ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

219
ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ RENDA BÁSICA DE CIDADANIA E POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL ELEMENTOS PARA UM DEBATE Tese apresentada com vista obtenção do título de Doutora em Ciências na área de Saúde Pública MARÍLIA PASTUK ORIENTADORA: SÍLVIA GERSCHMAN Março de 2005

Transcript of ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

Page 1: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

RENDA BÁSICA DE CIDADANIA E POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

ELEMENTOS PARA UM DEBATE

Tese apresentada com vista obtenção do título de

Doutora em Ciências na área de Saúde Pública

MARÍLIA PASTUK

ORIENTADORA: SÍLVIA GERSCHMAN

Março de 2005

Page 2: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

AGRADECIMENTOS

À Sílvia Gerschman, orientadora.

À minha mãe, Avany Pastuk, pelo incentivo de sempre.

À Margot, Quelo e Iuri, por todo afeto.

A todas as companheiras e companheiros da Ação Comunitária do Brasil do

Rio de Janeiro, particularmente à Carla Maria da Silva, Cláudia Fonseca,

Maria Celeste Lopes, Neuza Roque, Viviane Martins, Eduardo Bracony Jr e

Anderson Corrêa Silva, pelo apoio solidário.

Aos funcionários, professores, professoras e colegas da ENSP pela ajuda,

possibilidades de aprendizagem e troca.

A Eduardo Suplicy e Carlos Frausino, pelo incentivo e troca.

À Maria Regina Soares de Lima e Alicia Ugá, pelas contribuições

acadêmicas.

À Tema Pechman e à Cláudia Boccia, pelo profissionalismo da revisão.

A Arnaldo Goldemberg, pela retaguarda.

Page 3: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

THANKS

To Sílvia Gerschman, the person who guided this work.

To my mother, Avany Pastuk, for the incentive of always.

To Margot, Quelo and Iuri, for all affection.

To all the friends at Ação Comunitária do Brasil/RJ, mainly to Carla Maria da Silva,

Cláudia Fonseca, Maria Celeste Lopes, Neuza Roque, Viviane Martins, Eduardo Bracony

Jr and Anderson Corrêa Silva, for the solidary support.

To the employees, professors and colleagues at ENSP for the aid, possibilities of learning

and exchange.

To Eduardo Suplicy and Carlos Frausino, for the incentive and change.

To Maria Regina Soares de Lima and Alicia Ugá, for the academic contributions.

To Tema Pechman and Cláudia Boccia, for the professionalism of the revision.

To Arnaldo Goldemberg, for the support.

Page 4: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

RESUMO

O objeto deste trabalho são as políticas públicas sociais, particularmente

àquelas relacionadas com a transferência direta de benefícios monetários de

caráter não-contributivo. Este visa oferecer elementos para um debate mais

substantivo acerca da pertinência da implantação da renda básica de

cidadania no Brasil no sentido de inovar do ponto de vista social e fazer

frente à maior problemática que o país tem revelado historicamente que diz

respeito à desigualdade na sua estrutura de distribuição de riquezas e

renda. A questão da justiça social na alocação de recursos está subjacente à

temática considerando a modalidade de renda em questão como uma

política potente do ponto de vista redistributivo. Neste sentido foram aqui

trabalhadas as formulações teóricas John Rawls e Amartya Sen, importantes

representantes do debate atual sobre princípios de justiça capazes de

promover os ideais de igualdade e de liberdade. A renda básica de cidadania

é considerada congruente com os princípios de justiça formulados por

Rawls, além de estimular a aquisição das “capacidades” ou “liberdades”

propostas por Sen.

Page 5: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

ABSTRACT

The object of this work is the social public politics, particularly those related

with the straight transference of monetary benefits of not contributive

character. It aims to offers elements for a more substantive debate

concerning the relevancy of the implantation of the basic income of

citizenship in Brazil, in the direction to innovate of the social point of view

and to make front to the greater problematic the country has disclosed

throughout the years in respect to inequality in its structure of distribution

of wealth and income. The question of social justice in the allocation of

resources is underlying to the thematic considering the modality of income

in question as one powerful politics of the distributive point of view. In this

direction the theoretical formularizations of John Rawls e Amartya Sen had

been worked, since they are important representatives of the current

debate on the principles of justice capable to promote the freedom and

equality ideals. The basic income of citizenship is considered coherent with

the formulated principles of justice, besides stimulating the acquisition of

the “capacities” or “freedoms” proposed by Sen.

Page 6: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

INTRODUÇÃO 1 I A JUSTIÇA SOCIAL EM JOHN RAWLS E AMARTYA SEN 8 I.1 Considerações Iniciais 8 I.2 John Rawls 17 I.2.1 Considerações preliminares 17 I.2.2 Crítica ao utilitarismo 20 I.2.3 A opção pelo contrato social e o liberalismo de Rawls 23 I.2.4 A posição original e o véu de ignorância 25 I.2.5 Os princípios de justiça 26 I.2.6 A justiça como eqüidade 29 I.2.7 Implicações redistributivas 32 I.2.8 A democracia em Rawls 33 I.2.9 Críticas à teoria rawlsiana 37 I.3 Amartya Sen 39 I.3.1 A teoria da capacidade 39 I.3.2 O desenvolvimento como liberdade 46 I.3.3 A crítica ao utilitarismo 48 I.3.4 A crítica a Rawls e a contribuição de Nussbaum 50 I.4 A título de conclusão 53 II DA RENDA MÍNIMA À RENDA DE CIDADANIA 57 II.1 O Estado de Bem-Estar Social Revisto 57 II.1.1 Origem e Desenvolvimento 57 II.1.2 A contribuição de Offe & Lenhardt 65 II.1.3 A crise do Welfare State 66 II.2 Propostas de Transferência Direta de Renda 80 II.2.1 Considerações iniciais 80 II.2.2 As contribuições de Friedman, Aznar, Gorz e Rosanvallon 89 II.3 A renda básica ou a renda básica de cidadania 98 II.3.1 Propostas concretas 106 III RENDA MÍNIMA E RENDA DE CIDADANIA NO BRASIL 119 III.1 A questão social na América Latina 119 III.2 A dissociação entre pobreza e desigualdade – A relação entre pobreza e exclusão 128 III.3 O sistema de proteção social brasileiro III.3.1 Considerações iniciais III.3.2 1930-1995 III.3.3 1995 até a atualidade III.4 Renda mínima e renda de cidadania III.4.1 Renda mínima III.4.2 A renda de cidadania BIBLIOGRAFIA ANEXOS Programas de transferência monetária na América Latina

Page 7: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

1

INTRODUÇÃO

O Brasil reconheceu formalmente direitos sociais no final do século

XX, depois de um prolongado período de ditadura militar que, embora

tivesse adotado a ideologia desenvolvimentista do Estado-Nação e

produzido alguns poucos avanços na área social, não incluiu na sua agenda

pactos sociais visando à universalização da cidadania, cujo conceito –

equivocadamente – foi chancelado como luta contra a pobreza. Direitos

sociais como à saúde, por exemplo, só foram reconhecidos no Brasil com a

promulgação da Constituição Federal de 1988 (Sposati, 2002).

Tal Constituição, dita “Cidadã”, estabelece como objetivos da

República:

“construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o

desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e

reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de

todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º). Como

fundamentos do Estado democrático de Direito o texto constitucional

afirma a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Os direitos sociais incluem educação, saúde, moradia, trabalho, lazer,

segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e

assistência aos desamparados” (art.6º).

A Constituição “Cidadã”, assim, apontou para uma mudança no

caráter do sistema de proteção social brasileiro, o qual se tornou mais

igualitário e universalista. De fato, entre outros aspectos, percebe-se no

texto dessa Carta o aprofundamento da vertente redistributiva das políticas

sociais; o maior controle público e social de sua execução e regulação; a

expansão da cobertura e o atenuamento do vínculo contributivo como

estruturador do sistema (Costa, 2002 apud Draibe, 1989).

No entanto, a realidade brasileira está longe de cumprir esses

preceitos constitucionais, o que faz com a maioria da população não tenha

Page 8: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

2

direitos de cidadania garantidos. Um exemplo concreto neste sentido diz

respeito à situação da criança e do adolescente, particularmente daqueles

de mais baixa renda. Embora o Brasil conte com uma legislação avançada

com relação aos direitos destes, o Estatuto da Criança e do Adolescente,

promulgado em 1990, sua operacionalização tem se mostrado incipiente

uma vez que a implementação de políticas sociais correlatas tem sido muito

lenta, pouco eficiente e eficaz (Unicef, 1997).

Dessa forma, se observa uma distância significativa entre a lei

constitucional, as leis ordinárias e as práticas sociais adotadas no país

restringindo, muitas vezes, a cidadania às liberdades civis e políticas. Tal

fato fica agravado quando se considera que o Brasil é marcado por uma

profunda desigualdade decorrente de uma política oligárquica, de uma alta

concentração de renda e elevada exclusão social.

Conforme Barros et alli. (2000), existiria um número bem menor de

pobres no país se seu grau de desigualdade social fosse condizente com o

de desenvolvimento econômico; ou seja, se seu crescimento tivesse

implicado na melhoria da qualidade de vida do conjunto da população

respectiva, o que não ocorreu. Assim, falta no Brasil uma política

redistributiva que, implantada gradual e responsavelmente, busque uma

maior eqüidade, permitindo a redução do tremendo fosso que separa ricos e

pobres no bojo da sociedade. No entanto, essa não tem sido a orientação

que o governo brasileiro tem seguido nos últimos anos, muito mais

preocupado com ajustes macroeconômicos, os quais tornam restritos tanto

a atuação quanto o gasto na área social.

Frente ao exposto, não é à toa que o Brasil apresente um baixo índice

de desenvolvimento humano. Na realidade, a adoção de um paradigma

desta natureza (incluindo indicadores de renda, saúde e educação) depende

não só da revisão do modelo econômico adotado no país de forma a

articulá-lo com o social, como também do aprofundamento do respectivo

processo de democratização no sentido de viabilizar o empoderamento

grupos socialmente vulneráveis.

Page 9: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

3

De todo modo, o governo Lula inovou quando fez do Brasil o primeiro

país do mundo a aprovar uma Lei, em janeiro de 2004, que institui a renda

básica de cidadania no bojo do mesmo, beneficiando todos os brasileiros e

estrangeiros aqui residentes, há cinco anos ou mais, com a transferência de

um benefício monetário, de forma universal, equânime, uniforme e

incondicional. Mas, o que significa tal aprovação? Será que, de fato, o Brasil

está caminhando em direção à universalização de direitos, como determina

sua Carta Constitucional? Quais os principais desafios neste sentido? Como

estão os programas de transferência de renda já implantados no país?

Quais seus maiores impasses? Como será trilhado o caminho em direção à

renda de cidadania?

No sentido de precisar melhor as questões supracitadas e contribuir

com o debate acerca das mesmas foram eleitas como objeto deste trabalho

as políticas públicas sociais adotadas nas duas últimas décadas,

particularmente àquelas relacionadas com a transferência direta de

benefícios monetários de caráter não-contributivo até chegar-se à proposta

da renda básica de cidadania, considerando-se o caso desta em particular.

Tal trabalho visa oferecer elementos para uma reflexão mais

substantiva acerca da pertinência dessa última, visando fazer frente à maior

problemática que o país historicamente tem revelado que diz respeito à

desigualdade na sua estrutura de distribuição de riquezas e de renda. A

questão da justiça social na definição de políticas afins está subjacente à

discussão que o embasa, considerando a renda básica de cidadania como

uma política potente do ponto de vista redistributivo, o que será visto nos

capítulos II e III subseqüentes.

O primeiro capítulo resgata aspectos gerais das formulações teóricas

de John Rawls e de Amartya Sen com relação à justiça social incluindo

noções de igualdade e liberdade, que servem como fundamento para a

concepção de políticas públicas em geral e da renda básica de cidadania em

particular.

Page 10: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

4

Tais autores concebem a justiça como um valor moral complexo que

abriga formas diversas de liberdade, além da eqüidade social; reconhecem

o papel do Estado em fazer cumpri-la diante das restrições que o mercado

coloca neste sentido e tendem a favorecer a idéia de que as políticas sociais

implementadas pelo mesmo [Estado] são formas insubstituíveis de

realização da justiça distributiva.

Rawls e Sen acreditam, ainda, que determinados direitos individuais

invioláveis devem ser protegidos pelo Estado e também na neutralidade

deste com relação às diferentes concepções de “boa vida” que os cidadãos

possam ter. Por meio dos seus trabalhos, ressaltam a “adequação moral de

uma política distributiva respaldada por princípios de justiça consensuais”

(Peixoto Ramos, 2003:4).

Quanto à Rawls, é um dos pilares do pensamento político conhecido

como “liberal”, segundo o qual uma concepção de justiça adequada deve

ser capaz de assegurar a possibilidade de todos os indivíduos de uma

sociedade particular realizar seu projeto de vida. Dessa forma, o autor

pretende conceber um Estado plural e neutro a um só tempo.

No que diz respeito a Sen, se propõe a compreender melhor os

processos de distribuição de vantagens e oportunidades que se produzem

em economias de mercado, fazendo uso de critérios de justiça para tanto.

Segundo ele, a adoção de mecanismos democráticos no bojo dessas

economias pode ser uma das vias para melhor articular o binômio

igualdade-liberdade. De certa forma, é o que John Rawls, com claras

semelhanças e diferenças com relação à Amartya Sen, também se propõe a

realizar.

O segundo capítulo desse trabalho procura resgatar em grandes

linhas a trajetória que vai das propostas de renda mínima até a proposta de

renda básica de cidadania, sobretudo no contexto europeu, passando pela

análise da origem e desenvolvimento do Estado de Bem Estar Social neste

Continente, bem como da crise respectiva, visando apresentar o contexto

Page 11: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

5

em função do qual programas de transferência direta de renda começaram

a ser implementados.

O terceiro capítulo trata especificamente da implantação de

programas de transferência monetária no Brasil, passando por uma análise

geral da trajetória do sistema de proteção social latinoamericano e

brasileiro e das problemáticas da pobreza, da desigualdade e da exclusão

social. Este finaliza com uma discussão acerca do percurso que levou à

aprovação da lei que institui a renda básica de cidadania no país, incluindo

o debate em torno dos programas correlatos.

Na conclusão aponta-se para os principais impasses e contradições

que se diagnostica no Brasil com relação à efetivação, na prática, da lei

retrocitada. Em tal conclusão, transporta-se o tema da justiça distributiva

para a realidade do país analisando-se a pertinência de atribuir à renda

básica de cidadania papel preponderante neste sentido, avaliando-se a

coerência da sua concepção com a realização dos princípios de justiça

propostos por John Rawls e por Amartya Sen. Finalmente, traz-se à tona

novas questões que poderão ajudar no desdobramento do debate que se

pretende estimular.

- Procedimentos Teórico-Metodológicos

Para fins desse trabalho, a democracia foi entendida “como o regime

político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos

humanos”, [que significa contemplar] “as liberdades civis e a participação

política ao mesmo tempo em que se reivindica a igualdade e a prática da

solidariedade” (Benevides, 2001:1).

Considerou-se ainda a capacidade de governar enquanto fundamental

na modelagem dos limites e possibilidades dos processos de viabilização das

políticas públicas (Gaetani, 1997). Nesse sentido, se partiu da crença que a

qualificação do debate sobre tais políticas estava intrinsecamente

relacionada com a análise do funcionamento do Estado mais

Page 12: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

6

especificamente das relações - nem sempre harmônicas - estabelecidas

entre os poderes executivo, judiciário e legislativo que, no caso do Brasil, se

ressentem dos longos anos do autoritarismo político. Aqui “os partidos

políticos são profundamente frágeis e a lógica da barganha político-

sistêmica prevalece, em detrimento de posicionamentos políticos sobre o

conteúdo dos problemas”, conforme ressalta Gaetani (1997).

Quanto às políticas sociais, assumiu-se que estas, por sua vez, se

ressentem de uma abordagem intersetorial, não dialogando entre si. Estas,

traduzidas em

“burocracias auto-contidas e auto-referenciadas (saúde, educação e

assistência social, entre outras) possuem uma baixíssima articulação

horizontal. Acostumadas à posição de crônicas pedintes do comando

econômico, paradoxalmente [...] costumam competir entre si [...] por

recursos financeiros, competências legais, visibilidade institucional,

interlocução com agências multilaterais de fomento, atendimento da

classe política etc” (Gaetani, idem).

Neste contexto, citando Kliksberg (1994), identificou-se os três

“mitos” presentes no imaginário da sociedade política, que afetam a gestão

das políticas sociais, quais sejam: a) a pretensa ilegitimidade do gasto na

área, como se os recursos ai alocados fossem objeto de uma destinação

fatalmente inútil; b) a crença na ineficiência congênita do gerenciamento

social; c) a visão burocrática-formalista da gestão respectiva, como se os

processos de formulação e implementação das políticas devessem

responder a um continuum. A estes mitos, Kliksberg acrescenta ainda a

fragmentação das políticas sociais e a despolitização de sua carga de

conteúdo pelas autoridades econômicas. Neste sentido, segundo ele,

contextualizar as políticas sociais é, antes de mais nada, recuperar sua

dimensão política e conflitiva, isto é, re-politizá-las.

Quanto à intersetorialidade, para fins do trabalho ora apresentado, foi

definida como a “articulação de saberes e experiências no planejamento,

realização e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgico em situações

Page 13: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

7

complexas visando o desenvolvimento social, superando a exclusão social”

(Junqueira & Inojosa, 1997). Esta foi percebida ainda como um novo

paradigma para os programas sociais, o qual pressupõe uma forma de

interação diferenciada entre os atores que conformam o aparato estatal e a

sociedade civil. Pressupõe ainda a adoção de mudanças nas diretrizes e

práticas na estrutura administrativa-organizacional da qual estes fazem

parte.

A realização desse se deu a partir do pressuposto que a

intersetorialidade, assim como outros aspectos que a renda básica de

cidadania sugere, estava condicionada ao grau de comprometimento do

poder público com os grupos de interesse que lhe dão sustentação e são

aliados e à sua maior ou menor sintonia.

Quanto à viabilidade político-institucional de sua implementação no

contexto do país, partiu-se do pressuposto que tinha a ver com as relações

estabelecidas entre o executivo e o legislativo e destes, com a sociedade

civil. Neste sentido, foi feito um acompanhamento sistemático da

tramitação no Congresso Nacional (no Senado Federal e na Câmara dos

Deputados) do Projeto de Lei que institui a Renda de Cidadania no Brasil,

sancionado pelo presidente da República em 08 de janeiro de 2004.

Paralelo a esse, foi feito um acompanhamento do debate acerca dos

programas de transferência de renda no executivo, da unificação daqueles

do Governo Federal e das avaliações para a ampliação da sua cobertura.

Igualmente foram analisadas propostas similares implantadas no país

identificando seus pontos de convergência, divergência e contradições.

Pretendeu-se especificamente sistematizar o debate acadêmico e

político em torno da proposta da renda básica de cidadania, da viabilidade

político-institucional de sua implementação e das implicações decorrentes

no sentido da definição de uma política social para o país que revelasse

aspectos inovadores, como a integralidade e a intersetorialidade.

Page 14: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

8

Tal debate foi analisado a partir da utilização de fontes secundárias

de pesquisa e da realização de entrevistas semi-estruturadas com principais

personalidades que estão trabalhando com esta temática, seja na academia,

em institutos de pesquisas e fundações, seja no legislativo e/ou no

executivo.

Assim, para a realização desse trabalho, optou-se por uma

metodologia qualitativa de investigação e pesquisa, baseada na ótica da

realidade construída por atores diversos que interagem entre si. Como

estratégia, optou-se pelo estudo de caso (análise da tramitação do Projeto

de Lei que institui a renda básica de cidadania no país), o qual buscou

analisar um fenômeno em termos compreensivos em função do contexto

que o condiciona e é por ele condicionado. Finalmente, optou-se pela

utilização da técnica da observação participante.

Page 15: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

9

I A JUSTIÇA SOCIAL EM JOHN RAWLS E AMARTYA SEN

I.1 Considerações Iniciais

Segundo Laisner, o século XX pode ser considerado como o século do

triunfo da democracia, já que o regime democrático foi estabelecido como

organização política preeminente deste período. Nas palavras da autora:

“[...] as instituições básicas da democracia e seus princípios

tornaram-se, hoje, moedas comuns e incorporaram-se à retórica

prevalecente, assumindo valores de algo próximo ao próprio do senso

comum. O fortalecimento e a universalização do sufrágio universal,

da equilibração dos poderes, da liberdade de expressão e de

associação, do reconhecimento formal dos direitos sociais, de

garantias civis e prerrogativas cidadãs trouxeram consigo aspirações

por sociedades mais justas e igualitárias” (2002:2).

Tais aspirações, no entanto, entram em contradição com o grau de

desigualdade social, “a violação de liberdades políticas elementares e de

liberdades formais básicas, o crescimento alarmante da violência urbana e o

descaso com os direitos humanos” existente, o que, embora pudesse ser

considerado como “um descompasso entre princípios democráticos e sua

aplicação” (Laisner, 2002:2), não é verdadeiro uma vez que o conceito de

democracia não tem um sentido unívoco.

Nesse contexto, no campo das teorias da justiça proliferam princípios

e concepções que separam desigualdades justificáveis daquelas que não o

são, em que, além da eficiência econômica, da eqüidade e da igualdade, a

própria democracia desponta como um dos critérios para essa classificação.

Segundo Bobbio, o conceito de democracia tem dois significados

nitidamente distintos: seja associado a um valor universal, seja a um

sistema político, diferenciando democracias formais de democracias

substanciais. As primeiras, segundo o autor, indicam um conjunto de meios,

Page 16: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

10

de regras de comportamento que não estão relacionadas com os fins. Já as

segundas indicam um conjunto de fins, “entre os quais sobressai o fim da

igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios

adotados para os alcançar” (Bobbio, 1982:328).

“Juntamente com a noção comportamental de Democracia, que

prevalece na teoria política ocidental e no âmbito da ‘political

science’, foi-se difundindo, na linguagem política contemporânea, um

outro significado de Democracia que compreende formas de regime

político como as dos países socialistas ou dos países do Terceiro

Mundo, especialmente, dos países africanos, onde não vigoram ou

não são respeitadas mesmo quando vigoram algumas ou todas as

regras que fazem que sejam democráticos, já depois de longa

tradição, os regimes liberais-democráticos e os regimes sociais-

democráticos. Para evitar a confusão entre dois significados tão

diversos do mesmo termo prevaleceu o uso de especificar o conceito

genérico de Democracia como um atributo qualificante e, assim, se

chama de ‘formal’ a primeira e de ‘substancial’ a segunda. Chama-se

formal à primeira porque é caracterizada pelos chamados

‘comportamentos universais’ (universali procedurali), mediante o

emprego dos quais podem ser tomadas decisões de conteúdo diverso

(como mostra a co-presença de regimes liberais e democráticos ao

lado dos regimes socialistas e democráticos). Chama-se substancial à

segunda porque faz referência prevalentemente a certos conteúdos

inspirados em ideais característicos da tradição do pensamento

democrático, com relevo para o igualitarismo. Segundo uma velha

fórmula que considera a Democracia como Governo do povo para o

povo, a democracia formal é mais um Governo do povo; a substancial

é mais um Governo para o povo” (Bobbio, 1982:328).

Pelo visto, historicamente, "democracia" assume um significado

formal ou substancial, conforme se ponha em maior evidência um conjunto

de regras cuja observância é necessária para que o poder político seja

efetivamente distribuído entre a maioria dos cidadãos, ou um ideal em que

um governo democrático deva se inspirar, que é o da igualdade. De todo

Page 17: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

11

modo, Bobbio reconhece que não se pode imaginar uma democracia sólida

e forte que não esteja fundada sobre princípios de justiça.

Pode-se considerar, assim, que o conceito de democracia se refere a

um tipo de sistema político que acontece em um contexto determinado, no

qual é importante observar a regra da maioria, cuja base está em um

princípio de igualdade em que todos têm o mesmo poder de escolha e

decisão.

No entanto, conforme ressalta Machado da Silva,

“[...] regimes democráticos não garantem de antemão a igualdade,

mas geram a possibilidade de que ela venha a ser atingida aos

poucos, por meio do próprio conflito social. [...] [tais regimes] abrem

possibilidades de aprofundamento progressivo da igualdade entre os

seres humanos, com a vantagem de, não sendo regimes de força,

permitir que nesse movimento sejam preservadas as diferenças entre

os indivíduos e os grupos, isto é, as características particulares que

eles mesmos prezam” (2004:2).

O autor chega às seguintes conclusões relativas aos regimes

democráticos:

a) se assentam sobre dois pilares: Estado forte no sentido de aceito e

legitimado e esfera pública ampla;

b) têm vocação para aprofundar progressivamente a igualdade social

sem impor uma homogeneização forçada;

c) “pacificam” a luta dos inferiores pelo aprofundamento da igualdade

social (Machado da Silva, 2004:4).

Machado da Silva considera que tais colocações são definições e

ideais a um só tempo, uma vez que dizem respeito “a uma avaliação do que

é e do que precisa vir a ser”. Ou seja, na sua percepção “a própria definição

da democracia já é crítica da situação que é capaz de identificar e

propositiva sobre a intervenção necessária. Por princípio, ela não pode se

Page 18: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

12

satisfazer com o que encontra na realidade”. Em face desse quadro, ele

ressalta que “democracia” não é um conceito estático e, sim, dinâmico.

“[A democracia] não se refere a uma estrutura parada no tempo,

congelada, cristalizada, mas a um processo. Por isso, diz-se que a

cidadania – termo que se refere ao conjunto dos atores no processo

democrático – é uma conquista. Cidadãos(ãs) não nascem feitos(as),

surgem na luta, no conflito social que, dependendo de seu

encaminhamento, pode produzir uma democratização das relações

sociais” (Machado da Silva, 2004:4).

Tal democratização pressupõe a existência de liberdade e de

igualdade, os quais, por sua vez, são conceitos relacionados entre si.

Segundo Silva Filho

“Bobbio remete um conceito a outro [liberdade à igualdade e vice-

versa], na medida em que ambos suscitam a harmonia, a ordem

entre as partes (indivíduos em relação) de um todo (a sociedade).

Apesar dessa tênue demarcação, igualdade sinaliza um fato, justiça,

um ideal. A pertinência da igualdade ou não é sua aplicabilidade nas

relações sociais. Nesse particular [esta] pode assumir duas faces: a

de equivalência (aquela da simetria entre o dar/fazer e uma situação

anterior com o ter ou posterior com o receber) e a de equiparação

(onde se almeja igualar na relação pessoas com atributos diversos)”

(2004:3).

O autor acrescenta, ainda, que a relação entre liberdade e igualdade

pode se equivaler à relação entre liberdade e justiça, porquanto justiça

pressupõe um ato realizado em consonância com a lei e com uma relação

de igualdade. Pelo exposto, pergunta: quais critérios devem ser utilizados

para vislumbrar a justeza ou não de determinada igualdade?

Segundo Kerstenetzky, esses critérios podem ser identificados no

campo das teorias da justiça onde proliferam concepções e princípios que

separam desigualdades justificáveis daquelas que não o são. A autora

Page 19: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

13

apresenta algumas das principais alternativas contemporâneas de justiça

em contraposição àquela que julga de uso ordinário. Esta última atribui

exclusivamente ao mercado a tarefa de distribuir vantagens sociais e

econômicas e, ao Estado de direito, zelar pela lei e a ordem necessárias ao

funcionamento satisfatório respectivo (2003:78). Kerstenetzky contrasta

essa teoria com outra, que considera “espessa”.

“[Essa outra teoria] concebe a justiça como um valor moral

complexo, abrigando não apenas eficiência e liberdade econômica,

como também outras liberdades (entre elas a política), além da

igualdade. Embora conceda ao mercado primazia na alocação de

recursos econômicos, aqui há o reconhecimento de que o Estado tem

uma importante função complementar na distribuição de vantagens

socioeconômicas. Trata-se, pois, de uma concepção de justiça social

[que tem como justificativa] o fato de que o mercado opera sobre

uma distribuição prévia de recursos e vantagens, que, por sua vez,

predetermina as chances de sucesso dos indivíduos em suas

transações econômicas, ensejando desigualdades ‘injustas’ (isto é,

não baseadas exclusivamente na escolha e na responsabilidade

individual) de chances de realização de projetos de vida”

(Kerstenetzky, 2003:78).

O filósofo político John Rawls e o economista Amartya Sen estão

entre aqueles estudiosos que mais se enquadram na categoria supracitada

ao conceberem a justiça como um valor moral complexo que abriga formas

diversas de liberdade, além da eqüidade social, e ao reconhecerem o papel

do Estado em fazer cumpri-la diante das restrições que o mercado coloca

nesse sentido. Assim, tendem a favorecer a idéia de que as políticas sociais

implementadas por este são formas insubstituíveis de realização da justiça

distributiva. Acreditam, ainda, que determinados direitos individuais

invioláveis devem ser protegidos pelo Estado e também na neutralidade do

mesmo com relação às diferentes concepções de boa vida que os cidadãos

possam ter. Por meio dos seus trabalhos ressaltam a “adequação moral de

uma política distributiva respaldada por princípios de justiça consensuais”

(Peixoto Ramos, 2003:4).

Page 20: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

14

Quanto à Rawls, é um dos pilares do pensamento político conhecido

como “liberal”, segundo o qual uma concepção de justiça adequada deve

ser capaz de assegurar a possibilidade de todos os indivíduos de uma

sociedade particular realizar seu projeto de vida. Dessa forma, o autor

pretende conceber um Estado plural e neutro a um só tempo. Mas, como

conciliar tais quesitos e ainda garantir uma ordem social justa?

Pensando nesse sentido, o autor propõe-se a fundamentar princípios

que possam garantir a configuração de uma sociedade moderna com

cooperação social eqüitativa entre seus cidadãos enquanto pessoas livres e

iguais, mas que são profundamente divididas por doutrinas religiosas,

filosóficas e morais incompatíveis entre si. A questão central para ele é

como chegar, nas democracias pluralistas contemporâneas, a um acordo

sobre princípios que devem regular as instituições básicas da sociedade

(Manfredo de Oliveira, 2003:1).

Rawls, assim, tomou a si a reflexão sobre um dos mais difíceis

dilemas da sociedade atual, qual seja: como conciliar direitos iguais em

uma sociedade desigual, ou melhor dizendo, como harmonizar as ambições

materiais daqueles indivíduos mais talentosos com os desejos dos menos

avantajados com vistas a melhorar a situação de vida destes últimos? Com

esse propósito, o autor fez um significativo esforço intelectual visando

conciliar a meritocracia com a idéia da igualdade, além de se aprofundar na

definição da justiça como eqüidade e na sua operacionalização em

sociedades concretas1.

Com a publicação do seu livro, hoje um clássico - Uma Teoria da

Justiça -, em 1971, John Rawls renovou o campo da filosofia política, já que

talvez pela primeira vez na história dessa filosofia tenha surgido uma teoria

que tratava também das condições concretas para sua efetivação prática.

Tal livro marcou, ainda, o início de um profícuo debate entre liberais e

comunitaristas quanto à natureza e justificativa de proposições morais e

político-filosóficas.

1 Tal esforço culminou com a publicação de O Direito dos Povos (1999), de sua autoria.

Page 21: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

15

De fato, nessa obra, Rawls construiu uma rigorosa teoria da justiça

que tem como princípios fundantes a liberdade e a eqüidade. Para tanto, fez

uso de um recurso fictício, a posição original que remete a uma situação

hipotética na qual “as pessoas, ignorando sua posição e [...] dos demais na

sociedade, bem como seus talentos e habilidades respectivos [o “véu de

ignorância”], escolhem aqueles princípios mais eqüitativos, pelos quais [...]

não sairiam perdendo” (Rouanet, 2002:2).

Rawls identifica dois princípios de justiça formulados por tais pessoas,

em função dos quais busca realizar uma síntese entre a tradição do

pensamento político associada a Locke e aquela associada a Rousseau,

acentuando as questões da liberdade e da igualdade presentes em um e no

outro pensador, respectivamente. Dessa forma, no conflito entre os

princípios sagrados na Revolução Francesa (1789), liberdade e igualdade,

Rawls afirma a prioridade da liberdade (primeiro princípio) sob a igualdade

(segundo princípio), buscando compatibilizá-las no sentido de viabilizar a

“fraternidade democrática”.

O estudo da teoria da “justiça como eqüidade”, por ele formulada,

contribuiu igualmente para a concepção de políticas sociais, levando em

conta a justiça e a eqüidade, além da afirmação da liberdade de escolha

individual. Dentre essas políticas se destacam aquelas relativas à defesa de

direitos de minorias e as de cunho redistributivo, como a de renda básica ou

renda de cidadania. A teoria da justiça de Rawls possibilitou, ainda, uma

série de desenvolvimentos teóricos de diversos tipos.

De fato, com a publicação de Uma Teoria da Justiça, segue-se a

publicação de Nozick, Anarchy, State and Utopia, em 1974, e, mais tarde, a

de Dworkin, Taking Rights Seriously, em 1977, visando renovar o

liberalismo. A partir da década de 80, nos EUA, surge uma reação contra o

individualismo liberal, provocada pelas críticas de autores denominados

comunitaristas. Dirigida particularmente contra Ralws, tais críticas

reconhecem, contudo, que a obra deste autor alterou os princípios da teoria

liberal contemporânea, particularmente a concepção de liberdades

individuais, pensada em uma perspectiva política fora do quadro do

Page 22: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

16

individualismo utilitarista. Para os comunitaristas, todavia, a concepção

liberal de justiça procedimental de Rawls revela a prioridade equivocada do

justo sobre o bem, a partir de princípios teóricos abstratos baseados em

uma noção individualista da pessoa e da sociedade.

As formulações teóricas de Rawls influenciaram também o

economista Amartya Sen que postula uma teoria de “desenvolvimento como

liberdade” e não propriamente uma teoria de justiça. Nas palavras de

Peixoto Ramos:

“O conceito mais importante da obra de Sen é o de desenvolvimento

[o qual, segundo ele,] ‘pode ser visto como um processo de expansão

das liberdades reais que as pessoas desfrutam’ [Sen, 1999:17]. O

elemento mais enfatizado dessa definição é a noção de liberdade

como fim e também como principal meio do desenvolvimento. Este

seria o que Sen chama de papel constitutivo e ao mesmo tempo

instrumental da liberdade. Nesse sentido, o conceito de

desenvolvimento é muito mais amplo do que o de crescimento

econômico, sendo este apenas um dos meios possíveis para se

alcançar os diversos tipos de liberdade. Existem outros requisitos

para o desenvolvimento igualmente valorizados por Sen, [no entanto,

quanto] às liberdades exaltadas por ele são de diversas naturezas:

liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais,

garantias de transparência e segurança protetora. Todas essas se

inter-relacionam na medida em que uma é importante para a vigência

das outras” (2003:13).

A partir daí o autor afirma que uma sociedade deve ser avaliada de

acordo com as liberdades substantivas que proporciona aos seus membros.

Esta constitui a razão pela qual a liberdade deve ser vista como central ao

desenvolvimento, ou seja, o progresso deve ser medido de acordo com a

quantidade de liberdades reais que proporciona aos cidadãos que dele

participam. Uma outra razão é a da eficácia, isto é, o desenvolvimento

depende da liberdade que as pessoas têm “para cuidar de si mesmas e para

influenciar o mundo” (Sen, 1999:33).

Page 23: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

17

Assim, Sen define o desenvolvimento como o processo de ampliação

da capacidade dos indivíduos de terem opções, de fazerem escolhas, de

serem livres para fazê-las. Relativizando os fatores materiais e os

indicadores econômicos, o autor insiste na ampliação do horizonte social e

cultural da vida das pessoas. Segundo ele, a base material do processo de

desenvolvimento é fundamental, mas deve ser considerada como um meio

e não como um fim em si.

Na sua percepção, a ação pública e a participação democrática são

fundamentais para elaborar e implementar políticas voltadas para a

igualdade que atendam aos setores mais desfavorecidos. Como

conseqüência, postula que o desenvolvimento múltiplo das liberdades de

cada indivíduo e de todos, e seu exercício democrático, é condição básica

para a eficácia de políticas e programas autenticamente igualitários.

Nesse sentido, Sen se propõe a compreender melhor os processos de

distribuição de vantagens e oportunidades que se produzem em economias

de mercado, fazendo uso de critérios de justiça para tanto. Segundo ele, a

adoção de mecanismos democráticos no bojo dessas economias pode ser

uma das vias para melhor articular o binômio igualdade-liberdade. De certa

forma, é o que John Rawls, com claras semelhanças e diferenças com

relação à Amartya Sen, também se propõe a realizar.

Considerando a idéia de justiça social que está presente na

formulação de qualquer política que vise diminuir a desigualdade, será

apresentado a seguir o pensamento dos autores supracitados.

“Aquilo que a todos afeta a todos respeita”

(máxima medieval citada por John Rawls em Theory of Justice).

I.2 John Rawls

I.2.1 Considerações preliminares

A trajetória intelectual de Rawls é longa e complexa. Por meio dela, o

autor faz uma revisão permanente de suas próprias formulações teóricas,

Page 24: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

18

mantendo, no entanto, a consistência interna de sua obra, considerada uma

das mais importantes referências para a filosofia política do século XX até a

contemporaneidade. De fato, seu livro Uma Teoria da Justiça foi saudado

pelo mundo acadêmico como uma obra magistral nesse campo, uma vez

que propõe um novo paradigma para o estudo da justiça em oposição à

supremacia do utilitarismo ético e do positivismo jurídico, particularmente

daquele adotado no mundo anglo-saxão.

Como Rawls bem afirmou em uma entrevista que concedeu em 1998

à revista Commonweal, o problema central de sua reflexão ético-política

desde Uma Teoria da Justiça (1971) até o Liberalismo Político (1993) e O

Direito dos Povos (1999) sempre foi o de oferecer argumentos razoáveis em

defesa da democracia constitucional, por meio da difusão de uma idéia de

razão pública. Nesse sentido, a concepção de uma teoria da justiça como

eqüidade (justice as fairness) foi apenas o marco inicial para um desafio

normativo que esteve presente em toda a sua trajetória, impelindo-o ao

pensamento ético-político, qual seja: "por que defender a democracia como

a melhor forma de governo e de sociabilidade?"

Rawls procura articular o conceito de liberdade com o de igualdade,

situando-se na tradição contratualista de John Locke, Rousseau e Kant.

Considera como impraticáveis as teorizações ligadas às correntes filosófico-

políticas hegemônicas, principalmente o utilitarismo, que, segundo ele, se

contenta apenas em proporcionar o maior bem-estar para o maior número

de indivíduos, sem se preocupar com a igualdade social2. Em contraposição

a este, o autor formula uma nova teoria de contrato social para identificar

os princípios de justiça necessários para viabilizar a sociedade justa e bem

ordenada.

2 O conceito de utilidade é fundamental para o utilitarismo e pode ser definido como “o nível de felicidade ou satisfação que a pessoa obtém de suas circunstâncias” (Mankiw, 1999:436 apud Peixoto Ramos, 2003). O objetivo do utilitarismo, assim, é que o bem-estar coletivo seja o máximo ou que o saldo dos ganhos e das perdas da coletividade seja positivo. Pouco importa, neste caso, que a situação de certos indivíduos particulares piore de maneira considerável, que haja injustiças ou que sejam sacrificados os interesses de certas pessoas. Para maximizar o interesse geral, seria até desejável que fossem sacrificadas as pessoas menos úteis à sociedade.

Page 25: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

19

Em Uma Teoria da Justiça Rawls afirma que seu objetivo é apresentar

uma concepção de justiça que generalize e leve a um grau mais alto de

abstração a teoria do contrato social, o que o faz baseado na idéia da

cooperação. Nessa obra, postula que uma determinada situação será justa

uma vez que seja adotado em relação à mesma um sistema de regras

gerais, consensuadas, que a definam como justa, as quais serão construídas

por meio de uma seqüência de acordos hipotéticos realizados entre pessoas

autônomas, com obrigações auto-impostas. Tais acordos, por sua vez, são

resultantes de uma barganha eqüitativa que estas realizam quando estão

na posição original, sob o “véu da ignorância”, o que assegura que não

levarão vantagem ou desvantagem nas negociações, tendo em vista dotes

naturais ou contingências de vida que lhes são específicas.

Na concepção de Rawls, podem ser identificadas quatro etapas na

organização de uma sociedade bem ordenada. Na primeira, escolhem-se os

princípios de justiça (na posição original); depois vem a fase da convenção

constitucional; em seguida, a da elaboração das leis; por fim, a do

cumprimento efetivo destas. No decorrer de tais etapas o “véu de

ignorância” fica mais delgado, até extinguir-se na quarta etapa. Para o

autor, esse esquema é aplicável a sociedades que já superaram as questões

cruciais de seu processo de desenvolvimento, ou seja, sociedades liberais e

democráticas.

Na sua primeira grande publicação, Uma Teoria da Justiça, Rawls não

faz uma distinção explícita entre a dimensão moral e a especificidade

política de suas formulações teóricas. No entanto, com a publicação de

Liberalismo Político procura reformular a “justiça como eqüidade” não mais

como uma doutrina moral abrangente, mas como uma teoria política capaz

de conjugar o igualitarismo (igualdade de bem-estar social) e o

individualismo (liberdades individuais) inerentes a uma concepção pública

de justiça, que viabilize a coexistência pacífica de pessoas com diferentes

doutrinas religiosas, concepções do bem e preferências ideológico-

partidárias3. Nas palavras de Augusto Ramos:

3 Essa é a idéia do pluralismo razoável que garante a sobrevivência de instituições democráticas. Conforme o autor, tal esclarecimento não se trata de uma retratação ou mudança de posição de sua

Page 26: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

20

“A série de artigos que Rawls escreve após a publicação de Uma

Teoria da Justiça culminando na obra Liberalismo Político reflete a

intenção do autor de insistir numa interpretação liberal do seu

pensamento a partir da explicitação política dos seus principais

conceitos. Procurando tematizar os princípios de justiça a partir de

uma concepção política de pessoa e das liberdades básicas que as

sociedades democráticas modernas historicamente universalizaram, a

obra posterior de Rawls intenta mostrar que o fim da teoria da justiça

como eqüidade é elaborar uma concepção da justiça política e social

em harmonia com as convicções e as tradições as mais enraizadas de

um Estado democrático moderno” (s/d:70).

Rawls constrói princípios de justiça levando em consideração os

seguintes elementos: i) a idéia de uma sociedade bem ordenada que

funcione como um sistema justo de cooperação; ii) que esse sistema seja

operado por cidadãos livres e iguais que agem segundo fins racionais,

superando divergências e diferenças, por meio de um consenso obtido por

justaposição (overlapping consensus); iii) a idéia política de pessoa(s) que

te(ê)m a ver com o estatuto destas enquanto cidadãos(ãs) livres e iguais.

Com o objetivo de evitar a proximidade da sua teoria com qualquer

concepção moral abrangente, a análise rawlsiana procede ainda “por

deslocamentos, aprofundamentos e reformulações da concepção de pessoa,

com vistas à elaboração de um conceito político da mesma, rejeitando

aquelas teorias que compreendem de forma exaustiva o valor moral da

pessoa e da sua liberdade, quer seja na visão do individualismo de Stuart

Mill, quer seja na perspectiva da autonomia da vontade de Kant” (Augusto

Ramos, s/d:71-72).

Rawls situa-se politicamente em um meio-termo entre o ultraliberal

Robert Nozick, que está à sua direita, e o comunitarista Michael Walzer, à

sua esquerda. Este último critica Rawls por seu universalismo quando parte, mas antes de uma reformulação e de uma reafirmação (“reestatement”, como afirma) de sua teoria original, de forma a torná-la mais defensável.

Page 27: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

21

afirma que a justiça plena é local, só é possível em comunidades

determinadas4. Por outro lado, segundo Renteria, a teoria rawlsiana, por

algumas vezes, tem sido utilizada para legitimar um modelo próximo à

social-democracia pois, na sua percepção, Rawls insiste na compatibilidade

entre a prevalência do mecanismo do mercado e certas formas de

socialismo (socialismo liberal, por exemplo) (Renteria, s/d:3). Nesse

aspecto, Rawls distingue-se do enfoque libertarista de Nozick, que elege o

direito de propriedade como princípio fundamental e exclui qualquer

consideração sobre justiça distributiva.

I.2.2 Crítica ao utilitarismo

O utilitarismo, disseminado nos círculos intelectuais europeus na

segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, foi

paradigmático no campo da filosofia política até a socialização das idéias de

Rawls que rompeu com essa tradição.

“Meu objetivo é elaborar uma teoria da justiça que represente uma

alternativa ao pensamento utilitarista em geral e conseqüentemente

a todas as suas diferentes versões [uma vez que] cada pessoa possui

uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar

da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça

nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem

maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos

a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens

desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa, as

liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos

assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou

ao cálculo de interesses sociais” (Rawls, 1982).

De fato, Uma Teoria da Justiça constitui-se em uma das mais

importantes tentativas, no campo da filosofia política, de discutir uma

4 Também de uma perspectiva comunitarista, Michel Sandel no livro Liberalism and the Limits of Justice (1982) critica o individualismo de Rawls, utilizando como argumento que ele não leva em conta a importância da vida coletiva e do bem comum.

Page 28: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

22

proposta de justiça de cunho liberal-democrático. Nesta obra, Rawls discute

o papel de diversos valores no mundo da política, que não só a utilidade ou

a felicidade, mas, sobretudo, a liberdade, a eqüidade, a solidariedade e o

auto-respeito, propondo a concepção de justiça como eqüidade como

alternativa5. No Prefácio à edição francesa de Uma Teoria da Justiça, o

autor declara a impossibilidade de a doutrina utilitarista “fornecer uma

análise satisfatória dos direitos e das liberdades de base dos cidadãos

enquanto pessoas livres e iguais o que, no entanto, é uma exigência

absolutamente prioritária para uma análise das instituições democráticas”

(Rawls,1982).

De acordo com Johnston, o utilitarismo é insatisfatório para Rawls

pelo menos por duas razões: primeiro, por não concordar com o fato de os

direitos individuais não estarem sujeitos ao cálculo dos interesses sociais.

