estivesse bem ao meu lado, sua voz parecia a de um homem que est a um quilmetro de distncia.

    * * *

    O navio e tudo nele esto imbudos com o esprito da Antiguidade. Os marinheiros deslizam para l e para c como fantasmas de sculos enterrados; seus olhos tm uma expresso ansiosa e apreensiva; e quando seus vultos cru-zam o meu caminho, na claridade agreste das lanternas de batalha, sinto o que nunca senti antes, embora eu tenha sido um negociante de antiguidades durante toda a vida e tenha me embebido nas sombras das colunas cadas em Balbec, em Tadmor e em Perspolis, at que minha prpria alma se transformasse em runa.

    * * *

    Quando olho ao redor, sinto vergonha de minhas apreenses iniciais. Se tremi diante da tempestade que nos acompanhou at aqui, no devo ficar horrorizado diante da guerra entre vento e oceano, cuja ideia as palavras tornado e simum so triviais demais para transmitir? Tudo que h nas proximidades imediatas do navio a escurido da noite

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    eterna e um caos de gua sem espuma; a mais ou menos uma lgua para cada lado do navio, porm, podem ser vistos, de maneira indistinta e a intervalos, estupendos baluartes de gelo, que se erguem a perder de vista no cu desolado, como se fossem as muralhas do universo.

    * * *

    Como imaginei, comprova-se que o navio segue uma corrente se que se pode nomear apropriadamente assim um fluxo que, uivando e gritando pelo gelo branco, troveja para o sul com a velocidade impetuosa e enrgica de uma catarata.

    * * *

    Conceber o horror de minhas sensaes , presumo, completamente impossvel; e, no entanto, uma curiosidade de penetrar os mistrios desses lugares horrendos prevalece at mesmo sobre o meu desespero, e me reconcilia com o teor medonho da morte. verdade que estamos voando na direo de alguma revelao emocionante de algum segredo que no poder ser revelado jamais, cuja descoberta nos destruir. Talvez essa corrente nos leve ao prprio Polo Sul. preciso confessar que uma suposio como essa, em princpio to brbara, tem todas as probabilidades a seu favor.

    * * *

    A tripulao percorre o convs com passos trmulos e inquietos; mas h em seus semblantes uma expresso que mais a avidez da esperana do que a apatia do desespero.

    Enquanto isso, o vento ainda sopra em nossa popa e, como temos todo o pano do mundo nos mastros, o navio s vezes flutua sem tocar as guas! Ah, horror dos horrores! O gelo de repente se abre direita e esquerda, e estamos rodo-piando vertiginosamente em imensos crculos concntricos, girando em torno de um gigantesco anfiteatro, cujas paredes so to altas que se perdem na escurido e na distncia. Mas

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    pouco tempo me restar para ponderar sobre o meu destino! Os crculos se fecham cada vez mais, estamos mergulhando loucamente nas garras do redemoinho e em meio a um rugir e urrar e trovejar de oceano e de tempestade, o navio est estremecendo e meu Deus! afundando!

    Nota: O Manuscrito encontrado numa garrafa foi pu-blicado originalmente em 1831; e foi s muitos anos depois que tomei conhecimento dos mapas de Mercator, nos quais o oceano representado precipitando-se, por quatro bocas, para dentro do (setentrional) Golfo Polar, para ser absorvido pelas entranhas da Terra; o prprio Polo representado por uma rocha negra que se eleva a uma altura prodigiosa.