“A proposição central do utilitarismo, pelo menos na sua forma clássica, é o

princípio da maior felicidade. [...] Todavia, em algumas circunstâncias

plausíveis, pode acontecer que a maneira de maximizar a felicidade

agregada signifique impor um sofrimento considerável a um ou a alguns

membros de uma sociedade” (1996:102). Rawls defende que resultados

desse tipo colidem com direitos dos indivíduos que não devem ser

sacrificados no cálculo dos interesses sociais. Segundo, “porque pressupõe

uma concepção monista do bem” (Johnston, 1996:103), ou seja, se todos

os indivíduos forem totalmente informados e racionais, concordarão que

existe apenas um bem.

“Na sua perspectiva [de Rawls] há uma concepção pluralista de

diferentes e até incomensuráveis concepções de bem e assim

continuaria a ser mesmo que todas as pessoas fossem muitíssimo

informadas e racionais. As pessoas possuem diferentes valores e

formulam diferentes projetos. Alguns destes [...] ultrapassam a sua

própria vida e experiência individual. Isto é, alguns indivíduos [...]

5 O livro A Teoria da Justiça divide-se em três partes, em um total de nove capítulos. A primeira tem como epígrafe Theory, a segunda Institutions e a terceira Ends. Na primeira parte, Rawls defende as idéias principais que desenvolve ao longo dessa obra; na segunda, a necessidade de uma democracia constitucional como pano de fundo para a aplicação das idéias referidas na primeira; e, na terceira, descreve o estabelecimento da relação entre a teoria da justiça e os valores da sociedade e o bem comum.

Page 29: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

23

valorizam outras coisas para além de estados mentais ou estados de

bem-estar psicológico. Os utilitaristas podem tentar explicar estes

valores afirmando que devem estar baseados em inferências

desinformadas ou irracionais. No entanto, segundo Rawls, este

esforço será infrutífero. As pessoas formulam de fato diferentes

concepções de bem, em muitos casos irreconciliáveis. Uma teoria da

justiça satisfatória, pensa Rawls [...] deve ter em conta este fato”

(Johnston, 1996:103).

Em contrapartida ao utilitarismo e outros, por meio da formulação de

princípios de justiça, Rawls visa operacionalizar os valores da liberdade e da

igualdade. As instituições da sociedade regidas por tais princípios “teriam a

função de regular a competição por recursos escassos e, ao mesmo tempo,

retirar dessa competição aqueles direitos e liberdades fundamentais, que

não podem ser questionados”. Nesse sentido, essas instituições “levariam

os indivíduos a se perceberem como agentes morais que incorporam uma

concepção pública de justiça” (Peixoto Ramos, 2003:8).

I.2.3 A opção pelo contrato social e o liberalismo de Rawls

As teorias contratualistas têm como um de seus propósitos o

estabelecimento do consenso como fator legitimador do Estado. Como

explica Esteves:

“[...] os contratualistas pensavam que embora ninguém tivesse tido

a possibilidade de escolher a sociedade em que iria nascer e viver,

uma sociedade justa seria aquela em que cada qual, se tivesse tido

essa possibilidade, teria escolhido para nascer e viver. Para que

uma sociedade fosse justa nesse sentido [...] seria preciso que as

leis dessa sociedade emanassem de seus membros como se cada

qual tivesse sido legislador, como se tais leis tivessem brotado

autonomamente de cada vontade, expressando a vontade geral. A

teoria do contrato social seria então a simulação de uma situação

hipotética, na qual os indivíduos reunidos criariam uma legislação

Page 30: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

24

fundamental, constitucional e justa de um Estado, na qual estaria

manifesta a vontade geral” (2002:94).

E Rawls não pensa diferente. De acordo com ele, uma das

características essenciais da concepção contratualista de justiça é que a

estrutura básica da sociedade é o seu primeiro objeto. Tal estrutura, por

sua vez, está relacionada com a maneira pela qual as principais

instituições sociais – a constituição política e os acordos fundamentais - se

arranjam em um sistema único, em função do qual consignam direitos e

deveres para os cidadãos e estruturam a distribuição de vantagens

resultantes da cooperação social. Dessa forma, para viabilizar a existência

de uma sociedade estável e justa, integrada por cidadãos livres e iguais,

embora com visões plurais, Rawls propõe uma concepção liberal de

justiça, estabelecida por meio de um contrato, própria para um regime

constitucional democrático.

O autor inicia seu constructo por um contrato social hipotético e a-

histórico, no qual as pessoas seriam reunidas em uma situação inicial –

por ele chamada de “posição original” – a fim de deliberar uma série de

princípios responsáveis por embasar as regras do “justo” (os “princípios da

justiça”). No entanto, segundo sua teoria, a única forma de as pessoas

nessa posição escolherem princípios justos – aqueles apresentados pela

“razão” de cada um – seria colocando sobre as mesmas um “véu de

ignorância”, em função do qual cada uma ignoraria todas as suas

circunstâncias pessoais e sociais anteriores e futuras com relação a essa

situação hipotética.

Assim, o contrato social, conforme pensado por Rawls (1) é um

acordo hipotético entre todos os membros de uma sociedade e não somente

entre alguns deles. É celebrado pelas pessoas (2) enquanto cidadãos e não

enquanto indivíduos que ocupam uma posição ou papel particular no seio da

sociedade; (3) os parceiros são considerados e se consideram eles próprios

pessoas morais livres e iguais: é isso que – em conjunto com (2) – vai

garantir que, sob o véu de ignorância, chegarão a um conceito de justiça

Page 31: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

25

consensual e unânime e que, removido o véu, todos buscarão segui-lo em

suas práticas sociais. Por fim, resta o item (4) do contrato rawlsiano, ou

seja, o conteúdo do acordo, que trata dos princípios primeiros que vão

governar a estrutura básica (Martini, 2002:6).

No entanto, vale ressaltar que a idéia de “posição original” associada

ao “véu de ignorância” constitui para o autor um recurso, o mais razoável,

para se estabelecer os termos justos da cooperação social, dispondo as

pessoas em bases eqüitativas, não permitindo que obtenham vantagens na

negociação. Tal posição corresponde, na teoria contratualista de Rawls, ao

estado em que os indivíduos se encontram quando estão prestes a formular

o contrato; é status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos

básicos nele estabelecidos sejam eqüitativos.

Dessa forma, na definição de Van Parijs (1997) do conceito de justiça

de Rawls, “uma instituição pode ser considerada justa quando não opera

nenhuma distinção arbitrária entre pessoas na atribuição dos direitos e dos

deveres e quando determina um equilíbrio adequado entre as reivindicações

conflitantes referidas às vantagens da vida social” (Peixoto Ramos, 2003:8

apud Van Parijs, 1997).

De fato, conforme Rawls não importa se os cidadãos(ãs) tenham

percentuais diversos de riqueza – importa que a estrutura básica na qual

eles estão inscritos seja justa e/ou moralmente igual. Nesse contexto, a

alocação dos itens produzidos ocorre de acordo com o sistema público de

regras gerais consensuadas. Basicamente, nisso consiste a teoria da

justiça rawlsiana – um modelo de justiça formulado no plano do mundo

ideal, a fim de poder ser utilizado para se pensar sociedades concretas,

marcadas por injustiças tanto no nível das instituições quanto dos

indivíduos. De acordo com Vita:

“A ‘moralidade política em sentido amplo’ contida na teoria de Rawls

requer que se concebam princípios de justiça e instituições políticas e

sociais deles derivados que sejam valorizados por si próprios e não

como meios para alcançar determinados fins. A existência dessas

Page 32: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

26

instituições não deve ser vista como tendo simplesmente o propósito

de organizar um modus vivendi, mas deve ser justificada por

argumentos morais” (Vita, 1993:23 apud Peixoto Ramos, 2003:8).

As colocações acima expostas são mais facilmente entendidas quando

se considera que Rawls é um pensador liberal. No entanto, o liberalismo que

o autor defende é político e não econômico, não cabendo ao Estado

interferir em diferentes concepções culturais, religiosas, político-ideológicas

desde que estas sejam razoáveis. Segundo Rawls, é possível o convívio na

sociedade democrática moderna, caracterizada pelo pluralismo, na medida

em que se construa um consenso em torno dos princípios de justiça.

I.2.4 Os princípios de justiça

Em Uma Teoria da Justiça (1971), Rawls afirma que uma sociedade

liberal-democrática justa é aquela cujos arranjos institucionais básicos – a

"estrutura básica da sociedade" – dão existência aos seguintes princípios de

justiça:

i) cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente

adequado de liberdades e de direitos básicos iguais para todos,

compatíveis com um mesmo sistema para todos (princípio de

igual liberdade);

ii) as desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas

condições: em primeiro lugar, estar ligadas a funções e a

posições abertas a todos em condições de justa igualdade de

oportunidades; e, em segundo lugar, proporcionar a maior

vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade

(princípio de igual oportunidade e da diferença).

Quanto ao primeiro princípio, refere-se à exigência da aplicação das

liberdades básicas de forma equânime - a liberdade política (o direito de

votar e ocupar um cargo público), a liberdade de expressão e reunião, a

liberdade de consciência e de pensamento, as liberdades contra agressão

Page 33: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

27

física e psicológica, o direito à propriedade privada e a proteção à prisão

arbitrária.

Já o segundo princípio se apóia na idéia de cada pessoa ter igual

acesso à cota de bens sociais (aqueles cuja distribuição é afetada pelos

arranjos institucionais), quais sejam: renda, riqueza, oportunidades

educacionais e ocupacionais. Além disso, este se pauta no princípio da

diferença que prevê que as desigualdades na distribuição desses bens só

sejam aceitas se estiverem a favor dos que estão em pior situação

socioeconômica.

Segundo Rawls, tais princípios deverão obedecer à prioridade da

liberdade e à prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem-estar. Rouanet

lembra que o segundo princípio de justiça é lexicamente anterior ao

princípio de eficiência e ao de maximizar a soma de vantagens, e que a

oportunidade justa é anterior ao princípio de diferença. Segundo ele, há

dois casos: a) uma desigualdade de oportunidade deve aumentar as

oportunidades daqueles com menor oportunidade; b) uma taxa excessiva

de poupança deve mitigar a carga daqueles que vivem em condições mais

duras (1993:30).

Pode-se dizer, portanto, que a liberdade é a característica

fundamental da justiça na teoria rawlsiana. Não obstante, seu pleno

exercício requer que haja, previamente, uma distribuição minimamente

igualitária de bens sociais primários. Estes abrangem: direitos e liberdades

básicas do primeiro princípio; vantagens socioeconômicas, isto é, renda,

riqueza, poder e prerrogativas previstas na primeira parte do segundo

princípio; oportunidades de acesso a essas vantagens que estão previstas

na segunda parte do segundo princípio. A introdução do princípio da

diferença assegura a todas as pessoas bases sociais de auto-respeito, o que

Rawls entende ser o bem primário mais importante.

No entanto, é o princípio da diferença aquele que mais chama a

atenção no pensamento do autor, o qual é também o mais controvertido.

Conforme Renteria:

Page 34: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

28

“[...] o esquema eqüitativo de liberdades não impede que certas

desigualdades relativas a outros bens primários se verifiquem,

especialmente as diferenças de riqueza, implicadas pelo jogo da livre

concorrência numa economia de mercado. Ora, o princípio da

diferença exige a minimização dessas desigualdades, isto é, a

maximização do bem-estar dos mais desfavorecidos, e qualquer

desigualdade deve ser especialmente justificada. A desigualdade só

pode existir quando servir aos mais desfavorecidos, por exemplo, em

certos casos, concentrações de riqueza permitem um

desenvolvimento dos meios de produção e a elevação do bem-estar

social de que todos gozam, inclusive os mais desfavorecidos, de

modo que uma tentativa de diminuir as desigualdades possa

provocar, ao contrário, uma acentuação destas. Assim, o princípio da

diferença que poderia ser considerado um compromisso entre a

ordem liberal e o igualitarismo representa, na verdade, o meio mais

eficaz e razoável de se ampliar a igualdade, pois, mesmo do ponto de

vista das possíveis vítimas que deliberam na posição original, não

seria razoável, segundo Rawls, ser igualitarista na distribuição desses

bens primários” (s/d:3).

Já, Vita pergunta:

“O que Rawls diria para os que se encontrassem na posição mais

desfavorável, em uma sociedade cujas instituições básicas

colocassem em prática a justiça maximin, é algo do seguinte teor: é

preferível um arranjo institucional que garanta um quinhão maior em

termos absolutos, ainda que não igual, de bens primários para todos,

do que um outro no qual uma igualdade de resultados é assegurada à

custa de reduzir as expectativas de todos” (Vita, 1998:9).

Esta consideração, segundo Vita, permite a Rawls passar da defesa

de uma igualdade estrita na distribuição de bens primários, para a defesa

do princípio da diferença.

Page 35: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

29

I.2.5 A justiça como eqüidade

A teoria rawlsiana no seu conjunto e a idéia de justiça como

eqüidade, em particular, derivam do pensamento de Kant, embora Rawls

negue o valor da generalização e da universalidade kantianas ao defender

que os princípios com os quais trabalha não são inéditos na história da

filosofia e que a sua teoria é política e não metafísica.

A justiça como eqüidade foi concebida por esse autor como uma

doutrina contratualista, ainda que se distancie das demais doutrinas dessa

natureza. Esta pode ser desdobrada em duas partes: i) na interpretação

de uma situação inicial e do problema da escolha colocado naquele

momento; ii) na apresentação dos princípios de justiça, os quais são

aceitos (porque formulados) por todos. Quanto à primeira dessas,

comporta a posição original. Já a segunda, os princípios escolhidos

consensualmente sob o véu de ignorância. Nesse caso, são estabelecidos

dois contratos sociais: i) o da posição original, com a conseqüente escolha

dos princípios de justiça; ii) o do compromisso daqueles que escolheram

cumpri-los. Segundo Rawls, é desse segundo contrato que depende toda a

estabilidade do sistema. De todo modo, a idéia do contrato está

subjacente à definição de tais princípios.

“O mérito da terminologia do contrato é que ela transmite a idéia de

que princípios da justiça podem ser concebidos como princípios que

seriam escolhidos por pessoas racionais e que assim as concepções

de justiça podem ser explicadas e justificadas. [...] Mais ainda, os

princípios da justiça tratam de reivindicações conflitantes sobre os

benefícios conquistados através da colaboração social; aplicam-se

às relações entre várias pessoas ou grupos. A palavra ‘contrato’

sugere essa pluralidade, bem como a condição de que a divisão

apropriada de benefícios aconteça de acordo com princípios

aceitáveis por todas as partes” (Rawls, 1971).

Page 36: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

30

Quanto à eqüidade, significa para Rawls a igualdade desinteressada

e hipotética da posição original, a qual permite às pessoas chegar a um

consenso sem barganhas e conchavos, e à igualdade de oportunidades

entre pessoas iguais com respeito ao princípio da diferença. Por

conseguinte, o que interessa para a teoria da justiça como eqüidade não é

propriamente a igualdade, mas a desigualdade justificada e aceita.

As considerações supracitadas têm sentido considerando que o autor

rivaliza com o utilitarismo, pelo respeito que impõe às liberdades individuais

e à igualdade de oportunidades. No entanto, é o princípio da diferença

aquele que oferece o melhor ponto de comparação entre a teoria rawlsiana

e o utilitarismo, já que em Rawls a repartição do bem-estar e a questão da

justiça distributiva desfrutam de um lugar essencial6.

No ano de 2001, por meio da publicação de Justice as Fairness: a

reestatement, Rawls tentou defender a unidade das suas formulações

teóricas, cujas bases estão relacionadas com fatos que marcaram as

sociedades ocidentais contemporâneas. Entre estes, o autor enumera: o

reconhecimento (1) da diversidade de doutrinas abrangentes coexistindo

sob certas condições políticas e sociais; (2) de que a adesão de todos a uma

doutrina abrangente particular só é alcançada através da opressão e do uso

do poder estatal; (3) de que um regime democrático só se sustenta com o

endosso de diferentes e inconciliáveis doutrinas abrangentes; (4) de que a

cultura política de uma sociedade democrática engendra idéias

fundamentais para a concepção política de justiça de um regime

constitucional; e, finalmente, (5) de que os mais importantes julgamentos

políticos são de tal ordem que pessoas razoáveis, após ponderações,

chegam às mesmas conclusões a seu respeito (Dias, 2004:2).

Rawls postula, assim, só haver uma forma plausível de justificação de

princípios de justiça nas sociedades bem ordenadas, uma justificação

pública que envolve o apelo a elementos compartilhados pelas diversas

doutrinas abrangentes que compõem a totalidade respectiva. Quanto a tais 6 Renteria considera também que tal princípio representa, para Rawls, o meio mais eficaz e razoável de se ampliar a igualdade, pois, mesmo do ponto de vista daqueles que deliberam na posição original, não seria razoável, ser igualitarista na distribuição dos bens primários (s/d:2).

Page 37: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

31

princípios, são aqueles sobre os quais é estabelecido um consenso

sobreposto. Segundo o autor, indivíduos razoáveis são aqueles capazes de

reconhecer um núcleo compartilhado de idéias políticas, algo de sua própria

concepção abrangente. Desse modo, esses princípios de justiça não seriam

vistos como antagônicos às concepções abrangentes particulares, mas como

fundamentados pelas mesmas. Ou seja, o assentimento aferido às idéias

básicas da organização política é parte da própria concepção abrangente de

cada integrante da sociedade.

I.2.6 Implicações redistributivas

Como visto, a teoria da justiça como eqüidade está pautada em um

critério estabelecido mediante uma deliberação racional, o qual é passível

de ser aplicado a pessoas portadoras de uma cultura política democrática

em que existe consenso sobre as bases de uma justiça distributiva. Nesse

sentido, na teoria rawlsiana a realização do princípio da diferença exige que

as desigualdades arbitrárias ou imerecidas sejam compensadas, ou seja,

que a distribuição de talentos, oportunidades, recursos, preferências,

gostos, ambições, constitua uma dotação comum. Isso significa que as

instituições políticas, econômicas e sociais devem estar a serviço dessa

compensação, isto é, não devem discriminar favoravelmente aqueles que

possuem mais talentos ou mais recursos. Esse é o ponto que caracteriza o

princípio da igualdade democrática de Rawls.

O autor identifica três tipos diferentes de bens relevantes para a

justiça distributiva, quais sejam: i) bens passíveis de distribuição, como a

renda, a riqueza, o acesso a oportunidades educacionais e ocupacionais e a

provisão de serviços; ii) bens que não podem ser distribuídos diretamente,

mas que são afetados pela distribuição dos primeiros, como o conhecimento

e o auto-respeito; e iii) bens que não podem ser afetados pela distribuição

de outros bens, como as capacidades física e mental de cada pessoa. A

teoria rawlsiana “tem implicações claras para os dois primeiros tipos de

bens [a que Rawls se refere como os "bens primários"], que constituem o

distribuendum desse enfoque sobre a justiça” (Vita,1998:1).

Page 38: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

32

Ainda assim, é o princípio da diferença aquele que opera sobre as

desigualdades sociais econômicas, que permaneceriam ainda que as

necessidades básicas fossem satisfeitas. Segundo Vita

“É importante ressaltar esse ponto porque a teoria de Rawls é muitas

vezes interpretada como uma justificativa moral para o tipo de

redistribuição praticada pelos welfare states que, essencialmente,

consiste em um sistema de taxação da renda dos mais abastados

para subsidiar direta ou indiretamente a renda dos mais pobres. Não

é isso que Rawls tem em mente como o modelo institucional mais

apropriado para colocar em prática sua concepção de justiça [...]. O

capitalismo de welfare state, [diz ele,] rejeita o valor eqüitativo das

liberdades políticas, e, apesar de nele haver uma certa preocupação

com a igualdade de oportunidade, as políticas necessárias para

garanti-la não são implementadas. Esse regime permite

desigualdades muito grandes de propriedade de bens não-pessoais

(meios de produção e recursos naturais), de modo que o controle da

economia e, em grande medida, também da vida política, permanece

em poucas mãos. E, embora os benefícios de bem-estar [...] possam

ser bastante generosos e garantir um mínimo social decente cobrindo

as necessidades básicas, um princípio de reciprocidade que regule as

desigualdades econômicas e sociais não é reconhecido." (1998:9-10).

I.2.7 A democracia em Rawls

Laisner ressalta que o aspecto fundamental da contribuição de Rawls

para o desenho de uma concepção alternativa de democracia diz respeito à

identificação de princípios de justiça

“[...] que ninguém poderia razoavelmente rejeitar em uma

deliberação ideal, [os quais] podem ser introduzidos no processo de

deliberação pública como alternativas a serem consideradas, a

despeito de ser improvável que venham a ser objeto de um acordo

unânime, mesmo entre pessoas razoáveis, em qualquer democracia

real” (Vita, 2000:19 apud Laisner, 2002:17).

Page 39: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

33

A autora lembra que o tipo de democracia que a proposta de justiça

como eqüidade permite vislumbrar implica um acordo público entre os

indivíduos acerca de questões fundamentais da vida em sociedade, tal como

Rawls postula em O Liberalismo Político.

“Como ya he señalado, la democracia implica una relación política

entre los ciudadanos dentro de la estructura básica de la

sociedad, en el seno de la cual han nacido y en la que

normalmente transcurre toda su vida; implica, además una

participación igual en el poder político coercitivo que ejercen los

ciudadanos unos sobre otros al votar y por otros medios. Como

seres razonables y racionales, y sabiendo que profesan una

diversidad de doctrinas razonables, religiosas y filosóficas,

deberían ser capaces de explicarse unos a otros los fundamentos

de sus actos en términos que cada cual espere razonablemente

que los demás puedan suscribir, por ser congruentes con su

libertad y su igualdad ante la ley. Tratar de satisfacer esta

condición es una de las tareas que nos pide cumplir este ideal de

la política democrática. Entender cómo debemos conducirnos

como ciudadanos democráticos incluye la cabal comprensión de

un ideal de razón pública” (Rawls, 1993:208).

Já, segundo Álvaro de Vita, o arranjo institucional que mais se

aproxima da realização da justiça como eqüidade, tal como proposta por

Rawls, é o da democracia de cidadãos-proprietários formulado pelo

economista James Meade como uma alternativa ao capitalismo (1998:10).

Conforme Vita,

“[...] mais do que a igualização da renda, as instituições e políticas

igualitárias deveriam ter por objetivo uma distribuição igual da

propriedade entre todos os cidadãos com o mínimo de interferência

possível sobre os incentivos econômicos e sobre a iniciativa privada.

Meade (1989) pretende alcançar um estado no qual todos os

cidadãos, além da renda advinda da sua participação no mercado,

obtenham algum tipo de renda derivada da sua participação em

Page 40: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

34

lucros, juros, aluguel ou dividendos. Em Agathotopia o autor afirma

que ainda faria parte do quinhão distributivo de cada um uma renda

básica paga incondicionalmente a todos de forma não condicionada, o

que obrigaria redirecionar o foco principal do sistema tributário da

taxação da renda para a taxação da riqueza excessiva e da

propriedade privada de capital” (1998:10)7.

Vita destaca dois tipos de problemas nas políticas dos welfare states

dirigidas para a igualização da renda real dos cidadãos apontados por

Meade:

“Um deles é o de que, dadas as tendências de mudança tecnológica (a

automação) e de emergência da meritocracia, a igualização da renda

real exigirá níveis excepcionalmente elevados de taxação da renda dos

mais abastados [...] o que afetará negativamente os incentivos para

trabalhar, poupar, inovar e assumir riscos. O segundo [...] decorre de

uma preocupação similar àquela que Rawls tem com o ‘valor

eqüitativo’ das liberdades fundamentais: um homem que possui muita

propriedade tem um grande poder de barganha e um forte sentido de

segurança, independência e liberdade; e ele usufrui desses benefícios

não somente vis-à-vis seus concidadãos destituídos de propriedade,

mas também vis-à-vis as autoridades públicas. [...] Uma distribuição

desigual de propriedade, ainda que se possa impedi-la de gerar uma

distribuição demasiado desigual da renda, significa um distribuição

desigual de poder e de status." (1998:11)

Segundo ele, Rawls considera o modelo da democracia de cidadãos

proprietários como mais apropriado para operacionalizar os princípios de

7 Segundo Vita, para tanto “Meade (e também Rawls) pensa em dois tipos de instituição de natureza fiscal: um imposto progressivo ‘moderado’ que incidiria anualmente sobre a propriedade total adquirida pelo contribuinte ou sobre o total de bens e serviços consumidos acima de um determinado limite; e uma pesada taxação sobre as transferências de riqueza, também acima de um certo limite, por herança ou por doação inter vivos. A progressividade desse segundo imposto seria aplicada do lado do recebedor, isto é, com base em quanta riqueza e propriedade tem o beneficiário da doação ou da herança e conforme o conjunto de doações e heranças recebidas ao longo de sua vida inteira. A taxação progressiva da renda só seria empregada de forma marginal, para evitar a concentração da riqueza. Para Meade, essas formas de tributação têm menos efeitos adversos sobre os incentivos para trabalhar, poupar e assumir riscos do que as formas usuais de tributação da renda empregadas pelos welfare states” (1998:10).

Page 41: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

35

justiça de sua teoria do que o de um capitalismo de welfare state, porque o

primeiro garante

“[...] a difusão da propriedade de recursos produtivos e de capital

humano no início de cada período [...] contra o pano de fundo de

uma igualdade eqüitativa de oportunidade. A idéia não é

simplesmente a de dar assistência àqueles que levam a pior em razão

do acaso ou da má sorte e sim a de fazer com que todos os cidadãos

sejam capazes de conduzir seus próprios assuntos em um pé de

igualdade social e econômica apropriada" (iddem; ver Rawls,

1990:143).

Assim, segundo Vita

“O mais sério defeito do welfare state está em que seu sistema de

tributação e de transferências é organizado para corrigir ex-post – ‘ao

fim de cada período’, como diz Rawls – as desigualdades geradas por

uma economia capitalista de mercado (Van Parijs, 1997:74). Para

Rawls, “as compensações ex-post exigem precisamente aquilo que

deveria estar ausente de um arranjo institucional justo, isto é, “levar

em conta a infindável variedade de circunstâncias e as posições

relativas de pessoas específicas” (Rawls, 1971:87). [De acordo com

ele], “como observa Van Parijs, as diversas modalidades de renda

mínima garantida que vários países europeus introduziram em seus

welfare states após a Segunda Guerra Mundial são fortemente

condicionadas, implicando na necessidade maior de investigar a vida

privada do público-beneficiário desta, o que, está muito aquém da

forma de justiça procedimental pura que o ideal de democracia de

cidadãos-proprietários procura captar, o qual “supõe que seja

possível organizar as instituições de propriedade e tributação de tal

forma a que constituam, junto com as instituições necessárias para

garantir o maior grau possível de igualdade de oportunidade, uma

estrutura básica que é ex-ante justa” (ibidem)8.

8 Segundo Vita, Rawls parece relutante em admitir o grau de redistributivismo que está embutido no modelo da democracia de cidadãos-proprietários já que as mudanças institucionais defendidas por Meade para as economias industriais avançadas vão muito além daquelas que o autor explicitamente endossa (1998:11).

Page 42: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

36

Assim, a proposta de Rawls refere-se a uma democracia de

“cidadãos-proprietários”, em que a distribuição eqüitativa seria instalada ex

ante Um dos passos para se chegar a esse modelo seria por meio da

taxação da riqueza e da propriedade privada de capital ao invés da renda.

I.2.8 Críticas à teoria rawlsiana

Após a publicação de Uma Teoria da Justiça abundaram as críticas de

que a obra não proporia mais do que a teorização de certas idéias intuitivas

de justiça que poderiam ser concretizadas somente em determinado tipo de

sociedade, tendo, portanto, limitado seu campo de abrangência (Alves,

2002). Rawls, todavia, não vê problemas nessa crítica ao concordar em O

Liberalismo Político que a sua teoria da justiça é uma concepção política

válida apenas para democracias representativas e liberais, sem ambições de

universalismo ou vinculação a qualquer fundo doutrinal.

De todo modo, Pogrebinschi acredita ser possível identificar três

momentos distintos na literatura crítica suscitada pela trajetória intelectual

rawlsiana, a saber: i) o momento imediatamente subseqüente à publicação

de Uma Teoria da Justiça, na década de 70, em que se destaca o libertarista

Nozick como um dos principais críticos do autor; ii) os anos 80, com a

crítica advinda de autores comunitaristas, quando os conceitos rawlsianos

de pessoa e de natureza humana passam a ocupar o centro do debate,

destacando-se os trabalhos de Sandel e Walzer nesse sentido; iii) os anos

90, cuja crítica se centra na noção de pluralismo e no conceito de

razoabilidade, em que se destaca Habermas como importante interlocutor

de Rawls (2001:28).

Já Lopes Alves considera que o mais produtivo no pensamento de

Rawls consiste, justamente, no seu tratamento do pluralismo conjuntivo das

sociedades liberais contemporâneas, o qual, segundo sua percepção,

relativizaria algumas das críticas de inspiração habermasiana, questionando

a compatibilidade da concepção política de Rawls com a democracia política,

Page 43: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

37

acreditando que este partiria de uma concepção monológica de justiça

refletida nos dois princípios básicos de decisões justas “a qual colidiria com

a dialógica de consensos negociados própria da tradição democrática”

(2003:2).

Ainda segundo Lopes Alves, a restrição da concepção de justiça ao

contexto político do pluralismo ideológico que Rawls consagra em O

Liberalismo Político supera as aparências monológicas de Uma Teoria da

Justiça, debilitando tal criticismo.

“[...] numa versão minimalista de overlapping consensus, circunscrito

à aceitação das regras de jogo político para dirimir os dissensos

inerentes ao pluralismo ideológico, o ponto de vista de Rawls mostra-

se mais respeitoso da diversidade flexível do discurso democrático (a

dialógica dos dissensos a avaliar não como carência ou defeito, mas

como ingrediente constitutivo das sociedades modernas) do que a

procura do consenso linguístico-transcendental em que recai o

‘paradigma deliberativo’ habermasiano” (Lopes Alves, 2003:3).

Com relação à crítica dos comunitaristas a Rawls, apesar da aparente

correção dos elementos que sustentam o construtivismo rawlsiano em

bases políticas e justificam a sua teoria da justiça como um liberalismo

político, dúvidas e questões permanecem abertas como, por exemplo: até

que ponto a noção de pessoa e dos poderes morais a ela inerentes não se

constitui em uma idéia de fundo natural? Como conciliar a realização pública

da justiça como um valor comunitário com a perspectiva individualista

presente na concepção política de pessoa de Rawls? Tal concepção não

estaria supondo o uso de noções comunitaristas?

I.3 Amartya Sen

I.3.1 A teoria da capacidade

A teoria da capacidade elaborada por Amartya Sen como instrumento

para avaliar o grau de bem-estar de um indivíduo em uma estrutura social

Page 44: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

38

constitui uma concepção particular da justiça social, além de uma crítica às

teorias econômicas avaliativas. Representa, igualmente, uma crítica àquelas

concepções teóricas centradas na preservação da liberdade negativa, como

a teoria dos bens primários formulada por John Rawls.

De fato, segundo Sen, uma teoria da justiça como eqüidade deveria

incorporar as liberdades concretas que podem ser desfrutadas por pessoas

diferentes, com objetivos possivelmente diversos - razão pela qual, na sua

percepção, é importante considerar o grau preciso das liberdades que estas

dispõem para se proporem a viver vidas diferentes. Paralelamente a tal

constatação, o autor acredita que uma visão da justiça derivada,

prioritariamente, do suprimento de bens primários está equivocada.

“[...] no es algo marginal observar cómo Sen critica cierto ‘fetichismo

de la mercancía’, que está presente en la propuesta de igualdad que

se apoya o que está sujeta a una visión derivada de los bienes

primarios cuya intercambiabilidad equipara el valor de los bienes para

todos. [...] Este problema es parecido al de la conversión de trabajo

heterogéneo en trabajo abstracto, una dificultad bien conocida en el

campo de la economía marxista, y que se repite aquí ante una

dificultad similar a la que surge cuando se intenta construir cualquier

índice unificador a partir de dotaciones heterogéneas. La tendencia a

calcular los valores en términos de una única medida, ya sea la

cantidad de trabajo abstracto o la búsqueda de un único referente en

términos de utilidad, se plantea casi siempre con los mismos

esquemas formales e ideológicos: la posibilidad de un único rasero.

Sin embargo, con frecuencia, lo importante es más bien el pluralismo

y la desigualdad [...] De aquí la importancia de encontrar

procedimientos de comparación interpersonal que puedan tener en

cuenta la diferencia, la pluralidad y la peculiaridad” (Alvarez,

2001:7).

De todo modo, a crítica de Sen a essas teorias avaliativas parte da

demanda por igualdade que todas elas possuem em comum. Afirma que a

pergunta “igualdade de quê?” importa mais do que a pergunta “por que a

Page 45: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

39

igualdade?”. Para ele, deve-se privilegiar os espaços de igualdade mais

relevantes, e não fazer apenas uma apologia genérica da igualdade.

Criticando a falta de realismo de algumas dessas teorias, propõe o conceito

de capacidade, que mediria a possibilidade de um cidadão comum chegar à

suposta igualdade.

Nesse sentido, concentra-se em responder à pergunta: igualdade de

quê? considerando: i) que os indivíduos, seja por dotações naturais

singulares, seja por características externas, são intrinsecamente diferentes

entre si; e ii) que qualquer variável que sirva de base para mensurar a

igualdade entre eles pressupõe a existência de desigualdades periféricas, o

que deve ser apreendido e respeitado. Daí a pergunta: qual é o aspecto

mais idôneo para se avaliar a igualdade e a desigualdade dentro de uma

ordem social?

De acordo com Sen, esta questão pode ser respondida levando-se em

conta duas perspectivas: i) a do bem-estar, definido pelo “o que” uma

pessoa alcançou; e ii) a da liberdade, definida pelas oportunidades reais que

esta teve para atingir esse bem-estar. Ressalta que o argumento por ele

desenvolvido demonstra que a primeira dessas ficaria incompleta se

ignorada a segunda, dado que a liberdade é indispensável para se atingir o

bem-estar e qualquer qualidade de vida valorada positivamente. De

maneira similar, pondera que a perspectiva da liberdade não pode ser

considerada por si mesma, independentemente da avaliação das conquistas

(achievements), senão que necessita ser deduzida de premissas fundadas

sobre a primeira perspectiva (pois a liberdade só é importante quando se

refere às conquistas valoradas positivamente).

Assim, Sen desenvolve sua “teoria da capacidade” baseado em uma

preocupação substantiva com a liberdade. Sua resposta à pergunta

igualdade de quê? opta pelo critério da igualdade da liberdade individual.

Em conseqüência, visando acentuar a importância dessa liberdade, propõe

que o bem-estar atingido e a liberdade de fazê-lo sejam entendidos melhor

em termos de “funcionamentos“ e “capacidades” de cada indivíduo

considerado na sua singularidade.

Page 46: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

40

Segundo Vethencourt, Sen está convencido de que o conceito de

“funcionamento” é o melhor para se entender o bem-estar conquistado já

que representa os estados de ser e de fazer, que constituem os elementos

que definem uma pessoa. Portanto, o que uma pessoa é pode ser avaliado

pelo conjunto de funcionamentos que atingiu, inclusive aqueles de maior

complexidade, como sua participação cívica etc. De modo similar,

“capacidade” é a melhor forma de entender a “liberdade” já que reflete a

liberdade de uma pessoa alcançar funcionamentos que valore positivamente

na medida em que compreende as distintas combinações de ser e fazer que

estão à sua disposição (s/d:3).

Sen define a “capacidade” como um conjunto de pontos e

“funcionamento” como um ponto dentro desse conjunto. O autor explica

que a liberdade (capacidade) constitui uma condição de bem-estar já que os

funcionamentos realizados representarão este na medida em que são

valiosos (elegíveis) para uma pessoa singular. Explica, ainda, que o bem-

estar alcançado por essa pessoa depende da sua capacidade de funcionar,

das oportunidades reais que lhes são disponibilizadas nesse sentido. Então,

atingir determinado bem-estar depende do processo em função do qual este

foi atingido, das variáveis envolvidas, que são diferentes de pessoa para

pessoa, contexto para contexto, conforme suas singularidades

(Vethencourt, s/d).

Dessa forma, o autor se propõe a julgar o bem-estar individual à luz

de uma nova métrica que admite comparações. De acordo com ele, a teoria

da capacidade em um arranjo social deve levar em conta, sobretudo, a

liberdade (capacidade) de funcionar além da base de informação dos

funcionamentos possíveis.

Particularmente no último aspecto acima citado, identifica-se o

avanço representado pela teoria de Sen na distinção que faz entre liberdade

para atingir o bem-estar e liberdade como importante em si mesma. Os

igualitários deveriam se preocupar, segundo o mesmo, com a capacidade

igual de funcionar de várias maneiras. Na sua percepção, o que realmente

Page 47: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

41

importa são os estados e atividades valorados, os funcionamentos concretos

(formas de ser e agir variadas).

Assim, a teoria da capacidade de Sen pressupõe um sujeito

autônomo cuja ênfase está posta em um conjunto de capacidades

desenvolvidas, nas quais são enfatizadas as condições para projetar sua

própria vida e não um modelo de vida particular.

Dessa forma, a noção normativa mais abrangente, no enfoque do

autor, é a de capacidade. Os funcionamentos constituem os ingredientes do

bem-estar, e aqueles que uma pessoa consegue realizar definem o grau de

bem-estar efetivamente alcançado por ela na sua vida. Mas o bem-estar

alcançado não é, para Sen, uma medida suficiente da vantagem ou do

benefício individual. As comparações interpessoais da vantagem devem

basear-se, sobretudo, na liberdade de alcançar esse bem-estar, de poder

usufruí-lo uma vez acessado.

O grau da liberdade desfrutado por uma pessoa constitui o que o

autor denomina de sua capacidade. Em termos técnicos, a capacidade

representa para ele a liberdade efetiva que uma pessoa tem de escolher

entre diferentes combinações possíveis de funcionamentos valiosos ou de

atuações que valora positivamente.

“La ‘capacidad’ refleja la libertad de una persona para elegir entre

vidas alternativas, es decir, entre determinadas combinaciones de

‘funciones’ que representan las cosas que podemos hacer y las

diversas formas de ser. Al atender a la capacidad potencial es preciso

considerar la transformación que cada uno realiza de los bienes

primarios en logros concretos, pues hay condiciones diferentes entre

los individuos. La capacidad representa la libertad, mientras que los

bienes primarios nos hablan sólo de los medios para la libertad sin

atender a la variación interpersonal entre esos medios y las libertades

concretas conseguidas” (Alvarez, 2001:8).

Ou, nas palavras do próprio Sen:

Page 48: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

42

"Somos diversos, pero lo somos de maneras diferentes. Un cierto tipo

de variación se relaciona con las diferencias que hay entre nuestros

fines y objetivos. Las implicaciones éticas y políticas de esta

diversidad las entendemos ahora mejor que antes como resultado de

los potentes trabajos de Rawls sobre la justicia como equidad. Pero

hay otra diversidad importante - las variaciones en nuestra aptitud

para convertir recursos en libertades concretas. Variaciones que

hacen referencia al sexo, a la edad, a la dotación genética a muchos

otros rasgos que nos dan potencia desigual para construir nuestra

libertad en nuestras vidas, aunque tengamos la misma dotación de

bienes primarios" (1980).

A capacidade de escolher entre diferentes "bem-estares" é

importante para Sen no sentido de: i) evitar apoiar sua visão normativa em

uma concepção do bem-estar humano "perfeccionista"; ii) afastar-se de

concepções welfaristas de bem-estar, pois em uma sociedade

comprometida com a igualdade de capacidade de funcionar, o nível de bem-

estar que cada um efetivamente alcança dependerá das preferências,

valores e escolhas individuais; iii) chegar a uma interpretação da idéia de

liberdade efetiva - como aquilo que uma pessoa é realmente capaz de fazer

com os próprios recursos, oportunidades e direitos. No entanto, na

percepção de Sen:

“[...] desejar algo [...] não é uma razão suficiente para julgar,

sobretudo da ótica de uma teoria da justiça social, que algo valioso

esteja em questão. Considerando que valorizar – conferir valor moral

a alguma coisa – é uma atividade reflexiva [...], o mais plausível,

sustenta Sen, é inverter a relação: porque algo tem valor, isto

constitui uma razão para o agente desejá-lo ou preferi-lo. Avaliar a

vantagem individual de pessoas submetidas à destituição e a

desigualdades profundas somente por seus desejos e preferências

efetivos significa corroborar a injustiça de que são vítimas. Essa

avaliação, para Sen, terá de recorrer a escolhas ou preferências

contrafatuais”. (1999:3).

Page 49: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

43

Vita ressalta, ainda, que o autor encontra um fundamento normativo

para avaliar os níveis relativos de vantagem individual, que rechaça o

welfarismo e não cai em uma concepção perfeccionista de bem-estar, por

meio da seleção do "espaço avaliatório". Tal espaço é central porque não há

como tornar as pessoas iguais, simultaneamente, em todas as dimensões

consideradas importantes para a vantagem individual em função da

diversidade humana.

De fato, as pessoas diferem, em suas circunstâncias sociais, em

talentos e capacidades naturais, gostos e preferências e em valores.

Nenhuma concepção de igualdade distributiva, assim, pode torná-las iguais

em todas essas dimensões, ao mesmo tempo, conforme o autor.

Superando um enfoque que valoriza apenas o comportamento auto-

interessado, maximizador do lucro ou da própria utilidade, Sen postula a

necessidade de uma ética em que questões como as desigualdades sociais,

os problemas ambientais e os bens públicos tenham relevância. Na sua

visão, assim como na de Rawls, “é preciso ultrapassar a esfera da economia

de mercado para lidar com problemas dessa natureza e uma das maneiras

mais importantes de fazer isso consiste em promover o desenvolvimento de

valores mais sensíveis a tais problemas” (Peixoto Ramos, 2003:13). A

justiça das instituições é um desses valores, a qual deve ser mensurada

com relação à liberdade que os indivíduos têm para escolher seu estilo de

vida, intimamente relacionado com as capacidades de cada um e com o

critério subjetivo e pessoal daquilo que valoram e por que o fazem.

A proposta de Sen é avaliar as realizações alcançadas por indivíduos

em função do conjunto de oportunidades que lhes foram ofertadas, ao que

denomina medir "a liberdade do bem-estar". Postula, assim, que caso se

deseje impor um critério igualitário de justiça, este deve estar baseado na

igualdade de capacidades, uma vez que estas determinam a liberdade de

eleição do estilo de vida.

De acordo com Vita, na teoria de Rawls há uma preocupação similar à

de Sen com relação à liberdade efetiva.

Page 50: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

44

“Rawls distingue as liberdades fundamentais (os direitos civis e

políticos tradicionais) do "valor" dessas liberdades. Ainda que o

esquema institucional de liberdades fundamentais seja o mesmo para

todos, dada à existência da pobreza e de desigualdades profundas,

alguns têm mais meios do que outros para se valer dessas liberdades

para promover os fins que consideram valiosos. Para os primeiros, as

liberdades têm mais valor. [...] O raciocínio completa-se com o

argumento de que o valor das liberdades fundamentais para os

menos favorecidos é garantido mediante uma distribuição eqüitativa

de ‘bens primários’ [...]. Ainda que as concepções de igualdade

distributiva e de liberdade sejam relacionadas nesse argumento de

Rawls, elas são tratadas como conceitos normativos distintos. Sen,

em contraste, por vezes parece estar tentando acomodar as

exigências da igualdade e da liberdade (efetiva) sob uma única noção

normativa. Note-se que por functionings valiosas se deve entender

tanto certas formas de atividade (‘ser capaz de ler e escrever’, por

exemplo) quanto certas formas de existência da pessoa cujo bem-

estar se quer avaliar. Nessa avaliação, contam tanto as atividades

que a pessoa é capaz ela própria de realizar [...], quanto os estados

de existência que só lhe podem ser proporcionados pela ação de

outros (e que, portanto, não envolvem nenhum exercício de atividade

por parte do beneficiário dessa ação)” (Vita, 1999a:6).

I.3.2 O desenvolvimento como liberdade

Segundo Sen, o desafio da sociedade contemporânea é o de formular

políticas públicas que permitam o crescimento da economia e, sobretudo, a

distribuição mais eqüitativa da renda e de outras vantagens distributivas,

além do pleno funcionamento da democracia, para se chegar ao que o autor

entende por desenvolvimento.

De todo modo, não existe um consenso sobre o significado do termo

“desenvolvimento”, freqüentemente confundido com crescimento

econômico. Amartya Sen define-o como o processo de ampliação da

capacidade dos indivíduos de terem opções, fazerem escolhas. Relativizando

Page 51: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

45

os fatores materiais e os indicadores estritamente econômicos, o autor

insiste na necessidade de ampliação do horizonte social e cultural da vida

das pessoas para pensar o desenvolvimento. Segundo ele, considerar a

base material de uma estrutura social nesse sentido é fundamental, mas

esta deve ser tomada apenas como um meio e não como um fim em si.

De fato, os índices de desenvolvimento humano formulados por Sen e

adotados pela ONU revelam aspectos da realidade de uma série de países,

para além da sua capacidade produtiva, ao mensurarem a melhoria/piora

da qualidade de vida em comum, a confiança/desconfiança das pessoas nos

outros e no futuro, as possibilidades de estas levarem adiante iniciativas e

inovações que lhes permitam concretizar seu potencial criativo e contribuir

efetivamente para a vida coletiva, entre outros indicadores de caráter

igualmente inovador.

Sen resume suas idéias sobre o desenvolvimento de uma forma

muito simples: ser desenvolvido é ter possibilidades de contar com a ajuda

dos amigos, ou seja, é atuar de forma cooperada e solidária. Em suas

palavras: “o desenvolvimento pode ser visto como um processo de

expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (Sen, 2000:17).

Assim, o elemento mais enfatizado nessa definição é a noção de liberdade

como fim e como principal meio do desenvolvimento.

O autor afirma, ainda, que uma sociedade deve ser avaliada de

acordo com as liberdades substantivas que proporciona aos seus membros.

Esta constitui a razão avaliatória pela qual a liberdade deve ser vista como

central para o desenvolvimento, ou seja, o progresso deve ser medido de

acordo com a quantidade de liberdades reais que proporciona para as

pessoas. Uma outra razão, nesse sentido, é a da eficácia, isto é, o

desenvolvimento depende da liberdade que estas têm “para cuidar de si

mesmas e para influenciar o mundo” (Sen, 2000:33), o que retoma a

temática das relações entre funcionamentos e capacidades.

Quanto aos direitos,

Page 52: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

46

“[...] são tidos por Sen como ‘suplemento’ às liberdades; eles

possuem uma dimensão adicional, que é a da obrigação que eles

implicam. Para defender a universalidade dos direitos humanos a

partir de um ponto de vista totalmente contrário ao libertarista, Sen

defende que uma das questões mais importantes relativas à vigência

desses direitos diz respeito à possibilidade que o povo adquire de

exercer pressão sobre o governo para que este atenda às suas

necessidades” (Peixoto Ramos, 2003:16).

Peixoto Ramos destaca que Sen acredita em uma espécie de

democracia deliberativa “na qual os mecanismos de tomada de decisão não

se baseiam em preferências dadas, mas em como as preferências e as

normas são formadas por meio da discussão”. Sen preocupa-se, assim, com

a base normativa que sustenta o funcionamento das instituições sociais, a

qual advém de uma cultura política democrática. O que formula, no

entanto, é uma concepção de igualdade distributiva.

Para Sen toda ponderação acerca de um arranjo social deve levar em

conta a agência efetivada e a liberdade de agência. A primeira refere-se aos

resultados daqueles objetivos pretendidos além do bem-estar particular da

pessoa, como a prosperidade da comunidade etc.; já a liberdade de agência

se refere à liberdade de atingir esses valores e objetivos gerais. No entanto,

apesar de os indivíduos terem fins de agência ao lado de fins de bem-estar,

a avaliação do compromisso de uma sociedade e de suas políticas públicas

com respeito à igualdade destes, à justiça social e à superação da pobreza

deve concentrar-se no bem-estar alcançado e na liberdade de alcançá-lo.

Dessa forma, a teoria do desenvolvimento como liberdade, de Sen,

pretende oferecer uma base informacional mais ampla do que aquelas

próprias do utilitarismo, do libertarismo e da própria teoria rawlsiana. Cada

uma dessas abordagens possui uma determinada base informacional, ou

seja, um determinado conjunto de informações que funcionam como

parâmetros para avaliar as sociedades. Todavia, Sen critica tais teorias vis-

à-vis pouca relevância que elas atribuem às liberdades substantivas.

Page 53: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

47

I.3.3 A crítica ao utilitarismo

Nos últimos anos, Sen centrou seus estudos em reflexões de natureza

ética no sentido de identificar um critério de justiça para as instituições

sociais que privilegiasse a liberdade que as pessoas têm para escolher seu

estilo de vida próprio. Corresponde a esse período uma forte crítica ao

utilitarismo, paradigma dominante no pensamento econômico ortodoxo no

que se refere às políticas públicas igualitárias.

De acordo com Peixoto Ramos, Sen faz críticas ao utilitarismo que

são comuns ao pensamento de autores neocontratualistas9. A primeira

destas diz respeito ao fato de o utilitarismo não se preocupar com a

distribuição das utilidades, o que caracteriza sua indiferença distributiva. A

autora destaca, ainda, outros dois aspectos dessa crítica, quais sejam: “o

descaso com os direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas

da utilidade [e com] a adaptação e condicionamento mental [o qual] refere-

se ao fato de as pessoas pobres tenderem a ter preferências mais

modestas, compatíveis com seu estado geral de privação” que tampouco o

utilitarismo considera. Segundo Peixoto Ramos, é preciso mencionar

também

“[...] uma dificuldade relacionada às comparações interpessoais de

utilidade. Se a utilidade for definida simplesmente como a

representação das preferências individuais, não haverá, para Sen, a

menor possibilidade de que se façam comparações interpessoais

diretas de utilidades. Além disso, essa definição tem a falha de

considerar que escolhas iguais geram utilidades iguais, o que

freqüentemente se revela uma inverdade” (2003:14).

Já, segundo Kerstenetzky,

9 O neocontratualismo sustenta a idéia de que é preciso que a sociedade sistematize e preserve princípios

fundamentais de justiça de forma que seja assegurada uma distribuição eqüitativa dos recursos sociais

(Peixoto Ramos, 2003:14).

Page 54: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

48

“[...] a objeção maior de Sen ao utilitarismo deve-se à ênfase deste

último no bem-estar ao que ele chama de aspecto welfarista do

utilitarismo, que padeceria de injustificado reducionismo de valor.

Adicionalmente, ao apoiar-se na utilidade e nas preferências dos

indivíduos, o utilitarismo não faria justiça às óbvias assimetrias de

informação e de condição existentes entre eles, as quais permitem

que alguns tenham preferências ‘caras’ enquanto outros formem,

resignadamente, preferências ‘baratas’” (2003:4).

Ainda conforme Kerstenetzky, Sen acredita que o utilitarismo distorce

a avaliação dos estados sociais possíveis, sobretudo ao sancionar, de um

lado, o conformismo daqueles que sofrem opressão e discriminação sociais

continuadas e que ajustam suas preferências às suas minguadas

possibilidades de realização e, de outro, os privilégios de elites que já estão

consolidados.

A crítica de Sen ao utilitarismo está centrada igualmente em seu

fundamento informacional. Segundo o autor, a questão não é se o bem-

estar é uma variável importante para a análise moral, senão se ela é a

única variável ou condição para avaliar um estado de coisas ou uma eleição,

como no utilitarismo. Sen destaca que, em suas escolhas, as pessoas têm

outras metas e valores para além do bem-estar. A estratégia do autor,

nesse sentido, é ampliar a base informacional que subsidia suas

formulações teóricas. Pode-se dizer que começa essa tarefa

redimensionando a noção mesma de bem-estar, adotando uma concepção

que considere as diferenças interpessoais na conversão dos bens em

liberdade para levar a vida que se deseja. Nesse ponto se distancia de

Rawls.

De fato, a base informacional de Sen se dá através da inclusão da

liberdade na dimensão do bem-estar e também por via de uma nova

dimensão, a de agência, que se refere à capacidade de cada pessoa para

levar efetivamente adiante a vida que considera valer a pena ser vivida

supondo que seja capaz de se propor objetivos, obrigações, fidelidades e

uma determinada concepção do bem.

Page 55: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

49

I.3.4 A crítica a Rawls e a contribuição de Nussbaum

Sen reconhece o avanço substancial representado pela teoria da

justiça de Rawls ao incluir termos normativos na avaliação de uma estrutura

social bem-ordenada. Postula, no entanto, que os bens primários definidos

por Rawls são meios para se atingir liberdades substantivas sem garantir,

contudo, que estas serão de fato atingidas, o que lhe parece problemático

uma vez que a igualdade de meios nem sempre implica igualdade de

liberdade, ou igualdade na capacidade para conseguir diversas combinações

alternativas de funcionamentos.

Assim, diferentemente da teoria de Rawls, Sen postula que devem

ser as capacidades e não os meios a base informacional de uma teoria da

justiça10. O autor faz duas objeções aos bens primários, tais como definidos

por Rawls, a saber: a primeira é a de que a sua métrica é demasiado

inflexível porque ignora variações interindividuais significativas que fazem

com que seja mais difícil para uns do que para outros converter bens

primários em capacidades básicas11. Em vista disso – e esta é a segunda

objeção –, o equalisandum da teoria de Rawls localiza-se no "espaço

avaliatório" errado.

Sen acredita que Rawls desviou a atenção da avaliação de

desigualdades de resultados para a avaliação de desigualdades de

oportunidades em questões de justiça distributiva. Mas o foco na igualdade

de bens primários fez com que esse deslocamento permanecesse

incompleto. Afinal, argumenta Sen, não há uma preocupação com bens de

per se, mas sim com o que as pessoas, dadas certas variações

interindividuais significativas, são capazes de fazer com esses bens.

Assim, nas palavras de Sen, a teoria de Rawls se concentra nos

"meios para a liberdade", quando o que realmente importa é a "liberdade

10 A conversão dos bens primários em liberdade depende de cinco fatores que interferem na relação entre renda e bem-estar: “heterogeneidades pessoais, diversidades ambientais, variações no clima social, diferenças de perspectivas relativas, distribuição na família” (Sen, 1999:90-91). 11Trata-se, essencialmente, da mesma crítica que Sen dirige às comparações interpessoais de bem-estar que se baseiam, exclusivamente, na titularidade de renda ou de bens e mercadorias. Uma mesma disponibilidade de renda não garante que uma pessoa que necessite de cuidados médicos especiais e uma pessoa saudável terão uma capacidade igual de alcançar bem-estar. Da mesma forma, garantir um quinhão eqüitativo de bens primários para todos não significa que todos serão igualmente capazes de colocar esses recursos a serviço do tipo de vida e dos fins que valorizam.

Page 56: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

50

em si mesma" (1992:86) – isto é, a liberdade efetiva de escolher entre os

diferentes tipos de vida que os indivíduos têm razões para valorizar.

Somente o foco nos funcionamentos e capacidades, conforme afirma Sen,

em lugar de bens primários, pode captar aquilo (a "liberdade em si

mesma") que os igualitários de fato prezam12.

Uma segunda crítica dirigida por Sen à teoria da justiça de Rawls

aponta para a debilidade de restringir a aplicabilidade desta ao contexto da

democracia constitucional. Sen deduz esse aspecto da afirmação de Rawls

de que sua teoria é uma concepção política e não uma teoria geral a

respeito do bem (como em O Liberalismo Político).

Posteriormente, Sen abriu a possibilidade de se construir um índice

de capacidades mínimas que superasse uma visão compreensiva e

perfeccionista. Segundo Fascioli (2002), uma das melhores tentativas de

construção desse índice foi realizada por sua colaboradora Martha

Nussbaum, que formulou uma teoria que serve de guia no desenho e

avaliação de políticas globais de desenvolvimento, constitui uma densa

teoria do “bem” e funciona como base para uma teoria da justiça social

universal.

Tais capacidades, segundo a autora, se estruturam em dois umbrais,

a saber: i) um primeiro, composto pelas funções humanas básicas; ii) um

segundo, sob concepções éticas.

Conforme Fascioli (2002), Nussbaum e Sen (1993) consideram que a

igualdade moral parte da satisfação de necessidades básicas, sem as quais

nem sequer a liberdade de eleição é possível.13 Consideram que se requer

meios ou condições para se ser livre e acreditam nos seguintes

compromissos com relação ao sentido público de justiça: a).um

12Tal crítica de Sen provocou uma importante réplica de Rawls, o qual acredita que tratar de capacidades como o faz Sen, “pressupõe a aceitação de alguma doutrina global ou concepção única do bem, contradizendo a concepção política da justiça como uma concepção razoável para a estrutura básica da sociedade, que não está formulada em termos de nenhuma doutrina compreensiva, senão em termos de certas idéias fundamentais, latentes na cultura política pública de uma sociedade democrática plural” (Rawls,2000). Sen e Rawls estão de acordo, todavia, que a liberdade efetiva é o que importa da perspectiva da justiça social. 13 Nussbaum, M., Sen, A. (1993), The Quality of Live, Clarendon Paperbacks.

Page 57: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

51

compromisso substantivo com os fins da vida pessoal; b) um compromisso

processual de tratar eqüitativamente os outros, ou seja, reconhecer a

autonomia do outro, autonomia que já existe e que lhe permite construir

seu sentido de vida; c) um compromisso substantivo com certos fins

mínimos da vida humana, por exemplo, a autonomia, e, portanto, o

compromisso com sua promoção.

Assim, de acordo com esta, Nussbaum propõe a seguinte lista de

capacidades funcionais humanas básicas:

1. Ser capaz de viver até o fim uma vida humana completa, tanto

quanto seja possível, não morrer prematuramente, ou antes de que

esta esteja tão reduzida que não valha a pena vivê-la.

2. Ser capaz de ter boa saúde, estar adequadamente nutrido, ter a

proteção necessária, ter oportunidades para a satisfação sexual.

3. Ser capaz de evitar a dor desnecessária e ter experiências

prazenteiras.

4. Ser capaz de usar os cinco sentidos, de imaginar, pensar e

raciocinar.

5. Ser capaz de unir-se a coisas e outras pessoas, amar àqueles que

nos amam e cuidam, sofrer diante da sua ausência, sentir gratidão,

amor.

6. Ser capaz de formar uma concepção do bem e ter uma reflexão

crítica sobre o planejamento da própria vida.

7. Ser capaz de viver para e com os outros, reconhecer e mostrar

preocupação por outros seres humanos, envolver-se em interações

familiares e sociais.

8. Ser capaz de viver em relação com o resto do mundo natural.

9. Ser capaz de rir, jogar e desfrutar de atividades recreativas.

Page 58: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

52

10. Ser capaz de viver a própria vida no próprio contexto.

I.4 A título de conclusão

Assim como Rawls, Sen esforça-se por identificar um espaço de

avaliação intermediário entre uma concepção objetiva de bem-estar e uma

outra subjetiva (que entende como "welfarista"). Nesse sentido, além de

realizar comparações interpessoais de utilidade que levem em conta a

intensidade dos desejos e preferências entre as pessoas, o autor acredita

que deve-se equacionar um problema anterior, o qual diz respeito à própria

consideração destes como a única fonte daquilo que tem valor no bem-estar

dessas pessoas, já que [tais desejos e preferências] podem significar

simplesmente adaptações a circunstâncias arbitrárias. Segundo ele, esse

problema se apresenta, sobretudo, nos contextos onde observa-se

desigualdades profundas e arraigadas que, a seu ver, tenderão a ser

naturalizadas pela métrica welfarista.

Sen acredita, no entanto, que mesmo que Rawls tenha sido sensível a

um trato igualitário de pessoas com diferentes concepções sobre os fins da

vida, não conseguiu expressar a liberdade real dessas ao não considerar as

variações interpessoais existentes para converter bens em liberdade, no

sentido de viabilizar esses fins vitais.

No entanto, ficou patente a aproximação de Sen a Rawls na noção de

sujeito. As reflexões éticas de Sen, sobretudo aquelas ancoradas na idéia de

capacidade, agência e compromisso referem-se, em última instância, ao

conceito moderno de autonomia pessoal que supõe, por um lado, a

autodeterminação do sujeito na construção e busca de um plano racional de

vida livremente elegido; por outro, o necessário reconhecimento dos outros

enquanto sujeitos e, portanto, a necessidade de uma igual consideração de

seus direitos. Nesse caso, prevalece a idéia dos sujeitos como pessoas

morais livres e iguais, paradigma que Rawls, na filosofia política

contemporânea, resume em duas capacidades básicas: albergar uma

concepção do bem e um sentido público de justiça. Esse ideal de

Page 59: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

53

autonomia, todavia, encobre uma diferença significativa na forma em que é

apresentado por ambos os autores. Em Rawls, a autonomia dos sujeitos

está dada, supõe-se já presente como condição de uma sociedade

democrática plural; em Sen, essa mesma autonomia não é evidente, deve

ser construída e garantida pelo desenvolvimento de certas capacidades

mínimas.

Já o aporte de Nussbaum é fundamental para uma concepção das

capacidades básicas a igualar. Ainda que de uma perspectiva diferente de

Sen e Rawls, a autora adere à mesma noção de autonomia, que propõe

como metacritério para a construção de sua lista. Trata de mínimos que

garantem condições de autonomia e não de excelências, pelo que não se

correria o risco de perfeccionismo.

Com relação à justiça alocativa - preocupação comum dos autores

supracitados - segundo Medeiros (1999), o debate gira predominantemente

sobres os princípio da igualdade e da eqüidade. Pelo primeiro, todas as

pessoas devem receber o mesmo tratamento e os mesmos recursos por

serem iguais, uma vez que este [princípio da igualdade] está baseado em

uma moralidade de direitos adquiridos pela participação na coletividade, os

direitos de cidadania. Já o princípio da eqüidade reconhece a diferença

dessas entre si, as quais merecem tratamentos diferenciados que

minimizem desigualdades observadas (1999:6).

Medeiros chama atenção para Rawls que estabeleceu um critério para

a justiça na desigualdade, o qual é assumido pela eqüidade. Segundo ele

[Rawls], o tratamento desigual é justo quando é benéfico para os mais

necessitados, o que deve ser avaliado de forma comparativa de acordo com

sua disponibilidade em termos de “bens primários” (Rawls1981:278 apud

Medeiros, 1999:6). Segundo Medeiros

“Adaptações posteriores do maximin que consideram a hipótese dos

indivíduos ocuparem a mesma posição na hierarquia de utilidades

individuais resultaram no axioma de Leximin, de Sen (1981:278),

para o qual, no caso de haver dois indivíduos ocupando a pior posição

na hierarquia das utilidades individuais (dois “últimos”), esses

Page 60: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

54

indivíduos podem ser classificados pelo nível de utilidade do indivíduo

seguinte (um “penúltimo”). Havendo empate, comparando-os aos

“antepenúltimos”, e assim sucessivamente, até o desempate.

Complementando a ênfase de Rawls nas condições diferenciadas, Sen

destaca a importância da consideração das necessidades

diferenciadas (no léxico de utilidades consideradas) em decisões

alocativas (1999:6).

Finalmente cabe enfatizar que, conforme Vita (1999b), Sen não

propôs uma teoria da justiça alternativa à de Rawls até porque seu

"enfoque da capacidade" é tributário em vários aspectos da teoria

rawlsiana. Mas também porque uma teoria da justiça é, em essência, uma

proposta de equilíbrio entre exigências de valores políticos que são

conflitantes. Rawls argumenta que sua proposta é aquela que melhor

acomoda os "julgamentos ponderados de justiça" que ocupam um lugar

central na tradição política democrática (Rawls, 1971:48-51 apud Vita,

1999b:1). Já o enfoque de Sen não tem essa abrangência (Vita, 1999b:1).

Segundo Vita (1999b), mesmo que se concordasse que a noção de

Sen de "igualdade de capacidades" traduz a melhor interpretação das

exigências da igualdade distributiva, ainda se ficaria sem saber como este

enfoque acomoda convicções sobre o valor das liberdades fundamentais ou

do império da lei. Neste sentido Vita afirma que aquilo que Sen propõe não

é propriamente uma teoria da justiça, mas sim, uma concepção de justiça

distributiva em sentido estrito, ressaltando o papel dos valores afins como

guia na formulação de políticas públicas. “Em primeiro lugar porque a

promoção da justiça deve ser a meta mais importante a ser alcançada pelas

políticas. Em segundo lugar porque não é possível a formulação de políticas

sem que se tenha em conta o comportamento dos indivíduos que serão por

elas atingidos e que determinará sua efetividade” (Peixoto Ramos,

2003:34).

Page 61: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

55

II DA RENDA MÍNIMA À RENDA DE CIDADANIA

II.1 O Estado de Bem-Estar Social Revisto

II.1.1 Origem e Desenvolvimento

Nos países de capitalismo avançado, a intervenção do Estado por

meio da implantação de políticas sociais – o chamado Estado de Bem-Estar

Social (ou Welfare State) – se deu em função do reconhecimento das

limitações do mercado no atendimento às necessidades de reprodução da

força de trabalho e de melhoria das respectivas condições de vida.

Nesse contexto, o New Deal do presidente Roosevelt, que estabeleceu

um amplo programa de apoio para milhões de desempregados nos EUA, nos

anos 30, reorganizou a vida econômica deste país através do controle do

mercado financeiro e do estímulo ao aumento da produção e da renda,

entre outras medidas duramente criticadas por acadêmicos da Escola de

Chicago, como Milton Friedman, contrário a qualquer regulamementação

que inibisse a iniciativa privada e privilegiasse a atuação de sindicatos14.

De todo modo, depois da crise de 1929 e, com mais intensidade,

após a Segunda Guerra Mundial, o combate à pobreza nos países de

capitalismo avançado passou a ser atribuição do Estado, do Estado de Bem-

Estar, “capaz de redistribuir – fosse ele federal ou unitário e

independentemente do seu modelo de funcionamento [Esping-Andersen,

1990] – os frutos da prosperidade econômica, oferecendo proteção nos

momentos de crise e instabilidade que ocasionalmente ameaçavam a

integridade física, a segurança e o bem-estar dos indivíduos” (Lavinas,

2003:2).

Nesse contexto, nos Estados Unidos, programas assistenciais como o

Earned-Income Tax Credit foram criados justamente para complementar a

14 A essência da economia política do New Deal consistiu na mudança do eixo de acumulação capitalista do sistema financeiro especulativo, que prevalecia no liberalismo, para o sistema produtivo que veio a prevalecer sob o capitalismo regulado. Partia de uma constatação simples, mais tarde racionalizada por Keynes: se, de um lado, havia empresas com muitos recursos para investir na produção e, de outro, um número significativo de desempregados que não consumiam, era preciso criar poder de compra ou demanda efetiva nova na economia – e a única força autônoma capaz de realizar tal coisa seria o Estado, através de dispêndio público deficitário (Assis, 2003:3-4).

Page 62: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

56

renda dos trabalhadores pobres, ao mesmo tempo que mantinham o

incentivo ao trabalho. Na Europa, os benefícios universais, de caráter

redistributivo, visando o apoio às famílias, às crianças, fomentando o bem-

estar em geral (subsídio à moradia, transporte, minima sociaux),

suplementavam, da mesma maneira, só que de forma legítima e regular,

sem descontinuidade, pisos salariais deficientes, combatendo a pobreza

(Lavinas, 2003).

Dessa forma, o Estado na maioria dos países europeus consolidou um

amplo sistema de proteção, apostando na compatibilidade entre

crescimento econômico e satisfação de necessidades sociais, tendo como

pressuposto a centralidade do trabalho ou do pleno emprego – origem da

integração e da coesão social e um dos pilares da política econômica que

garantia a viabilidade de políticas sociais correlatas. De fato, ao longo do

século XX, o trabalho consolidou-se como substrato da cidadania, principal

fonte de pertencimento social.

“No período do Welfare State, [...] não era mais necessário subverter

a sociedade pela revolução para promover a dignidade do trabalho,

mas o lugar dele tornou-se central como base de reconhecimento

social e como pedestal no qual se amarram as proteções contra a

insegurança e a desgraça. Mesmo se a ‘penibelité’ e a dependência do

trabalho assalariado não foram completamente abolidos, o

trabalhador se encontrou compensado, tornando-se um cidadão num

sistema de direitos sociais, um beneficiário de prestações distribuídas

pelas burocracias do Estado, e também um consumidor reconhecido

das mercadorias produzidas pelo mercado. Esse modo de

domesticação do capitalismo tinha assim reestruturado as formas

modernas da solidariedade e da troca em torno do trabalho, sob a

garantia do Estado” (Castel, 1995:399).

Todavia, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar além do acesso

a condições mínimas de reprodução da força de trabalho deveria

proporcionar também o acesso a direitos de cidadania (direitos políticos,

civis e sociais), o que fez com que a “cidadania social” passasse a se

Page 63: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

57

constituir em sua idéia mestra (Lolis, 1999:2). Nesse sentido, “no pós-

guerra [...] emerge um novo compromisso político em torno do bem-estar e

o componente social da cidadania articula-se às dimensões civil e política,

produzindo um argumento a favor de sistemas de proteção social mais

abrangentes” (Magalhães, 2001:6).

Vale ressaltar, no entanto, que os direitos sociais e as medidas

jurídicas que consagraram as novas políticas sociais vinculavam-se

igualmente às alternativas encontradas pelo capital em face da crise de

acumulação. Na realidade, as explicações para a origem e a natureza do

Estado de Bem-Estar são variadas.

“Embora enfoques diversos (e até divergentes) tenham se sucedido

na interpretação da natureza e/ou finalidade do Welfare State no

mundo moderno, o fato é que com mudanças operadas no processo

de acumulação a partir dos anos 30, redefine-se o papel do Estado,

criando-se as bases econômicas, políticas e ideológicas para o

provimento público de bem-estar. O fortalecimento dos partidos

social-democratas, a difusão do fordismo como modelo de

reorganização industrial e a imensa aceitação de propostas

keynesianas foram elementos essenciais para o conceito de

Seguridade Social” (Werneck Vianna, 1998:17)15.

Segundo Coelho de Souza, as diversas teorias com relação à natureza

e/ou finalidade do Estado de Bem-Estar Social podem ser agrupadas em

função das similaridades nos conteúdos de seus argumentos. Nesse sentido,

o primeiro grande grupo identificado pelo autor é composto por aquelas

teorias que enfatizam o papel de regulação da sociedade exercido pelo

Welfare State como

15 A autora observa, ainda, que no pós-guerra o Estado de Bem-Estar Social se torna hegemônico como modelo da democracia social nas economias de capitalismo avançado, embora apresentando diferenças entre as trajetórias percorridas pelos países envolvidos. Segundo ela, seus traços característicos estavam “no papel desempenhado pelos fundos públicos no financiamento da reprodução da força de trabalho e do próprio capital, na emergência de sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados de políticas sociais (educação, saúde, previdência etc.) e na expansão do consumo de massa, padronizado, de bens e serviços coletivos” (Weneck Vianna, 1998).

Page 64: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

58

“[...] as teorias cujo eixo principal é a organização da economia no

nível macro através de políticas de cunho keynesiano, as teorias de

organização do processo de produção por intermédio de

‘compromissos’ entre capital e trabalho e as teorias que interpretam

o Welfare State como um instrumento de controle político das classes

trabalhadoras pelas classes capitalistas” (Souza, 1999:17).

O segundo grande grupo identificado pelo autor é conformado por

teorias baseadas na correlação de forças entre atores que configuram o

Welfare State, como “representantes políticos, burocratas, entidades

representativas de classe e movimentos sociais, que expressam tanto a

lógica interna de funcionamento do Estado quanto sua relação com forças

políticas externas” (Coelho de Souza, 1999:17).

Ressaltando que esses grupos não são mutuamente excludentes,

Souza concentra sua análise em algumas questões-chave, comuns à boa

parte dessas teorias, quais sejam:

a) a necessidade de regulação da economia capitalista quando o

mercado se revela um mecanismo insuficiente para adequar oferta e

demanda, segundo os moldes do keynesianismo;

b) a relação entre o desenvolvimento do Welfare State e o controle

político das organizações de trabalhadores;

c) a relação do Welfare State com a mercantilização da força de

trabalho;

d) a politização de relações privadas como, por exemplo, a

transferência de parte dos custos de reprodução da força de trabalho

(delegados a empresas, famílias e instituições comunitárias fora do

Welfare State) ao Estado;

e) o papel da história política de uma nação na determinação de seus

padrões de Welfare State como, por exemplo, o momento de

implantação das políticas ou o poder dos movimentos de

trabalhadores;

Page 65: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

59

f) a autonomia do Estado diante das imposições dos grupos

hegemônicos da sociedade, inclusive a autonomia da burocracia em

relação ao governo.

Ainda de acordo com Souza, alguns autores consideram que a

regulação política das atividades econômicas – atribuídas ao Welfare State –

atendeu aos interesses de trabalhadores e capitalistas a um só tempo,

permitindo que se estabelecesse um compromisso entre estes visando à

reprodução do capital, o qual tinha como base a doutrina keynesiana. Entre

tais autores, Souza destaca Przeworski & Wallerstein (1988) e Esping-

Andersen (1991) ao afirmarem que “o desenvolvimento do Welfare State foi

fundamentado em um compromisso de classe: em troca da legitimação da

propriedade privada dos meios de produção, os capitalistas concordam com

instituições políticas que permitem aos representantes dos trabalhadores a

administração de parte da economia” (Souza, 1999:7).

“Em todas as suas formas, o compromisso keynesiano consistiu em

um programa dual: ‘pleno emprego e igualdade’, onde o primeiro

termo significava regulação do nível de emprego pela administração

da demanda, particularmente dos gastos do governo, e o último

consistia na malha de serviços sociais que constituíam o ‘estado de

bem-estar’. O compromisso keynesiano, por isso, acabou sendo mais

do que uma função ativa do governo na gestão macroeconômica.

Como provedor de serviços sociais e regulador do mercado, o Estado

atuou em múltiplos domínios sociais. Os governos desenvolveram

programas de formação de mão-de-obra, políticas para a família,

planos habitacionais, redes de auxílio pecuniário, sistemas de saúde,

etc. Tentaram regular a força de trabalho misturando incentivos e

impedimentos à participação no mercado de trabalho. Procuraram

modificar padrões de disparidade racial e regional. O resultado é que

as relações sociais são mediadas pelas instituições políticas

democráticas, ao invés de permanecerem privadas” (Przeworski &

Wallerstein, 1988:34 apud Souza, 1999:7).

Page 66: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

60

Já Flora & Heidenheimer, na sua teoria sobre a origem do Estado de

Bem-Estar, buscam agregar determinantes econômicos e políticos à

mesma, justificando o desenvolvimento desse Estado como resultado da

modernização em resposta à formação de Estados nacionais e sua

transformação em democracias de massa, e à expansão do modo de

produção capitalista que, além de trazer consigo conflitos de classes, passa

por crises cíclicas que devem ser solucionadas. Tais autores também

entendem que o Welfare State foi uma tentativa de construir “novas formas

de organização da sociedade, resultantes do aumento da divisão do

trabalho social, uma nova forma de solidariedade” (Flora & Heidenheimer,

1982:22 apud Souza, 1999: 7).

Offe & Lenhardt (1990) e Esping-Andersen (1990) acreditam

igualmente nessa nova forma de solidariedade postulada pelos autores

supracitados, fundamental, segundo eles, para se compreender o Welfare

State. Esping-Andersen ressalta, inclusive, que uma das formas mais

importantes de redistribuição do poder propiciadas por esse Estado é a

“desmercadorização” da força de trabalho, decorrente da mobilização da

classe trabalhadora e das respostas reformistas a essa mobilização dadas

pelas instituições políticas.

“[Para Esping-Andersen] o Estado de bem-estar consiste numa

articulação de conflitos distributivos na qual se relacionam o poder de

mobilização política e a democratização social do capitalismo [, sendo

que esta última] implica preencher uma agenda de quatro pontos:

‘desmercadorização’ do status da força de trabalho (alcançável na

medida em que se institui o ‘salário social’ e os direitos de cidadania

suplantam os mecanismos de distribuição do mercado)16; o reforço da

solidariedade, ou seja, a substituição dos esquemas de proteção

social competitivos, seletivos ou corporativos pelo princípio do

universalismo [...]; a redistribuição efetiva via tributação progressiva

e transferências sociais; e o pleno emprego como meta e como base

16 Segundo Esping-Andersen, “quando os direitos sociais adquirem status legal e prático de direitos de propriedade, quando são invioláveis, e quando são assegurados com base na cidadania em vez de terem base no desempenho, implicam uma ‘desmercadorização’ do status dos indivíduos vis-à-vis o mercado” (1991:101).

Page 67: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

61

financeira para a consecução dos demais objetivos” (Werneck Vianna,

1998:25-26).

Assim, para Werneck Vianna, o Welfare State não pode ser

compreendido apenas em termos de direitos e garantias. Para entendê-lo,

faz-se necessário considerar igualmente de que forma as atividades estatais

se entrelaçam com o papel do mercado e da família em termos de provisão

social. Segundo Esping-Andersen, estes são os três princípios mais

importantes que precisam ser elaborados antes de qualquer especificação

teórica do Welfare State. Após examinar as variações internacionais dos

direitos sociais e de estratificação desse Estado, ele identificou combinações

qualitativamente diferentes de tais princípios, os quais agrupou segundo os

tipos de regime adotados, quais sejam:

“[...] o Welfare State ‘liberal’ em que predominam a assistência aos

comprovadamente pobres, são feitas transferências reduzidas, ou

planos modestos de previdência social. [...] A conseqüência é que

esse tipo de regime minimiza os efeitos da desmercadorização,

contém efetivamente o domínio dos direitos sociais e edifica uma

ordem de estratificação que é uma mistura de igualdade relativa da

pobreza entre os beneficiários do Estado, serviços diferenciados pelo

mercado entre as maiorias e um dualismo político de classe entre

ambas as camadas sociais;

[...] o Welfare State conservador e fortemente ‘corporativista’ no qual

predomina a preservação das diferenças de status e onde o

corporativismo está por baixo de um edifício estatal inteiramente

pronto a substituir o mercado enquanto provedor de benefícios

sociais;

[...] o Welfare State social-democrata, no qual os princípios de

universalismo e desmercadorização dos direitos sociais estendem-se

também às novas classes médias. [...] em vez de tolerar um

dualismo entre Estado e mercado, entre a classe trabalhadora e a

classe média, os sociais-democratas buscam um Welfare State que

promova a igualdade com os melhores padrões de qualidade, e não

Page 68: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

62

uma igualdade das necessidades mínimas, como se procurou realizar

em toda a parte. [...] Está ao mesmo tempo genuinamente

comprometido com a garantia do pleno emprego e inteiramente

dependente de sua concretização. Por um lado, o direito ao trabalho

tem o mesmo status que o direito de proteção à renda. De outro, os

enormes custos de manutenção de um sistema de bem-estar

solidário, universalista e desmercadorizante indicam que é preciso

minimizar os problemas sociais e maximizar os rendimentos”

(Weneck Vianna, 1998:108-110).

A mesma autora identifica o modelo liberal - onde o mercado

funciona como o espaço privilegiado de distribuição - nos EUA, Austrália,

Canadá e, em parte, na Suíça. Quanto ao modelo corporativista,

hierarquizante e segmentador, relaciona à Alemanha, França, Áustria e

Itália. Finalmente, o modelo social-democrata, que abriga a modalidade

institucional-redistributiva de proteção social, associa à Inglaterra e países

nórdicos, como Suécia e Noruega.

Esping-Andersen, em um outro estudo (1997), ressalta a importância

da formação de classes na social-democracia como condição necessária

para a inclusão universal, na qual a mobilização pelo poder exige quatro

condições: i) a desmercadorização do trabalho; ii) a institucionalização da

solidariedade; iii) a inclusão na comunidade política dos aliados de classe;

iv) a coalisão política com outras classes sociais17.

“O ingresso à prestação universal de serviços sociais, ou seja, de

todos os cidadãos, [...] só pode ser amplamente instituído se tido de

forma justa, equitativa e eticamente aceitável. O componente ético

17 “Segundo ele, para a comunidade social-democrata a solidariedade tem, em termos abstratos, aspectos positivos e negativos porque exige uma série de deveres e responsabilidades em relação à comunidade como um todo e uma expectativa por parte da comunidade em relação a um conjunto de direitos. O consenso da ‘desmercadorização’ não se desenvolve pela ideologia e não pode esperar pela revolução, sendo necessário estabelecer serviços sociais e benefícios compensatórios pelas próprias organizações dos trabalhadores (através da adoção de um conjunto de direitos). Tal fato implica em desmercadorizar os assalariados e garantir o acesso a todos de forma que o mais fraco ou mais forte não possam romper com as regras da solidariedade. Não se poderá permitir a competição do mercado com o sistema público para não pôr em risco a destruição do sistema de solidariedade, mas o sistema público deve ser eficiente para que não haja descontentamento entre os que pagam e os que recebem” (Lolis, 1999:3).

Page 69: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

63

deve estar implícito no Estado de Bem-Estar para que este seja

considerado legítimo e supere a noção estrita de contrato e de

solidariedade. Para esta análise o autor apresenta três modelos de

transferências sociais: o ‘Bismarckiano’, o ‘Beveridgeano’ e o

‘Paineano’. Argumenta que não existem sistemas que atendam em

estado puro qualquer um desses modelos e vai além daqueles

modelos apresentados por Esping-Andersen” (Van Parijs, 1996 apud

Lolis, 1999:4).

Com relação ao modelo bismarckiano, não implica nenhuma noção de

solidariedade já que as transferências de renda se baseiam em um sistema

de seguro individual para todos, em que os riscos são cotizados, como

aqueles derivados de situações de desemprego. Este modelo está

fundamentado em um contrato “que tem como componentes essenciais o

segurado e o segurador e regras que estabelecem o nível de risco subjetivo,

o pagamento antecipado e a indenização”. Quanto ao modelo beveridgiano,

visa resolver ou minimizar problemas decorrentes da redistribuição da

renda, implicando uma noção de solidariedade mais ampla do que o modelo

anterior. Este sugere um ingresso mínimo, de caráter não contributivo.

Finalmente, o modelo painiano apresenta-se “como um modelo ‘ideal’ de

solidariedade” já que pressupõe o acesso universal e incondicional a

benefícios monetários, baseado “numa construção ética socialmente aceita

por todos os indivíduos que compõem uma sociedade” (Van Parijs, 1996

apud Lolis, 1999:4).

II.1.2 A contribuição de Offe & Lenhardt

Claus Offe & Gero Lenhardt trazem uma interessante contribuição

para o debate acerca das origens e finalidades das políticas sociais no

âmbito do Estado capitalista contemporâneo. Para eles, este Estado atua

como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações

capitalistas em seu conjunto, e não, especificamente, a serviço dos

interesses do capital, a despeito de reconhecerem a dominação do capital

nas relações de classe. O Estado capitalista cumpre esse papel por

intermédio da política social que, segundo os autores, atua como mediadora

de interesses conflitivos.

Page 70: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

64

“Fatores relacionados ao desenvolvimento da economia capitalista,

como a difusão de relações de competição nos mercados nacionais e

internacionais, a introdução de tecnologias poupadoras de trabalho, a

destruição de modos de vida pré-capitalistas e o impacto de crises

cíclicas, dentre outros, destroem as condições para o uso não-

assalariado da força de trabalho. Entretanto, a mercantilização da

força de trabalho não é automaticamente realizada pela

desorganização das formas não-capitalistas de produção. Os

indivíduos afetados por esses fatores podem procurar ‘mecanismos

de escape’ como migração, pilhagem, mendicância, resistência

política e militar, formação de corporações e grupos de interesse etc.,

de modo a garantir sua subsistência. O mercado, por si só, não é

capaz de fazer com que a maioria dos trabalhadores aceite o

assalariamento como saída para o problema da desarticulação das

formas não-capitalistas de uso da força de trabalho. Por isso, a

transformação generalizada e completa de trabalhadores em

assalariados requer a participação ativa de instituições como o

Estado. Uma das formas dessa participação é a garantia de benefícios

sociais e de subsistência à força de trabalho” (Offe & Lenhardt,

1990:92 apud Souza, 1999:11).

Na realidade, analisando o conjunto da obra de Offe, constata-se que

sua principal contribuição teórica no que se refere à natureza do Estado

capitalista tem a ver com o desdobramento da idéia de “seletividade

estrutural”, de dependência estrutural desse Estado com relação à

acumulação capitalista, e de desequilíbrio tendencial das funções de

acumulação e legitimação do mesmo, no capitalismo tardio.

II.1.3 A crise do Welfare State

A partir de meados dos anos 70 faz-se evidente a chamada crise do

Welfare State, cujo sistema de proteção estava ancorado na crença na

compatibilidade entre crescimento econômico e satisfação das necessidades

sociais pelo Estado, tendo como pressuposto o pleno emprego - um dos

Page 71: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

65

pilares da política econômica de corte keynesiano (Justo, 2004:5). A

ruptura com tal política ocorre, definitivamente, com a ascensão ao poder

de governos conservadores, como o de Margaret Thatcher, em 1979, na

Inglaterra, e o de Ronald Reagan, em 1980, nos Estados Unidos.

De todo modo, a partir dessa época, a sociedade salarial passou a

experimentar sinais evidentes de transformação em virtude da globalização

do capital - com a conseqüente transnacionalização das economias,

revolução tecnológica e crise no emprego - e das mudanças nos padrões de

sociabilidade, o que fez com que os diferentes Estados de Bem-Estar

passassem a enfrentar sérias críticas, além de problemas de legitimidade e

financiamento.

“[...] os processos de globalização econômica e de transformação do

mundo do trabalho, iniciados nos anos 70, e que culminam nos anos

80 e 90, provocam a necessidade de mudanças nas orientações

relativas aos padrões de financiamento e gestão do Estado. A ruptura

da estabilidade e da ‘soberania econômica’ de um número cada vez

maior de estados nacionais desdobra-se numa perda importante de

autonomia na condução das políticas sociais. [...] Em última análise,

o ideal do pleno emprego, o ‘paradigma previdenciário’ em que os

problemas sociais são remetidos à perspectiva controlável do risco, e

mesmo a idéia de direito social, perdem força frente aos impasses

vividos pelas sociedades industriais contemporâneas. Desse modo,

uma profunda crise social, política e econômica começa a abalar os

alicerces das ações públicas contra a pobreza construídos nos anos

50” (Magalhães, 2001:7).

Nesse contexto de enfrentamento da crise do Welfare State são

elaboradas as primeiras propostas de renda mínima. Milton Friedman com

seu “Imposto de Renda Negativo”18 e Keit Roberts com seu “Subsídio

Universal”, representando a corrente liberal, defendem a idéia de uma

18 Nos Estados Unidos, em 1975, instituiu-se uma forma de imposto de renda negativo, o Earned Income Tax Credit (EITC), o Crédito Fiscal por Remuneração Recebida, o qual se transformou em um dos principais programas adotados nesse país, no sentido de diminuir as taxas de desemprego e de minimizar situações de pobreza.

Page 72: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

66

renda mínima destinada aos mais pobres e desafortunados, em substituição

aos demais serviços e benefícios sociais fornecidos pelo Estado. Já Guy

Aznar com seu “Segundo Cheque”, Yoland Bresson com sua “Renda de

Existência” e André Gorz com sua “Renda Social”, representando a corrente

progressista, defendem a racionalização da distribuição de renda e a

socialização dos postos de trabalho com vistas ao combate à pobreza.

Assim, se até os anos 70, o Estado de Bem-Estar Social, nas

sociedades de capitalismo avançado, oferece uma resposta adequada às

questões da vulnerabilidade social, a partir dessa data, principalmente em

função de mudanças na esfera produtiva, este começa a ser questionado,

da mesma forma que começa a ser questionada a centralidade do trabalho

tanto como suporte da cidadania e de identidades pessoais e sociais, quanto

como instrumento privilegiado de integração e coesão social.

Claus Offe é um dos autores que sustenta a tese de que o trabalho

assalariado nas últimas décadas teria perdido a capacidade de determinar a

ação em variadas esferas (política, cultural etc.), em decorrência da

desagregação político-organizacional da classe trabalhadora, da

descentralização do trabalho como eixo estruturador das identidades

individuais e coletivas e da obsolescência do conflito capital-trabalho como

contradição fundamental das sociedades contemporâneas (Offe, 1989:16

apud Álvares e Sousa, 2003:5)19.

19 Segundo Álvares e Sousa, “na perspectiva de Offe, o processo de expansão do trabalho assalariado teria acarretado uma aguda diferenciação no trabalho social, em termos de renda, qualificação, estabilidade, prestígio, carga de trabalho, possibilidades de ascensão e autonomia. Desse modo, o trabalho teria perdido sua capacidade de se constituir em ‘eixo estruturador da autoconsciência e organização sócio-política dos trabalhadores’, redundando no esvaziamento da classe trabalhadora enquanto sujeito político. As diferenças entre o trabalho industrial e o trabalho em serviços seriam sintomáticas dessa tendência. O trabalho industrial seria estruturado pelas racionalidades técnica e estratégica, organizando-se em torno do ‘regime da produtividade técnica e organizacional da valorização’ e da ‘decisiva rentabilidade de cada unidade econômica’. O trabalho em serviços, por sua vez, despido de critérios claros de controle da execução e de economicidade, seria regulado por uma ‘racionalidade material’ abolida do trabalho industrial, dotada de um caráter normatizador e voltada para a ‘garantia institucional do existente’. Esfacelar-se-ia, assim, a idéia de uma racionalidade finalística única regendo o trabalho social como um todo. Tal processo de diferenciação acarretaria uma fissão no interior da classe trabalhadora, gerando antagonismos entre os trabalhadores terciários e os trabalhadores industriais. A fragmentação do trabalho social geraria, pois, rupturas e conflitos profundos no interior da própria classe trabalhadora, ‘sistemas de restrições e aversões recíprocos, de cunho cultural e político’, opondo o serviço público aos ‘protagonistas do modelo da sociedade do trabalho, isto é, a antiga classe média e o operariado’, de modo a incapacitá-la a organizar-se coletivamente de maneira coesa e integrada” (Offe, 1998:19-25 apud Álvares e Sousa, 2003:39).

Page 73: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

67

Segundo Offe, o esvaziamento do trabalho como eixo estruturador

das identidades foi causado por três fatores: i) pelas modalidades

tayloristas de organização do processo de trabalho, as quais contribuíram

para a descentralização subjetiva deste, posto que seu propósito era abolir

o "fator humano" e a autonomia operária sobre a produção; ii) pela

tendência ao reconhecimento, pelos trabalhadores, dos custos crescentes e

benefícios decrescentes associados ao trabalho e à renda; iii) pela

desagregação dos ambientes de vida estruturados em torno do trabalho,

em decorrência das descontinuidades freqüentes entre formação individual

e postos de trabalho ocupados, e do crescimento do tempo de desemprego

nas trajetórias profissionais, o que dificultava a construção de raízes

coletivas sob a forma de uma "cultura proletária comum". Nesse contexto,

se a classe trabalhadora se fragmentou internamente de forma tão aguda,

se não mais ocupava o centro de estruturação das identidades e se a luta

de classes cedeu lugar à emergência de novos conflitos e atores na arena

política contemporânea, está-se diante de uma sociedade não mais baseada

no trabalho (Offe, 1989 apud Álvares e Sousa, 2003)20.

Dessa forma, nas sociedades ocidentais, quando são rompidos os

mecanismos de integração social, próprios das sociedades centradas no

trabalho, verifica-se a profundidade da crise em que o Estado de Bem-Estar

está mergulhado, crise esta acompanhada, de forma continuada, por um

discurso acerca da ineficiência, ineficácia e precariedade dos serviços

públicos afins, tendendo a deslegitimar o papel deste Estado no social e a

justificar a sua retirada do econômico.

Nesse contexto, gradativamente, ganha importância em círculos

políticos e acadêmicos o enfoque neoliberal, segundo o qual as raízes da

crise do Welfare State estavam no gigantismo estatal. Para seus

defensores, os impostos elevados, os tributos excessivos e a

regulamentação das atividades econômicas eram responsáveis pela queda

da produção e pelas conseqüências advindas. Daí a necessidade de

20 Conseqüentemente, far-se-ia premente à sociologia reposicionar seus "conceitos estruturais" e "noções de conflitos sociologicamente aplicáveis", esforço que Offe identifica, por exemplo, em Jürgen Habermas e sua teoria da ação comunicativa – dada sua oposição ao "domínio epistemológico do trabalho no marxismo" (Offe, 1989 apud Álvares e Sousa, 2003:33-34).

Page 74: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

68

reformar esse Estado, reduzindo o seu papel, e buscar a focalização das

políticas sociais nos “mais necessitados”, visando fundamentalmente

diminuir os gastos e o déficit público, além de garantir a primazia do

mercado na alocação de recursos escassos.

Outro argumento importante utilizado pelos neoliberais para a

reforma do Estado diz respeito à sua ineficiência econômica que, segundo

Draibe & Henrique, se devia ao fato: i) de o gasto deste ser maior do que

seus recursos financeiros, o que provocava pressão contra o equilíbrio

orçamentário; ii) de o financiamento de elevados gastos requerer uma

carga tributária elevada, o que diminuía os investimentos privados; iii) de

os rendimentos do Estado serem menos significativos do que os da iniciativa

privada, porque aquele não se movia em função da lógica do lucro e da

competitividade etc. (Draibe e Henrique, 1988 apud Bertazo, 1996:8).

Todavia, o enfoque neoliberal nunca foi totalmente absorvido pela

academia, por políticos e formadores de opinião, ainda que tenha

influenciado, e muito, políticas ditadas por organismos de cooperação

multilaterais. Da mesma forma, existe uma série de controvérsias sobre as

verdadeiras causas da “crise” do Estado de Bem-Estar Social, se é que esta

crise, sobretudo no caso europeu, não pode ser considerada simplesmente

como uma mudança nos seus arranjos institucionais.

Francisco de Oliveira, por exemplo, concebendo o Estado de Bem-

Estar como um espaço da luta de classes no qual ocorre a construção de

uma esfera pública caracterizada pelo “reconhecimento da alteridade

do outro, do terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se

estruturam as relações sociais”, afirma que o discurso da crise desse Estado

“associa-se mais à produção de bens sociais públicos e menos à presença

dos fundos públicos na estruturação da reprodução do capital”. Na sua

percepção: “o que é tentado é a manutenção do fundo público como

pressuposto apenas para o capital: não se trata, como o discurso da direita

pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas

naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão

do tipo ‘mal infinito’ do capital.” (Francisco de Oliveira, 1998:39-48, ênfases

do autor)

Page 75: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

69

De todo modo, vários estudiosos têm debatido se a ênfase na origem

da “crise” ou das transformações do Welfare State deve ser atribuída às

forças externas ou às forças internas que colocam os Estados capitalistas

sob pressão. Conforme Mauriel, ainda que não se tenha chegado a um

consenso sobre o assunto (“globalização”, por um lado, “novo

institucionalismo”, por outro), tal debate necessariamente passa pela

relação entre Estado e economia, já que os Estados de Bem-Estar

enfrentam críticas vigorosas, tanto por conta das preocupações com a

competitividade, quanto por causa das mudanças que alteraram o equilíbrio

de poder político doméstico. A autora ressalta que, em muitos países, o

desemprego alto e persistente exacerbou a já pesada carga fiscal dos

mesmos, além das severas pressões demográficas nos sistemas de pensões

e de saúde, levantando questões fundamentais sobre a sustentabilidade dos

seus arranjos presentes. Ou seja, para ela, a “crise” do Welfare State tem

como fundamento a “crise” do Estado-nação (Mauriel, 2004:3).

Conforme Paul Pierson (2001), embora exista uma vasta produção

acadêmica sobre a origem e o desenvolvimento dos Welfare States (como

ele prefere considerar, já que não existe um modelo único de Welfare

State), o mesmo não pode ser dito com relação à crise desses Estados ou

ao grau de pressão que os argumentos supracitados exerceram sobre os

mesmos ou determinaram sua significância relativa. Ele ressalta que, por

diversas vezes, mudanças macroeconômicas conduzidas pela “globalização”

têm sido identificadas como determinantes da crise ou do desmantelamento

de Estados de Bem-Estar, o que ele contesta, já que a consolidação destes

Estados “gerou as condições para a sustentabilidade eleitoral de coalizões

social-democratas e socialistas, [as quais] enfrentaram, com sucesso, as

mudanças brutais na economia globalizada [...] neutralizando os ataques

conservadores às políticas públicas de natureza redistributiva e às funções

do Estado nacional” (Costa, 2002:2-3).

Segundo Costa, apesar de Pierson concordar com a tese de que no

contexto da globalização algumas políticas públicas estreitaram suas regras

de elegibilidade ou reduziram benefícios, “essas reformas foram mais de

ajuste dos programas existentes do que a introdução de novos formatos

Page 76: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

70

pela focalização seletiva e pela mercantilização das condições de acesso”

(Costa, 2002:3).

Pierson, todavia, mais do que focar sua análise da crise dos Welfare

States no desmoronamento da sociedade assalariada está preocupado com

o deslocamento da força de trabalho para atividades em que os aumentos

de produtividade são restritos, resultando em um crescimento econômico

mais lento, o qual, por sua vez, gera contenção fiscal para Welfare States

“maduros”. O autor ainda assinala uma série de outras mudanças “pós-

industriais” que produzem severas pressões nesses Estados, como o

amadurecimento dos compromissos governamentais, as transformações na

estrutura das famílias, o envelhecimento da população. Segundo ele, essas

mudanças criam intensos problemas fiscais, pois ocorrem “num contexto

em que os programas são muitas vezes vagarosos para adaptarem-se aos

desentendimentos entre as capacidades inerentes dos Welfare States e as

demandas contemporâneas por provisão social”. Nesse sentido, para o

autor, “tem-se tornado comum argumentar que quaisquer que sejam os

efeitos que a globalização possa ter, eles são intensamente mediados por

arranjos domésticos, daí a convergência nas estruturas da política social

nacionais não ser esperada” (Pierson, 2001 apud Mauriel, 2004:6)21.

Como bem lembram Navarro et alii (2002), as ponderações feitas por

Pierson estão inseridas em um debate mais geral ocorrido principalmente

durante as décadas de 80 e 90 acerca das possíveis restrições que a

“globalização” estaria impondo aos Estados de Bem-Estar, sobretudo no

contexto europeu. Nesse debate, muitos autores têm argumentado que

uma série de países vêm sendo forçados a reduzir gastos públicos sociais e

a desregular mercados de trabalho visando aumentar sua competitividade,

o que tem reduzido sua capacidade para seguir políticas expansivas e

21 Segundo Mauriel, desde o início da década de 90, o debate sobre o futuro da proteção social tem gerado polêmica por toda a Europa. A reestruturação das políticas de bem-estar tem sido discutida em todos os países-membros e pelas instituições da União Européia, que tomou as rédeas para conduzir o debate entre os países, objetivando a instituição e/ou manutenção de um elevado nível de proteção social, em conformidade com o artigo 2º do Tratado da Comunidade Européia. Segundo relatórios da UE, os regimes de proteção social desses Estados confrontam-se com uma série de desafios sistemáticos – como a necessidade de se adaptarem às mudanças no mundo do trabalho, às novas estruturas familiares, às alterações demográficas. Por isso, todos os Estados-membros têm procedido a uma revisão ou reforma de seus regimes de proteção social (Mauriel, 2004).

Page 77: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

71

redistributivas. No entanto, outros autores, como o próprio Pierson,

questionam essa tese, levando em conta, entre outros motivos, o alto

investimento que continua sendo feito nos sistemas de proteção social

desses países. Da mesma forma, Huber & Stephens (2001) têm

questionado a convergência das políticas públicas ali, ressaltando a

importância das variáveis políticas na compreensão do processo de

globalização econômica, assim como Scharpf & Schmidt, que têm insistido

na “diversidad de Estados del Bienestar, dentro de la cual los Estados del

Bienestar más extensos continúan siendo aquellos en los que el movimiento

socialdemócrata ha sido y continúa siendo más fuerte” (2002:2).

Segundo a pesquisa empírica realizada por Navarro et alii, nos anos

90, os países europeus - que na tipologia que construíram (a partir das

tipologias de Esping-Andersen e de Huber & Stephens) conformam o grupo

de tradição social-democrata - continuaram a contar com Estados de Bem-

Estar mais abrangentes do que os demais, pautados pelo princípio da

universalidade em que os benefícios sociais são percebidos enquanto

direitos de cidadania, resultantes da pressão dos grupos mais vulneráveis

da sociedade. O princípio da universalidade, por sua vez, ancora-se no

princípio da solidariedade e da igualdade de direitos entre classes sociais.

Nesse sentido, os países que os adotam realizam gastos públicos sociais

muito elevados, os quais aumentaram durante as décadas 80 e 90,

desmistificando uma série de teses contrárias (Scharpf & Schmidt, 2002).

Ainda de acordo com essa pesquisa, as variáveis políticas (dentro de

cada Estado), que refletem a correlação de forças existente entre os

distintos partidos e os interesses que representam no âmbito doméstico,

são mais importantes para configurar as políticas sociais do que as

conseqüências decorrentes da globalização econômica considerada per se.

Entre as variáveis dessa natureza, consideraram como a mais importante a

força do movimento social democrata, na sua versão sindical e partidária.

Cabe aqui explicitar a posição de Esping-Andersen acerca da

realidade dos Estados de Bem-Estar no capitalismo contemporâneo, menos

otimista do que a de Navarro et alii:

Page 78: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

72

“Para Esping-Andersen, os sistemas de bem-estar social foram

construídos para atender uma economia dominada pela produção de

massa. Na era do consenso keynesiano, não havia a explicitação do

dilema entre seguridade social e crescimento econômico, entre

igualdade e eficiência. Nos tempos atuais, esse consenso subjacente

não mais existiria: o crescimento não inflacionário por indução da

demanda em um único país parece impossível; o pleno emprego teria

de ser buscado pelo setor de serviços e não no setor industrial; a

estrutura das famílias e o papel do provedor masculino mudaram; a

fecundidade declinou fortemente e os modos de vida tornaram-se

crescentemente não padronizados. Essas mudanças teriam afetado

de modo irremediável a inserção das economias nacionais no

contexto da globalização dos mercados e, por conseguinte, a

capacidade de responder ao problema da eqüidade por meio de

políticas públicas universalistas ou pela ampliação da provisão social”

(Costa, 2002:4).

Draibe & Henrique, embora concordem com a afirmação de que a

origem da crise do Estado de Bem-Estar e os desdobramentos daí

decorrentes sejam explicados pelos mais diferentes fatores (tal crise é de

caráter financeiro-fiscal; é produzida pela centralização e burocratização

excessivas; deve-se à sua perda de eficácia social; é uma crise de

legitimidade e de baixa capacidade de resistência da opinião pública; deve-

se ao colapso do pacto político do pós-guerra sobre o qual se erigiu; deve-

se à sua incapacidade de responder aos novos valores predominantes nas

“sociedades pós-industriais”), ressaltam que tal crise se origina e poderá ser

resolvida nos planos social e político de uma sociedade, por meio da adoção

de uma nova forma de solidariedade social no bojo da mesma (Draibe &

Henrique, 1998:55-66).

Rosanvallon, igualmente, propõe uma nova visão da proteção social

relacionada com uma versão ampliada do modo de produção da

solidariedade social que, na sua percepção, se constitui na saída para

enfrentar os problemas sociais contemporâneos. Assim, segundo ele, “o

engajamento pessoal dos beneficiários, a combinação entre indenização e

Page 79: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

73

inserção social e a possibilidade de articular direito e contrato na condução

das políticas contra a pobreza - incorporando, assim, a idéia de

contrapartida - tornam-se exigências incontornáveis” (Rosanvallon apud

Magalhães, 2001:11).

Draibe & Henrique acreditam que talvez seja este autor, Rosanvallon,

aquele que melhor examinou a tese da nova solidariedade social, partindo

do diagnóstico que freqüentemente incide sobre o Estado-providência: o do

desequilíbrio crescente entre receitas e despesas.

“Rosanvallon rejeita a tese de que seja esta, a financeira, a

verdadeira crise até porque, segundo ele, teoricamente há soluções:

alterações na relação salários diretos/indiretos; diminuição da

elevação das cotizações sociais compensadas por crescimento da

carga fiscal etc. O problema, afirma, é que soluções financeiras desta

natureza implicam modificações do equilíbrio social existente entre

indivíduos, categorias sociais e agentes econômicos. Aí reside,

verdadeiramente, o bloqueio: o que se designa, geralmente, pela

expressão ‘impasse financeiro’ é, antes de tudo, o problema do grau

de socialização tolerável de um certo número de bens e serviços”

(Draibe & Henrique, 1988:66).

Por outro lado, Rosanvallon acredita que a crise do Welfare State é,

de fato, a crise de um modelo de desenvolvimento, e a crise de um dado

sistema de relações sociais, enraizada “nos desdobramentos perversos das

próprias contradições do Estado, seja aquela própria da relação Estado-

igualdade, no plano dos valores, seja a relacionada com a fragmentação

social”. Considera que a “fissura intelectual, cultural, que corrói o edifício da

cultura democrática e igualitária”, é o paradoxo identificado em sociedades

democráticas “na relação entre a vontade de redução da desigualdade e na

negativa de uma igualdade idêntica no plano econômico e social, isto é, no

reconhecimento das diferenças”, percebendo a falência do quadro de

compromissos keynesiano que regula as relações nessas sociedades - cujo

modelo está fundado no Estado-providência e em negociações coletivas -

Page 80: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

74

como causa para a crise que está enfrentando (Draibe & Henrique,

1988:67)22.

Castel, igualmente, aponta para a desestruturação do sistema de

proteção e para uma desestabilização social, que estão repercutindo em

diferentes setores da vida societária e acabando por afetar a respectiva

coesão interna. Afirma que, diante da revolução tecnológica e das novas

filosofias políticas e econômicas, é inevitável que o modelo de sociedade

assalariada em vigor acabe sendo devastado. A desestabilização dos

“estáveis”, a instalação de alternativas precárias de trabalho, os salários

reduzidos e a descoberta de uma nova categoria de pessoas sub-

remuneradas comprovam sua tese, em sociedades onde se identifica “um

grande número de pessoas ‘desfiliadas’ social e economicamente”, as quais

ocupam, literalmente, um lugar de excedente porque não se encaixam nas

exigências do mercado, fazendo com que surja uma “nova questão social”

no bojo das mesmas.

“A ‘questão social’ é uma aporia fundamental sobre a qual uma

sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o

risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a

capacidade de uma sociedade (o que, em termos políticos se chama

uma nação) para existir como um conjunto ligado por relações de

interdependência. [...] O núcleo dessa questão é a existência de

‘inúteis para o mundo’, de supranumerários e, em torno deles, de

uma nebulosa de situações marcadas pela instabilidade e pela

incerteza do amanhã que atestam o crescimento de uma

vulnerabilidade em massa” (Castel, 1998:30, 593)23.

22 Rosanvallon propõe, em contrapartida, a criação de um espaço pós-social-democrata que repouse na redução do modelo keynesiano e na sua combinação com modos de regulação autogestionários e intra-sociais.

23 Nesse contexto, a idéia das “metamorfoses da questão social” à qual Castel se refere, para além de considerar aqueles que foram atingidos pelas novas formas de desemprego ou de precarização nas relações de trabalho, tem a ver com a própria natureza dos laços e vínculos que constituem o núcleo da sociedade salarial. Esta trata também do que acontece com aqueles que permanecem no interior das zonas de coesão social ou nas zonas de equilíbrio, constituído a partir do vínculo entre as relações de trabalho e as formas de sociabilidade (Antônia de Souza, s/d citando Risek ao prefaciar a obra de Castel).

Page 81: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

75

Baltazar (1996) identifica seis características principais com relação a

essa nova questão social. São elas:

1) o crescimento do desemprego em massa e de longa duração

que provoca a perda de identidade social e de classe nos

indivíduos descartados da produção;

2) o aumento do dualismo social, ou seja, a constituição de

uma sociedade cada vez mais dividida entre empregados e

desempregados;

3) a precarização do trabalho, entendida como contratos de

trabalho por tempo determinado, jornadas parciais e a

conseqüente diminuição de renda e perda do direito às

prestações do seguro social;

4) a constituição de um modo de vida cada vez mais

individualista e a multiplicação de famílias monoparentais

relacionadas às mudanças culturais e à dissolução da base

familiar;

5) o aparecimento da “nova pobreza” de caráter

multidimensional, englobando não só excluídos sociais, mas

excluídos da economia;

6) a instabilidade que enfrentam não só os novos pobres, mas

toda a sociedade capitalista em face da desproteção do

Estado provedor.

Baltazar ressalta que, nesse contexto, além das transformações nas

relações de produção e de trabalho, aconteceram igualmente mudanças “no

convívio social traduzidas na formação de novas identidades sociais, na

progressão de um modo de vida cada vez mais individualista e na ruptura

da relação familiar” (1996:7).

Segundo Lavinas, Thomas (1999) elabora uma classificação das

categorias jurídico-políticas utilizadas na Europa no tratamento da pobreza

até chegar à categoria da exclusão, que dá origem à nova questão social à

Page 82: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

76

qual Castel se refere, identificando três grandes correntes que

correspondem a diferentes momentos históricos, quais sejam:

“[...] na década de 60, predomina o conceito de necessidades

insatisfeitas que pressupõe a definição de um padrão mínimo de

condições de vida. Vivem na pobreza absoluta ou na indigência todos

aqueles cujo padrão de consumo situa-se abaixo do mínimo vital em

razão do seu déficit de renda. [...] Nos anos 70, o conceito de

pobreza relativa passa a figurar como medida para identificar a

‘posição social’ do pobre com relação ao padrão médio de consumo

da população como um todo. [...] A pobreza (a intensidade da

pobreza) passa a ser calculada com base numa medida de

desigualdade. Nos anos 80, surge uma nova categoria [...], a da

exclusão, a qual, ao contrário da pobreza absoluta que se sustenta

em critérios objetivos [...] implica considerar também aspectos

subjetivos, que mobilizam sentimentos de rejeição, perda de

identidade, falência dos laços comunitários e sociais, resultando numa

retração das redes de sociabilidade, com quebra dos mecanismos de

solidariedade e reciprocidade” (Lavinas, 2003:7-9).24

Nas palavras da autora:

“A exclusão, tal como a pobreza, nasce como uma categoria do

campo da ação, da intervenção, pois, sendo uma categoria

identitária, visa designar e caracterizar o status social dos indivíduos

que se situam na parte inferior da hierarquia social. Ela tem

conotação negativa, pois significa má integração, integração

deficiente, seja pelo lado do sistema produtivo, seja pelo lado do

padrão de consumo. A tônica da exclusão é dada pelo

24 Segundo Lavinas, Estivill aponta com pertinência o fato de a exclusão vir a ser um conceito regional, operacionalizado inicialmente na França, sendo, por extensão, adotado em toda a Europa Ocidental, mas sem propriedade. “[…] a exclusão social seria a nova face da questão social na França. A organização e gestão do mercado de trabalho na Alemanha, assentada no maior envolvimento dos empresários na formação e co-gestão tripartite, nos países escandinavos, através da concertação, ou na Inglaterra, onde a integração social e política é concebida partindo das distintas comunidades, a exclusão não é tratada de forma idêntica à exceção francesa ». « […] Para além do caso francês entretanto, a noção de exclusão foi infiltrada, penetrou e se populariza no Sul da Europa, no Norte e no Leste, e alcança a América Latina e Africa… » In Estivill J. (2003) « Panorama de la Lucha contra la Exclusión Social. Conceptos y Estrategias ». Mimeo. STEP/Potugal, OIT apud Lavinas, 2003:8).

Page 83: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

77

empobrecimento das relações sociais e redes de solidariedade. Por

essa razão, a noção de exclusão também remete ao fracasso”

(Lavinas, 2003:9).

Já nas palavras de Magalhães:

“O sucesso da idéia de exclusão após os anos 80 está relacionado a

um quadro de ruptura dos laços sociais combinado com o

enfraquecimento das formas de coesão e solidariedade habituais. O

crescimento do isolamento social, a deterioração das formas de

convivência, o fracasso das iniciativas de participação coletiva e,

sobretudo, a incerteza generalizada frente aos rumos das políticas

sociais, constroem, desta forma, um terreno fértil para a emergência

de um verdadeiro ‘paradigma’ da exclusão” (2001:9).

Lavinas destaca ainda o Observatório Europeu das Políticas Nacionais

de Luta contra a Exclusão que, juntamente com algumas ONGs e a França,

interpreta a exclusão social como a negação dos direitos fundamentais.

Quanto ao Conselho da Europa, adotou em 1994 a definição de que são

excluídos os grupos de pessoas que se encontram parcialmente ou

integralmente fora do campo de aplicação efetiva dos direitos humanos.

Aqui, segundo Lavinas, exclusão é o avesso da cidadania. A autora destaca

ainda duas matrizes utilizadas no debate europeu sobre pobreza elaboradas

por Bill Jordan (1996), que subsidiam a formulação de políticas sociais: i) a

matriz liberal, baseada na tradição do individualismo econômico; e ii) a

matriz continental, baseada no corporativismo.

“A matriz liberal toma como pressuposto que todo indivíduo cuja

participação no mercado é cerceada pela falta de recursos materiais

[...] é tido como pobre e deve, conseqüentemente, obter algum tipo

de compensação que permita, através de medidas redistributivas,

suprir tal deficiência. Em consonância com tais princípios, a tradição

liberal recorrente na Inglaterra e nos Estados Unidos privilegia

intervenções voltadas para o desenvolvimento e multiplicação de

sistemas de manutenção de renda (safety nets, food stamps,

negative income tax credit etc.), que garantam o bom funcionamento

Page 84: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

78

do mercado. [...] Já na ótica da Europa continental (enfoque

bismarckiano), o pertencimento a um grupo ou corpo social – ou

seja, a inclusão - garante o acesso a um conjunto de direitos, cuja

finalidade primordial consiste justamente em assegurar a coesão do

grupo através da manutenção dos vínculos de solidariedade. [...]

Cabe, assim, ao Estado, através das políticas sociais, configurar e

regular tais relações, evitando o afrouxamento dos vínculos sociais”

(Lavinas, 2003:10).

Tais matrizes têm sido importantes inclusive para a formulação de

propostas de transferência de renda no âmbito desses países.

II.2 Propostas de Transferências Diretas de Renda

II.2.1 Considerações iniciais

A partir de meados dos anos 70, nas sociedades ocidentais, observa-

se uma crescente incapacidade da economia em gerar novos postos de

trabalho, manter os existentes, e um acirramento de formas atípicas de

ocupação (relação assalariada não-formalizada, emprego temporário ou em

tempo parcial, atividades autônomas desenvolvidas de forma individual

e/ou associativa etc.), implicando desdobramentos tanto no âmbito do

financiamento das políticas sociais quanto no dos potenciais beneficiários. O

crescente déficit nos orçamentos da seguridade social e a extensão de

situações de pobreza testemunham essa inadequação entre a tradicional

proteção social - que teve seu ápice após a Segunda Guerra Mundial - e a

nova dinâmica econômica que se configurou nas últimas décadas.

Nesse contexto, propostas de transferência direta de renda passaram

a ser percebidas como alternativas viáveis em termos de política social. Isto

porque, ao longo do século XX, “o trabalho consolidou-se como substrato da

cidadania, fonte de pertencimento social”. Nesse sentido, quando o trabalho

falta, a própria cidadania fica abalada (Justo, 2004:10).

Page 85: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

79

Visando reverter esse quadro, têm sido formuladas propostas de

transferência monetária direta do poder público para indivíduos e/ou

famílias. Entre estas se destaca a de renda mínima, cujo objetivo é conferir

às pessoas um benefício monetário que lhes possibilite sobreviver, ainda

que sem trabalho. No entanto, como bem pondera Justo, “pensar o

problema em termos de renda parece empobrecer a discussão: afinal, a

renda é suficiente para conferir cidadania?” Segundo ela, esta problemática

coloca um duplo dilema para a política social.

“[...] por um lado há, a partir da visão de que o crescimento do

desemprego estrutural é inevitável, a concepção mais conservadora

de renda mínima, de Friedman, que defende que ela seja destinada

apenas aos que não conseguem vencer no mercado competitivo (os

fracassados e incapazes), cabendo ao Estado atenuar, assim, a

miserabilidade, e conter a massa descontente [...]. Por outro lado,

autores como André Gorz [...], Guy Aznar [...], Bresson e

Rosanvallon, defendem que a renda mínima deva ser destinada não

aos pobres, mas aos trabalhadores, como uma compensação pela

redução de sua jornada de trabalho, de forma a impedir a

legitimação de uma sociedade dual, que passe muito bem sem os

‘inúteis’ da nação. Esta proposta mantém a percepção do trabalho

como pilar da cidadania e defende a redução da jornada sem prejuízo

da renda – daí o porquê da renda mínima, que seria complementar

ao salário, mas, diferentemente das proposições da direita, seria uma

forma de inverter o processo de transformações no sentido do

empoderamento e favorecimento dos trabalhadores” (Justo,

2004:11).

Também Marques já havia afirmado que a defesa de propostas de

renda mínima não se restringe a uma ou outra corrente de pensamento,

trata-se de uma proposta de caráter bem mais abrangente.

“Entre os neoliberais está associada à idéia de Estado mínimo e às

propostas de desregulamentação do trabalho e de redução ou

extinção dos encargos sociais, como condição para que as taxas de

Page 86: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

80

desemprego recuem, e como requerimento da chamada globalização.

No campo progressista, está associada à construção de um novo

conceito de solidariedade, entendida como necessária para dar conta

da situação criada pelo novo nível de produtividade e do novo mundo

do trabalho” (Marques, 1997:89).

De todo modo, Silva e Silva (1996) agrupam as propostas/programas

de renda mínima em três vertentes básicas: i) como um substituto para os

diversos mecanismos de proteção social do Welfare State e estímulo à

desregulamentação da economia e à flexibilização das relações de trabalho;

ii) como um instrumento transitório destinado a viabilizar a (re)inserção

social e econômica dos sujeitos-beneficiários por intermédio da vinculação

do auxílio monetário a medidas sócio-educativas e de qualificação

profissional; iii) como um mecanismo capaz de assegurar uma distribuição

mais eqüitativa do produto social em um contexto em que a geração de

riqueza prescinde, cada vez mais, do trabalho humano.

Euzéby (1995) concorda com os argumentos de Gorz, Aznar, Bresson

e Rosanvallon postulando que o contexto de desemprego maciço, de

multiplicação de empregos precários, de agravamento das desigualdades e

de instabilidade crescente das famílias, observado nas últimas décadas, não

só ameaça a coesão social como também coloca em xeque os sistemas de

proteção construídos para o pleno emprego, o trabalho em tempo integral e

a família estável.

Para enfrentar esses desafios, segundo ele, de um lado, encontram-

se os representantes das correntes liberais que avançam o princípio "nada

de direitos sem obrigação de trabalho" e pretendem limitar a proteção

social às pessoas mais necessitadas; de outro, situam-se os partidários da

transferência de renda universal, sem precondições, chamada de "renda de

existência" por Yoland Bresson e René Passet, de “abono universal”, “renda

básica” ou “renda de cidadania” por Philippe Van Parijs, Guy Standing, Claus

Offe, André Gorz, Rubén Lo Vuolo, Jean-Marc Ferry, entre outros.

Page 87: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

81

Quanto à renda básica ou renda básica de cidadania, relativamente

nova no discurso dos direitos humanos e na prática política dos Estados, é

compreendida como uma renda universal a ser paga a todos os

cidadãos(ãs) de uma determinada comunidade política independentemente

de sua origem social, sexo, idade etc. A proposta é instituí-la de forma

completamente incondicional desde o seu nascimento até a morte, sem

qualquer critério de seleção. Foi concebida não somente no sentido de

responder à “crise da sociedade do trabalho”, mas, sobretudo, levando em

conta determinados princípios éticos, como os da justiça social, da

dignidade e da liberdade humana, como formulados por John Rawls e

Amartya Sen (Zimmermann, 2004).

A proposta da renda de cidadania ocupa-se diretamente da dicotomia

inclusão/exclusão social, baseada em uma crítica aos pressupostos que

sustentam os arranjos institucionais próprios do Welfare State tradicional.

Nesse sentido, demanda uma engenharia institucional nova, que viabilize

uma transferência direta de renda para todas as pessoas residentes em um

determinado território político a cujo acesso não se requer nenhuma outra

condição a não ser a de ser cidadão ou cidadã (Lo Vuolo, 1995).

Lo Vuolo ressalta que o qualificativo de cidadão também ajuda a

enfatizar outro aspecto substantivo da proposta da renda de cidadania: sua

intenção de favorecer a integração como recurso para se contrapor às

forças sociais que impulsionam a dinâmica excludente. Segundo o autor, o

adjetivo cidadão igualmente ilustra um método de superar a exclusão:

resgatando os valores de cidadania na construção de políticas públicas.

De fato, a renda de cidadania é considerada como um direito de

cidadania. Um direito inalienável de todo cidadão ou cidadã participar da

riqueza produzida em um determinado território (que pode ser um país, um

estado, um município, uma região), de forma equânime e incondicional.

Nesse sentido, esta tem a ver com a universalização desse direito, com a

socialização da riqueza e da política, de tal forma que o desenvolvimento

garanta a plena realização das potencialidades de todos (Bava, 1998; ver,

também, Sen, 1993).

Page 88: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

82

Embora não esteja implantada em nenhum país em particular, desde

1976 uma modalidade de renda de cidadania foi introduzida no Estado do

Alasca, nos Estados Unidos, quando o governo local conseguiu que fosse

aprovada, através de referendum popular, a transferência de 50% dos

royalties originários da venda do petróleo para um fundo de propriedade de

todos os residentes nesse estado. A partir dessa data, cada morador do

Alasca, registrado nesse fundo, passou a receber um dividendo social uma

vez por ano, o que tem contribuído para a redistribuição de renda no

estado.

A renda de cidadania tem sido objeto de muitos debates, inclusive na

África do Sul, onde as negociações para sua implementação estão bastante

avançadas. Neste país, pretende-se que esta contribua para a eqüidade e

promova a estabilidade da família e da comunidade, possibilitando a todas

as pessoas o atendimento de necessidades vitais e uma maior dignidade.

Propõe-se uma cobertura universal, desde o nascimento até a morte, sem

que seja necessária a comprovação de rendimentos.

No caso do Brasil, partiu do senador Eduardo Suplicy a iniciativa de

implantar uma política dessa natureza, já que foi autor do projeto original

que resultou na Lei nº 10.835, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula

da Silva, em janeiro de 2004, a qual institui o Programa de Renda Básica de

Cidadania no país, a partir de 2005, como direito universal e incondicional

de todos aqueles, brasileiros ou não, que vivem aqui legalmente.

Quanto à renda de existência, é proposta por autores que defendem

a partilha do patrimônio comum mediante argumentos um pouco diferentes

daqueles dos partidários da renda de cidadania. Para Yoland Bresson, por

exemplo, “o nível de produção de uma sociedade não depende somente dos

aportes de trabalho e de capital efetuados pelos agentes econômicos do

momento, mas, também, é resultado da contribuição de ancestrais. Sendo

assim, a simples existência justifica o recebimento de uma renda da

sociedade, que assume, nesse caso, caráter de legado” (apud Marques,

1997:123-124). A renda de existência, assim, tal como a renda de

cidadania, é atribuída a qualquer indivíduo, sem qualquer precondição de

Page 89: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

83

estatuto familiar ou profissional. Todavia, parte do princípio de que “todos

têm direito a um mínimo de recursos pelo fato de existirem, e não para

existirem” (Euzéby, 1995:1).

De todo modo, dadas as características supracitadas, tanto a renda

de existência quanto a renda de cidadania diferem substancialmente

daquelas políticas de garantia de renda mínima implantadas em diversos

países, pois, na grande maioria destes, trata-se de rendas condicionadas ao

cumprimento de certos requisitos, como, por exemplo, de o beneficiário

provar a falta ou insuficiência de renda com relação a um determinado

patamar preestabelecido e/ou mostrar predisposição para aceitar qualquer

tipo de trabalho.

Nesses termos, conforme assinala Zimmermann (2004), o Programa

Bolsa Família instituído no Brasil pelo governo Lula é um programa de renda

mínima, pois possui uma série de condicionalidades. Todavia, pondera o

autor, sob a ótica dos direitos humanos, tanto o Bolsa Família como os

demais programas de renda mínima de natureza similar apresentam

problemas variados, quais sejam:

1. seleção: na grande maioria dos casos, tentativas de identificação

dos pobres por meio de critérios técnicos dificilmente são capazes

de diferenciar estes do restante da população de baixa renda.

Existem muitos entraves no processo de seleção e escolha das

famílias a serem incluídas em programas afins. Em muitos casos,

pessoas necessitadas são excluídas dos mesmos até por critérios

políticos (clientelismo etc.);

2. justiciabilidade: a grande maioria dos programas de renda mínima

não garante a justiciabilidade e exibilidade dos direitos ou, no pior

dos casos, quando existem, não têm tido condições de cumprir

este princípio. Diante do critério seletivo e condicionador, existem

muitos empecilhos na criação de mecanismos específicos para a

justiciabilidade e exibilidade dos programas afins;

3. custos operacionais: vários estudos têm demonstrado o alto custo

operacional de programas dessa natureza, principalmente devido

Page 90: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

84

à burocracia necessária para se realizar o processo de seleção dos

beneficiários e o controle das condicionalidades, o que faz com

que muitos desses programas sejam estigmatizados, sendo por

vezes humilhantes para os que deles se beneficiam. Além disso, o

custo operacional da seleção e do controle é muito alto.

Ainda assim, o debate internacional sobre os programas de renda

mínima alcançou vigor principalmente nas duas últimas décadas. Tanto é

que, em junho de 1992, o Conselho das Comunidades Européias

recomendou aos Estados-membros que reconheçam o direito fundamental

dos indivíduos a recursos que lhes garantam uma vida em conformidade

com a “dignidade humana”, orientado pelos seguintes princípios:

“[...] a) pela afirmação de um direito baseado no respeito pela

dignidade da pessoa humana; (b) pela definição de um campo de

aplicação deste direito, relativamente à residência e à nacionalidade;

(c) pela abertura deste direito a todas as pessoas que não

disponham, nem por si próprias nem no seio do seu agregado

familiar, de recursos suficientes; (d) pelo exercício deste direito sem

limite de duração, desde que as condições de acesso continuem

preenchidas; (e) pelo seu caráter auxiliar (subsidiário) em relação

aos demais direitos; (f) pelo acompanhamento do mesmo pelas

políticas necessárias à integração econômica e social das pessoas

abrangidas” (Fonseca, 2001:113-114).

No entanto, há muita polêmica em torno do assunto, inclusive sobre

o direito subjetivo à renda por parte do pobre ou indigente na qualidade de

“credor” do Estado. O Conselho de Estado da Bélgica, por exemplo,

recusou-se a interpretar a ajuda social através da garantia de renda

mínima, instituída no país em 1974, como um direito subjetivo, enquanto o

governo belga aceitou uma emenda que o introduziu. De todo modo, o

debate teórico sobre o tema não foi regulado, daí a discussão: direito

subjetivo versus interesse; legalidade versus oportunidade; instituição

política fundamental versus serviço público. As dúvidas ainda permanecem

Page 91: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

85

nesse nível, com conseqüências práticas que afetam profundamente uma

tomada de posição diante da proteção social (Baracho, 2002).

Na realidade, as modalidades de adoção de um programa de renda

mínima variam muito de país para país (grau de universalização, condições

de acesso ao benefício, montante deste, contrapartidas exigidas, formas de

financiamento etc.). No entanto, fatores em comum são identificados com

relação ao benefício auferido, em contextos variados. Nesses casos tal

benefício: i) destina-se a todos que estão em situação de necessidade,

decorrente de insuficiência de renda; ii) trata-se de um direito subjetivo,

isto é, atribuído com base em uma demanda feita pelo próprio interessado;

iii) trata-se de um direito condicional, pois implica o respeito a certas

prerrogativas e a contrapartidas; d) trata-se de um direito subsidiário, ou

seja, tem seu valor modulado pelo montante das demais prestações sociais

e pela renda, seja ela individual ou familiar (Lavinas & Varsano, 1997).

Vale ressaltar, nesse sentido, que a grande maioria dos países que

conformam a União Européia, além dos Estados Unidos, Canadá, China,

África do Sul, países latino-americanos e outros, contam com algum

programa de garantia de renda mínima ou com alguma proposta afim na

atualidade25. Dentre estes, destacam-se os que defendem a idéia da

incondicionalidade de uma renda garantida, que tanto pode estar

relacionada com programas de renda mínima quanto com programas de

renda de cidadania.

Segundo Lavinas & Varsano, a idéia da incondicionalidade possui uma

vertente intitulada “incondicionalidade forte”, propondo uma renda de

subsistência para todos, sem distinção nem condicionantes; e outra dita

“incondicionalidade débil”, que prevê um imposto negativo apenas para

25 Segundo Marques (1997:102), quanto aos programas de renda mínima, o mais antigo que se tem notícia é o da Inglaterra (income support – 1948). Nesse sentido, a autora destaca, ainda, o sociale bijstand holandês – 1963, o sozialhilfe alemão – 1961, o minimex belga – 1974 e a revenu minimum d’insertion francesa – RMI, de 1988, os quais, na percepção de Marques, à exceção do RMI, foram concebidos em bases assistencialistas, destinados a indivíduos ou famílias incapazes de garantir o mínimo necessário para sua subsistência.

Page 92: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

86

aqueles que não dispõem do mínimo. No entanto, segundo esses autores,

ambas as vertentes procuram se contrapor à generalização do workfare em

substituição ao welfare.

“[...] a perda de centralidade do trabalho nas sociedades pós-

industriais leva a uma dissociação entre benefício e atividade, base

do sistema de proteção social implementado ao longo do século XX.

Aqueles que permanecem integrados, via trabalho, ao antigo sistema

de proteção beneficiam-se de direitos sociais negados àqueles que

foram destituídos da sua capacidade de trabalho, já não mais

adequada. É a ociosidade involuntária. Por questões éticas e de

justiça, cabe assegurar a todos os cidadãos ‘condições mínimas de

liberdade’, prevalecendo de um ponto de vista conceitual a idéia de

que a doação, gratuita e unilateral, deve ser um elemento fundador,

logo, estruturante das relações sociais” (Lavinas & Varsano, 1997: 5).

No entanto, no debate em torno das propostas de transferência direta

de renda alguns argumentam que tal transferência é perfeitamente

funcional ao capitalismo na sua fase atual, porque oferece uma solução

(ainda que paliativa) para os não-incluídos no mercado de trabalho, além de

torná-los consumidores potenciais, como no caso do imposto de renda

negativo proposto por Milton Friedman. Já outros defendem essa

transferência como necessária e complementar a demais iniciativas voltadas

para o bem-estar social (e não como substitutivo destas), enfatizando seu

caráter redistributivo e emancipatório, como a renda básica ou renda básica

de cidadania.

No caso desta última, não tem como objeto de preocupação a busca

de uma solução para a “crise do trabalho” ou da “sociedade salarial”,

conforme mencionado. De caráter fundamentalmente redistributivo, está

baseada nos ideais de justiça social de inspiração libertária (rawlsianos,

sobretudo). Universal e incondicional, a renda básica de cidadania deve ser

outorgada a todo cidadão(ã) por fazer parte de uma comunidade política,

visando que usufrua do patrimônio material comum. Ademais, deve ser

garantida de forma a não restringir seu uso pelas pessoas nem a conduta

Page 93: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

87

das mesmas. Portanto, deve ser desvinculada de qualquer condicionante,

inclusive do trabalho, pois é conferida devido ao status de cidadania. Daí se

depreende que esta está fundamentada em uma noção inovadora de

cidadania – cujo núcleo, embora incerto, certamente aponta para uma

ultrapassagem da noção tradicional –, em que seria desvinculada do

trabalho como seu substrato (Pereira Silva, 1998 apud Justo, 2004).

II.2.2 As contribuições de Friedman, Aznar, Gorz e Rosanvallon

Conforme visto anteriormente, diferentes correntes político-ideológicas

perceberam no cenário de enfrentamento da crise do Welfare State a

necessidade da substituição deste sistema por uma nova política social, nos

moldes da renda mínima e outras, relacionadas com a adoção de uma ação

afirmativa em prol daqueles mais necessitados, seja porque perderam seus

postos de trabalho e seus vínculos sociais mais abrangentes, seja porque

estão em uma situação fragilizada pessoal e profissionalmente, seja, ainda,

porque nem sequer tiveram ou terão acesso ao mercado de trabalho.

De fato, correntes denominadas liberais, na sua crescente defesa da

soberania do consumidor, tendem a chamar a atenção para as vantagens

de uma transferência financeira direta do Estado no sentido de garantir às

pessoas necessitadas uma segurança material mínima, atenuando as

conseqüências do desemprego e do subemprego e contribuindo para a

estabilização da despesa social. Por sua vez, correntes mais progressistas

sustentam a necessidade de o Estado adotar uma compensação monetária

como uma política que complemente as históricas conquistas do trabalho e

estenda os direitos de cidadania para um conjunto maior de pessoas.

Representando a corrente liberal, destaca-se Milton Friedman (1962)

como um dos autores pioneiros a defender uma transferência direta de

renda, na forma de um imposto de renda negativo, como uma forma de

combater a pobreza e, ao mesmo tempo, preservar os incentivos ao

trabalho. Assim, todas as pessoas que auferissem uma renda inferior àquela

Page 94: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

88

considerada mínima vital, passariam a receber uma ajuda do Estado, em

substituição aos demais serviços e benefícios sociais fornecidos por este26.

Segundo Van Parijs,

“[...] tendo como pano de fundo uma tabela de imposto explícito que

não tributa nenhuma renda em 100% e que pode, mas não precisa

ser por definição, linear, um imposto de renda negativo equivale a

uma redução do imposto de renda devido por cada família (de uma

determinada composição) no mesmo valor fixado, enquanto paga

como um benefício em dinheiro a diferença entre este valor e o

imposto devido sempre que esta diferença for positiva” (2000:9)27.

De acordo com Friedman, as vantagens da adoção de um imposto

dessa natureza são claras.

“O programa está especificamente dirigido para o problema da

pobreza. Fornece uma ajuda sob a forma mais útil para o indivíduo,

isto é, o dinheiro. É de ordem geral e pode substituir o grande

conjunto de medidas atualmente existentes. Explicita o custo que

impõe à sociedade. Opera fora do mercado. Como qualquer outra

medida para mitigar a pobreza, reduz o incentivo para que os

ajudados se ajudem a si próprios, mas não o elimina inteiramente,

como o faria um sistema de suplementação das rendas até o mínimo

estabelecido” (Friedman, 1977:162-163 apud Marques, 1997:119).

Vale considerar que, consistente com a idéia de que a intervenção do

Estado na economia deve ser a menor possível, Friedman postula que o

ideal para as políticas sociais é sua focalização em públicos restritos. Daí

também sua proposta de que a renda transferida às pessoas seja 26 O autor (Friedman apud Marques) “ao considerar que o mercado é o lócus privilegiado, onde são garantidas a liberdade de escolha dos indivíduos e a eficiência de alocação dos recursos, encaminha a retirada do Estado do mercado de trabalho e reduz a proteção social, garantida pelo Estado, ao segmento mais carente da população” (Marques, 1997). 27 Dessa forma, o valor a ser transferido em função de um imposto de renda negativo dependeria do montante de renda percebido por esforço próprio, conforme a seguinte fórmula: s = G – tg, onde s é a renda transferida; G, a renda mínima garantida; t, o imposto; e g equivale à renda pessoal (Marques, 1997:117).

Page 95: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

89

substitutiva das demais políticas sociais, já que, na sua percepção, as forças

do mercado são capazes de promover a melhor alocação dos recursos e o

mais alto nível de bem-estar, de forma independente do Estado. O autor

visa à restauração da eficiência e da racionalidade econômica deste que,

segundo ele, foram perdidas no Welfare State, propondo a concessão de um

benefício monetário que não exceda determinado patamar mínimo, a fim de

não onerá-lo e não desestimular o trabalho.

De todo modo, ainda que o incentivo ao trabalho esteja presente na

proposta do imposto de renda negativo, nesta não é exigido que as famílias

ou que os indivíduos exerçam alguma atividade para receber o benefício daí

advindo, cujo valor depende de informações sobre todas as rendas

auferidas/não auferidas pelos beneficiários, o que faz com que esse imposto

funcione como uma medida de proteção social ex post.

“On paper, an individual negative income tax and a basic income can

yield exactly the same distribution of post-tax-and-transfer incomes.

In particular, in both cases, taxation can be – and usually is –

designed in such a way that net income rises as gross income rises at

all levels of income – that is, in such a way that the poverty trap is in

principal abolished. In both cases, however, it could be also designed

in such a way that net income would not rise as gross income

increases below some threshold level – that is, in such a way that the

negative income tax rate or the ‘clawback rate’ on the lowest

earnings is 100 per cent.

This potential identity […] exists only on paper, however, because in

the real world it does make a tremendous difference whether the

minimum income guarantee is given to all ex-ante, no questions

asked – as it is under a basic income scheme or whether it is given

only to those who turn out to have had, or provide adequate evidence

that they now have, an insufficient income” (Van Parijs, 1992:4-5

apud Marques, 1997:120).

Dessa forma, o imposto de renda negativo visa tornar socialmente

tolerável a exclusão do mercado de trabalho, assim como servir de base

Page 96: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

90

para uma nova concepção de proteção social, fundada no indivíduo e no

mercado. Nesse sentido, não pode ser considerado similar a outras

propostas que buscam “encontrar alternativas ou adaptações para os

sistemas de proteção social, por acreditarem que suas bases de sustentação

foram definitivamente solapadas” (idem:122).

Entre essas propostas, destacam-se aquelas formuladas por autores

representantes de correntes político-ideológicas opostas à de Friedman,

como Guy Aznar e André Gorz, que defendem uma renda garantida de

inspiração distributivista para todos os cidadãos, combinada à redução da

jornada de trabalho. Com isso, pretendem racionalizar a distribuição de

renda e combater a pobreza relativa mediante a concessão de um benefício

monetário com vistas à constituição de uma sociedade de tempo livre, na

qual também o trabalho seja redistribuído entre todos os cidadãos. Aznar e

Gorz defendem que a renda garantida deve ser destinada não aos pobres,

mas aos trabalhadores em geral, como uma compensação pela redução de

sua jornada de trabalho, de forma a impedir a legitimação de uma

sociedade dual.

Assim, ambos os autores percebem o trabalho como pilar da

cidadania, sugerindo a redução de sua jornada como solução para o

problema do desemprego, sem prejuízo da renda auferida pelos

trabalhadores. Daí a razão da sua proposta de renda complementar ao

salário. O objetivo desta, na visão deles, é incluir todos no mercado de

trabalho com jornada reduzida e melhores condições de trabalho,

construindo, assim, uma sociedade de tempo livre em que os trabalhadores

possam se dedicar a outras atividades, de naturezas diversas.

Guy Aznar trata, especificamente, da possibilidade de redistribuir o

estoque de postos de trabalho por meio da fórmula “trabalhar menos para

trabalharem todos”, socializando o potencial de tempo livre gerado pelas

novas tecnologias.

“Comme il nést pas possible de percevoir lê même salaire en

travaillant moins, chacun touche um complemént de salaire, une

Page 97: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

91

‘indemnité de partage du travail’, que j’appelle également ‘2 chèque’,

dont je rappelle le principe: lorsque le temps de travail diminue, le

salaire direct diminue (pás de problème pour l’entreprise) mais le

salaire reçoit une compensation, suivant dês modalités diverses. Je

pense que le 2 chèque nést pás une astuce, um gadget, une recette

provisoire et anecdotique, mais je considere que c’est um concept

économique fondamental qui s’énonce comme um thèoreme: ‘dans la

mesure où lês richesses ne sont plus constitué exclusivement par lê

salaire mais par um mécanisme redistributif dês richesses produites

sans travail’” (Aznar, 1994:67 apud Marques, 1997:136).

Dessa forma, Aznar (1995) sugere o benefício de um “segundo

cheque”, de cunho redistributivo, de modo a permitir a inserção de todos no

mercado de trabalho. Na sua proposta, os indivíduos teriam duas rendas,

uma pelo trabalho e outra pela partilha da riqueza coletiva e, nas horas

livres, teriam a “oportunidade de dedicar tempo à vida comunitária, de

inventar novas modalidades de democracia participativa, de se envolver na

vida política” (idem).

Ainda segundo Aznar, a redução da jornada de trabalho criará

emprego apenas se for franca e maciça, uma vez que as empresas somente

aceitarão a redução das horas de trabalho se não tiveram aumento nos

custos de produção, e os assalariados só a aceitarão se não houver queda

nos rendimentos do trabalho. Há três condições que o autor considera

necessárias e suficientes, e que devem ser preenchidas conjuntamente,

para se chegar ao seu ideal: i) as máquinas (o capital imobilizado) devem

render mais, desenvolvendo o trabalho em equipe; ii) a compensação

salarial deve ser assegurada em parte pela empresa, em parte por uma

receita financiada externamente à empresa (o que ele chama de “segundo

cheque”, que envolve a participação do Estado); iii) este processo deve ser

operacionalizado de forma conjunta em função de um acordo envolvendo

representantes sindicais e patronais28.

28 A proposta central de Aznar consiste em afirmar que: (a) sempre que uma empresa aumenta significativamente o tempo de utilização de seus equipamentos; (b) diminui também expressivamente a duração do trabalho (35 horas ou menos em seu estudo); (c) contratando uma segunda equipe; (d)

Page 98: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

92

Já para André Gorz o momento atual - de crescentes taxas de

desemprego - não é de uma crise de curta, média ou longa duração; trata-

se, na verdade, de um novo sistema que se instaura e que abolirá

massivamente o trabalho, tal como concebido e valorado. Fazendo uma

distinção entre um tipo de trabalho que aliena (o atual) e outro que liberta,

o autor afirma que é necessário sair dessa sociedade do trabalho para

reencontrar o gosto e a possibilidade do trabalho “verdadeiro”, pois o

'trabalho' que o capitalismo na sua última fase abole massivamente é uma

construção social; e por isso pode ser abolido.

Gorz defende também que o conceito de trabalho, tal como

operacionalizado, é uma invenção da modernidade. Segundo ele, a

característica essencial do trabalho é ser uma atividade que se dá na esfera

pública definida e reconhecida como útil por outros e, nesse sentido,

remunerada por eles, reduzida ao emprego. Assim, no atual contexto o

trabalho cumpre uma função socialmente identificada na produção e

reprodução do todo social, transformando-se em um fator fundamental de

integração social e de identidade. O trabalho, na percepção do autor, define

se as pessoas são cidadãs, se têm direitos. No entanto, conforme Gorz, por

ironia da história, o século XX – o século do trabalho – terminou com uma

profunda crise nos postos de trabalho, o que resulta em uma sociedade

fragmentada, onde o próprio conceito de trabalho deverá ser revisto.

Seguindo seu raciocínio, Gorz afirma que trabalhar não é apenas a

produção alienada de riquezas, mas também uma maneira de se produzir, o

que traduz a dimensão antropológica do trabalho como elemento

constitutivo da condição humana. Nesse caso, se este deixa de ser um fator

de socialização, como acontece na atualidade, permanece como fator de

integração social. Quanto à crise do conceito de trabalho assalariado,

pagando uma compensação salarial de 50%; (e) com o Estado completando esta compensação de modo a manter o rendimento integral. A participação do Estado é justificada pela diminuição do orçamento desemprego. E isto traz múltiplas conseqüências: diminuindo a carga de compensação pela empresa, estende-se consideravelmente o campo das empresas dispostas a fazer a compensação; com uma compensação total por um tempo de trabalho reduzido, supõe-se que nascerá dentro das empresas uma pressão para desenvolver o processo. Nesse caso, ele pressupõe uma semana de quatro dias com duas equipes, com a duração de 34, 33 ou 32 horas, sem perda de rendimentos, de maneira realista, na medida dos ganhos de produtividade.

Page 99: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

93

segundo o autor, ela é demonstrativa de que o formato que este assumiu é

uma construção sócio-histórica da modernidade industrial e não uma

categoria antropológica, pois durante milênios a humanidade viveu sem

trabalho assalariado. O desafio contemporâneo, enfatiza, é superar a

“sociedade salarial” por meio da reinvenção do trabalho, o que implica

repensar e ampliar o direito do trabalho, como uma dimensão fundamental

da cidadania.

André Gorz apresenta seu pensamento de forma sintética: privilegiar

a liberação do trabalho abandonando a liberação no trabalho. Para ele, a

transformação do trabalho deve ser no sentido de conquistar uma sociedade

de tempo livre, colocando a automatização a serviço da expansão das

atividades, sem necessidades nem fins econômicos, em substituição do

tempo de trabalho (Gorz, 2001 apud Gómez, 2002).

“Nem a re-apropriação do tempo nem a do trabalho se desenvolverão

espontaneamente a menos que se vinculem a um projeto coletivo,

político e se expressem na transformação e re-apropriação de um

território ou de um espaço urbano, na proliferação de lugares dotados

Page 100: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

94

de equipamentos avançados tecnicamente para a auto-atividade, o

auto-aprendizado, a auto-produção cooperativa de produtos

imateriais e materiais, a auto-organização de redes de intercâmbio,

etc., em resumo, através do desenvolvimento de uma ‘economia

popular’ que ilustre as formas possíveis que pode tomar a alternativa

do sistema salarial, às relações mercantis, à economia e às empresas

capitalistas” (idem).

Nesse sentido, calcadas em um projeto muito mais ambicioso de

sociedade futura, as propostas de Guy Aznar e André Gorz opõem-se

drasticamente àquela de inspiração neoliberal representada por Friedman,

devido ao fundamento redistributivo das primeiras no que diz respeito à

renda, ao trabalho e ao tempo livre. Por outro lado, percebe-se a

permanência subjacente a essas propostas da vinculação entre trabalho e

cidadania.

De fato, para Gorz é inaceitável que o trabalho, que aliena o

trabalhador, se perpetue como norma, obrigação e fundamento dos direitos

e da dignidade de todos. Propõe que este retorne ao que, em determinado

momento da relação do homem com a natureza, já representou: o

desenvolvimento das forças criadoras. Ao voltar a experimentar o trabalho

como uma realização íntima, a classe trabalhadora, segundo o autor, se

abriria a novos laços de solidariedade, buscando soluções coletivas para

problemas coletivos; haveria um alargamento do espaço público e poderia

surgir uma nova civilização, uma sociedade e uma economia diferentes,

colocando fim ao poder do capital sobre o trabalho. Para tanto, Gorz apóia a

idéia de garantir para

“[...] todo cidadão uma renda de existência suficiente que

asseguraria a passagem de uma sociedade de pleno emprego para

uma sociedade de plena atividade, no seio da qual as atividades que

criam sentido, convivência, vínculos sociais e que contribuem ao

enriquecimento, ao desabrochar da vida, ver-se-iam reconhecidas de

importância e de dignidade social. Este deveria ser o modo de

integração privilegiado numa sociedade” (ibidem).

Page 101: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

95

Em Metamorfose do Trabalho, André Gorz questiona se é mesmo

necessário dissociar o direito à renda do direito ao trabalho. Ele sustenta a

tese de que cada cidadão tem o direito a uma vida normal, mas também

deve ter o direito e o dever de fornecer à sociedade o equivalente-trabalho

daquilo que consome. Sendo assim, na sua percepção, o mínimo garantido

funciona como o salário da marginalidade, da exclusão. No entanto, revê

esta posição nos seus trabalhos posteriores. De fato, no seu último livro,

Misères du Présent, Richesse du Possible, publicado em 1997, muda

radicalmente de opinião, passando a defender a renda básica universal e

incondicional suficiente (da ordem de 650 a 800 euros por mês e por

pessoa, sem suprimir a segurança social), considerando a dificuldade de se

alcançar o pleno emprego, por meio da diminuição do tempo de trabalho

(Coutrot & Husson, 2004).

Finalmente vale considerar a posição de Rosanvallon, que igualmente

acredita na importância do trabalho como instrumento de coesão social.

“Em um contexto de desemprego crescente e intensa diferenciação

das trajetórias sociais, a perspectiva de intervenção do Estado

através da distribuição mecânica de benefícios aos portadores de

‘direito’ ou, ainda, de indenização nos casos de ‘disfunções

passageiras’ [...] perde eficácia. Desta forma, uma nova visão da

proteção social, [...] ligada a uma versão ampliada do modo de

produção da solidariedade social, constitui-se a saída para enfrentar

os problemas sociais contemporâneos” (Rosanvallon, 1995:60 apud

Magalhães, 2001:11).

II.3 A renda básica ou a renda básica de cidadania

Dêem a todos os cidadãos uma renda modesta, porém incondicional, e deixem-nos completá-la à vontade com renda proveniente de outras fontes.

Philippe Van Parijs

Segundo Van Parijs,

Page 102: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

96

“[...] esta idéia extremamente simples, tem uma origem

surpreendentemente variada. Ao longo dos dois últimos séculos, ela

tem sido concebida de maneira independente sob uma variedade de

nomes - ‘dividendo territorial’ e ‘bônus estatal’, por exemplo,

‘demogrant’ e ‘salário do cidadão’, ‘benefício universal’ e ‘renda

básica’ -, na maioria dos casos sem muito sucesso. Porém, nas duas

últimas décadas, ela aos poucos se tornou o assunto de uma

discussão pública nunca vista e que se expande rapidamente”

(2000:1).

Muito da explicação para a disseminação dessa idéia está no enorme

fosso que cada vez mais tem separado ricos e pobres nas sociedades

ocidentais, colocando a discussão acerca da pobreza e da desigualdade na

ordem do dia, juntamente com reflexões de natureza moral e ética. Tal

idéia tem sido exposta, ainda, em contraposição às propostas neoliberais

que só fizeram aprofundar a crise social que assola a maioria dessas

sociedades, as quais estão revendo seus sistemas de proteção social e

arranjos institucionais vis-à-vis os desafios colocados pela globalização e

pelas mudanças no setor produtivo.29

A idéia da renda básica ou renda de cidadania, como aqui está sendo

chamada, é que esta seja transferida por uma comunidade política a todos

os seus membros, de forma individual e incondicional, em espécie, em

intervalos regulares, não envolvendo nenhuma restrição quanto à natureza

ou ao ritmo do consumo ou investimento que ajuda a financiar. A

expectativa é que complemente, em vez de substituir, as demais

transferências do poder público, na forma de bens e serviços universais,

como ensino gratuito e seguro de saúde básico (Van Parijs, 2000:2-4).

29 Conforme ressalta Cohn (2004), vários estudiosos da questão da pobreza vêm demonstrando que a universalização das políticas de transferência de renda em bases territoriais apresenta um potencial redistributivo muito maior do que aquelas focalizadas em grupos de renda que tem a ver com o receituário neoliberal. Ver a respeito Boltivinik, J. e Laos, E. H. (2001) Pobreza y Distribuición del Ingreso em México, Siglo Veintiuno Editores, México.

Page 103: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

97

Tal renda pode ser financiada de forma específica e vinculada, mas se

não o for, deverá ser financiada, juntamente com todos os demais gastos

governamentais, a partir de um conjunto de receitas de diversas fontes. A

tributação redistributiva, entretanto, não precisa ser a única fonte de

financiamento. Pode-se fazer uso, por exemplo, de um sistema de

dividendos, como no caso do Estado do Alasca, que conta com a única

experiência no mundo de implementação dessa idéia (da renda de

cidadania) na forma de uma política pública (Van Parijs, 2000:5-6).

Comparada com programas de renda mínima, já implantados, um

aspecto diferenciado da renda básica de cidadania é o fato de que ela é

transferida de forma equânime a todos, sem levar em consideração o nível

de renda dos beneficiários.

“De acordo com a variante mais simples dos sistemas existentes,

especifica-se um nível mínimo de renda para cada tipo de família [o

que fica a critério de cada comunidade política], calcula-se a renda

total [desta] proveniente de outras fontes e a diferença entre esta

renda e o mínimo estipulado é paga a cada família na forma de um

benefício em dinheiro. Nesse sentido, os sistemas existentes operam

ex post, com base em uma avaliação prévia, provisional, da renda do

beneficiário. Um sistema de renda básica, ao contrário, opera ex

ante, independentemente de qualquer verificação de renda” (Van

Parijs, 2000: 5).

Pelas suas características e finalidades, a renda básica, em seus

diferentes matizes, tem sido defendida por importantes autores, além de

Philippe Van Parijs, como Guy Standing, Claus Offe, André Gorz, Rubén Lo

Vuolo, Chantal Euzéby, Eduardo Suplicy, que a percebem como uma política

potente do ponto de vista redistributivo, além de inovadora e

emancipatória, já que, no entendimento de vários deles, está pautada nos

princípios da justiça social, da dignidade humana e da liberdade, tal como

formulados por John Rawls em Uma Teoria da Justiça (1971) e por Amartya

Page 104: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

98

Sen no conjunto da sua obra, particularmente em Desenvolvimento como

Liberdade (2000)30.

Philippe Van Parijs, um dos fundadores da Basic Income European

Network (BIEN) ou Rede Européia da Renda Básica, tem sido um dos

maiores defensores da idéia31. Em seus livros – O que É uma Sociedade

Justa?; Real Freedom for all; What (if anything) can justify capitalism;

Arguing for basic income; Ethical fundations for a radical reform -

argumenta que essa é a maneira de assegurar a todos os cidadãos(ãs) de

uma determinada comunidade política o direito de partilhar a riqueza e,

mais que isso, assegurar-lhes maior grau de liberdade e justiça, de acordo

com os princípios de justiça formulados por Rawls (Suplicy, 1999:3).

Nesse sentido, Van Parijs considera a redistribuição de recursos como

condição imprescindível para uma sociedade se tornar mais justa e

solidária, sobretudo em função de estes serem escassos e de esta sociedade

não contar com princípios altruístas que orientem o comportamento de seus

membros (Lavinas, 1999).

Quanto a Rubén Lo Vuolo (2002) propõe que as instituições públicas

estejam orientadas por um “universalismo seletivo”. Segundo ele, a

seletividade se faz necessária para a identificação de grupos com

características diferentes e não para limitar o gasto público. O autor postula

que um sistema alternativo de políticas sociais deveria estar baseado em

três pilares universais: i) renda garantida para toda a população; ii) saúde;

iii) educação. De forma complementar estariam situados os programas

seletivos, voltados para questões excepcionais. Conforme ele, “si algo

distingue a esta propuesta de política es cierta forma de “incondicionalidad”

y un alto grado de universalidad en el acceso a la prestación en dinero,

30 A idéia do direito a uma renda básica independente do trabalho foi proposta no fim do século XVIII por Thomas Paine (1796), o qual considerava que a apropriação da terra por alguns justificava a concessão aos outros de meios de subsistência. Desde então essa idéia foi retomada principalmente por Jacques Duboin, nos anos 30, na França, e pelo Círculo Charles Fourier, no início dos anos 80, na Bélgica. Hoje é defendida pela corrente dos "distributivistas", pela Associação pela Instauração da Renda de Existência, filiada à rede européia do Basic Income European Network (BIEN), bem como por partidos políticos, acadêmicos, grupos e indivíduos em diversos países. 31 Em 2004, em Barcelona, decidiu-se pela transformação da Rede Européia da Renda Básica em Rede da Renda Básica na Terra, por ocasião do X Congresso Internacional da BIEN.

Page 105: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

99

como garantía de cobertura preventiva de la aparición de carencias

irreparables” (2002:50).

De acordo com Lo Vuolo (1998), em sua versão mais extrema, a

renda de cidadania independe das seguintes condições: a) trabalho

(desempenho atual, desejo de trabalhar, desempenho passado); b) renda

de outras fontes (não há necessidade de comprovar insuficiência de renda

por parte do indivíduo e este pode aceitar trabalhar em qualquer atividade

que aumente o nível total de renda sobre o da renda de cidadania, evitando

a armadilha da pobreza); c) necessidades (arranjo familiar, idade,

incapacidade física); d) outras características pessoais (sexo, raça,

cidadania). A partir deste esquema universal, segundo ele, podem ser

discutidas variações parciais que correspondem por situações particulares à

cada realidade social.

Já segundo Van Parijs, enquanto refletia sobre o problema da política

econômica e social no hemisfério Norte e sobre o problema da construção

de um projeto de sociedade que contemplasse os ideais da esquerda -

capaz de entender os mecanismos da economia e as lições da história -, há

vinte anos atrás, ele se sentiu duplamente inspirado a pensar na renda de

cidadania. Quanto à primeira inspiração, relacionada com o primeiro

problema, tinha a ver com a resposta a questões por ele formuladas, tais

como:

“Como lutar contra o desemprego nos países ricos, sem contar com

um crescimento econômico muito acelerado? [...] Por que não pensar

numa desconexão parcial, mas sistemática entre a contribuição para

o crescimento e o benefício que deriva do mesmo, de tal modo que as

pessoas que trabalham escolham entre reduzir o seu tempo de

trabalho ou interrompê-lo, enquanto que outras pessoas que estão

desempregadas ou trabalham como voluntárias possam ocupar os

postos de trabalho liberados por uma parte dos trabalhadores?” (Van

Parijs, 2002:75)

Page 106: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

100

A resposta a tais questões, segundo o autor, seria a instituição de um

dividendo social, uma renda distribuída de maneira incondicional a todos os

membros da sociedade, percebida como um “método brando” de redistribuir

o emprego disponível e aumentar a liberdade dos indivíduos.

Quanto à segunda inspiração, associada com o segundo problema,

tinha igualmente a ver com a resposta a questões formuladas pelo autor,

quais sejam:

“Como se pode formular um projeto mobilizador para a esquerda

preservando os grandes ideais de emancipação e justiça social que

motivaram desde seu início os movimentos socialistas e as esquerdas

do mundo? Por que não imaginar uma transição para o socialismo

dentro do capitalismo? Ou seja, [...] como concretizar esta

expectativa de usar o capitalismo como instrumento para realizar o

comunismo, no sentido estrito de seu ideal de distribuição segundo as

necessidades e de liberar as pessoas da obrigação de trabalhar, de

realizar um trabalho alienado? Principalmente com uma renda básica

incondicional, em parte sob a forma de serviços educativos ou de

saúde gratuitos. Outra parte desta renda incondicional poderia ser

dada em espécie. Mas também poderia tomar a forma de uma renda

monetária concedida a todos incondicionalmente, e ser completada

com os diversos tipos de rendimentos que existem na sociedade de

mercado” (Van Parijs, 2002:77-78).

Conforme este autor, a proposta de renda de cidadania é muito

diferente, muito mais radical do que a do Estado de Bem-Estar, uma vez

que neste Estado as transferências se concentram nas pessoas excluídas do

mercado, o que implica a estigmatização das mesmas. Van Parijs acredita

também que um sistema de transferências de tipo tradicional contribui para

a exclusão, porque a saída da situação de exclusão implica a perda do

benefício o que, a seu ver, cria uma armadilha, na qual muitas pessoas sem

qualificação profissional permanecem presas. Em contraste, uma renda

universal não cria estigmas nem armadilhas pelo fato de ser um direito

comum que não se perde quando se insere no mercado, “porque esta renda

Page 107: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

101

básica é uma base, não uma rede de seguridade” (Van Parijs, 2002:79).

Enfim, como postula André Gorz, esse abono universal seria a melhor

alavanca para redistribuir, o mais amplamente possível, tanto o trabalho

remunerado, quanto as atividades não-remuneradas.

Claus Offe afirma que as propostas de renda básica enfatizam os

valores da seguridade e da autonomia, e concebem a possibilidade de

reconciliar o alegado antagonismo que prevalece entre ambos, apoiando-se

na idéia de cidadania. Identifica igualmente as diferenças entre o direito a

uma renda básica, levando em conta a noção de cidadania, e outras opções

de transferências monetárias diretas, baseadas em critérios diversos.

Dentre estas diferenças, destaca:

“a) la base del derecho a recibir transferencias y servicios es la

ciudadanía y no la clase, el status ocupacional, los ingresos, o el

empleo;

b) la justificación moral de las demandas de beneficios, para cuyo

acceso no se adosan precondiciones de comportamiento, no la

constituye el ingreso pagado sino las ‘actividades útiles, incluyendo

actividades realizadas fuera del mercado de trabajo y que, por lo

tanto, escapan a las mediciones formales y a la contabilidad;

c) el criterio de justicia no es la protección del status (relativo) ni el

premio a un determinado mérito, sino la cobertura de necesidades

básicas;

d) el valor clave no es la seguridad (absoluta), sino un nivel

sustentable de riesgo y el mantenimiento de opciones autónomas con

respecto a la conducta responsable de los ciudadanos sobre sus

vidas” (Offe, 1996:97).

Segundo Fonseca, na construção do argumento de Van Parijs

favorável à renda básica (ou renda de cidadania), “o autor procura

estabelecer uma correspondência entre os temas seguro, solidariedade e

equidade e três modelos ideais do Estado de Bem-Estar Social. Cada um

dos temas designaria o fundamento ético de um dos modelos:

bismarckiano, beveridgiano e painiano, respectivamente” (2001:107).

Page 108: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

102

“En el modelo que llamo ‘bismarckiano’ (bismarckien), los

trabajadores renuncían, obligatoriamente, a una parte de sus

remuneraciones presentes, para construir un fondo que se utilizará

para cubrir – cuando tengan necesidad - los gastos de la atención de

su salud [...]. Por su parte, en el modelo que llamo ‘beveridgiano’

(beveridgéen), todos los titulares de ingresos primarios (del trabajo o

del capital) renuncían, obligatoriamente, a una parte de sus ingresos

para constituir un fondo que suministrará a todos los miembros de la

sociedad un nivel mínimo de recursos [...]. Finalmente, en el modelo

que llamo ‘paineano’ (painéen), todos los titulares de ingresos

renuncían, obligatoriamente, a una parte de ellos, para constituir un

fondo que sirva para pagar incondicionalmente un ingreso uniforme a

todos los miembros de la sociedad” (Van Parijs, 1994:56).

Van Parijs chama a atenção para a analogia que existe entre os

nomes que atribuiu a esses diferentes modelos e suas características

peculiares: o bismarckiano, conservador, tem a ver com o sistema de

seguros sociais, o qual foi implantado por Bismarck na Prússia, e tende a

limitar a cobertura do benefício à população assalariada, sendo financiado

principalmente por impostos sobre o salário e outorgando benefícios

vinculados com o nível de impostos pagos (princípio do seguro); o

beveridgiano, liberal, está relacionado com o sistema de seguridade social,

implantado na Grã-Bretanha depois da Segunda Guerra Mundial como

conseqüência de um estudo coordenado por Lorde Beveridge, no qual se

pretende dar cobertura a toda a população contra as contingências sociais,

independentemente de sua capacidade de contribuição ao sistema (princípio

da solidariedade); já o painiano, eqüitativo, tem a ver com o livro de

Thomas Paine, A Justiça Agrária, e diz respeito ao abono universal (ou

renda de cidadania), o qual, nas palavras do autor:

“[...] tiene en común con el segundo modelo (beveridgeano) el no

exigir del beneficiario transferencias que haya (suficientemente)

cotizado, pero que difiere radicalmente tanto del primero

(bismarckiano) como del segundo, en que no restringe las

Page 109: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

103

transferencias a los que están necesitados y no llegan a arreglarse

por sus propios medios” (idem:69).

Daí a proposta dos defensores da renda de cidadania para que se

façam arranjos institucionais que garantam o maior grau possível de

igualdade de oportunidades para todos os cidadãos de uma determinada

comunidade política. Segundo estes, uma sociedade que é ex ante justa

oferece oportunidades iguais a seus membros e respeita as liberdades

individuais. A renda de cidadania atenderia a esse propósito, pois, se o

arranjo institucional básico (a Constituição, as instituições fundamentais

dessa sociedade) satisfaz as exigências da justiça, quaisquer resultados,

estado de coisas e perfis distributivos que sob ele se produzam deverão

também ser considerados justos, seguindo a teoria da justiça como

eqüidade formulada por John Rawls.

Vale considerar, finalmente, a observação de Lo Vuolo de que a

garantia de acesso a uma renda dessa natureza é chave para a construção

de um novo consenso social. Segundo este autor, não se trata de resolver a

complexidade dos problemas da ordem social mediante uma política, mas,

sim, de discutir princípios de organização alternativos que dêem conta

dessa complexidade. Para Lo Vuolo “la política específica puede desecharse

por causas operativas. Pero la complejidad de las formas en que presenta la

cuestión social en nuestro tiempos seguirá reclamando la necesidad de

reflexionar por fuera del pensamiento hoy hegemónico que, lejos de ofrecer

soluciones, ya se ha incorporado como un elemento sustancial y distintivo

de propio problema” (1998:15).

Finalmente vale observar que Van Parijs afirma que a renda básica

universal, tal como a concebe, tende a beneficiar os pobres por três razões,

quais sejam: i) a probabilidade de estes receberem o benefício é maior se

não houver uma verificação da situação financeira, por conta de problemas

de focalização; ii) esta elimina o estigma associado à assistência social que

leva estes a se sentirem constrangidos ao pedir determinados benefícios;

iii) a mesma não é removida quando estes aceitam um emprego removendo

a ‘armadilha do desemprego’. Essa especificidade da renda básica provê aos

Page 110: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

104

pobres maior poder de barganha, visto que os torna mais livres para aceitar

o trabalho que julgarem digno, além de contribuir para sua emancipação.

Outra vantagem dessa proposta é a redução dos custos administrativos

(Peixoto Ramos, 2003:22).

II.3.1 Propostas concretas

Na atualidade, uma política de transferência de renda universal e

incondicional somente existe implantada no Estado do Alasca, nos Estados

Unidos32 tendo em vista as controvérsias que existem com relação a esta

relacionadas com a ‘ética do trabalho’, o aumento do gasto público, entre

outras. Ainda assim as discussões acerca da importância e viabilidade de tal

implantação têm sido bastante acirradas. Todavia, apesar de a União

Européia fortemente recomendar a adoção de políticas de transferência

direta de renda em todos os seus países-membros, nenhum país europeu

acolheu o princípio da renda básica universal incondicional. Já o Brasil

aprovou em lei esse princípio, a ser implementado gradativamente, na

forma de uma política universal, a partir de 2005, o que, para Lavinas, se

constitui em um verdadeiro paradoxo. Conforme afirma:

“O paradoxo consiste justamente no fato de não existir hoje no Brasil

nenhuma política universal que garanta a todos os indivíduos, em

algum momento do ciclo de vida, os mesmos direitos de cidadania,

provendo a todos os mesmos serviços ou equivalente monetário. Já

na União Européia, o paradigma universalista da welfare society

continua prevalecendo, a despeito das pressões por mais focalização

e responsabilização individual. Os programas de transferência direta

de renda no Brasil mesclam propostas contraditórias, nem sempre

complementares. Têm perfil residual, e fazem do combate à pobreza

e da promoção da inclusão, meta de curto prazo, dissociada de uma

32 Segundo Suplicy, o importante a notar acerca dessa experiência é que o fato de o Alasca estar distribuindo, há mais de duas décadas, 6% do seu PIB para todos os seus residentes, tornou este estado aquele de maior igualdade de renda dentre todos dos EUA, o que fez crescer a renda das suas 20% famílias mais pobres, nos últimos dez anos, em 28%, ao passo que a renda das 20% mais ricas cresceu apenas 7%. Em contrapartida, para todos os EUA, o crescimento da renda das famílias 20% mais pobres, nesse mesmo período, foi de 12%, enquanto das famílias 20% mais ricas foi de 26%. Daí o potencial redistributivo de uma política de transferência de renda da natureza proposta (2002).

Page 111: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

105

política de garantia de renda efetiva, de efeito anti-cíclico e

redistributivo, elemento constitutivo, porém nem de longe exclusivo,

de um sistema de proteção social universal” (Lavinas, 2004:1).

De todo modo, não só no Brasil como na Europa existe um forte

apoio a essa idéia, principalmente nos partidos verdes na Alemanha, na

Holanda e, mais recentemente, na Espanha, onde os militantes das

províncias de Castela e De Leon redigiram uma proposta de lei contra a

exclusão social, incorporando uma “renda-cidadania”. Na Irlanda, a

Comissão para a Justiça, da Conferência Episcopal, também difundiu um

documento, Surfing the Income Net, propondo uma renda básica sem

precondições, de caráter universal (Euzéby, 2002).

Na Universidade de Barcelona, onde Daniel Raventós fundou a Red

Renta Básica, desenvolveu-se um movimento importante para instituir um

sistema dessa natureza na Catalunha. Redes semelhantes existem hoje em

dia nos EUA, Dinamarca, Holanda, Bélgica, França, Reino Unido, Irlanda,

Canadá, Austrália, Alemanha, entre outros países.

Um movimento importante, nesse sentido, também se faz presente

atualmente na África do Sul, que inclui a Confederação Sindical e a Igreja

Católica, reivindicando a introdução de uma renda de cidadania no país.

Pretende-se que esta contribua para a eqüidade e promova a estabilidade

da família e da comunidade, possibilitando às pessoas o atendimento de

necessidades vitais e uma maior dignidade. Propõe-se uma cobertura

universal, desde o nascimento até a morte, sem que seja necessária a

comprovação de rendimentos.

No entanto, as restrições para a execução de políticas dessa natureza

são diversas, destacando-se, particularmente, aquelas de cunho moral,

ideológico e financeiro, conforme salientado.

“Um conjunto de artigos escritos em 2002 por acadêmicos acerca da

probabilidade de ser adotada a renda básica ou renda de cidadania

em alguns países europeus revela restrições importantes e de várias

Page 112: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

106

ordens a esse princípio de justiça social, muito embora trate-se, na

sua maioria, de países onde domina a tradição universalista do

Estado do Bem-Estar, e onde os programas means-test focalizados

têm peso marginal [...]. Tampouco a experiência consolidada dos

últimos vinte anos com programas de garantia de renda mínima [...]

parece ser suficiente para garantir a transição quase obrigatória na

direção de uma renda universal incondicional” (Lavinas, 2004:6-7).

Segundo Van Parijs, a Holanda é um exemplo concreto do acima

exposto. Este país já dispõe de sistemas universais de benefícios infantis,

bolsas de estudo e pensões básicas não-contributivas, além de um dos

sistemas de renda mínima - condicionada à verificação da situação

financeira dos beneficiários - mais generosos e abrangentes do mundo; em

2000, o governo aprovou a implantação de um crédito de imposto individual

e restituível para todas as famílias com pelo menos um trabalhador, o qual,

aumentado gradualmente e tornado individualmente reembolsável,

forneceria o último elemento que faltava para o pagamento de uma renda

básica universal. No entanto, isto implicaria o reconhecimento formal por

parte do governo holandês de que existe o direito a um rendimento que não

está vinculado ao trabalho, o que não é bem visto por diversos setores da

sociedade. (Van Parijs, 2000:15).

Vanderbroght (2002) considera pouco provável a adoção da renda

básica na Holanda, apesar de reconhecer que o assunto integra a pauta da

agenda social deste país há mais de vinte e cinco anos. O autor identifica

algumas barreiras à implantação da renda universal incondicional na

Holanda, e também na Bélgica, onde o debate está igualmente avançado,

sendo o maior desses obstáculos aquele de ordem moral, ideológica,

relacionado com “a recusa das sociedades em romper com a ética do

trabalho e dissociar renda e atividade econômica”. Segundo ele “a objeção

moral à renda básica tem origem em uma visão amplamente compartilhada

de justiça, que estabelece que todo indivíduo apto ao trabalho deve

trabalhar para assumir suas necessidades básicas”. Vanderbroght, todavia,

reconhece que os aspectos fiscais e financeiros não são os elementos

centrais na contra-argumentação, já que, do ponto de vista das contas

Page 113: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

107

públicas, haveria como financiar tal direito (Vanderbroght, 2002:30 apud

Lavinas, 2004:7).

Serge Paugam (2002) também descarta a possibilidade de ser

adotada a renda incondicional na França, no contexto atual de recuperação

econômica e prioridade à redução do desemprego - apesar dos quinze anos

de bons resultados do Programa de Renda Mínima de Inserção – RMI

(Revenu Minimum d’Insertion), aprovado por lei nesse país em dezembro de

1988, condicionado ao reconhecimento da existência de uma nova questão

social, à proposta de construção de uma nova cidadania social, à redefinição

do papel do Estado, que deveria estar mais ativo e com maior poder de

coordenação33. Todavia – pondera o autor - o par assistência-inserção, que

fazia sentido no momento da criação do RMI, não o faz mais em um

contexto em que a oferta de empregos está muito limitada e outras

alternativas não relacionadas com a inserção devem ser buscadas. De todo

modo isto explica o porquê do RMI ter sido revisto nos últimos anos para se

adaptar à sociedade “pós-industrial” (Euzéby, 2002).

Nesse contexto, Alain Caillé (1997) tem proposto uma segunda RMI

na França, sem contrato de inserção, automaticamente concedida às

pessoas que não disponham do equivalente a meio salário mínimo e

compatível plenamente com outras fontes de renda, todas elas submetidas

a uma definição sobre a renda total.

Lavinas cita o exemplo da Irlanda, onde o sistema de proteção social

prevê uma renda universal para crianças e idosos acima de 65 anos, além

da garantia de renda para desempregados e outros grupos desfavorecidos.

Segundo a autora, Healey e Reynolds (2002) reproduzem a polarização que

surgiu nesse país “entre a renda básica e o sistema convencional de tributos

e impostos e a política de proteção social, num trade-off entre mais

eqüidade com risco de reduzir o crescimento econômico ou menos eqüidade

33 A inserção, como finalidade, nos termos do artigo 30 da lei que instituiu o RMI na França, apresenta três formas: inserção social (pretende encontrar uma autonomia social); inserção profissional (estágio de formação do desenvolvimento); inserção econômica (atividades de interesse geral no setor público ou associativo), estabelecida por meio de um contrato.

Page 114: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

108

com mais chances de assegurar índices elevados de crescimento

econômico”, em função da qual, em 2001, “a escolha feita privilegiou o

modelo do imposto de renda negativo” (Lavinas, 2004:8). Assim, conclui a

autora

“[...] nos países onde haveria condições para a ampliação do quadro

de direitos derivados de princípios de justiça social, cujo efeito seria

aprimorar os sistemas de proteção social, reduzindo vulnerabilidades

e a insegurança sócio-econômica, graças à garantia de uma renda

universal para todos, parece difícil, pelo menos na presente

conjuntura, construir um consenso na sociedade e criar uma coalizão

político-partidária capaz de instaurar o direito a uma renda básica

universal. A regra continua sendo assegurar programas de garantia

de renda mínima – renda de subsistência na Alemanha, reddito

minimo de inserimento na Itália, rendimento mínimo garantido em

Portugal, entre outros - voltados para a manutenção de um padrão

básico de acesso à economia de mercado por parte daqueles grupos

mais vulneráveis e em situação de risco, que necessitam de uma rede

de proteção suplementar, tais como as famílias ou indivíduos vivendo

persistentemente em situação de pobreza, os desempregados de

longo prazo, etc.” (Lavinas, 2004:8).

Rubén Lo Vuolo e Alberto Barbeito vêm propondo desde os anos 90

para a Argentina uma renda de cidadania para todas as crianças e jovens

até 16 anos, cuja racionalidade está no fato de que, proporcionalmente, o

número de pobres é maior nessa faixa etária da população desse país.

Segundo os autores, à medida que fossem efetivadas as mudanças fiscais

necessárias para o funcionamento desse esquema e se consolidasse sua

expansão, o benefício poderia ser estendido a pessoas maiores de idade,

até chegar-se à sua universalização. Para tanto

“[...] o primero es garantizar una jubilación “ciudadana”, uniforme

para toda la población. No se trata de un pilar asistencial para

aquellos que no tienen acceso a la jubilación y que deben “probar” su

situación de pobreza. Es una garantía universal, preventiva, igual

Page 115: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

109

para todos e independiente de la situación laboral de las personas a

lo largo de su vida y de los niveles de aporte individual” (2002:51).34

Alinhadas com essa estratégia são identificadas propostas discutidas

na Argentina, como o “Projeto de Renda de Cidadania para a

Infância”, que postula a adoção de uma renda incondicional a todos

os menores de 18 anos, garantindo seu financiamento sustentável

com uma reforma tributária profunda (Lo Vuolo e Barbeito, 2002).

Ainda segundo Lo Vuolo, também a Frente Nacional contra a Pobreza,

movimento que agrupa diversas organizações sociais, sindicais e de direitos

humanos na Argentina, impulsionou a apresentação de um projeto de Lei de

Seguro de Emprego e Formação, Salário por Dependente e Pensão por

Viuvez, que tem por base dois eixos: a) a transferência de um subsídio

mensal a todos os desempregados condicionado à sua participação em

trabalhos comunitários; b) a transferência de uma renda por dependente,

independente do status de trabalho dos pais, e de uma pensão similar a

todas as pessoas maiores de idade sem cobertura previdenciária (idem).

Pelo exposto, no que diz respeito à América Latina, além do Brasil

que já aprovou a instituição da renda de cidadania (o que será visto no

próximo capítulo), a Argentina também conta com uma proposta concreta

nesse sentido. Quais seriam, então, os novos conceitos que pretendem

incorporar a partir dessa proposta? Sinteticamente, seriam os seguintes, na

percepção de Lo Vuolo:

1º) o sistema fiscal integrado, em lugar de um sistema fiscal

desintegrado, de forma a explicitar a situação de cada cidadão diante

do fisco. Aqui o novo conceito pretende eliminar a distinção marcante

entre renda, gastos fiscais e, paralelamente, entre contribuintes e

beneficiários das políticas fiscais;

34 Segundo os autores, a construção de um sistema de instituições de proteção social alternativo ao que vigora na atualidade deveria articular, entre outros, os seguintes valores-objetivos:

“i) libertad para que los ciudadanos puedan elegir el uso de los recursos que poseen, especialmente la posibilidad de escoger el mejor empleo para su capacidad de trabajo; ii) igualdad en la distribución de los recursos sociales necesarios que permita el acceso de todos a las condiciones básicas para ejercer esa libertad, sin menoscabo de su autonomía personal y de su integración social” (Lo Vuolo e Barbieto, 2002:50).

Page 116: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

110

2º) a universalização do sistema fiscal de tributos e subsídios, em

lugar de programas de gastos focalizados, de forma a explicitar que

todos os cidadãos são afetados pelo sistema fiscal, embora esse

impacto não seja sempre visível. Aqui o novo conceito pretende

trocar a idéia de crédito fiscal dedutível por crédito fiscal efetivo;

3º) a prevenção da pobreza, em lugar da compensação de seus

efeitos. Assim, os gastos com programas de prevenção da pobreza

são dispêndios cujos efeitos não podem ser avaliados no curto prazo.

As perguntas referidas ao histórico de cada pessoa, quando ou como

se gerou a situação de carência, quanto tempo está desempregado

ou nessa situação de carência, podem ser importantes para outros

fins, mas não para se decidir se devem estar incluídas nessa rede de

prevenção. Caso o objetivo seja prevenir, o que importa é o risco de

cair na situação de pobreza. No esquema dos benefícios sociais,

supõe-se que quanto maior esse risco, maior o benefício; naquele da

renda de cidadania, supõe-se que quanto maior o risco menor a carga

tributária; em um sistema universal, todos deveriam estar

interessados em baixar os riscos de todos, porque assim baixariam os

tributos necessários para cobrir essa situação de carência;

4º) colocar a cidadania no lugar histórico das contribuições, de forma

a explicitar que o problema da seguridade social não se resolve

excluindo os que não fazem parte da lógica do seguro social (porque

não podem pagar as contribuições), pois tal procedimento só faz com

que o problema mude de lugar, permanecendo sem solução;

5º) a situação de necessidade em lugar do estar empregado, de

modo a explicitar que não importa a origem do problema, mas sim o

problema em si. Aqui o novo conceito é de zona de vulnerabilidade e

provável estado de necessidade de tal forma a envolver trabalhadores

e desempregados, ativos e inativos, quem recebe salário e quem não

recebe. Em um sistema em que o trabalho é escasso, instável, volátil

e não padronizado, não deve ser o trabalho, e muito menos o salário,

a garantia da cobertura de necessidades básicas;

Page 117: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

111

6º) as pessoas em vez do chefe de família, de forma a clarificar as

relações de dominação e de dependência na família; as decisões em

matéria de arranjos familiares não devem ser condicionantes da

cobertura social. Aqui o novo conceito é o das pessoas decidindo

livremente sua forma de vida sem que isto condicione seu acesso aos

benefícios. Tal opção ilustra os problemas que emergem quando os

lares unipessoais têm maiores possibilidades de receber benefícios,

por exemplo, por assistência às mães solteiras ou crianças de rua.

Isto pode terminar em um fomento não desejado para essas

situações.

Na atualidade Van Parijs (2003) identifica quatro tipos de políticas de

transferência de renda, adotadas em países de capitalismo avançado e

outros, as quais variam desde a renda mínima até a renda de cidadania:

1. Renda básica no sentido estrito: identificada no Estado do Alasca,

onde desde o início da década de 80 existe uma renda incondicional

transferida para todos, desde o nascimento até a morte, em um nível

igual, sem nenhuma condicionalidade que não seja a residência legal.

A origem de tal dividendo está na decisão de transferir 50% dos

royalties originários da venda do petróleo para a criação de um fundo

de propriedade de todos os residentes no estado: o Fundo

Permanente do Alasca - Alaska Dividend Found - aprovado por meio

de um referendo popular há mais de vinte anos, que faz com que

cada morador desse estado, registrado no mesmo, receba um

dividendo, uma vez por ano, transferido incondicional e

individualmente.

2. Renda mínima condicional: trata-se de um mínimo garantido para

todos que supera o sistema de seguro social já que não está

condicionado à contribuição para o sistema de proteção social. É

condicional no sentido de que o direito a essa renda é determinado

pela situação familiar e aplicado a uma certa faixa de rendimentos.

Tal benefício é vinculado à obrigatoriedade de se aceitar um emprego

ou outra forma de integração social. Van Parijs identifica esse tipo de

Page 118: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

112

política em mais de uma dezena de países da União Européia, os

quais, no entanto, apresentam diferenças importantes quanto à sua

operacionalização e ao seu montante. Portugal é um exemplo35.

3. Renda incondicional: dirige-se a duas faixas de idade. Existem

países europeus, como por exemplo, a Holanda e a Suécia, onde há

uma pensão básica para todas as pessoas com mais de 65 anos,

independente da ocupação anterior, da situação familiar e do

rendimento que recebam no momento. Também na África do Sul,

desde o fim do apartheid, é transferida uma pensão mínima a todas

as mulheres com mais de 60 anos e a todos os homens com mais de

65, que não recebam pensão do setor formal36. Outro grupo de países

estabeleceu uma renda incondicional para todos os jovens e para os

menores de idade sob a forma de um rendimento familiar,

independente da situação social e do rendimento dos pais e/ou

responsáveis.

4. Crédito de imposto restituível: consiste em uma redução uniforme,

individual, do imposto, usufruída por aqueles que não pagam

impostos ou que pagam uma pequena importância. Também

beneficia os que deveriam pagar um imposto inferior, porque esse

mecanismo pode assumir a forma de uma transferência positiva para

as pessoas que trabalham, mas que têm salários muito baixos para

35 Em anos recentes, Portugal tem incrementado seu esforço em termos de políticas sociais de combate à exclusão. O Rendimento Mínimo Garantido (RMG) é a mais conhecida dessas políticas, tendo sido generalizado no país em 1997, visando “o combate à pobreza e exclusão nas suas formas mais degradantes e nas categorias sociais mais vulneráveis” (Martins, 2000:1). O RMG, segundo o autor, tem um carácter dualista: obriga os beneficiários a celebrarem um contrato que pode passar por diferentes áreas. No entanto, crianças que freqüentem obrigatoriamente a escola; beneficiários que se encontrem ativos, idosos; pessoas portadoras de deficiências podem ficar isentos desse contrato. O RMG tem como montante de referência a prestação mínima do regime não contributivo (pensão social) e é voltado para pessoas ou agregados familiares vivendo abaixo do referido montante. Subjacente a essa medida se percebe uma tentativa de aproximação de Portugal com o “modelo social europeu” e a importância crescente alcançada por medidas sociais ativas que visam a autonomia dos indivíduos, diferenciadas do from-welfare-to-workfare na sua tradição americana - baseado em um controle estreito da despesa pública com a proteção social e disciplina dos beneficiários, fundado na conceitualização de underclasses e no aumento de uma cultura de dependência própria dos sistemas de proteção social (Martins, 2000). 36 Este é o sistema de rendimentos mais redistributivo que existe em toda a África Subsaariana, particularmente interessante porque não cria uma relação de dependência como a que existe em outros mecanismos do Estado de Bem-Estar. Nesse caso, mais de 90% dos domicílios de população negra conservam esse direito, mesmo quando os membros mais jovens da família começam a trabalhar. Van Parijs acredita que o mesmo pode ser extrapolado para outros países do hemisfério Sul, com a dificuldade de que criaria um tipo de armadilha contra o trabalho formal. No entanto, segundo o autor, é importante dar passos também na direção de criar rendimentos familiares incondicionais, pensões básicas incondicionais, defendidas em termos de solidariedade, de justiça social, as quais devem ser pensadas de forma que traduzam igualmente um efeito positivo sobre a eficiência da economia e um impacto significativo sobre o desenvolvimento (Van Parijs, 2002:18).

Page 119: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

113

poder aproveitar um crédito de imposto no sentido tradicional. Este é

o tipo de renda que se concede atualmente em vários países, como o

Reino Unido, a França, a Bélgica e, de maneira mais sistemática, na

Holanda, onde existem créditos de impostos restituíveis para todos os

trabalhadores.

Van Parijs observa que o tipo de renda condicionada à verificação da

situação financeira e da estrutura familiar dos beneficiários e a um teste de

disposição para o trabalho (tipo 2, na sua classificação), aplicado

atualmente sob diversas variantes na maioria dos países da União Européia

e também na América Latina, é um passo fundamental na direção certa. No

entanto, pondera:

“[...] quaisquer que sejam as bem-intencionadas condições de

‘inserção’ ou ‘integração’, elas não podem evitar a criação de

armadilhas cuja profundidade aumenta quanto maior a generosidade

do sistema e cuja ameaça aumenta à medida que a chamada

‘globalização’ intensifica as desigualdades na rentabilidade de

mercado. Em países onde sistemas de renda mínima garantida estão

sendo aplicados há algum tempo, essas armadilhas e a cultura da

dependência que se diz estar associada a elas ameaçam desencadear

um retrocesso político e o desmantelamento daquilo que foi

alcançado. Mas elas também têm provocado movimentos

progressivos na forma de propostas de renda básica e afins” (Van

Parijs, 2000:17).

Van Parijs acredita, ainda, que sem nem mesmo chegar a uma renda

básica parcial, as três propostas por ele apresentadas a seguir são opções

aceitáveis nesse sentido, como um próximo passo mais promissor do que os

anteriores - mais ou menos plausíveis, dependendo das instituições de cada

país, e em especial do seu contexto tributário e de seguridade social -,

quais sejam: i) um crédito fiscal individual, o qual eventualmente poderia

ser incorporado a uma renda básica de valor baixo, mas estritamente

individual, universal e incondicional; ii) um imposto de renda negativo

regressivo com base na estrutura familiar, fazendo uso da adequação da

Page 120: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

114

renda mínima garantida atual à estrutura familiar e, em vez de retirar

100% do benefício à medida que os rendimentos aumentam, retirá-lo em

um percentual um pouco mais baixo, na ordem de 70% ou até mesmo

50%, de modo a criar incentivos materiais para o trabalho para qualquer

família, por mais baixa que seja sua rentabilidade; iii) uma renda de

participação modesta, tomando como base sistemas existentes de licença

maternidade/paternidade, para estudo ou tratamento, e integrá-los,

juntamente com créditos fiscais para pessoas que estão empregadas, em

uma renda básica universal sujeita a uma condição muito geral de

contribuição social, como a “renda de participação” - um subsídio não

sujeito à verificação da situação financeira dos beneficiários, pago a toda

pessoa que participe ativamente de uma atividade econômica, remunerada

ou não. Comparada às abordagens da reforma tributária e da reforma da

assistência social, esta terceira abordagem, para Van Parijs, seria

particularmente adequada se algum financiamento específico fosse

reservado para a mesma (Van Parijs, 2000).

De todo modo, com relação à renda de cidadania, sua implementação

deve se dar a partir da construção de um consenso social igualitário e

socialmente eficiente que busque equilibrar a capacidade das pessoas de se

relacionar nas sociedades modernas e recompor, a partir daí, as

fragmentações sociais. A segurança de uma renda universal e garantida por

fora da relação de trabalho é ainda a chave para a construção de tal

consenso, visando estabelecer a harmonia entre eficiência econômica e

eqüidade social.

No plano da eficiência redistributiva, essa renda tornaria o sistema

social mais simples, menos custoso para gerir, menos estigmatizante para

as pessoas que recebem auxílio e mais eficaz para lutar contra a pobreza. A

fórmula seria, por outro lado, mais adaptada à instabilidade familiar, já que

se trataria de um direito próprio, ligado à pessoa, e não ao lar fiscal, como

nos casos de imposto negativo ou do RMI. Quanto ao mercado de trabalho,

uma vez que essa renda oferecesse aos indivíduos a possibilidade de não

trabalhar, de trabalhar menos ou de se retirar temporária ou

Page 121: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

115

permanentemente de seus empregos, essa fórmula reduziria a oferta de

mão-de-obra e tornaria as atividades remuneradas intermitentes mais

sedutoras. O Estado poderia igualmente utilizar esse abono como

instrumento de compensação salarial no estabelecimento do sistema de

redução da jornada de trabalho. Também comportamentos e valores seriam

alterados, deixando o emprego de ser o único fator de integração. Estaria

aberto assim o caminho para uma sociedade de atividade plena ou de

multiatividade (Euzéby, 2002).

Quanto às principais críticas e interrogações feitas à renda de

cidadania, segundo Euzéby, estas dizem respeito ao nível de renda a ser

oferecido. Se for baixo, com a finalidade de limitar o custo financeiro, os

efeitos positivos esperados podem não ser significativos. Neste caso, as

pessoas pouco ou não-qualificadas seriam obrigadas a aceitar empregos

desvalorizados ou a contentar-se com um pequeno abono, daí os riscos de

dualização da sociedade. Tais críticas se referem ainda ao caráter injusto da

ausência de precondições para se ter acesso ao benefício. No entanto,

pondera o autor, se a progressividade do imposto de renda fosse realmente

aplicada, poderia ter como efeito retomar dos privilegiados uma grande

parte ou a totalidade de seu abono. Por isso, para Euzéby, o verdadeiro

problema é exatamente o da reformulação desse imposto e seu vínculo com

outras receitas fiscais (Euzéby, 2002).

Page 122: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

116

III RENDA MÍNIMA E RENDA DE CIDADANIA NO BRASIL

III.1 A questão social na América Latina

A transposição de teorias explicativas da conformação de Welfare

States em países da Europa Ocidental para países latino-americanos deve

ser feita levando em conta as diferenças no contexto histórico e na

velocidade de institucionalização das políticas de bem-estar entre estes (os

países da Europa Ocidental foram bem mais precoces na implementação de

tais políticas), além de suas peculiaridades sociais, econômicas, políticas e

culturais, já que Estados de Bem-Estar Social se baseiam em um espaço

constituído pelo nível de carência das populações envolvidas e pela

respectiva estrutura de representação política e capacidade de organização,

entre outros fatores (Coelho de Souza, 1999).

Nesse sentido, segundo Coelho de Souza (1999:18-19), para explicar

o surgimento e desenvolvimento do Welfare State em países da América

Latina e outros é necessário redefinir conceitos, como o de industrialização;

incluir novos elementos explicativos, como o papel do setor externo; e

realizar adaptações nas teorias supracitadas de modo que estas possam

lidar com a realidade de sociedades duais (segmentadas em setores

modernos e tradicionais) e com as diferenças na cultura política, no nível de

influência das organizações trabalhistas e na capacidade de governo da

burocracia. Segundo ele, em países de capitalismo periférico

“[...] devido à dualidade no desenvolvimento, um welfare state

limitado à elite, em vez de generalizar benefícios, drena recursos

potenciais para a redistribuição e aumenta a desigualdade e a

segmentação da sociedade, trazendo uma série de implicações

políticas desfavoráveis, dentre elas uma resistência à constituição de

um ‘compromisso’ entre capital e trabalho que está na base do

welfare state de muitos países desenvolvidos” (Coelho de Souza,

1999:15-16).

Page 123: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

117

Coelho de Souza (1999) chama a atenção para um último obstáculo à

transposição imediata das teorias explicativas da origem e desenvolvimento

do Estado de Bem-Estar Social para países latino-americanos: praticamente

nenhuma destas teorias se refere explicitamente às influências externas na

construção do Estado, apoiando-se na idéia de um Estado-Nação

independente o que, no caso dos países “periféricos” (usando sua

terminologia), é inviável já que o setor externo ali, muitas vezes, é uma

peça fundamental para a compreensão do desenvolvimento de seus

incipientes Welfare States.

Nesse sentido, diferentemente do caso europeu, as políticas sociais

na América Latina caracterizam-se: i) pelo reconhecimento de direitos

sociais em função de lutas protagonizadas por movimentos sociais e não

sindicais; ii) pela diluição de tais direitos em lutas locais dando caráter

difuso à sua efetivação para todos; iii) pela fragilidade da permanência na

agenda pública da questão dos direitos sociais, já que estes são

dependentes da “sensibilidade política” do grupo no governo e não

resultado de conquistas reclamáveis nos tribunais, como direitos não

efetivados pelo Estado (Sposati, 2002:35).

Na realidade, os países latino-americanos não vivenciaram o pacto do

Welfare State (entre capital e trabalho) próprio dos países de capitalismo

avançado, inspirado no keynesianismo (de tipo beveridgiano ou social-

democrata) que, em geral, viabilizou a universalização e, mais do que isto,

a internalização de direitos de cidadania. Vale ressaltar, todavia, que os

países latino-americanos apresentam diferenças significativas entre si no

que se refere aos seus modelos de Estados de Bem-Estar Social. No

entanto, estes podem ser caracterizados como países de “regulação social

tardia”37, apresentando três grandes determinantes, a saber:

37 A autora caracteriza os países de regulação social tardia como aqueles onde os direitos sociais foram legalmente reconhecidos no último quartil do século XX, cujo reconhecimento legal não significa que estejam sendo efetivados, isto é, podem continuar a ser direitos de papel que não passam nem pelas institucionalidades, nem pelos orçamentos públicos (Sposati, 2002:34).

Page 124: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

118

“a) os condicionamentos do processo histórico-político que fundam o

modelo de contrato social e o alcance do reconhecimento da

cidadania e da garantia de mínimos sociais;

b) a forma de combinação da responsabilidade pública e social entre

Estado-Sociedade-Mercado e o modo de gestão dos múltiplos atores,

a hegemonia democrática no processo de gestão do país;

c) suas relações de submissão aos agentes financiadores externos e

de externalidade com relação aos movimentos e lutas mundiais, no

cumprimento das agendas internacionais” (Sposati, 2002:37-38).

Sabe-se, contudo, que os sistemas de proteção social na América

Latina jamais se constituíram verdadeiramente em Welfare States nos

moldes europeus. Esta é a interpretação de Draibe (1997), que reconhece

que a matriz desses Estados sempre funcionou de modo imperfeito e

deformado em países latino-americanos (quase que permanentemente em

crise), o que tem exigido a constante reestruturação dos mesmos. Na

realidade, tais países conformaram Welfare States corporativistas, do tipo

bismarckiano, voltados para segmentos formais da economia,

freqüentemente, excluindo os mais pobres da população, como resultado

dos vínculos instáveis e precários destes com o mercado de trabalho.

Nesse sentido, como lembra Lavinas, a trajetória latino-americana é

distinta da européia, pois o Estado de Bem-Estar Social na América Latina

nunca foi concluído e “amputado da sua vocação universalista, deixou nas

mãos dos pobres por muito tempo o enfrentamento da pobreza per se. [...]

Também na América Latina distintos modelos de Welfare inacabados

convivem, e muitas vezes tal convivência se dá dentro das fronteiras de um

mesmo país” (Lavinas, 2003:2; ver, também, Pochmann, 2002:74).

Por esse motivo, Lavinas afirma que Ziccardi (2001) tem razão ao

afirmar que na América Latina a exclusão social não é um fenômeno das

últimas décadas, mas uma situação imposta historicamente à grande maioria

da população, que só fez ampliar-se e agravar-se nos anos 90 com a primazia

Page 125: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

119

das políticas de corte neoliberal. Nesse contexto, a dimensão compensatória

da proteção social ganhou autonomia, desarticulada do sistema de seguridade

social como um todo, e limitada às ações particularistas.

“[...] na crise dos 90, reconhece Mesa-Lago [2000], as políticas

assistenciais tradicionais, já limitadas a poucos países da região,

dispondo de recursos ínfimos [em termos de percentual do PIB,

sempre inferior a 1%], são ainda mais penalizadas e passam a se

restringir à implementação de uma rede mínima de proteção social

cujo objetivo é assegurar um patamar mínimo de reprodução social

que atenue os efeitos devastadores das políticas de ajuste estrutural.

Seguindo a filosofia dos programas de safety nets implementados em

todo o mundo em desenvolvimento pelo Banco Mundial, com o apoio

de outras instituições internacionais, a grande maioria dos países do

continente se alinha a esse tipo de intervenção focalizada e de

caráter temporário, cujos benefícios são condicionados à

comprovação de renda” (Lavinas, 2004:67).

Constata-se, assim, que enquanto nos países de capitalismo

avançado o conceito de exclusão social surge em decorrência da crise do

Estado de Bem-Estar Social (com o desemprego de longo prazo, as formas

precárias de inserção, a perda de vínculos laborais e sociais, a elevação das

taxas de imigração) que implica o crescimento da categoria dos “novos

pobres”; na América Latina, o padrão excludente é constitutivo do modelo

histórico de acumulação capitalista, estando evidente que pobreza e

exclusão se constituem como categorias intimamente associadas e

recorrentemente presentes, embora distintas. Nesse contexto, exclusão

passa a exprimir não o estar fora, mas o não estar legítima e plenamente

integrado. A exclusão é o oposto da integração social, ela mesma dada por

dois eixos: inserção no mundo do trabalho e inserção nas redes de

sociabilidade e reciprocidade.

Em face do quadro exposto, e na medida em que prevalecem as

tendências excludentes dos sistemas de proteção social latino-americanos,

percebe-se claramente sua fragilidade, o qual apresenta uma crise crônica

Page 126: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

120

com duas dimensões fundamentais: uma pública, que se refere ao

desmantelamento do Estado, de sua – já precária - estrutura de bens e

serviços sociais; e outra privada, que se refere à anomia social, aos efeitos

psicológicos da mesma sobre o conjunto da população, sobretudo daquele

segmento mais pobre.

De fato, no início dos anos 90, com o advento do neoliberalismo e das

políticas de ajuste estrutural, o sistema de proteção social na maioria dos

países da região sofreu transformações significativas devido, sobretudo, às

mudanças no Estado e à reestruturação da economia.

“[…] el contraste de las llamadas políticas sociales de hoy con

respecto a las del pasado, no podía ser más marcado: tenemos hoy

privatización donde antes hubo intervención y regulación estatal;

focalización en lugar de universalidad; compensación en vez de

promoción; individualismo y particularismo clientelista como sustituto

del ejercicio colectivo de derechos; combate a la pobreza extrema en

lugar de desarrollo social” (Vilas, 1995 apud Lacabana & Maingnon,

s/d).

Nesse contexto, a maioria dos governos latino-americanos passou a

privilegiar a adoção de políticas sociais compensatórias, restritas a um

elenco de programas e ações – geralmente sem vínculo entre si - orientado

para mitigar e/ou compensar o impacto das mudanças que ocorreram no

âmbito da economia e da política (do Estado), que provocaram o

acirramento de situações de pobreza e desigualdade.38

Tais políticas, por sua vez, têm que ser eficientes e eficazes. Para

tanto, devem focalizar determinados segmentos populacionais no sentido de

racionalizar o uso de recursos escassos. Assim, nos países latino-

38 Segundo Lavinas (2003), seguindo a filosofia dos programas de safety nets [bolsas] implementados em todo o mundo em desenvolvimento, atendendo recomendações de agências de cooperação internacional, como o Banco Mundial e outras, Argentina, México, Bolívia, Chile, Costa Rica, Uruguai, Colombia, El Salvador, Peru se alinham a esse tipo de intervenção focalizada e de caráter temporário, cujos benefícios são condicionados à renda. Embora tal intervenção tenha apresentado resultados diversos com relação aos países considerados, estas redes mínimas de proteção social, como a autora prefere chamar, “seguem apresentando problemas de focalização e avaliação, não são sustentáveis e, sobretudo, não tiveram o impacto esperado na reforma da seguridade social, notadamente na sua dimensão assistencial” (2003:18).

Page 127: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

121

americanos, em geral, têm se difundido uma prática que simplifica o

problema dos objetivos e da avaliação das políticas públicas sociais na

seguinte pergunta: como se concentram os dispêndios destas naqueles

grupos/pessoas considerados os mais pobres dentre os pobres?

A concentração do dispêndio social em grupos focalizados é

percebida, assim, como um caminho para: i) ajudar a resolver a crise fiscal

desses países atribuída, em grande parte, ao gasto desproporcional

efetuado em nome das políticas sociais; ii) segmentar o mercado entre o

que se considera "bens públicos" (supostamente básicos, voltados aos

pobres) e "bens privados" (supostamente mais sofisticados, para aqueles

que têm maior poder aquisitivo); iii) privatizar o segmento rentável dos

bens privados com o argumento da necessidade de se flexibilizar o sistema

de políticas sociais, a fim de adequá-lo ao poder de compra de cada

beneficiário; iv) dar, assim, um conteúdo mais eqüitativo ao gasto social,

liberando (ou mantendo liberada) a política tributária da carga

redistributiva.

“La concepción de justicia social que privaba en el diseño de la

política social en la mayoría de los países latinoamericanos antes de

la crisis de los ochenta, se encontraba unida a la visión en la que el

Estado se auto-reconocía como el responsable de la protección social,

función que estaba sancionada en las diferentes Constituciones

Nacionales, y los gobiernos tenían un papel tutelar en favor de los

sectores sociales más vulnerables. El Estado funcionaba como

compensador de las desigualdades que produce el mercado.

Actualmente, en las políticas sociales se privilegia la concepción de

justicia social que nace con el cambio del modelo económico y con las

transformaciones habidas en las funciones del Estado, es decir, que

los llamados criterios de equidad que le corresponde impartir al

Estado están asociados con la responsabilidad de proporcionar a los

individuos las capacidades básicas para que puedan competir en el

mercado. Las diferentes acciones desarrolladas para compensar las

desigualdades que producen los procesos de ajuste o el mercado, y

los diferentes criterios de equidad puestos en práctica, no son de la

Page 128: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

122

exclusiva responsabilidad del Estado sino que éstos también son

responsabilidad de las acciones que tienden a igualar las capacidades

básicas para la competencia. El mejoramiento de la calidad de vida

sería, por tanto, resultado de la productividad y creatividad de cada

individuo” (Lacabana & Maingnon, s/d:2).

Conforme a percepção de Lo Vuolo et alii (1999), a política

compensatória adotada em países latino-americanos pode ser denominada

de “assistencialista focalizada”, que diz respeito a novas modalidades de

proteção social especificadas segundo o tipo e o grau de vulnerabilidade do

público-alvo, em oposição a princípios universalistas. Na percepção destes

autores, “todos esses fatores contribuem para consolidar um modo de

regulação estática da pobreza, que se preocupa mais em preservar a

situação da população beneficiada, do que propriamente em tirar os pobres

dessa situação” (Lo Vuolo et alii., 1999 apud Lavinas, 2003:18)39.

Igualmente, no Brasil, têm sido adotadas políticas sociais

compensatórias e focalizadas, atendendo, sobretudo, a determinações de

organismos internacionais nesse sentido40. Como corolário, tem-se uma

universalização que, na prática, é excludente. Em outras palavras, a política

social brasileira além de ser insuficiente para cobrir as necessidades da

população de mais baixa renda, quantitativa e qualitativamente, exclui

segmentos significativos do acesso à mesma pelo seu caráter seletivo.

Voltando ao caso da América Latina, percebe-se que não existem

propostas consensuais entre os diferentes países da região visando à

superação da pobreza, no contexto de reforma dos seus sistemas de proteção

social. No entanto, conforme ressalta Lavinas, programas de transferências

monetárias condicionados – focalizados em populações de baixa renda – têm

sido adotados em muitos dos países da região como alternativa de solução

39 Ver a este respeito CEPIA (1999) Cadernos Fórum Civil Ano 1, n.1., Políticas Compensatórias no Mercosul. Forum da Sociedade Civil nas Américas. 40 Em 2004, na nota oficial ao governo brasileiro enviada pelo Banco Mundial, confirmando financiar parte dos recursos do Programa Bolsa Família, o BIRD chamou a atenção para a importância da focalização dos programas sociais do Estado. Daí, segundo o Banco, a importância de identificar corretamente os alvos das políticas sociais e evitar falhas e duplicidade de informações.

Page 129: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

123

para essa problemática (de combater e não de superar a pobreza). Segundo a

autora, “sua cobertura mantém-se, todavia, muito aquém do universo

potencial de beneficiados, aguçando as iniqüidades entre as camadas

socialmente desfavorecidas e promovendo práticas excludentes do ponto de

vista da institucionalização das políticas públicas” (Lavinas, 2003:20).

“Ficou patente, entretanto, que, apesar da relativa simetria dos

determinantes da pobreza [...], persiste um diferencial muito grande entre

as experiências dos países-membros da União Européia e os do Cone Sul.

Esse diferencial é dado pela dimensão redistributiva do sistema de

proteção social europeu, pelo seu escopo, sua abrangência e cobertura. Na

União Européia, a assistência é um direito assegurado a todo indivíduo em

situação de risco social ou pobreza. A assistência é um direito universal.

As falhas e inadequações dos regimes de proteção social não colocam em

questão a matriz de solidariedade e coesão social, mas impõem aumentar

a eficácia do sistema. Na América Latina, pelo contrário, o direito à

proteção social ainda não foi efetivamente conquistado. Ser assistido é

algo que ocorre assistematicamente, implica pertencimento a um certo

tipo de clientela ou público-alvo e carece de institucionalidade. A

magnitude e a intensidade da pobreza parecem condenar a assistência

como direito universal” (Lavinas, 2003:35).

A tabela apresentada a seguir é ilustrativa das considerações

supracitadas.

Page 130: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

124

Principais Programas de Transferências Monetárias (tipo bolsa) em países da América Latina País Nome do

Programa Início Objetivos Componentes

Argentina Chefes-de-Família Desempregados

2002 Aliviar os impactos do desemprego

Transferências monetárias

Brasil Bolsa Família 2003 Combater a fome, a pobreza e as desigualdades

Transferências monetárias. Programas complementares.

Chile Programa Ponte 2002 Oferecer atendimento psico-social integral às famílias em situação de extrema pobreza no país.

Atendimento psico-social. Transferências monetárias.

Colômbia Famílias em ação 2000 Aumentar o atendimento em saúde de crianças menores de 7 anos. Reduzir a evasão escolar de alunos de educação primária e secundária.

Saúde e educação: subsídio em espécie.

Equador Programa de Proteção Social

2000 Reduzir a pobreza; favorecer o acesso da população mais necessitada a serviços de educação e saúde.

Bônus de desenvolvimento humano: subsídio monetário direto.

Honduras Projeto PRAF BID fase II

1999 Fortalecer o capital humano das comunidades mais pobres do país, capacitando às mães em melhores práticas alimentares e de higiene e assegurando uma transferência monetária.

Educação e saúde: transferências monetárias, materiais de capacitação.

Jamaica Programa de Avanços através da Saúde e Educação (PATH)

2002 Garantir que os grupos pobres e vulneráveis da sociedade sejam assistidos pelo Estado.

Nutrição: almoços gratuitos a todos os estudantes em escolas primárias e secundárias. Bônus em educação e saúde.

México Programa Oportunidades de Desenvolvimento Humano

1997 Apoiar as famílias que vivem em condição de pobreza extrema com a finalidade de potencializar as capacidades de seus membros e ampliar suas alternativas para alcançar maiores níveis de bem-estar.

Educação e saúde: subsídio e material escolar. Nutrição: transferências monetárias.

Peru Transferências Condicionais de Renda

2005 (previsto)

Potencializar os impactos dos atuais recursos investidos na luta contra a pobreza, permitindo o desenvolvimento de capital humano

Educação, saúde e nutrição: subsídio e capacitação.

República Dominicana

Cartão de Assistência Escolar (CAE)

2001 Reduzir a evasão escolar, vincular os padres na educação dos filhos e garantir o acesso e permanência das crianças na escola.

Educação: subsídio em espécie, capacitação.

Fonte: Banco Mundial, 2004. Disponível em: www.worldbank.org/sp/safetynets/training-events

Page 131: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

125

III. 2 A dissociação entre pobreza e desigualdade – A relação

entre pobreza e exclusão

A compreensão de que a cidadania não pode conviver com a pobreza e

a exclusão e de que para isso é indispensável retomar a solidariedade como

princípio fundamental de coesão social tem permeado o debate político

contemporâneo nas democracias ocidentais, premidas pelo aumento do

desemprego, pela precariedade do mercado e pela inadequação dos sistemas

de proteção social para garantir uma cobertura equânime e de qualidade a

todos os cidadãos(ãs). Nelas, o combate à exclusão ganha centralidade, pois,

apesar do aumento do gasto social, esta persiste e se alastra.

Quanto à sociedade brasileira, no final dos anos 80, passa por uma

transição em direção à redemocratização política, a qual se fez notar,

inclusive, na produção acadêmica que trata dos fenômenos da pobreza e da

desigualdade. Nesse contexto, diversos autores dão destaque em sua análise o

fato de que as dimensões alcançadas por ambos os fenômenos são, antes de

tudo, incompatíveis com a ordem democrática e com os princípios de justiça

social. Em contrapartida, e de forma paradoxal, nessa mesma época, em

sintonia com o receituário neoliberal, a representação da pobreza sofre uma

dupla redução, passando a ser associada predominantemente à pobreza

absoluta e à insuficiência de renda, o que resultou na focalização em

“clientelas específicas”.

Diante desse quadro, enfoques operativos com relação à temática

ganham importância no país, visando construir indicadores para mensurar a

pobreza, definindo esta tão-somente como um estado de insuficiência

permanente de renda resultante da não satisfação de necessidades básicas,

cuja solução está na utilização eficiente de recursos por meio de uma

intervenção emergencial seletiva em favor da clientela mais afetada. Nesse

contexto, a política contra a pobreza está voltada para atacar seus sintomas

e não suas causas, o que explica a omissão que se faz com relação à

questão da desigualdade social. Mais recentemente, no entanto, essa

questão é retomada no Brasil, partindo do argumento que a desigualdade

consiste no determinante principal da pobreza.

Page 132: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

126

De fato, um dos aspectos mais marcantes da sociedade brasileira é a

combinação de elevados níveis de pobreza com uma altíssima desigualdade

social. Estudiosos como Barros et alii têm associado a pobreza à

desigualdade, identificando a má distribuição de renda, que responde

sozinha por quase dois terços dos 53 milhões de pobres do país, como a

principal causa desta, ressaltando que os 1% mais ricos da população

brasileira concentram exatamente a mesma renda que é dividida entre os

50% mais pobres (Barros et alii, 2000:28)41.

De todo modo, é interessante observar que a renda per capita não

permite colocar o país entre os mais pobres do mundo. Ao contrário, o Brasil

está no terço mais rico dentre estes. Ou seja, dois terços dos países do mundo

apresentam renda per capita inferior à brasileira, que é seis vezes maior do

que o montante requerido para a satisfação das necessidades nutricionais de

uma pessoa, e três vezes maior do que o requerido para a satisfação de todas

as suas necessidades básicas. A despeito disso, 34% da população brasileira

vive em situação de pobreza e cerca de 15%, em situação de extrema

pobreza. No entanto, enquanto nos países com renda per capita similar à

brasileira apenas 10% da população está abaixo da linha de pobreza, no Brasil

o percentual sobe para 30%. A diferença se deve à desigualdade, e nesse

quesito o país lidera (Barros et alii, 2002)42.

De acordo com Urani (2002), se o país crescesse a uma taxa anual de

3%, seriam necessários dezenove anos para reduzir a pobreza à metade. “As

políticas de crescimento são concentradoras de renda” no Brasil, reforça Neri.

Segundo ele, “um crescimento acumulado de 21% reduziria a pobreza em

18%. Já uma queda de apenas 8,5% na desigualdade, tornaria a pobreza 28%

menor, o que fornece uma pista de que ao adotar políticas focalizadas, não-

redistributivas, [o país] está na direção errada” (Néri, 2004: 1).43

41 Segundo Lavinas, “Para o Banco Mundial, a pobreza não seria um problema redistributivo – cuja solução passa pelo sucesso das políticas macro-econômicas –, mas principalmente uma utilização ineficiente dos recursos produtivos. Tais ‘visões’ do problema levam a uma decomposição da categoria dos pobres ou excluídos, por grupos, e conseqüentemente, à sua hierarquização, a pobreza deixando de ser um estado de carência para se tornar um estado agudo de carência, o que implica uma intervenção emergencial seletiva, em favor dos que requerem urgência” (2003). 42 O excesso de desigualdade de renda brasileiro tem, efetivamente, conseqüências muito graves sobre o seu grau de pobreza. Por exemplo, se o Brasil distribuísse a renda gerada no país de forma similar como faz o Uruguai, a pobreza no país seria apenas 1/3 da que é hoje. 43 Ver “Bolsa-Família seria melhor”. In: JORNAL DO BRASIL, Caderno O País, Rio de Janeiro 23/04/2004

Page 133: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

127

Na realidade, o que faz a diferença no Brasil está no fato de este ser um

país atravessado por hierarquias generalizadas que se construíram

historicamente contrárias a ideais igualitários. Assim, nem mesmo chegou a

garantir, no momento devido, o princípio básico da equivalência jurídica que a

noção da igualdade supõe, acabando por conformar um verdadeiro apartheid

no seu tecido social, traduzido no enorme hiato que separa ricos e pobres no

bojo do mesmo. A denúncia dessa situação e a via igualitarista para a

superação da pobreza no país já haviam sido destacadas no início da década

de 80 por Celso Furtado, quando afirmou “o Brasil não é a rigor um país

pobre, vale dizer, impossibilitado de solucionar esse tipo de problema pelos

seus próprios meios. [...] Para eliminar o problema da miséria no Brasil,

bastaria reduzir a participação na renda nacional dos 10% mais ricos da

população a um nível similar ao que se observa em certos países que têm uma

renda per capita comparável à nossa” (1981:61)44.

Existem alguns consensos no país a respeito do problema da pobreza

e da desigualdade social, dentre estes, ressalta-se: i) o diagnóstico de que

a pobreza está associada à precariedade e à baixa qualidade dos empregos

disponíveis para a população mais pobre e menos escolarizada; ii) a

convicção de que a desigualdade não desaparecerá por si mesma com o

crescimento econômico, requerendo políticas públicas específicas para a sua

redução; iii) o entendimento de que os gastos sociais no Brasil são

regressivos e pouco eficientes, devendo ser possível fazer mais em termos

de redução da desigualdade com os recursos existentes; iv) a certeza de

que a superação da pobreza e a redução da desigualdade não devem ser

vistas como custos que colocam limites ao desenvolvimento da economia,

mas, ao contrário, como investimentos importantes para que a economia

atinja um novo patamar.

Sabe-se, também, que além de raça, a pobreza no Brasil tem faixa

etária, gênero e escolaridade bastante definidos. De fato, de acordo com

relatório elaborado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à

Fome (2004), com base nas informações das mais de 8,2 milhões de 44 Mais do que identificar que o país dispõe dos recursos necessários para erradicar completamente a pobreza por meio da redução das desigualdades, Furtado propõe uma regra distributiva que consiste em realizar transferências monetárias dos segmentos populacionais mais ricos aos mais pobres.

Page 134: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

128

famílias inscritas no Cadastro Único dos programas sociais, até fevereiro de

2004, de cada quatro pobres, um tem entre 7 e 14 anos; mais da metade

(52%) são mulheres; 56% são analfabetos ou sequer completaram a quarta

série do ensino fundamental45.

Os dados supracitados corroboram com aqueles do Banco Mundial

(2004), que revelam que a incidência de pobreza entre os jovens aumentou

no país entre de 1998 a 2001. Nesse mesmo período, a relação entre a

pobreza e a educação apresentou uma pequena redução (a pobreza

diminuiu entre pessoas com baixa ou nenhuma escolaridade, mas aumentou

em todos os outros grupos escolarizados), e o vínculo entre desemprego e

pobreza tornou-se mais forte. Além disso, conforme dados do Banco

Mundial, as taxas de pobreza continuaram a ser especialmente altas entre

os indivíduos com baixo nível educacional e entre as populações indígena e

negra.

Considerando o exposto, os problemas da pobreza e da desigualdade

não podem ser dissociados. E isto é válido não só para o Brasil, mas

também para os países com características de desenvolvimento econômico

similares à brasileira.

“A igualdade é uma relação que somente adquire sentido se associada a

um princípio de justiça. Considerando esse conceito, observa-se no

Brasil a implementação de políticas sem a explicação prévia do princípio

que as orienta, do critério de justiça adotado. Embora obscurecido, esse

critério poderia ser caracterizado como uma ‘igualdade de oportunidades

anacrônicas’. Processa-se uma redução da regra de justiça, por

intermédio de políticas sociais que tendem a se configurar e legitimar

como políticas seletivas, focalizadas em populações-alvo [...]” (Cohn,

2000, 2002).

45 Os dados deste relatório revelam, ainda, que 54% dos chefes das famílias cadastradas não trabalham; apenas 4% têm carteira assinada; 65% têm rendimento familiar per capita de até meio salário mínimo. Dos domicílios listados, 5% têm acesso à energia elétrica “sem medição por relógio”. Outros 7% não têm eletricidade e usam velas ou lampião como fonte de iluminação. Dos pobres identificados pelo governo, 63% têm água encanada. Metade não dispõe de saneamento básico adequado (rede coletora ou fossa séptica).

Page 135: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

129

E a se sobrepor a políticas estruturadas a partir dos princípios dos

direitos sociais universais e igualitários. Constrói-se uma noção de “direitos

sociais básicos da cidadania que, na verdade, a nada mais remete senão a

um assistencialismo disfarçado. Sob a égide da justiça e dos direitos,

políticas focalizadas e compensatórias traduzem as regras de aplicação dos

direitos sociais básicos da cidadania” (Cohn, 2000).

De acordo com a autora, a realidade brasileira retrata dessa forma a

urgência de se efetuar mudanças no desenho das políticas sociais de modo

que estas ajudem na redefinição da justiça social e dos fundamentos dos

direitos, os quais somente serão alcançados se as forças políticas do país

forem capazes de romper com a hegemonia dos discursos contrários das

elites e passarem a disseminar uma nova compreensão dos direitos da

cidadania, capaz de impulsionar e defender grupos organizados e

movimentos sociais para conquistas nesse sentido.

Seguindo essa linha de raciocínio, Grzybowski (1998) destaca a

limitada democracia como a principal causa da persistente desigualdade,

pobreza e exclusão social na América Latina e também no Brasil. Segundo o

autor, é nos avanços ocorridos na democratização do país que residem as

reais possibilidades de superação da insustentabilidade dos atuais modelos

de desenvolvimento.

Dessa forma, é no fortalecimento do político e do espaço público –

arena de explicitação dos conflitos em torno dos direitos – que se colocam

as possibilidades de construção de uma sociedade mais justa e igualitária, o

que faz com que a solução da problemática social no bojo do mesmo

extrapole o seu campo de atuação propriamente dito e também o da

economia, chegando ao campo do político – esfera privilegiada das

decisões.

Nesse mesmo sentido, Francisco de Oliveira (2001) chama a atenção

de que é a falta de cidadania, de empoderamento das classes populares

para fazer valer seus direitos, muito mais do que o mercado, que gera a

Page 136: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

130

exclusão social no país, percebida como uma manifestação da injustiça

(distributiva) que se revela quando pessoas são sistematicamente excluídas

dos serviços, benesses e garantias oferecidos ou assegurados pelo Estado,

pensados, em geral, como direitos de cidadania. Por esse motivo, o autor

acredita que para intervir socialmente é preciso primeiro conhecer melhor

os processos que levam à exclusão e o conteúdo particular das diversas

exclusões existentes, inferindo, assim, que a pobreza associada à

desigualdade implica a exclusão.

Amartya Sen (2000), igualmente, está preocupado em saber se o

conceito de exclusão social ajuda na identificação da natureza e das causas

da pobreza, se contribui para a elaboração de políticas destinadas a superá-

la. Segundo ele, está claro que a idéia de exclusão social tem conexões

conceituais com as noções de pobreza relacionada com privação. O autor

resgata idéias do economista Adam Smith, ressaltando que o foco na

categoria da exclusão envolve “ser capaz de aparecer em público sem sentir

vergonha”, o que já dá uma idéia da dimensão que o conceito assume para

o autor, que vai muito além da satisfação de necessidades básicas e/ou

primárias por parte de segmentos populacionais determinados.

De fato, para Sen, estar excluído das relações sociais pode levar a

outras privações que poderão afetar, ou melhor, limitar as oportunidades na

vida das pessoas. O autor acredita igualmente que a real importância do

conceito de exclusão social reside no fato de ele enfatizar o papel dessas

relações na privação de capacidades e, assim, na vivência da pobreza.

Segundo Sen, ainda que a fome causada por um estado de desemprego

possa ser analisada em termos da exclusão social, esta dependerá da

natureza do processo causal envolvido. O autor trata da relevância

constitucional e da importância instrumental do conceito de exclusão social

e estabelece uma distinção entre exclusão passiva e exclusão ativa, em

função de diferentes comportamentos evidenciados46.

46 Talvez inspirado nas idéias desse autor, Francisco de Oliveira tenha definido a cidadania, de uma forma sintética, como “o estado pleno de autonomia”, em que os sujeitos sabem escolher, podem escolher e efetivar as escolhas realizadas (2001).

Page 137: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

131

De todo modo, faz-se relevante buscar diferenciar o conceito de

pobreza do de exclusão social já que estas situações estão presentes em

realidades como a brasileira e tendem muitas vezes a se sobrepor. Quando

se trata de pobreza, associa-se este fenômeno, em geral, à mensuração da

renda auferida/não auferida por determinados segmentos populacionais,

partindo-se do pressuposto de que há uma população que tem dificuldade

de sobreviver porque não tem ou tem uma baixa e/ou insuficiente renda. Já

quando se trata da exclusão leva-se em consideração um processo

cumulativo gerado por fatores multicausais, geralmente associados entre si.

Assim, no caso desta última, não se trata somente de uma questão de

desigualdade de renda ou da falta de acesso aos direitos de cidadania, mas

do resultado de mudanças profundas que se processam ao longo do tempo,

e que vão significando um acréscimo progressivo de dificuldades na vida

das pessoas.

“A pobreza enquanto questão social se constrói, progressivamente,

em torno à definição do que são ‘necessidades’. Como interpretar

‘necessidades’, interroga Gough (2000) tomando-a como uma

categoria que se refere a objetivos universais, em oposição a

vontades ou desejos, estes entendidos como objetivos enunciados

com base em preferências individuais e culturais? Na tentativa de re-

elaborar a definição tradicional de ‘necessidades básicas’, tal como

veiculada na década de 7047, notadamente pelas grandes

organizações internacionais engajadas no combate à pobreza, Gough

aponta que a universalidade e a objetividade do conceito residem na

compreensão de que se não forem satisfeitas, as carências podem

causar sérios danos ao ser humano, comprometendo sua trajetória de

vida. Daí caracterizar ‘necessidades básicas’ como todo pré-requisito

de cunho universalista indispensável à participação dos indivíduos no

desenrolar da sua própria existência” (Lavinas, 2003:5).

47 Segundo Townsend (1976) apud OIT (1993), “necessidades básicas incluem um requerimento mínimo por família no plano do consumo privado: alimentação adequada, vestuário, bem como alguns móveis e equipamentos para o domicílio. Em segundo lugar, inclui serviços essenciais ofertados para e pela comunidade num sentido amplo, tais como água potável, saneamento, transporte público, saúde, educação e serviços culturais. O conceito de necessidades básicas deve se inscrever no contexto do grau de desenvolvimento econômico e social da nação como um todo”.

Page 138: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

132

Lavinas igualmente chama a atenção para a visão de Amartya Sen

(1992) sobre esse tema, segundo a qual as pessoas precisam dispor de

condições e de habilidades para usufruir das oportunidades que lhes são

oferecidas, com o intuito de satisfazer suas necessidades a partir de

escolhas e preferências próprias. Nesse sentido, segundo o autor, “um

patamar de renda pode revelar-se inadequado [para identificar os pobres]

não porque se situa abaixo de uma linha de pobreza, fixada com base em

parâmetros exógenos, mas porque está abaixo do que é adequado para

mobilizar um conjunto específico de habilidades (capabilities) compatíveis

com as necessidades da uma determinada pessoa” (Sen, 1992:111). Assim,

para o autor, pobreza significa destituição de habilidades e meios de agir de

modo a alcançar um determinado estado de bem-estar de sua preferência.

Segundo Lo Vuolo, ainda que a pobreza se expresse de maneira

diversa em cada caso particular, faz parte de uma problemática comum que

só pode ser compreendida por meio de uma abordagem mais ampla. O

autor destaca vários elementos comprobatórios nesse sentido, quais sejam:

i) que esta se vincula a condições objetivas externas às pessoas e às

preferências sociais traduzidas nos arranjos institucionais específicos de

cada modo de organização social; ii) que está fortemente correlacionada

com a carência daquelas necessidades e capacidades consideradas básicas e

cujas privações ameaçam a própria condição humana; iii) que a situação

que a caracteriza não se refere a uma posição, senão ao efetivo estado de

funcionamento dessas pessoas.

Sobre este último aspecto, citando Sen (da mesma forma que

Lavinas), Lo Vuolo afirma que o bem-estar social e a pobreza não podem

ser avaliados considerando-se apenas o que se tem (ou o que se recebe)

em relação a um determinado padrão, senão se levando em conta a

capacidade efetiva de se decidir acerca de diferentes formas de agir a partir

do que se tem. A pobreza está relacionada, assim, com a carência de

possibilidades de se eleger livremente entre distintos modos de vida

disponíveis na sociedade.

Page 139: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

133

Lo Vuolo ressalta, ainda, que o problema distributivo não implica uma

visão relativa da pobreza. Segundo ele, Amartya Sen ilustra bem as

inconsistências de se considerar a pobreza somente como um fenômeno

relativo. O relativo, para Sen, não define a situação de pobreza, senão a

posição dos que estão nessa situação em relação aos que não estão. O

autor destaca que a pobreza é uma das formas de expressão da

desigualdade social, mas não é o mesmo que desigualdade social. Desse

modo, eliminando a pobreza pode-se não acabar com a desigualdade social,

mas a diminuição da desigualdade social trata-se de uma condição

necessária para se extinguir a pobreza (Lo Vuolo, 1999).

A partir daí, Lo Vuolo critica a adoção de políticas sociais focalizadas

que dividem a população em segmentos-alvo, buscando atender os “mais

pobres entre os pobres”. Pelo contrário, ele sustenta que, se a pobreza é

uma das formas por meio da qual se expressam os processos próprios do

modo de organização social em que funcionam as pessoas, somente se

poderá revertê-la modificando os princípios da organização social que lhe dá

substrato, chamando a atenção para a necessidade de se estudar neste os

pontos de contato entre a pobreza e a riqueza, o emprego e o desemprego,

a opulência e a privação. Nesse sentido, considera que a forma de atuar

sobre tais pontos de contato é instituindo uma política redistributiva que vá

além dos limites das políticas compensatórias, restritas ao âmbito da

proteção social. Ou seja, colocando-se o econômico a serviço do social, a

serviço do desenvolvimento humano.

“Um conceito de pobreza relevante para a formulação de políticas

públicas deveria centrar sua atenção na identificação de elementos de

cunho econômico, comuns e generalizáveis (de modo a serem

normatizados). Além disso, não se trata de identificar somente

elementos comuns senão relações hierárquicas entre tais elementos

para elucidar a importância de cada um. Nesse sentido, não há

dúvida de que um dos elementos comuns a todas as situações de

pobreza – e que, por sua vez, ocupa um lugar hierarquicamente

superior – é a insuficiência de renda [...] a qual está fortemente

Page 140: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

134

associada à dinâmica macro-econômica e ao regime de proteção

social existente, ele mesmo derivado dos princípios de solidariedade e

convenções eleitos por cada sociedade” (Lo Vuolo, 1999:129 apud

Lavinas, 2003).

Lo Vuolo e Barbeito postulam que a primeira política social a ser

adotada deve ser a política econômica Segundo eles, não existe espaço para

uma política social efetiva enquanto persista o atual modelo de acumulação

que reproduz a pobreza e a exclusão. Assim, uma proposta alternativa ao

sistema de proteção social atual passa pela adoção de uma política

econômica baseada em paradigmas que privilegiem: 1) uma mudança

progressiva no padrão de distribuição da riqueza e da renda; 2) uma nova

estratégia de geração de emprego; 3) relações de emprego que favoreçam

uma cooperação estável entre capital e trabalho (Lo Vuolo e Barbeito,

2002:51).

Já Zaluar aponta para a condição de desfiliação (ou de exclusão)

como uma situação mais patética do que a da pobreza stricto sensu

(“pobreza tradicional”). Segundo ela, se a pobreza pode ser pensada como

um estado onde se inventariam carências ou faltas (de ganhos, de

alojamento, de cuidados, de instrução, de poder etc.), as situações de

exclusão podem ser pensadas como um “efeito, na conjunção de dois

vetores: um eixo de integração/não-integração pelo trabalho; um eixo de

inserção/não inserção em uma sociedade sócio-familiar” (1997:29-45).

Considerando o exposto, Zaluar afirma que as populações

beneficiadas por políticas de intervenção social enfrentam um duplo

processo: o de pauperização e o de desfiliação, que implicam a ruptura dos

seus vínculos com a sociedade mais ampla. Ressalta, assim, que o desafio

contemporâneo de superação da pobreza somente será alcançado, por um

lado, distribuindo-se seguros sociais; por outro, esforçando-se para

preencher o vazio social decorrente desse processo de desfiliação. Daí o

Page 141: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

135

apelo feito por muitos estudiosos para a realização de políticas de

integração que contribuam para a coesão social (Zaluar, 1997).

Zaluar postula, finalmente, a necessidade de conceber-se/executar-se

uma dupla política social: a primeira, predominantemente preventiva,

consistiria em controlar a zona de vulnerabilidade em que se encontram

determinados segmentos sociais – via a adoção de medidas gerais; a

segunda, predominantemente reparadora, se proporia a reduzir a zona de

desfiliação através de medidas concretas voltadas para a inserção/re-

inserção social, sendo que ambas seriam complementares entre si (Zaluar,

1997).

III.3 O sistema de proteção social brasileiro

III.3.1 Considerações iniciais

Fazendo uma retrospectiva histórica das políticas sociais no Brasil,

Peixoto sinaliza que, a partir de 1930, a cada trinta anos (1930, 1960-64 e

1990-1995) têm sido implantadas medidas no sentido da sua

modernização. Segundo ele, embora estas sejam diferentes entre si, têm

como traço único a ideologia modernizante. Nas suas palavras:

“Dos três ciclos, os dois primeiros aconteceram durante regimes

autoritários. O terceiro (1990-95), deu-se sob o manto democrático.

As reformas de 30 e 60-64 tiveram como resultado o fortalecimento

do Estado, principalmente em suas atribuições desenvolvimentistas.

Já as reformas da era FHC, incluindo as políticas de modernização

econômica do presidente Collor, voltaram-se para a contenção do

intervencionismo estatal na esfera econômica e no desmantelamento

do Estado empresário, visando abrir espaço para a iniciativa privada

nacional e estrangeira, na expectativa do fortalecimento da economia

de mercado. Ou seja, houve uma alteração do eixo da ideologia

nacional-desenvolvimentista, guia dos outros dois modelos, para o

pragmatismo econômico de mercado, de inspiração neoliberal. Tanto

Page 142: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

136

em 1930 como em 1960-64 buscou-se modernizar a administração

pública por meio do modelo burocrático, decorrente das idéias

weberianas. Em 1995, no entanto, a proposta de reforma do aparato

do Estado promoveu a transição e voltou-se para a mudança do

modelo burocrático para o gerencial, do estado provedor para o

Estado regulador” (Peixoto, 2003:2).

Quanto à questão social no país, ainda que na Constituição brasileira

de 1988 esta tenha assumido uma importância ímpar em função da

garantia de direitos básicos e universais de cidadania, “estabelecendo o

direito à saúde pública, definindo o campo da assistência social,

regulamentando o seguro-desemprego e avançando na cobertura da

previdência social” (Marques & Mendes, 2003:3), o modelo de proteção

social brasileiro vem se tornando, na prática, cada vez mais

“americanizado”, nas palavras de Werneck Vianna, pois, “ainda que

formalmente universais e imaginadas como indutoras de cidadania, as

provisões públicas se resumem a parcos benefícios para os pobres,

enquanto ao mercado cabe a oferta de proteção àqueles cuja situação

permite a obtenção de planos ou seguros privados” (Werneck Vianna,

1998:130). Nas palavras de Médici:

“A Constituição de 1988 consagrou o ideário da universalização das

políticas sociais no Brasil, numa fase aonde as condições econômicas

para chegar a um universalismo de fato se tornavam cada vez mais

precárias. Sendo assim, crise econômica, crise nas finanças públicas e

direitos constitucionais adquiridos passam a ser, desde meados dos

anos 90, um dos conflitos a serem enfrentados numa eventual

reforma do Estado. A crise do Welfare State no Brasil chegou antes

que ele pudesse ser, de fato, implantado em sua plenitude” (Médici,

s/d:1).

Acrescente-se a isto o fato de o país apresentar uma das estruturas

sociais mais desiguais do mundo. Segundo Lavinas, estudos diversos

realizados por Barros e sua equipe reiteram que o Brasil não é pobre, mas

Page 143: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

137

extremamente injusto e desigual, com muitos pobres. “A desigualdade

encontra-se na origem da pobreza e combatê-la torna-se um imperativo”

(Barros & Mendonça, 2000). Conforme a autora, “essa desigualdade não se

manifesta, no entanto, tão-somente através do acesso diferenciado ao

mercado de trabalho – no dizer de Ramos e Vieira (2000) ‘o mercado de

trabalho funciona tanto como gerador quanto como revelador de

desigualdades’ –, mas, sobretudo, através do perfil regressivo e do escopo

inacabado da política social no Brasil, fragmentada, ineficiente e ineficaz”

(Lavinas, 2004).

De fato, tomando como exemplo alguns indicadores sociais acerca da

situação social do Brasil, verifica-se que apenas 0,03% da população

brasileira se encontra no topo da pirâmide da distribuição de renda. A

desigualdade de renda, por sua vez, além de extremamente elevada, tem

se mantido completamente estável nas últimas décadas. Quanto ao índice

de Gini, permaneceu em torno de 0,60 nos últimos quarenta anos. Com

isso, 10% da população do país apropria-se de quase a metade da renda

aqui gerada, enquanto os 50% mais pobres ficam com 12%, o que dá uma

idéia da gravidade da situação que o Brasil enfrenta nos termos

considerados (Medeiros,2004)48. Nas palavras de Pochmann:

“No caso brasileiro, teorias e modelos muitas vezes fracassam na

tentativa de abarcar como e por que se reproduz no Brasil uma das

mais perversas estruturas de repartição de renda do planeta. A bem

da verdade, deve-se dizer que o Brasil nunca precisou do gasto social

para magnificar a concentração da renda e da riqueza. Ninguém

questiona também o fato de que as elites – econômicas, políticas e

profissionais – sempre usaram o Estado como espaço de

intermediação dos seus interesses. E apesar de o Brasil não ter

construído um Estado de Bem-Estar Social com características

universais, não se pode descartar o papel fundamental do gasto

social para reduzir, em alguma medida, a desigualdade de renda.

Ainda que se trate de um sistema segmentado, especialmente a

partir da Constituição de 1988, houve um claro progresso no sentido

48 Ver “Renda para poucos”. In: FOLHA DE SÃO PAULO. Opinião. 1 de março de 2004

Page 144: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

138

de sua universalização. Ultimamente verifica-se uma estranha

inversão nos termos do debate. O gasto social transformou-se no

culpado da desigualdade no Brasil. A herança escravista, a oferta

estruturalmente exorbitante de mão-de-obra, a estrutura tributária

regressiva, os juros altos, a ausência de crescimento econômico e o

enfraquecimento do movimento sindical – é como se todos estes

fatores cumprissem um papel menor para a conformação de uma

sociedade profundamente injusta” (2003:2).

Constata-se, assim, que a política social no país tende a reforçar os

parâmetros históricos da acentuada desigualdade vigente. A dimensão

assistencial da seguridade social, por exemplo, jamais deu lugar no Brasil à

formulação de uma política social de combate à pobreza que garantisse,

como princípio elementar de cidadania, a cobertura integral da população

por tempo indeterminado, assegurando transferências de bens e serviços

adequados ao grau de privação e destituição daqueles segmentos de mais

baixa renda. Ainda assim, vale ressaltar que a previdência social brasileira,

mesmo considerando todas as suas limitações, é a mais organizada da

América Latina. Pois, conforme Marques & Mendes,

“O Brasil foi o único entre todos os países latino-americanos que

conseguiu criar um sistema único para todos os trabalhadores do

setor formal da economia, unificando os vários institutos

anteriormente existentes e assim garantindo níveis de cobertura

iguais para todos, independentemente do ramo onde a atividade

fosse exercida. [...] Esse processo, ainda incompleto, avançou

significativamente com a Constituição de 1988 quando, entre outros

dispositivos, os benefícios foram estendidos aos trabalhadores rurais

e o piso correspondente a um salário mínimo foi introduzido [...].

Apesar desses avanços, a previdência social brasileira não conseguiu,

ao longo de sua construção, atingir o conjunto dos ocupados. Mas

isso não se deveu a alguma ‘deficiência’ do desenho da cobertura e

sim ao processo econômico vivenciado pelo país nas últimas décadas,

com seus inevitáveis reflexos sobre o mercado de trabalho”

(2003:13).

Page 145: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

139

III.3.2 1930-1995

O sistema de proteção social brasileiro foi criado nos anos 30, no

primeiro governo Vargas, e expandiu-se de forma fragmentada durante as

décadas subsequentes. As características que este assumiu estão

relacionadas com o fato de ter sido implantado e expandido em períodos de

autoritarismo político: durante o Estado Novo e durante a ditadura militar,

onde – em ambas as situações - “o direito social foi concebido como

privilégio” (Bittar, 2002:13).

Em 1934 foi promulgada uma Carta Constitucional no país na qual se

reconheceu, pela primeira vez na história do Brasil, a existência de direitos

sociais a serem preservados pelo poder público. Nesse momento o Estado

assumiu igualmente a tarefa de intervir e regular contratos estabelecidos na

esfera produtiva, cumprindo sua tarefa de acumulação (Bittar, 2002:14).

Em 1943 foi editada a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT no

país. Nos anos 40, foram fundados os primeiros Institutos de

Aposentadorias e Pensões (IAPs) como entidades autárquicas, vinculadas ao

governo, que tinham a missão de filiar, de forma compulsória, todos os

trabalhadores do mercado formal urbano, recolher contribuições e ofertar

benefícios afins (Bittar, 2002:15).

Cohn (2004) ressalta que, a partir da existência de tais Institutos, foi

introduzido no país um sistema de proteção social, o qual estava

estreitamente articulado com a legislação trabalhista e sindical vigente e

permitia incorporar determinados interesses das classes trabalhadoras no

seu interior, os quais eram filtrados em função da construção do projeto

nacional-desenvolvimentista.

Nesse momento, observou-se uma estreita vinculação da política

social à política de acumulação (Bittar, 2002). De fato, de acordo com

Werneck Vianna (1998), a previdência social no Brasil consagrou a

“vinculação entre acumulação (a cota de contribuição de cada categoria

Page 146: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

140

profissional estava subordinada ao processo de crescimento econômico e

sinalizada pelo diferencial de salário) e eqüidade (a distribuição de

benefícios era proporcional à contribuição pretérita)” (:132).

Werneck Vianna (1998) chama atenção ainda para o fato da

previdência social no país ter-se tornado “um instrumento de incorporação

controlada, definindo que direitos integravam o pacote de cidadania e quem

a eles tinha acesso” (:132). Tal fato, segundo ela, induziu Santos à criação

do conceito de cidadania regulada, cujas raízes, segundo o autor, se

encontram em um sistema de estratificação ocupacional definido por uma

norma legal. Nas palavras do autor:

“[...] o instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado

e a cidadania regulada é a carteira profissional que se torna, mais

que uma evidência trabalhista, uma certidão de nascimento cívico”

(Santos, 1979:76).

Assim nas quatro décadas do período desenvolvimentista [iniciado

nos anos 30, esgotado no final dos anos 70], a carteira de trabalho

assinada significava o passaporte para o acesso ao sistema de proteção

social brasileiro, cuja expansão estava relacionada com o poder econômico

de determinadas categorias profissionais ou com a ameaça política que elas

representavam49.

Segundo Draibe (1994), tal sistema se expandiu entre os anos 40 e

60 atendendo a um padrão “seletivo (no plano dos beneficiários),

heterogêneo (no plano dos benefícios) e fragmentado (nos planos

institucional e financeiro) de intervenção social do Estado” (Draibe,

1994:275 apud Bittar, 2002:17).

49 Segundo Costa (2002), na margem de tal sistema, na esfera da “pré-cidadania”, por meio de atividades filantrópicas e outras, as políticas assistenciais vão se desenvolver no país visando o atendimento de grupos mais frágeis – trabalhadores informais, domésticos, rurais e população indigente –, “fora do núcleo duro do sistema de bem-estar, esse destinado àqueles devidamente reconhecidos e aceitos na esfera da cidadania regulada” (:34). Tais políticas, no entanto, caracterizavam-se pelo aspecto pontual paliativo, assistemático, de baixa cobertura e descontínuo das respectivas intervenções (Rosemberg, 1996; Sposati, 1995 apud Costa, 2002).

Page 147: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

141

Para Bittar, os treze anos iniciais da ditadura militar (de 1964 a

1977), são caracterizados pela transformação radical da estrutura

institucional e financeira da política social no país (2002:17). Em 1971, por

exemplo, a introdução da previdência rural, isentando os segurados em

regime de economia familiar da contribuição financeira e do Fundo de

Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Funrural) para administrá-la

representou um grande avanço em termos de progressividade do sistema

(Peixoto Ramos, 2003:17).

Segundo Peixoto Ramos, a criação de tal Fundo “representou uma

ruptura completa com o princípio contributivo corporativista ou

bismarckiano, inovando ao estabelecer que os benefícios por idade

(concedidos aos 65 anos), invalidez ou viuvez não estariam relacionados

com a renda anterior dos segurados ou com seu esforço contributivo”

(idem)50.

Werneck Vianna ressalta, no entanto, que a maior repercussão nos

rumos do sistema de proteção social brasileiro, durante a ditadura militar,

se deu pelo fato de este ter sido atrelado a uma lógica privatizante, tendo

em vista: i) a adoção de critérios do mercado na gestão dos organismos

públicos; ii) a terceirização; iii) a criação de fundos para financiá-lo [que

acabaram sendo desviados]; iv) a particularização dos programas correlatos

e; sobretudo, v) a insuficiência do atendimento prestado (1998:136).

A autora destaca finalmente o ano de 1974 como um novo marco na

trajetória de tal sistema quando o “milagre econômico” dos anos anteriores

foi interrompido, o contexto político começou a apresentar mudanças e as

questões sociais ressurgiram. Nesse momento, as políticas sociais foram

50 Segundo Peixoto Ramos, alguns fatores ajudam a explicar tal paradoxo (Malloy, 1979; Delgado & Cardoso Jr., 2000; Schwarzer, 2000): em primeiro lugar, no tocante à expansão da Previdência Social aos agricultores, o setor rural ganhou força política no fim dos anos 50 e início dos 60; em segundo lugar, o regime militar era baseado em uma aliança política que incluía técnicos da Previdência Social, que simpatizavam com o paradigma de universalizar a cobertura da seguridade social. Igualmente importante para o sucesso dessa implementação gradual, conforme a autora, foi o interesse dos membros do partido da Aliança Renovadora Nacional (Arena), o suporte civil do regime militar, em aumentar o controle sobre um grande segmento da população, por meio de um novo sistema de distribuição de benefícios. Em terceiro lugar, a doutrina militar de segurança nacional considerava a estabilidade social precondição importante para o desenvolvimento econômico e para a desejada transformação do Brasil em uma nação poderosa. Dessa forma, os militares estavam propensos a acolher as propostas de política social que poderiam potencialmente contribuir para aumentar a “grandeza nacional” (2003:5).

Page 148: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

142

revistas, sendo acelerado seu processo de “universalização excludente”

segundo o qual “cada movimento de expansão universalizante do sistema

[de proteção social] é acompanhado de mecanismos de racionamento que

expulsam daquele diversos segmentos sociais” (Faveret & Oliveira, 1990

apud Werneck Vianna,1998:159).

De todo modo, o sistema de políticas sociais do país que chegou aos

anos 80 já se constituía em uma decisiva intervenção do Estado nessa área,

por várias razões e dimensões (Draibe, 2002:5). Entre estas Draibe cita:

§ a presença, no núcleo do sistema, de programas de transferência

monetária e de prestação universal de serviços básicos;

· um razoável esforço financeiro do Estado traduzido em um gasto

social público da ordem de 15% a 18% do PIB;

§ as enormes clientelas já cobertas pelos programas sociais;

§ os graus de diferenciação e complexidade institucional;

§ a integração dinâmica desse sistema no jogo político, por se

constituir em amplo espaço do exercício corporativista e da barganha

clientelística.

Ainda assim, foi medíocre o desempenho das políticas sociais no país

nesse período, aquém das necessidades da população (Draibe, 2002). Entre

as mais adversas características de tal desempenho, Draibe destaca:

· a fraca capacidade de incorporação social, deixando à margem do

progresso social um vasto contingente de excluídos de todo tipo, em

especial os trabalhadores rurais e grupos urbanos pobres;

· seus programas pouco contribuíram para a redução das acentuadas

desigualdades sociais, do mesmo modo que foram praticamente

nulos os seus efeitos sobre os resistentes bolsões de pobreza;

· no plano dos benefícios dispensados, estes abrigaram e reforçaram

privilégios;

· a sua dinâmica de crescimento tendeu a pautar-se por forte

dissociação entre os processos de expansão quantitativa e a melhoria

da qualidade dos bens e serviços sociais prestados.

Page 149: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

143

Draibe (2002) ressalta ainda que o incipiente sistema de proteção

social brasileiro, criado nos períodos de autoritarismo político, foi

sistematicamente pressionado pelos baixos salários, pela elevadíssima

concentração da renda e pelas enormes dimensões de sua clientela.

Segundo a autora, no final dos anos 70 e início dos 80, chamavam a

atenção as seguintes características relativas ao mesmo: i) a combinação

da concentração de poder e recursos no executivo, com uma elevada

fragmentação institucional, permeável a clientelismos; ii) elevados

desperdícios e ineficiências na utilização de recursos; iii) densas redes de

estímulos ao setor privado, “projetando um alto grau de privatização, tanto

pela crescente presença do setor privado produtor de serviços sociais

quanto pela introdução da lógica e dos interesses privados e particularistas

nas arenas decisórias” (Draibe, 2002:7).

Da mesma forma que Draibe, Abranches enfatizou “a peculiar

associação entre estatismo e privatização” observada com relação ao

sistema de proteção social brasileiro no período ditatorial. Segundo o autor,

a privatização de tal sistema se deu em função: i) da opção pelos

indicadores econômicos em detrimento dos objetivos finais da política

social; ii) da transferência da provisão de bens e serviços ao setor privado;

iii) da reciclagem do recurso dos programas sociais ser feita no sistema

financeiro; iv) da captura dos programas sociais por interesses particulares

de grupos específicos, tornando-os privilégios corporativos ou ocupacionais

(Abranches, 1985:54-55 apud Bittar, 2002:22).

Entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80, o processo de

transição política no país rumo à redemocratização impôs reformas no seu

sistema de proteção social, as quais deveriam contemplar, entre outros

aspectos, uma mudança no respectivo padrão de financiamento visando

torná-lo menos susceptível às oscilações econômicas (Bittar, 2002).

Todavia, se até os anos 70 o Brasil alcançou altas taxas de

crescimento econômico e conviveu com taxas relativamente baixas de

inflação, no início dos anos 80 foram registrados os primeiros sinais do

Page 150: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

144

impacto da crise do petróleo e do endividamento externo (Draibe, 2002).

Assim, a década de 80 caracterizou-se pela forte oscilação das taxas de

crescimento econômico do país, sendo marcada também pela crescente

pressão do endividamento, pelas altas taxas de inflação e pela sucessão de

fracassados planos de estabilização monetária implementados durante o

governo Sarney (1985-1989) - primeiro governo civil que sucedeu ao

regime militar (Draibe, 2002).

Nesse contexto de instabilidade econômica, mas também de

democratização, o Brasil realizou o que Draibe (2002) classificou como o

primeiro ciclo de reformas das políticas sociais no país, que tinham a ver,

entre outros fatores, com o advento da Nova República e com a pressão de

movimentos sociais (Soares, 1994 apud Bittar, 2002:24). Um segundo ciclo

de reformas, segundo Draibe, seria realizado no Brasil em meados dos anos

90, no governo de Fernando Henrique Cardoso, sob a égide do neoliberalismo.

Na percepção de Rosário da Costa, as reformas do primeiro ciclo que

Draibe faz referência só se fizeram possíveis porque as decisões da política

econômica, nesse momento, ainda respondiam com elevado grau de

autonomia às condicionalidades definidas pela comunidade financeira

internacional (2002:4-5). De todo modo, no primeiro governo da Nova

República, a prioridade do social permaneceu apenas no nível do discurso

(Souza, 1987 apud Bittar, 2002:26)51. Nesse contexto

“[...] fatores conjunturais – a ruptura da coalizão que viabilizou a

transição e a demora na convocação da Assembléia Constituinte – e

estruturais – partidos políticos não cumprem seu papel como veículo de

intermediação de interesses e regras institucionais que conduzem à

super-representação de regiões atrasadas – produzem fragmentação

institucional e paralisia decisória. O projeto de ampla reestruturação das

políticas sociais dá lugar a um conjunto de ações pontuais, muitas das

quais de caráter assistencial” (Melo, 1990 e 1993 apud Bittar, 2002:26).

51 Ainda assim, os primeiros programas de combate à pobreza elaborados no país surgem nesse período (Bittar, 2002:25). Todavia, conforme a autora, estes se ressentem da falta de um planejamento de longo prazo e de um projeto que os distancie da prática assistencialista (idem).

Page 151: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

145

De todo modo, no final dos anos 80, o gasto público havia sido

expandido assim como adotados critérios universalistas para a definição de

direitos sociais, formalizados na Constituição Federal de 1988 (Rosário da

Costa, 2002), a qual pode ser percebida como o ápice de um processo da luta

democrática, iniciado na década anterior (Marques & Mendes, 2003:4).

De fato, a promulgação da Constituição de 1988 tinha a clara

intenção de responder críticas de diversos atores, sobretudo dos

movimentos sociais, quanto às características das políticas sociais

implantadas no país, a seu ver, seletivas, fragmentadas, excludentes e

setorializadas. Em contrapartida, “a universalização de direitos e a

participação da comunidade na definição das políticas sociais tinham como

princípio fundador a superação do caráter meritocrático e a adoção da

cidadania como critério de acesso” (Marques & Mendes, 2003:4)52.

Tal Constituição apontou para uma mudança no caráter do padrão

brasileiro de proteção social, o qual se tornou mais igualitário e

universalista. Percebe-se no texto dessa Carta o aprofundamento da

vertente redistributiva das políticas sociais; o maior controle público e

social de sua execução e regulação; a expansão da cobertura e atenuação

do vínculo contributivo como estruturador do sistema (Draibe, 1989 apud

Costa, 2002).

A Constituição de 1988 prestou especial atenção ainda à questão da

cidadania, contemplando direitos civis, políticos e sociais. Por esse motivo,

ficou conhecida como Constituição Cidadã (Benevides, 2001). Introduziu

igualmente um conceito mais amplo de seguridade social, baseado no tripé

previdência, saúde e assistência social53. Assim, de acordo com a tipologia

52 De acordo com esses autores, a cidadania é facilmente reconhecível na área da saúde, pois “de uma situação onde o serviço público era voltado apenas aos trabalhadores do mercado formal, passou-se à garantia do direito para todos” (Marques & Mendes, 2003:5). 53 Segundo Werneck Vianna, a Assembléia Nacional Constituinte gravou na Carta, “os traços de um sistema digno do conceito de Seguridade Social: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; eqüidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; e caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa com participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados” (1998:163).

Page 152: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

146

de Esping-Andersen, ao invés de assumir como pressuposto o modelo

“bismarckiano” de Welfare State, passou a adotar o “social democrata”

(Costa, 2002).

A área da seguridade social, na qual os princípios da universalização da

cobertura e do atendimento mais avançaram, foi a da saúde. Conforme

ressalta Burlandy, “a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi

expressão de um dos mais importantes projetos de reforma na área social,

norteado pelos princípios da unicidade de comando no Ministério da Saúde,

acesso universal e igualitário, equidade, controle social, descentralização,

integração e hierarquização do cuidado à saúde” (2003:58).

Com a promulgação da Constituição de 1988 avançou também a

assistência social no país, a partir de então instituída enquanto uma política

social não contributiva, pautada sob os princípios da universalidade do

atendimento, seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e

serviços (Draibe, 1998). A assistência social, assim, foi percebida como um

direito da população (Bittar, 2002). Nesse contexto, no âmbito da mesma, a

renda mensal vitalícia é assegurada para o idoso e o deficiente que não

dispunham de meios para sua sustentação. Quanto à previdência social, sua

realização mais importante, segundo Draibe, foi “a equalização dos benefícios

dos trabalhadores urbanos e rurais” (Draibe, 1993 apud Bittar, 2002:28).

Todavia, conforme ressaltam Marques & Mendes (2003), uma série de

fatores são demonstrativos da forma como o conceito de “seguridade social”

foi sendo minado ao longo dos governos que se seguiram à promulgação da

Constituição de 1988 como, por exemplo, a utilização em outros propósitos de

parte dos recursos destinados para atividades afins.

De forma similar, Azeredo (1993) destaca que no período subsequente à

promulgação dessa Constituição foram evidenciados vários problemas que

impediam a execução dos respectivos preceitos, como o agravamento do

processo recessivo e a crise fiscal da União (Azeredo, 1993:33 apud Werneck

Vianna, 1998:167).

Page 153: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

147

Segundo Draibe, nos dois últimos anos do governo Sarney a política

social perdeu a centralidade: “Há um adensamento das ações federais

assistencialistas com objetivos eleitorais. Já as outras áreas de política social

seguem um movimento que espelha o econômico: cortes e reduções nos anos

piores, pequenas recuperações nos melhores” (Draibe,1993 apud Bittar,

2002:31).

No início dos anos 90, a orientação neoliberal do governo Collor e o

desmantelamento da máquina pública agravaram a situação do sistema de

proteção social brasileiro, tornando mais difícil a tarefa de realizar as

mudanças previstas constitucionalmente. Um exemplo neste sentido foi o veto

imposto por este presidente à nova Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS),

a qual foi finalmente aprovada em 1993 depois do impeachment de Collor, no

final de 1992 (Peixoto, 2003) 54.

O governo Collor, na realidade, representou um ponto de inflexão na

política econômica do país por meio da implantação de “um liberalismo de

orientação mercadológica, politicamente temperado por preceitos social-

democratas, em que pese a contradição entre o discurso de posse, lançando o

liberalismo social, e o elevado intervencionismo econômico contido no

subseqüente Plano Collor” (Peixoto, 2003:6) .

Dessa forma, em tal governo, o conceito de “cidadania regulada” de

Santos é substituído pelo de “ausência de cidadania” devido à falta de serviços

adequados que pudessem suprir as necessidades sociais da população (Bittar,

2002). Para Soares (1995), nem o assistencialismo, nem o clientelismo foram

capazes de compensar a brutal redução de serviços públicos essenciais que se

assistiu nesse período (Soares, 1995:257 apud Bittar, 2002:32). Já o governo

Itamar Franco, que sucedeu o de Collor, restringiu sua atuação à tentativa

inócua de controle do surto inflacionário vivenciado pelo país (Tavares de

Almeida, s/d).

54 A LOAS veio a ser plenamente implementada somente em 1995 na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (Schwarzer & Querino, 2002:15).

Page 154: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

148

III.3.3 1995 até a atualidade

Conforme Draibe (2002), em meados dos anos 90 o país ingressou

em um segundo ciclo de reformas no seu sistema de proteção social, depois

daquele realizado no final dos anos 80, que culminou com a promulgação da

Constituição de 1988.

Na percepção da autora, essas reformas podiam ser percebidas como

um desafio para o governo Fernando Henrique Cardoso, o qual deveria

respeitar o compromisso social-democrata por um lado; e as condições

internacionais da globalização por outro, cujas evidências, segundo Draibe,

retrataram “um movimento de inflexão gradual do padrão pretérito de

proteção social, [...] através da introdução ou reforço de pelo menos três

características: a descentralização; os novos parâmetros para a alocação de

recursos; e a redefinição das relações público-privado no financiamento e

na provisão de bens e serviços sociais” (2002:7). Tal movimento levou à

focalização e ao constrangimento do financiamento social (Rosário da Costa,

2002).

De todo modo, ainda no primeiro governo de Fernando Henrique

Cardoso foram tomando corpo as diretrizes em termos das politicas sociais

definidas na Constituição de 1988 “com a lenta descentralização de

responsabilidades e recursos e a extensão da prestação de benefícios e

serviços sociais especialmente nas áreas da saúde, educação básica e

assistência social” (Tavares de Almeida,s/d: 3)55. Também nesse governo

começaram, de forma gradual, a ser corrigidas algumas das distorções do

sistema previdenciário do país, caracterizado pela regressividade na

distribuição de benefícios.

No entanto, o governo de Fernando Henrique Cardoso ficou longe de

progredir em outros aspectos fundamentais, como na superação da pobreza e

na redução da desigualdade social (Cohn, 1999, 2002; Bittar, 2002; Draibe,

2002).

55 Segundo a autora, dois fatores foram decisivos nesse processo, quais sejam: i) a estabilidade monetária, resultante da adoção do Plano Real; e ii) o longo aprendizado institucional que viabilizou a descentralização de responsabilidades e um maior entrosamento entre as três esferas de governo.

Page 155: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

149

De fato, durante os oito anos desse governo optou-se por políticas

focalizadas com vistas a aumentar a efetividade do sistema de proteção

social brasileiro, partindo-se do diagnóstico de que este não fazia jus ao

respectivo custo56. Adotou-se, assim, uma concepção de política social na

qual se acreditava que a pobreza era inevitável e que “o significativo

desperdício de recursos na área deveria ser eliminado por uma política de

“racionalização” dos gastos”, em encontro às recomendações de

organizações internacionais (Bittar, 2002: 74).

Segundo Cohn , a partir de 1994, a tendência foi a de se conformar

no país um sistema dual de proteção social, submetido a lógicas distintas na

sua articulação com a dinâmica macroeconômica: de um lado, aos

benefícios sociais assistenciais de caráter não contributivo, financiados com

recursos orçamentários da União, destinados àqueles segmentos que não

têm acesso ou têm acesso limitado ao mercado de trabalho; de outro, aos

benefícios sociais securitários de caráter contributivo financiados com

recursos privados em geral subsidiados pelo Estado, destinados aos

segmentos sociais com capacidade de acesso a este mercado (2002:186).

Dessa forma, na percepção da autora, “transpõe-se para a esfera da

responsabilidade privada a garantia da satisfação de determinadas

necessidades sociais básicas” (idem), ao mesmo tempo em que se faz a

defesa da flexibilização e da focalização das políticas sociais tendo em vista

a necessidade de ajustá-las aos gastos públicos, como critério de eficácia da

ação governamental.

Quanto à problemática social, nesse contexto, continuou reduzida a

um somatório de “problemas sociais” enfrentados pontual e isoladamente

(idem). Reproduziu-se, assim, uma concepção segmentada da questão

social e, junto com esta, assistiu-se à formulação e implementação de

políticas sociais fragmentadas e setorializadas, sem um projeto integrado 56 Conforme ressalta Ivo (2001) a reconversão da questão social para o âmbito exclusivo da assistência subordinada à tese da eficiência dos gastos sociais, tende a despolitizar e tecnificar a questão social, transformando direitos sociais (universais) em programas e medidas técnicas ou estratégicas de distinguir, contar e atribuir benefícios a um conjunto de indivíduos selecionados pelos inúmeros programas sociais focalizados, sem se constituir em direitos. Ademais, além de alterar a perspectiva política constitucional dilui o princípio do direito à racionalidade técnica do gasto público. Opera-se, portanto, uma ruptura estrutural entre os planos social, econômico e político, através de um processo de transição que prioriza o tratamento da questão social com base em um novo modelo de assistência focalizado (Ivo, 2001).

Page 156: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

150

que as articulasse e imprimisse um sentido orgânico ao seu conjunto (Cohn,

2002).

De fato, o governo Fernando Henrique Cardoso não conseguiu contar

com uma política social no sentido de uma atuação organizada

intersetorialmente, com propósitos e objetivos bem definidos na oferta de

bens e serviços de qualidade e com responsabilidades e ações explícitas

entre esferas de governo hierarquicamente distintas. Um exemplo claro

nesse sentido foi o Sistema Único de Saúde (SUS) que, como demonstrou

Gerschman (2002), durante esse governo, não rompeu com práticas

clientelísticas associadas ao tráfico de influências no exercício da política

pública, profundamente arraigadas na cultura política e institucional do país.

Gerschman ressalta ainda que o modelo político-econômico adotado

no Brasil na década de 90 significou para o SUS uma trajetória não-linear,

se considerados os preceitos constitucionais nos quais estava embasado. A

autora destaca, contudo, a instituição das Normas Operacionais Básicas

(NOBs) que passaram a regular o setor e trouxeram alterações relacionadas

ao modelo de assistência à saúde, como a maneira encontrada de cobrir

assistencialmente grupos da população que tinham maior dificuldade de

acesso à saúde e que viviam em situação de pobreza absoluta, o que, por

outro lado, levantou a polêmica da focalização versus a universalização dos

serviços afins (Gerschman, 2002).57

Bittar destaca como “uma das grandes novidades da década de 90”,

no âmbito do governo Fernando Henrique Cardoso, o lançamento do

Comunidade Solidária (2002:74), o qual, segundo Burlandy (2003) não era

“um programa governamental stricto sensu, mas uma proposta estratégica

de combate à pobreza, um condomínio de múltiplos objetivos onde co-

habitavam programas emergenciais e estruturais, inseridos na política

57 A autora enfatiza que o SUS gerou uma arena política extensa já que o seu processo decisório passou a envolver instituições e atores sociais das esferas federal, estadual e municipal, tornando complexo o policy-making no setor, ainda que as representações setoriais revelem um perfil mais corporativo, menos pluralista, conforme salienta.

Page 157: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

151

social, sem, no entanto, esgotá-la” (Peliano, 1995; Resende, 2000 apud

Burlandy, 2003:124).

Quatro princípios nortearam a concepção de tal estratégia: i) a

parceria, ii) a solidariedade, iii) a descentralização das ações sociais do

governo, iv) a integração e a convergência destas para os municípios e

grupos populacionais considerados mais pobres (Burlandy, 2003:125).

Os objetivos gerais do Comunidade Solidária eram: i) otimizar a

gestão de programas federais que trouxessem benefícios imediatos aos

grupos mais vulneráveis, promovendo a participação da sociedade no

controle da sua execução; ii) apoiar, no limite dos recursos disponíveis,

programas, experiências, projetos e iniciativas do governo e da sociedade

em áreas de concentração de pobreza que permitissem o desenvolvimento

de novos mecanismos de implementação de ações; iii) identificar novas

prioridades e elaborar propostas de ação para o governo e a sociedade em

relação a temas emergenciais e grupos particularmente vulneráveis, como

crianças, jovens e desempregados, cujas necessidades e direitos não

estavam contemplados de forma adequada nos programas em curso

(Resende, 2000).

A integração das ações propostas por via desse programa buscava

responder a diagnósticos de ineficiência de 16 programas setoriais

prioritários, que compunham a “cesta básica de ofertas” dessa estratégia, a

qual priorizava intervenções nas seguintes áreas: alimentação e nutrição;

redução da mortalidade infantil; apoio ao ensino fundamental; apoio à

agricultura familiar desenvolvimento urbano; geração de ocupação e renda

e qualificação profissional, postos em prática pelos diferentes ministérios e

secretarias da área social (Burlandy, 2003:126).

A idéia-força que orientava o Comunidade Solidária era a de

maximizar resultados pela implementação de ações simultâneas,

complementares e focalizadas em municípios selecionados [com maior

proporção de população indigente] e de seus limites em termos de

organização social, capacidade técnico-institucional, disponibilidade de

Page 158: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

152

serviços públicos, geração de receitas próprias e canais de participação e

controle social (idem).

Tal programa enfrentou sérios problemas desde sua implantação,

derivados, sobretudo, das restrições orçamentárias; da falta de agilidade da

burocracia governamental e; de definição do seu próprio papel de

coordenação do conjunto das políticas sociais do governo, o que foi difícil

concretizar em função de disputas inter e intraministeriais, e no interior do

próprio Programa, como entre a sua Secretaria Executiva e o respectivo

Conselho Consultivo (Cohn, 1995; Resende, 2000; Burlandy, 2003)

Apesar de considerar a proposta do Comunidade Solidária como

“inovadora e ousada”, Bittar (2002) aponta para as dificuldades na

operacionalização desta, cujas ações, segundo ela, parafraseando Costa

(1997),

“[...] acabaram repetindo práticas conservadoras e assistencialistas,

com caráter meramente compensatório. Além de ter havido um

desmantelamento do Programa quando repassado para as regiões. A

descentralização e a parceria não ocorreram, já que estados e

municípios se limitaram a executar as determinações do governo

federal” (Costa, 1997:88-89 apud Bittar, 2002:75).

Burlandy (2003) destaca igualmente os desafios relativos à

implementação da estratégia do Comunidade Solidária, como a

regularização da transferência de recursos, o fortalecimento da participação

social, o reforço à convergência e integração das ações, a realização de

diagnósticos e a adequação dos programas às realidades locais. Baseada

em estudos de Vellozo (2000) e Santos (2001), a autora afirma que o

Comunidade Solidária parece ter tido pouco sucesso em investir em

programas sociais de uma nova racionalidade em função: de práticas

clientelísticas; da distância dos grupos mais pobres das arenas políticas; da

autonomia reduzida, em termos decisórios, das instâncias locais com as

quais interagia (idem).

Page 159: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

153

O Comunidade Solidária esteve em vigor até 1999, quando o governo

Fernando Henrique Cardoso instituiu o Programa Comunidade Ativa, visando

potencializar os recursos das próprias comunidades no combate à pobreza

além de buscar tornar os municípios auto-sustentáveis.

A concepção do Comunidade Ativa era consistente com a discussão

sobre a pobreza que, segundo Bittar (2002), contaminou os mais diversos

setores do Congresso Nacional em 1999, resultando na criação de uma

comissão para estudar as causas da desigualdade social no país e apontar

para alternativas para reduzi-la, dando origem ao Fundo de Combate e

Erradicação da Pobreza, regulamentado em 2001.

Tal comissão chegou a conclusões que serviram igualmente como

embasamento para a elaboração do Plano Plurianual (PPA) do governo de

Fernando Henrique Cardoso, intitulado “Avança Brasil” (Presidência da

República, 2001)58. Dentre estas, vale destacar a importância salientada de

combinar o crescimento econômico com políticas voltadas diretamente para

o combate à pobreza por meio da associação entre ações emergenciais e

estruturais. (Congresso Nacional, 1999 apud Bittar, 2002:76).

Em 2000 o Avança Brasil entrou em vigor, com vigência até 2003.

Em sua “Orientação Estratégica” dizia ter como objetivo mudanças

estruturais no modelo de desenvolvimento do país, e como desafio (entre

outros) abrir o campo de oportunidades para os excluídos. Este se

desdobrava em quatro grandes diretrizes: i) consolidar a estabilidade

econômica com crescimento sustentado; ii) promover o desenvolvimento

sustentável voltado para a geração de emprego e oportunidades de renda;

iii) combater a pobreza e promover a cidadania e a inclusão social; e iv)

consolidar a democracia e a defesa dos direitos humanos (Presidência da

República, 2001).

58 A estratégia de desenvolvimento do Brasil está definida no Plano Plurianual (PPA) do governo federal. Instituído na Constituição brasileira de 1988, o PPA é um instrumento de orientação estratégica para o desenvolvimento econômico e de alocação de recursos a médio prazo. Organiza todas as despesas do governo federal com cada um dos programas durante um período de quatro anos (sendo preparado no primeiro ano de cada novo governo). Fazem parte integral da estrutura do PPA um plano orçamentário trienal atualizado periodicamente e os orçamentos individuais anuais (Banco Mundial, 2004).

Page 160: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

154

O Avança Brasil visava, sobretudo, trabalhar as diversas demandas

sociais de forma integrada (Bittar, 2002:78). Nesse sentido contemplava

duas iniciativas voltadas para tal fim: o Programa Comunidade Ativa, que

havia substituído o Comunidade Solidária em 1999 e; o Projeto Alvorada,

criado pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 2000 no sentido de

apoiar prioritariamente municípios brasileiros com menores Índices de

Desenvolvimento Humano (IDH).

O Projeto Alvorada, tal como o Comunidade Ativa, não chegou a

apresentar os resultados esperados frente à lentidão de sua implementação

e execução orçamentária e à falta de um sistema de informações que

subsidiasse o respectivo processo de estruturação e funcionamento (Bittar,

2002).59

Quanto ao Avança Brasil, foi organizado em 28 macroobjetivos, aos

quais estavam dirigidos programas finalísticos congregando ações

específicas (projetos e atividades orçamentárias e ações não exigentes em

recursos financeiros). Dos 28 macroobjetivos, 15 destinavam-se a atacar

manifestações da pobreza extrema e pelo menos outros sete programas, de

natureza mais econômica, teriam forte impacto sobre a geração de trabalho

e renda (Presidência da República, 2001).

Dentre os programas contemplados pelo Plano Plurianual, se destaca

aqueles voltados para transferências monetárias que, no final do governo

Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 2002, estavam dispersos em

pelo menos seis iniciativas, a cargo de diferentes ministérios, sem uma ação

coordenada, o que impedia sua otimização e efetividade. Muitas vezes,

estes chegavam a concorrer entre si com relação à disponibilidade e/ou

liberação de recursos (Zimmermann, 2004). Tais programas estavam

divididos em:

1. Programa para Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) ou

Programa Bolsa-Criança-Cidadã - instituído em 1996, voltado para famílias

59 Segundo Bittar (2002), até novembro de 2001, o Comunidade Ativa só havia realizado 12% dos R$ 17,9 milhões previstos para o mesmo no orçamento da União, no ano em questão.

Page 161: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

155

com renda per capita de até meio salário mínimo e com filhos na faixa

etária entre 7 e 14 anos que exerciam alguma atividade laboral 60.

De acordo com Silveira & Ramos, a estratégia de ação do PETI

envolvia, como elemento central, a concessão de uma transferência

monetária às famílias, condicionada à matrícula e frequência regular à

escola de seus filhos e/ou dependentes e à observância da proibição de

trabalho infantil. O valor do montante transferido variava de acordo com a

região, podendo corresponder no máximo a R$ 50,00 por criança e R$

150,00 por família. O programa concedia ainda um subsídio aos municípios

participantes (no valor de R$ 25,00 por criança) para financiar atividades

em uma jornada suplementar. Este implicou no estabelecimento de várias

parcerias envolvendo a participação de organizações governamentais, não-

governamentais e agências internacionais, como a OIT e o UNICEF

(1999:12).

O PETI foi iniciado em 1996 na região das carvoarias do Mato Grosso

do Sul, sendo expandido para outras áreas a partir de 1997, como a zona

canavieira de Pernambuco e a zona do sisal na Bahia. No final de 1998,

estava implantado em sete estados e 140 municípios, atendendo a 117.200

crianças e adolescentes (Silveira & Ramos, 1999:13). Em 2002, contava

com 810 mil beneficiários cadastrados, estando sob a responsabilidade do

Ministério da Previdência e Assistência Social (Suplicy, 2002c).

2. Programa de Renda Mínima vinculado à Educação ou Bolsa Escola -

instituído inicialmente em 1997, através da Lei nº 9.533/97, entrou em

operação em 1999 e foi reformulado em 2001, com a Lei nº 10.219/01. Era

voltado para famílias com crianças de 6 a 15 anos, com renda mensal

abaixo de R$ 90 ou meio salário per capita (em valores de abril de 2001),

com direito a receber R$ 15, R$ 30 ou R$ 45 por mês, dependendo de a

família ter uma, duas ou três crianças freqüentando a escola. Havia cerca

de 5,7 milhões de famílias cadastradas no mesmo no final de 2002, que

60 Conforme pesquisa da Fundação de Ciências Aplicadas (2001), na faixa da população com renda familiar per capita de até meio salário mínimo, 27% dos brasileiros com 10 a 14 anos de idade, trabalhavam. Já para famílias com renda superior a dois salários mínimos, este índice caía para 6,3%.

Page 162: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

156

estava sob a responsabilidade do Ministério da Educação 61 (Splicy, 2002c).

Tal programa será analisado com maior detalhamento no item subseqüente

deste trabalho.

3. Programa Agente Jovem - instituído em 2001, voltado para jovens

de 15 a 17 anos em situação de risco social, cujas famílias tinham uma

renda mensal abaixo de meio salário mínimo per capita, com direito a

receber R$ 65 por mês desde que freqüentassem a escola e realizassem

serviços comunitários. Havia 105 mil jovens cadastrados no mesmo em

outubro de 2002, que estava sob a responsabilidade do Ministério da

Previdência e Assistência Social (idem).

4. Bolsa Alimentação ou Programa de Renda Mínima vinculado à

Saúde - instituído em 2001, voltado para gestantes ou crianças em situação

de risco nutricional na faixa de zero a 6 anos, com direito a receber R$ 15

por beneficiário, com um limite de R$ 45 por família, por mês. Havia

1.403.010 gestantes e mães cadastradas no programa em outubro de 2002,

que estava sob a responsabilidade do Ministério da Saúde (idem).

5. Programa de Auxílio-Gás - instituído em 2002, voltado para

famílias com renda per capita mensal abaixo de meio salário mínimo

cadastradas no Programa Bolsa-Escola ou no Cadastro Único dos Programas

Sociais, que começou a ser implantado no governo FHC em 2001. Tais

famílias tinham o direito de receber R$ 15 a cada dois meses para a compra

de gás. Havia 8,5 milhões de famílias cadastradas no mesmo em novembro

de 2002, que estava sob a responsabilidade do Ministério de Minas e

Energia (idem).

6. Bolsa Renda - instituído em 2002, voltado para famílias moradoras

em áreas rurais vítimas da seca no Nordeste, com direito a receber R$ 30

mensais enquanto perdurassem as condições adversas desde que

mantivessem as crianças nas escolas. Havia 1,6 milhão de famílias

61 Em 2002, dos 5.561 municípios brasileiros, 5.536 já tinham firmado convênios com a União para a implantação de programas de renda mínima, sendo que o Orçamento Geral da União de 2002 alocou R$ 2 bilhões para cobrir os custos dos programas relacionados com o Bolsa-Escola, segundo dados do Ministério da Educação, responsável pela gestão do mesmo.

Page 163: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

157

cadastradas no mesmo em dezembro de 2002, que estava sob a

responsabilidade do Ministério de Integração Nacional.

Em 2002, o Ministério da Previdência Social controlava, ainda, o

Benefício de Prestação Continuada (BPC), transferindo mensalmente, sob a

forma de salário mínimo, o valor de R$ 200 para idosos e portadores de

deficiência com renda familiar per capita de um quarto de salário mínimo62.

Cabia também a esse Ministério administrar a Previdência Rural; ou seja, a

transferência mensal de um salário mínimo aos idosos, viúvas, segurados

em licença de saúde ou que estavam em regime de seguridade social

especial, desde que tivessem trabalhado em atividades rurais familiares.

Segundo Zimmermann (2004), frente ao quadro exposto, muitas das

iniciativas do governo Fernando Henrique Cardoso na área social

caracterizaram-se pelo elevado custo das operações administrativas

envolvidas e pela setorialização, conforme observado com relação aos

programas de transferência monetária. De fato, ainda que por meio do

Plano Avança Brasil o governo desse presidente tenha formatado uma

densa rede de proteção social, contemplando políticas compensatórias e

ações mais estruturais (Tavares de Almeida, 2004), não conseguiu diminuir

a exclusão e a desigualdade social, que tem se mantido estável no país, nas

últimas décadas (Barros et alli., 2000).

Da mesma forma, muitos dos programas sociais no Brasil, no final do

governo Fernando Henrique Cardoso, continuavam distantes na prática do

seu discurso; fragmentados institucionalmente; segmentados entre o setor

público e o privado e entre os diferentes públicos; revelando incapacidades

técnicas e administrativas e insuficiência de recursos das mais variadas

naturezas. Finalmente, tais programas continuavam à mercê da política

econômica, seus recursos sendo utilizados como mecanismo de ajuste fiscal

(Cohn, 2002, 2003; Bittar, 2002).

62

Graças ao Estatuto do Idoso, promulgado em outubro de 2003, já no governo Lula, houve um aumento

significativo da população atendida pelo BPC, uma vez que o Estatuto reduziu a idade mínima para a

concessão do benefício de 67 para 65 anos de idade, desde que o beneficiário tenha uma renda mensal per

capita inferior a 25% do salário mínimo, além de permitir que mais de um idoso na mesma família receba

o benefício (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005).

Page 164: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

158

O primeiro ano do governo Lula, 2003, caracterizou-se pela

continuidade da política econômica do governo anterior, comprometido com

a austeridade fiscal, o estabelecimento de metas de inflação e com o

cumprimento dos contratos da dívida 63. As tensões iniciais com relação às

reformas previdenciária e tributária, iniciadas nesse mesmo ano, se fizeram

sentir no interior do próprio partido dos trabalhadores (PT), junto aos seus

parlamentares, ao terem que apoiar medidas que, na sua percepção,

entravam em franca contradição com todo o ideário político do partido,

causando constrangimentos e a perda de quadros.

Intelectuais, como Francisco de Oliveira, fundador do PT e um de

seus principais representantes no mundo acadêmico em entrevista

concedida ao Jornal da Unicamp questionou a reforma da Previdência

realizada pelo governo Lula afirmando que esta era de caráter fiscalista e

que restringia os marcos da seguridade social. A seu ver, tal tato traduzia

uma contradição já que um partido de trabalhadores - coluna vertebral do

governo - deveria ampliar e não restringir a previdência por “razões de

justiça social, de cidadania e até econômicas, porque a seguridade social

constitui um poderoso regulador dos movimentos erráticos da economia”.

Francisco de Oliveira (2003) questionou igualmente a posição dos

deputados do PT nessa questão. Nas suas palavras:

“[...] os deputados estão falando em nome de quem? Deveriam estar

falando pela força eleitoral que a institucionalidade do sistema

partidário lhes confere. Nesse ponto há um corte [e] a instituição

política do partido ganha uma economia em relação à chamada base

social. [...] O mandato representativo é ao mesmo tempo delegativo.

Uma vez com o mandato, ele [deputado] age de maneira autônoma.

Isso é fatal para a relação com a base. Exemplo disso é que os

destaques propostos para alterar o texto da reforma foram retirados.

Isso demonstra que não há muita diferença hoje, no Brasil, entre

situação e oposição. Há uma mistura de interesses” (Jornal da

Unicamp, 29/8/2003).

63 A austeridade na política fiscal foi formalizada no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) apresentado ao Congresso em abril de 2003, estabelecendo a meta de 4,25% para o superávit primário no período de 2003-2006 (Banco Mundial, 2004).

Page 165: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

159

O governo Lula adotou uma estratégia de concertação social quanto

aos mecanismos institucionais de negociação e argumentação com a

sociedade civil. Foi nesse sentido que constituiu o Fórum do Trabalho e o

Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social enquanto espaços

privilegiados de interlocução e diálogo com a sociedade.

Tal governo realizou também uma discussão pública do seu Plano

Plurianual (PPA) para 2004-2007, intitulado “Um Brasil para Todos”, em

todos os 27 estados brasileiros, contando com representantes de diversos

segmentos sociais64 . Segundo a organização não-governamental (ONG)

Inter-redes (2004), o que estava em questão nesse momento “era a

possibilidade de construção participativa de um projeto nacional de

desenvolvimento sustentável com justiça social, que também possibilitasse

aprofundar as estruturas democráticas de controle social sobre o PPA e

sobre os recursos públicos”.

A sociedade civil, por sua vez, demonstrou vontade política de

interagir com o governo quando aceitou participar desses espaços,

estimulou a criação de outros similares e tem sido crítica e propositiva com

relação aos rumos que este está tomando, principalmente no que diz

respeito às expectativas e frustrações, sobretudo no que se refere à

prevalência da ortodoxia da política econômica. A iniciativa da Associação

Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG) de realizar um

seminário, depois de 15 meses de governo Lula, foi um exemplo concreto.

Segundo o artigo “Lula e o Desgaste da Confiança Política”, do presidente

dessa Organização, Jorge Eduardo Durão, “uma questão central na

avaliação desses primeiros meses do governo Lula é a da falta de um

projeto nacional, de uma visão de futuro clara, que possa mobilizar as

energias da sociedade. O governo Lula aparece para a sociedade como um

mosaico de projetos que não formam um todo coerente” (ABONG,

28/3/2004).

64 No contexto de discussão do PPA, entre outros aspectos, as ONGs e as organizações da sociedade civil (OSCs) chamaram a atenção para os possíveis impactos negativos de determinados investimentos em infra-estrutura (como barragens, hidrovias e rodovias) incluídos nesse Plano (Banco Mundial, 2004).

Page 166: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

160

O Conselho Diretor da ABONG sintetiza a crítica que representantes

da sociedade civil organizada fazem do governo Lula quando afirma que

neste tem acontecido uma significativa ampliação dos espaços de

participação, ao mesmo tempo em que persistem um conjunto de restrições

para o alcance desta, reduzindo-a, por vezes, a simples consultas ou a

meros processos de escuta, sem uma perspectiva mais ampla de

fortalecimento da democracia participativa (Rede de Informações do

Terceiro Setor, 15/04/2004).

Uma série de tensões, como as mencionadas anteriormente, têm

provocado um certo congelamento da gestão pública no governo Lula em

áreas prioritárias, como a social, onde está se seguindo a perspectiva de

“refilantropização da política” em função da qual são privilegiadas ações

focalizadas e seletivas, portanto, à margem da institucionalidade das

políticas universalistas propostas pela Constituição Federal de 1988

(Marques & Mendes, 2003, 2003a).

De todo modo, o Plano Plurianual “Um Brasil para Todos”, formulado

por esse governo, apresenta três macro objetivos centrais: i) maior

equidade e inserção social; ii) crescimento econômico ambientalmente

sustentável e que reduza as desigualdades regionais; iii) uma melhor

atribuição de poder e participação à sociedade 65. Segundo o Banco Mundial

(2004), o Plano “Um Brasil para Todos” evidencia a alta prioridade dada

pelo governo Lula à agenda de inclusão social, já que os programas sociais

predominam no planejamento dos gastos sociais (57%), seguidos pelos

programas voltados para o crescimento (33%) e a participação da

sociedade (10%).

Tavares de Almeida (2003) destaca dois documentos sobre políticas

sociais dados a conhecer antes e depois das últimas eleições para a

presidência no país: o Fome Zero – uma proposta de política de segurança

alimentar para o Brasil, de 2001, elaborado por 45 pesquisadores petistas

65 Cada um desses macro objetivos apresenta 10 ou mais “desafios”, e cada um dos 30 destes desafios está relacionado com indicadores a serem alcançados em 2007. Cada um dos 374 programas que integram este Plano destina-se a responder um ou mais dos 30 desafios (Banco Mundial, 2004).

Page 167: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

161

vinculados ao Instituto de Cidadania; e Política econômica e reformas

estruturais, elaborado pela equipe do Ministério da Fazenda, integrada por

economistas, de orientação liberal, não pertencentes ao PT.

O primeiro desses documentos consistia em uma combinação de

políticas assistenciais com ações mais abrangentes de incentivo à

agricultura familiar, com ênfase, entre outros aspectos, em transferências

monetárias para famílias em situação de extrema pobreza, as quais

poderiam ser utilizadas somente na compra de produtos alimentícios,

visando combater a fome no país (Tavares de Almeida, 2003).

Quanto ao segundo, era um documento mais extenso sobre os rumos

do governo Lula focalizado na sua política econômica. Mesmo assim, incluía

um capítulo de propostas de política social analisadas sob o ângulo da

redução de seus efeitos regressivos, pelo aumento da eficácia do gasto

público social e da efetividade dos programas e ações, a serem obtidos com

uma melhor focalização nos segmentos populacionais de menor renda66

(idem), vindo de encontro a recomendações de organismos internacionais.

O Banco Mundial, por exemplo, embora reconheça que muitos programas

de proteção social implementados no país sejam promissores, acredita que

o sistema em geral poderia ser melhorado se estes fossem melhor

direcionados o que, a seu ver, “aumentaria a equidade, reduziria os desvios

de benefícios para pessoas que não são pobres e promoveria uma maior

inclusão dos pobres” (2004:33).

Em dezembro de 2003, o Ministério da Fazenda disponibilizou em seu

site o documento Gasto Social do Governo Federal: 2001 e 2002, que tinha

como objetivo “mostrar os efeitos da incidência de impostos e da

apropriação dos gastos sociais do governo federal na distribuição de renda

no país”.

66 Diz o documento: “A pouca capacidade dos gastos sociais da União em reduzir a desigualdade de renda decorre do fato de que boa parte dos recursos é destinada aos não-pobres, assim como da gestão ineficiente dos recursos destinados aos programas sociais. A falta de avaliação específica dos impactos destes recursos sobre a população beneficiada contribui de forma decisiva para este problema. […] Além disso, é necessário reformular o desenho das políticas de arrecadação e transferência do Estado de modo a reduzir a desigualdade da renda. […] O desenho dessas políticas poderá ser bastante efetivo em redistribuir renda, conforme verificado em outros países” (Ministério da Fazenda, 2003:15).

Page 168: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

162

Márcio Pochmann, no artigo “Desigualdade de Renda e Gastos Sociais

no Brasil: algumas evidências para o debate”, fez uma crítica a este,

apontando para o que ele considera uma “inversão dos termos do debate ao

atribuir um papel central ao gasto social na determinação da complexa

causalidade da desigualdade social brasileira” (Pochmann, 2003). Conforme

o autor, o documento atribui ao gasto social direto, a maior rubrica das

despesas da União, esquecendo as despesas financeiras. Por outro lado,

agrupa gastos sociais contributivos e não-contributivos, os quais

apresentam natureza diversa67 para chegar à conclusão de que se gasta

muito e os recursos dirigem-se prioritariamente para os mais ricos.

Segundo ele, “a realidade, entretanto, parece ser bastante diferente”

(idem).

Pochmann (2003) observa ainda que, entre 2001 e 2002, o serviço

da dívida pública no país elevou-se em 32%, contra um aumento de cerca

de 13% do gasto social direto. Segundo ele,

“no caso das políticas sociais de transferência de renda ou de

pagamentos de benefícios constitucionais [...] a sua participação no

PIB manteve-se praticamente estável, de 6,2% para 6,4%. Ou seja,

quando se considera os gastos sociais não-contributivos, estes não

foram elevados em termos relativos”. Além disso, continua autor, no

período considerado, “verifica-se que a relação entre os gastos sociais

não-contributivos do governo federal e o total do serviço da dívida

vem caindo de forma substancial, passando de 86% para 74%”

(Pochmann, 2003:4).

Pochmann (2003) aponta para exemplos que contradizem a

informação contida no documento em questão de que os destinatários dos

gastos sociais no país são os segmentos mais ricos da população. Dentre

67 Segundo Pochmann, “o gasto social contributivo são os benefícios previdenciários urbanos (aposentadorias e pensões) e as despesas com o pessoal inativo da União. Já os demais gastos componentes do gasto social direto, o autor classifica enquanto não-contributivos inclusive o INSS para o setor rural. Assim, na sua percepção, o gasto social contributivo reflete o comportamento próximo ao de um seguro para atender situações específicas de risco [...]. No caso do gasto social não-contributivo, o seu financiamento depende da arrecadação tributária geral do setor público” (2003:3).

Page 169: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

163

estes exemplos, o do seguro-desemprego, que, em cerca de 80% dos

casos, concedeu benefícios a trabalhadores que recebiam remuneração

inferior a três salários mínimos, entre 2001 e 2002. Cita ainda o exemplo da

previdência social, em que o benefício médio do INSS, mal superava a casa

dos dois salários mínimos, sendo que na área rural se situava próximo de

um salário mínimo, no período considerado. Segundo o autor,

“a renda obtida via transferências eleva a renda inicial numa

proporção muito maior nos decis inferiores [...], o que comprova o

caráter distributivo do gasto social no Brasil. Neste sentido, fica claro

que o gasto social no Brasil pode e deve aumentar em quantidade, a

partir da expansão do acesso às políticas universais, como educação

e saúde – financiadas em grande medida pelos governos estaduais e

municipais -, e do maior alcance dos programas de transferência de

renda” (Pochmann, 2003:10).

No entanto, conforme Ivo pondera, a solução de focalizar os

programas sociais e ‘racionalizar’ o gasto na área social “encontra seus

limites na sua própria causa, ou seja, na instabilidade dos mercados e da

economia que comprometem a continuidade dos programas e têm efeitos

paradoxais sobre a dimensão da cidadania e a natureza da democracia”

(2004:1).

Considerando a discussão sobre o gasto social, além da opção por

políticas focalizadas, durante seus vários anos na oposição o PT parece não

ter formulado um diagnóstico mais denso dos problemas e desafios na área

social no Brasil, capaz de obter consenso entre seus próprios quadros e de

fundamentar prioridades claras de ação. Mesmo que o tivesse feito, não

realizou um debate amplo acerca do mesmo, no sentido de evitar que

posições divergentes da oficial, no interior do partido, se tornassem

públicas, como a de Francisco de Oliveira (2003, 2004) e de Márcio

Pochmann (2003).

Diante desse quadro, um tanto quanto contraditório, os passos

iniciais do novo governo na área social foram na direção de realizar uma

Page 170: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

164

iniciativa emblemática, de forte impacto simbólico, tanto no plano nacional

quanto internacional, por meio do lançamento do Programa Fome Zero e da

criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA)68.

Simultaneamente, o governo lançou uma proposta de reforma da

Previdência Social, que partia do ponto em que a deixara o governo

anterior, duramente criticada pelo PT quando na oposição: ficando restrita à

reforma do sistema previdenciário dos servidores públicos, estabelecendo o

mesmo teto para as aposentadorias dos empregados deste setor e do setor

privado.

O Programa Fome Zero, além de ter sido lançado sem uma discussão

mais profunda junto ao PT e aos seus aliados, carecia de uma melhor

definição e de uma avaliação mais precisa da situação da população do país

nos termos considerados (seria a segurança alimentar realmente o principal

problema social a ser enfrentado?) e do elenco de programas que

conformavam o sistema de proteção social instituído no governo de

Fernando Henrique Cardoso, incluindo o impacto dos programas de

transferência monetária direta, de caráter não-contributivo que, no ano de

2002, já tinham alcançado uma abrangência significativa69 .

O Fome Zero contemplava três grandes conjuntos de iniciativas. O

primeiro incluiria políticas estruturais: geração de emprego e renda,

previdência social universal, incentivo à agricultura familiar, intensificação

da reforma agrária, bolsa-escola e renda mínima. O segundo seria o das

políticas específicas: programa de cupom alimentação (depois substituído

por uma transferência direta de R$ 50 a cada beneficiário, por meio do

cartão-alimentação), doações de cestas básicas emergenciais, manutenção

de estoques de segurança, quantidade e qualidade de alimentos, ampliação

do Programa de Alimentação do Trabalhador, combate à desnutrição infantil 68 Segundo Marques (2003), a ONU mencionou, inclusive, a possibilidade de projetar o programa em nível mundial. 69 Para além do Fome Zero, no sentido de cumprir com a promessa feita em campanha de gerar 10 milhões novos postos de trabalho e de oferecer uma alternativa para a inclusão social para jovens de baixa renda, o presidente Lula lançou o programa Primeiro Emprego, por meio da oferta de incentivos às empresas para que contratem pessoas jovens e do estímulo a empreendimentos e emprego autônomo; do treinamento para o trabalho; da participação social, envolvendo as parcerias entre o governo, a iniciativa privada e a sociedade civil. Tal programa, no entanto, da mesma forma que o Fome Zero, tem sido objeto de críticas as quais têm a ver, entre outros motivos, com a pouca atração que exerce sobre o empresariado.

Page 171: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

165

e materna, ampliação da merenda escolar, educação para o consumo e

educação alimentar. Finalmente, entrariam as políticas para áreas rurais,

pequenas e médias cidades, e metrópoles, com uma série de medidas que

incluíam, nos dois últimos casos, bancos de alimentos formados por

doações (Tavares de Almeida, 2003).

No entanto, a dimensão emergencial desse programa foi aquela que

mais apareceu nos meios de comunicação, conforme Burlandy (2003:276).

De fato, quando lançado o Programa Fome Zero, começaram discussões

sobre o rumo que se pretendia dar à política social no país, tendo em vista

o conteúdo assistencialista que este revelara.

Ignorando a tradicional fragmentação e sobreposição da área social,

por meio do Fome Zero se preconizava que as ações de vários ministérios

fossem coordenadas pelo recém-criado Ministério Extraordinário de

Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), sempre de difícil

realização. Operacionalmente, o programa revelou-se extremamente

problemático não conseguindo sequer realizar o orçamento previsto

(Zimmermann, 2004).

Em face da situação exposta, no início de 2004, o governo Lula

substituiu o MESA pelo Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate

à Fome. Foram transferidas para este novo Ministério, além das

competências do MESA, aquelas do Ministério da Assistência Social e da

Secretaria-Executiva do Programa Bolsa Família, o qual foi criado pelo

governo Lula, por meio da Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de

2003 e até então vinculado à Presidência da República. Nessa oportunidade,

o Cartão-Alimentação foi incorporado ao Bolsa Família, que unificou

também três dos programas de transferência monetária criados na

administração de Fernando Henrique Cardoso: o Bolsa Escola, o Bolsa

Alimentação e o Auxílio-Gás.

Conforme visto, esses programas, até então, eram vinculados a

diferentes ministérios, trabalhavam com regras distintas, ofereciam

transferências monetárias com valores muito baixos – média de R$ 22 -,

Page 172: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

166

impunham cotas restritas de atendimento aos municípios e não estavam

articulados com programas de natureza similar, realizados por iniciativa de

estados e municípios. Nesse contexto, tinha-se a pulverização de recursos,

a fragmentação da gestão pública e elevados custos de administração.

“Além disso, os cadastros de tais programas, por serem separados,

apresentavam grandes distorções” (Governo Federal, 2004).

A integração de tais programas se deu, assim, em função da

necessidade de corrigir as falhas na cobertura dos programas de transferência

monetária envolvidos; as duplicações e as desigualdades existentes; aumentar

a transparência e uniformidade na seleção dos beneficiários; criar uma maior

flexibilidade institucional; e reduzir as deficiências administrativas (Banco

Mundial, 2004). Em 2003, tal unificação permitiu um aumento superior a

300% no valor do benefício concedido (média de R$ 73 mensais)70.

As seguintes premissas orientaram a concepção do Bolsa Família: i) a

transferência de renda não era um fim em si mesmo, na medida em que

permitia o acesso a direitos universais de educação, saúde e alimentação; ii)

era fundamental combinar tal transferência com outras políticas de caráter

estrutural; iii) era necessária articular esforços com estados e municípios71 .

Em 9 de janeiro de 2004 foi promulgada a Lei nº 10.836 que criou

esse programa, o qual passou a ser regido pelo Decreto nº 5.209, de 17 de

setembro desse mesmo ano. Segundo este, o Bolsa Família tem por

finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações

de transferência de renda do governo federal e do Cadastramento Único

(artigo 3º). Quanto a seus objetivos básicos, são eles: i) promover o acesso

à rede de serviços públicos, em especial, de saúde, educação e assistência

70 Após a unificação desses quatro programas de transferência de renda, o valor médio do benefício por família triplicou (cresceu de R$ 24,00 em 2002 para R$ 72,80 em 2003) e o montante de recursos orçamentários investido em programas dessa natureza aumentou de R$ 2,3 bilhões em 2002 para R$ 3,4 bilhões em 2003 e R$ 5,7 bilhões em 2004 (Governo Federal, 2004).

71 O primeiro esforço para a unificação de programas de transferência monetária no país surgiu no governo anterior, na implantação do Projeto Alvorada quando foi feita uma primeira tentativa de criar um Cadastro Único reunindo dados dos beneficiários destes em uma única fonte. Mas tal Cadastro se tornou vital quando o governo Lula decidiu unificar tais programas. Foi já nesse sentido que, no capítulo Inclusão Social do Plano de Governo, se estabeleceu que o Programa Bolsa Escola, assim como os demais programas de complementação de renda “voltados para o mesmo público-alvo e com o mesmo critério de seleção, seriam revistos com o objetivo de evitar superposição, a disputa entre gestores e a pulverização dos recursos públicos” (Plano do Governo Lula, 2002, item 16).

Page 173: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

167

social; ii) combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional;

iii) estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação

de pobreza e extrema pobreza; iv) combater a pobreza; e v) promover a

intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das ações sociais do

Poder Público (artigo 4º).

Quanto aos benefícios financeiros desse programa, de acordo com o

artigo 2º da Lei nº 10.836, constituem-se em básico - destinado a unidades

familiares que se encontrem em situação de extrema pobreza; e variável -

destinado àquelas unidades que se encontrem em situação de pobreza e

extrema pobreza e que tenham em sua composição gestantes, nutrizes,

crianças entre zero e 12 anos ou adolescentes até 15 anos. Com relação ao

valor mensal desse benefício, é de R$ 50, destinado a famílias com renda

per capita de até R$ 50 (benefício básico), e de R$ 15 por beneficiário, até o

limite de R$ 45 por família beneficiada, destinado a todas aquelas famílias

com renda per capita de até R$ 100 (benefício variável), conforme os

parágrafos 2º e 3º do artigo em questão. Tal benefício é pago,

preferencialmente, à mãe, por meio de cartão magnético fornecido pela

Caixa Econômica Federal, com a respectiva identificação do responsável

mediante o Número de Identificação Social (NIS), de uso exclusivo do

governo federal (parágrafo 11 do artigo 2º da Lei nº 10.836)72 .

Para participar do Bolsa Família, além de estar cadastradas no

Cadúnico (Cadastramento Único), as unidades familiares beneficiadas

devem obedecer condicionalidades relativas à sua participação no processo

educacional e em programas de saúde73. Assim, quando couber, devem

manter os filhos em estabelecimento de ensino regular e garantir uma

freqüência de 85% das aulas, ter as cadernetas de vacinação em dia,

freqüentar postos de saúde da rede pública e participar de atividades de

72

Os beneficiários do Programa Bolsa Família também são o público-alvo prioritário de outras iniciativas

sociais nos três níveis de governo. 73O Decreto nº 5.209 atribuiu ainda aos ministérios da Educação e da Saúde a competência para o acompanhamento das condicionalidades do programa, e ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome a supervisão do processo. Neste contexto, destacam-se a publicação da Portaria Interministerial nº 3.789, de 18 de novembro de 2004, regulamentando a freqüência escolar no âmbito do Bolsa Família, e da Portaria Interministerial nº 2.509, de 22 de novembro de 2004, regulamentando a oferta e o monitoramento das ações de saúde para as famílias beneficiárias.

Page 174: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

168

orientação alimentar e nutricional. Quanto à sua gestão e execução, são

públicas e governamentais, requerendo o esforço dos três níveis de

governo, observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o

controle social, realizados por um Conselho instalado pelo poder público

municipal ou pelo Distrito Federal, respeitada a paridade entre governo e

sociedade (Lei nº 10.836).

Os municípios são responsáveis pela inscrição das famílias no

Cadúnico, o que tem sido objeto de questionamentos variados em função da

possibilidade de prevalecerem critérios clientelísticos, o que já foi objeto de

denúncias nos meios de comunicação. No entanto, conforme ressalta a

pesquisadora Laura Tavares (2004), a eficiência desse programa não reside

no aumento do "controle" sobre os pobres para uma "perfeita focalização".

Segundo ela, o risco a ser evitado não é o de "errar no alvo", ao incluir

algumas famílias que não precisaram dessa parcela de renda a mais, e sim

“deixar de fora os que precisam dessa renda”. Para evitá-lo, Tavares sugere

que o Bolsa Família continue ampliando sua abrangência74.

Cohn (2004) acredita que esse programa seja passível de

contradições e ambigüidades. Dentre estas, destaca a conjuntura

econômica atual que não favorece a inclusão social. Destaca, ainda, a

necessidade de se reverter a lógica dual de articulação das diferentes

políticas de seguridade social (uma para incluídos, outra para excluídos), o

que tem reforçado direitos individuais em vez de direitos sociais. Acredita

que enfrentar tais contradições e ambigüidades é um desafio que vai muito

além do fato de estas políticas serem contributivas ou não (Cohn, 2004).

Quanto à iniciativa da implementação do Bolsa Escola, em entrevista

ao Jornal do Brasil, em 23/4/2004, o economista da Fundação Getulio

74 Ao se falar de um programa como o Bolsa-Família, é bom ter em mente que se refere, em primeiro lugar, a uma transferência de renda para os que menos têm neste país. Em segundo lugar, trata-se do repasse de R$ 5 bilhões para mais de 5 milhões de famílias espalhadas por mais de 5 mil municípios. A magnitude desses números, por si só, imprime a ótica de que denúncias e falhas não devem se sobrepor ao valor do programa, tamanha é a sua complexidade e importância em um país onde quase um terço da população está abaixo da linha da miséria.

Page 175: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

169

Vargas, Marcelo Néri, afirmou que a pobreza diminuiria no país se fossem

aumentados o valor e a abrangência geográfica desse programa já que

“atinge as camadas mais pobres da população pobre”.

Já Mendes & Áquila (2004), afirmam que a importância do Bolsa

Família “é função direta das condições econômicas e sociais dos municípios:

quanto menor a receita disponível e o Índice de Desenvolvimento Humano

(IDH) do município, maior é o peso das transferências na movimentação da

economia local” (2004:10). Os autores sustentam seu argumento com o

exemplo da pesquisa que realizaram no município de Viçosa, no Estado do

Ceará, onde “os recursos recebidos pelas 4.293 famílias representam 44%

da Receita Disponível75. Já comparados às transferências federais do

Sistema Único de Saúde, os recursos do Bolsa Família são 50% maiores.

Em relação ao recebido pelo Fundo de Participação dos Municípios, o Bolsa

Família equivale a 58% de seu total e é 215% maior do que a arrecadação

do ICMS” (idem).

De acordo com Mendes & Áquila, mesmo em Caxias do Sul, o

segundo maior município do Estado do Rio Grande do Sul, é significativo o

montante dos recursos do Bolsa Família: comparados à magnitude das

transferências federais recebidas através do Fundo de Participação dos

Municípios (FPM), representam pouco mais de 11%. Desse modo, os

autores concluem:

“Não há dúvida de que os programas compensatórios, dos quais

destacamos o Bolsa Família [...] constituem um esforço sem paralelo

de transferência de renda para as famílias mais pobres na história do

país. Os programas sociais realizados pelos governos militares

através da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e mesmo os

iniciados durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso não se

comparam, em valor e quantidade de beneficiados, aos

implementados durante esses 18 meses de governo Lula. As recentes 75 Segundo os autores, o conceito de Receita Disponível refere-se, no caso dos municípios, à totalidade de impostos municipais, nela compreendidas as transferências constitucionais, tanto federais (FPM etc.) como estaduais (ICMS, IPVA etc.)

Page 176: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

170

denúncias com relação à falta de fiscalização do cumprimento da

freqüência escolar da criança não invalidam essa conclusão” (Mendes

& Áquila, 2003a:10).

Também o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome

(2005) ressalta a importância desse programa a nível municipal,

principalmente nas localidades onde os recursos são escassos. Segundo

esse Ministério, em algumas cidades, o Bolsa Família chega a representar

mais de 40% do total da renda municipal, considerando impostos e

transferências constitucionais, como repasses federais ao Sistema de Saúde

Único e ao Fundo de Participação de Municípios (FPM), e estaduais como o

Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços, conforme tabela baixo

apresentada.

Comparativo: Transferências Constitucionais para os Municípios e Transferência de Renda do MDS – Setembro (2004)

REGIÃO FPM (a)

Total das Transferências Constitucionais

(b)

Programas de

Transferências de Renda

(Bolsa Família e remanescentes)

(c)

PTR /

FPM (c/a)

PTR / Tranf. Const. (c/b)

CENTRO OESTE

116.493.578,86 204.241.254,23 23.472.740,00 20,1 11,5

NORDESTE 568.035.493,74 958.741.523,38 292.393.310,00 51,5 30,5

NORTE 142.519.058,33 255.986.493,29 47.870.970,00 33,6 18,7

SUDESTE 503.181.634,40 1.008.135.611,76 126.356.220,00 25,1 12,5

SUL 279.539.040,69 478.692.083,50 51.096.375,00 18,3 10,7

Total Geral

1.609.768.806,02 2.905.796.966,16 541.189.615,00 33,6 18,6

Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005

Finalmente, vale observar que o Programa Bolsa Família está se

ampliando de modo significativo. Em 2003, este beneficiava 3,6 milhões

famílias inseridas nas regiões mais pobres do país, no semi-árido do

Nordeste brasileiro. Já em 2004, tinha-se mais de 6,5 milhões de famílias

atendidas; estimando-se que em 2005 chegue-se a 8,7 milhões de famílias.

No entanto, sua meta é chegar, a atender, até o final de 2006, 11,2 milhões

de famílias, ou seja, o universo daquelas que se encontram em situação de

Page 177: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

171

extrema pobreza e/ou indigência no país (Ministério de Desenvolvimento

Social e Combate à Fome, 2005).

Na tabela apresentada a seguir se observa como o Bolsa Família,

paulatinamente, por meio do Cadúnico, vem absorvendo as pessoas

inscritas nos programas remanescentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimantação,

Cartão-Alimentação e Auxílio Gás). Nesta se observa também o crescimento

do número de idosos e deficientes beneficiados entre 2003 e 2005,

sobretudo destes últimos. Finalmente a tabela revela o aumento do gasto

com programas de transferências monetárias no país em mais de 20%

entre os anos de 2003 e 2005 (estimado).

ORÇAMENTO MDS - 2003, 2004, 2005 - PRINCIPAIS PROGRAMAS E AÇÕES

Programa/Ação

2003 2004 2005 Variação 2004/ 2005

Executado Em R$

Físico nº

famílias/ pessoas

Orçado em R$

Físico nº

famílias/ pessoas

Projeto em R$

Físico nº

famílias/ pessoas

1.Transferências Monetárias

3,36 bi 5,72 bi 6,54 bi + 14%

� Bolsa Família 570 mi 3,6 mi 3,22 bi 6,5 mi famílias

5,44 bi 8,7 mi famílias

+ 34%

� Programas remanescentes1

2,43 bi 11,4 mi 1,70 bi 8,4 mi famílias

� Ministério da Saúde

360 mi 80 mi 1,10 bi

2. BPC2 6,79 bi 1,7 mi pessoas

7,33 bi 2 mi pessoas

8,54 bi 2,7 mi pessoas

+ 17%

� Portadores de Deficiência

4,35 bi 4,54 bi 1,1 mi

pessoas 5 bi 1,5 mi

pessoas + 36%

� Idosos 2,44 bi 2,79 bi 905 mil idosos

3,54 bi 1,15 mi idosos

+ 27%

Total 10,15 bi 13,5 bi 15,08 bi Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005 1 Bolsa-Escola + cartão-alimentação + auxílio-gás + bolsa-alimentação 2 Inclui RMV – Renda Mensal Vitalícia

III.4 Renda mínima e renda de cidadania

III.4.1 Renda mínima

A partir de meados dos anos 90, transferências monetárias do poder

público para segmentos populacionais em situação de maior risco pessoal e

social (com déficit de renda agudo e dificuldade de acesso a bens e serviços

Page 178: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

172

sociais), condicionadas à comprovação de insuficiência de renda e

realizadas de forma direta, tornaram-se a grande novidade do sistema de

proteção social brasileiro (Lavinas, 2004; Silva e Silva, 2002).

Tal novidade foi facilitada pelas mudanças no escopo da política social

do país, decorrentes da promulgação da Constituição brasileira de 1988

que, entre outros aspectos, por meio da Lei Orgânica de Assistência Social

(LOAS), assegurou transferências monetárias, no valor de um salário

mínimo, a todos os idosos (com 65 anos ou mais) e pessoas portadoras de

deficiência, com renda familiar per capita igual ou inferior a um quarto do

salário mínimo (Lavinas, 2004:10).

Para além da LOAS, Lavinas chama a atenção para demais programas

de transferência monetária vigentes até o final do governo de Fernando

Henrique Cardoso. Segundo ela, em geral, estes se tratavam de benefícios

temporários, no formato de bolsas, voltados para públicos específicos,

sujeitos à comprovação de insuficiência de renda, condicionados ao

cumprimento de exigências específicas (2004:11).

Quanto ao governo Lula, não só unificou três dos programas de

transferência monetária criados no governo anterior (o Bolsa Escola, o Bolsa

Alimentação e o Auxílio-Gás), como também o Cartão-Alimentação, criado

na sua gestão. Todos estes passaram a constituir o Programa Bolsa Família,

que ampliou o respectivo escopo, área de abrangência e valor do benefício

concedido (Governo Federal, 2004).

No Brasil, todavia, propostas de transferências monetárias remontam

à década 70 (Burlandy,2003), mas só ganharam notoriedade a partir 1991

quando foi aprovado pelo Senado Federal o projeto do senador Eduardo

Suplicy instituindo o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) no

país, na forma de um imposto de renda negativo. Este está voltado para

todas as pessoas aqui residentes, maiores de 25 anos, que auferem

rendimentos brutos mensais inferiores a 2,6 salários mínimos (Suplicy,

1999), as quais passam a ter o direito de receber um complemento

equivalente a 30% da diferença entre aquela quantia e a renda respectiva.

Page 179: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

173

Conforme proposto, tal programa será implantado gradativamente,

atingindo, inicialmente, indivíduos com mais de 60 anos, sendo

progressivamente estendido para as faixas etárias mais jovens. Seu

financiamento será assumido pelo governo federal, que despenderá

recursos equivalentes a até 3,5% do PIB, obtidos com a desativação

gradual de programas sociais compensatórios (idem).

O PGRM do senador Suplicy, depois de enviado para a Câmara dos

Deputados, recebeu parecer favorável do relator, deputado Germano

Rigotto, mas não foi votado na Comissão de Finanças e Tributação, o que é

necessário para sua aprovação. Ainda assim, na época em que foi

concebido, foi objeto de uma série de discussões que resultaram em

propostas de alteração no seu formato original. Dentre estas, destaca-se a

do economista José Márcio Camargo que, embora concordando com a

essência da formulação inicial, sugeriu que o PGRM brasileiro fosse definido

por famílias que tivessem crianças em idade escolar, o que foi adotado76.

Os primeiros programas de transferências monetárias no Brasil, na

forma de bolsas, coincidiram com o enfoque centrado na família e no

condicionamento desta transferência à educação básica de crianças e

adolescentes, conforme sugerido por Camargo. A experiência pioneira foi a

do município de Campinas, no Estado de São Paulo seguida, dois meses

mais tarde, pela do Distrito Federal.

O governador Cristóvam Buarque deu início ao Programa Bolsa Escola

no Distrito Federal em 1995. Segundo este programa, toda família que não

auferisse até meio salário mínimo mensal per capita, que tivesse filhos e/ou

dependentes de 7 a 14 anos de idade, que estivesse residindo no Distrito

Federal há pelo menos cinco anos, teria o direito de receber um salário

mínimo por mês, desde que as crianças e adolescentes sob sua

76 Segundo Amaral, Camargo baseia sua proposta na associação entre as desigualdades sociais no país e o acesso diferenciado ao sistema educacional. Para as famílias de menor renda, o custo de oportunidade de enviar filhos à escola seria muito elevado, entre outros motivos, devido à perda ou diminuição dos rendimentos obtidos com o trabalho dos mesmos. “A deficiência na formação educacional impediria, por sua vez, um incremento na renda das novas gerações. Dessa forma seria criado um círculo vicioso, no qual a pobreza de ontem determina a pobreza de hoje. Para rompê-lo seria necessário oferecer uma compensação monetária às famílias, para que estas pudessem prescindir dos rendimentos do trabalho infantil e manter os seus filhos na escola” (Amaral, 1997).

Page 180: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

174

responsabilidade comprovassem 90% de freqüência escolar (Suplicy,

2002b).

Em 1994, o então candidato a prefeito do município de Campinas,

José Roberto Magalhães Teixeira, apresentou à Câmara Municipal um

projeto de lei que instituía o Programa de Garantia de Renda Familiar

Mínima (PGRFM). Este era voltado para todas as famílias residentes nesse

município, que auferissem renda inferior a meio salário mínimo mensal, que

tivessem filhos e/ou dependentes de zero até 14 anos de idade, que

freqüentassem regularmente a escola. O complemento de renda transferido

às famílias era o suficiente para completar meio salário mínimo per capita.

Essa Lei foi aprovada em janeiro de 1995 e o PGRFM de Campinas

implantado a partir daí, dois meses antes do programa do Distrito Federal

(idem)77.

Ambos os programas, o do Distrito Federal e o de Campinas,

apresentavam um caráter fortemente intersetorial requerendo um

envolvimento amplo e articulado entre diferentes instituições e atores, além

da construção de instâncias de organização no âmbito microrregional e/ou

comunitário (Amaral, 1997). Havia, no entanto, particularidades com

vantagens e desvantagens diferenciadas entre os mesmos.

Amaral (1997) identifica a maior extensão da cobertura, e a

possibilidade de articulação do complemento da renda com uma política

mais ampla de atendimento à família, como os principais aspectos positivos

do programa de Campinas com relação ao do Distrito Federal. Por outro

lado, como principal aspecto negativo desse programa, identifica a

necessidade de contar com estruturas gerenciais complexas, que elevavam

os custos administrativos e reduziam suas possibilidades de universalização.

77 Em abril de 1994, no Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em Brasília, foi aprovado que o programa de governo de Lula como candidato à Presidência da República incluiria uma renda mínima no Brasil com o objetivo de erradicar a pobreza no país e promover a presença de todas as crianças na escola. Em 1995, a Proposta de Emenda à Constituição relativa à Reforma Tributária apresentada pela bancada desse partido no Congresso Nacional incluiu um artigo segundo o qual, “com a finalidade de promover a cidadania, combater a fome e a miséria, será instituído um Programa de Garantia de Renda Mínima, definido em lei, compatível com o grau de desenvolvimento do País.”

Page 181: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

175

No que se refere ao programa do Distrito Federal, Amaral (1997)

destaca como principal ponto positivo o fato de este ter sido centrado no

atendimento a famílias com filhos em idade escolar, o que, a seu ver,

assegurava um vínculo mais direto com o ensino fundamental e permitia

uma redução substantiva de custos pela utilização de recursos do sistema

educacional. No entanto, segundo ele, a exclusão de famílias com filhos em

idade pré-escolar trazia sérios problemas na respectiva focalização,

podendo vir a comprometer o alcance das suas metas educacionais.

Resultados da avaliação do Programa Bolsa Escola do Distrito Federal,

realizada pela UNESCO em parceria com o UNICEF, em 1998, revelaram

que este permitiu uma redução de 1% na taxa de evasão escolar, o que,

por sua vez, permitiria uma redução de 4,75% na taxa de reprovação do

sistema educacional como um todo (Waiselfisz,1998:50).

Tais dados revelaram ainda que esse programa incrementou as

aspirações educacionais dos bolsistas; combateu o trabalho infantil; elevou

a auto-estima das famílias beneficiadas. Tais dados revelaram, finalmente,

o impacto que o benefício concedido exerceu na receita familiar,

reconhecendo uma melhoria do consumo em itens essenciais como

alimentação e vestuário (Waiselfisz,1998:50).

A avaliação do Bolsa Escola realizada pela Fundação Esquel, em

1997, relativa a dois anos de implementação do Programa Bolsa Escola,

chegou a conclusões semelhantes à pesquisa das Nações Unidas. Ressaltou

que os resultados mais importantes deste programa estavam traduzidos nos

indicadores de desempenho escolar, os quais foram analisados comparando

dados dosa alunos bolsistas com os do conjunto de alunos da rede pública

do ensino fundamental do Distrito Federal. Dentre estes, destacou-se a taxa

de aprovação na qual ficou bem evidenciada o melhor desempenho escolar

dos bolsistas. Assim, enquanto esta taxa cresceu 1,5% no período 94/96

para os não-bolsistas, para os bolsistas ela foi de 9,5%. Tal dado, assim

como os demais apurados, foram comprobatórios da eficiência do Bolsa

Escola (Unicef, 1997).

Page 182: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

176

Entre 1995 e 1996, vários novos projetos de lei foram apresentados à

Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, propondo que fossem

instituídos no país, de forma centralizada, programas de transferências

monetárias (do tipo bolsa), associados à educação (Suplicy, 2003:103).

Como desdobramento dessas iniciativas, em 1997 foi sancionada pelo

presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei nº 9.533 que autorizava o

governo federal a conceder apoio financeiro - 50% dos gastos - aos

municípios que instituíssem programas de renda mínima associados a ações

sócio-educativas. Dizia essa Lei que os municípios agraciados nos cinco

primeiros anos seriam aqueles que possuíssem receita tributária por

habitante inferior à média estadual e com renda familiar por habitante

inferior à média familiar por habitante do Estado.

A Lei nº 9.533 foi objeto de uma série de críticas: inicialmente com

relação à concessão de valores “muito abaixo do necessário à superação da

pobreza absoluta, além de descaracterizar o próprio conceito de renda

mínima” (Amaral & Ramos,1999:16). Depois, pelo fato de esta

desconsiderar as disparidades na capacidade financeira e na situação sócio-

econômica dos municípios ao determinar um percentual fixo (50%) para a

contrapartida e também para a contribuição financeira da União (idem).

Tais críticas diziam respeito finalmente à estratégia de sua implantação que

levava a uma excessiva dispersão geográfica da sua área de abrangência,

“dificultando (ou inviabilizando) a criação de sinergias locais, através da

cooperação entre municípios de uma mesma microrregião” (Amaral &

Ramos,1999:16).

Tendo em vista as críticas que a Lei nº 9.533 sofreu, em 2001 foi

sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso uma nova Lei, a Lei

nº 10.219, que substituía a anterior, e autorizava o governo federal a

realizar convênios com todos os municípios brasileiros para a adoção de

programas de transferências monetárias, na forma de bolsas, associados à

educação.

Page 183: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

177

A Lei nº 10.219 responsabilizava os municípios pela administração

dos programas afins e o governo federal pelas transferências monetárias

para as famílias beneficiárias destes, por meio de um cartão magnético.

Tinham prioridade os municípios com os quais a União havia celebrado

convênios para programas de renda mínima em 2000; pertencentes a 14

estados brasileiros de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH);

integrantes de micro-regiões com IDH igual ou inferior a 0,500; em situação

de emergência devido à seca; que fizessem parte do Plano de Segurança

Pública por causa de altos índices de violência; que adotassem uma

metodologia de cadastramento e focalização que beneficiasse, em primeiro

lugar, as famílias mais pobres (Secretaria do Programa Nacional de Bolsa-

Escola, 2001).

Com relação ao benefício transferido, em função da Lei nº 10.219,

tinham direito a este aquelas famílias que comprovassem residência no

município; apresentassem renda familiar mensal per capita de até meio

salário mínimo ou R$ 90 (em valores de novembro de 2001) e que tivessem

filhos e/ou dependentes com idade entre 6 a 15 anos, matriculados e

freqüentando o ensino fundamental. Quanto ao valor do benefício, variava

entre R$ 15, R$ 30 e R$ 45, dependendo se a família tinha um, dois, três

ou mais dependentes. Seu recebimento estava condicionado à freqüência

mínima dos filhos e/ou dependentes às aulas (85%), reavaliada a cada três

meses. O recurso era entregue preferencialmente às mães, que recebiam

um cartão magnético da Caixa Econômica Federal. Aos municípios cabia a

responsabilidade de selecionar as famílias e fiscalizar a execução dos

programas, além de desenvolver ações sócio-educativas complementares

aos mesmos (Secretaria do Programa Nacional de Bolsa-Escola, 2001).

No entanto, ainda que a Lei nº 10.219 tenha possibilitado a

realização de convênios entre a União e todos os municípios brasileiros, esta

apresentava limitações referentes ao baixo valor do montante transferido e

à pouca disposição do governo federal em realizar convênios com governos

municipais e estaduais que contavam com programas afins que transferiam

montantes financeiros, em geral, de valor superior (Suplicy, 2002b).

Page 184: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

178

Antes que a Lei nº 10.219 entrasse em vigor, todavia, programas de

transferências monetárias, do tipo bolsa, já existiam em todas as regiões

brasileiras, por iniciativa de governos municipais, estaduais e, a partir de

1999, do governo federal. Em geral, estes estavam inspirados no modelo

bolsa escola do Distrito Federal - apoiados pelas Secretarias de Educação -

ou no modelo de garantia de renda mínima de Campinas - vinculados às

Secretarias de Ação Social ou similares78 (Amaral & Ramos, 1998, Silva e

Silva, 2002, Suplicy, 2002).

Em 1998, Amaral & Ramos realizaram uma pesquisa, de abrangência

nacional, acerca dos programas de renda mínima e bolsa escola no país

junto a diversos governos municipais e estaduais. Como desdobramento

desta foram identificados 24 programas distribuídos em 13 unidades da

federação e por todas as regiões brasileiras, sendo que os municípios de

São Paulo respondiam por 11 destes programas. Destes, três foram

iniciados em 1995, seis em 1996, oito em 1997 e sete em 1998, cuja

respectiva gestão administrativa-financeira era realizada, majoritariamente,

pelos governos locais (1999:2). Os resultados principais da pesquisa em

questão são apresentados a seguir:

- Quanto aos critérios de seleção dos beneficiários: a maioria adotava

um critério de renda familiar per capita de meio ou um terço do salário

mínimo. Outros critérios eram: a exigência de um tempo mínimo de

residência e a existência de filhos e/ou dependentes menores de idade

(normalmente de zero a 14 ou 7 a 14 anos). Com relação à avaliação das

condições sócio-econômicas dos beneficiários utilizava-se, na maioria dos

casos, o “sistema de pontuação” desenvolvido inicialmente pelo programa

de Brasília, onde eram contabilizados, entre outros, dados sobre condições

de moradia, bens de consumo duráveis, bens patrimoniais, instrução e

inserção profissional dos requerentes.

78 Segundo Lavinas & Varsano (1997) esses visavam, em geral, os seguintes objetivos: fortalecer a cidadania; proporcionar condições dignas de vida à população carente; dotar esta de melhores condições de obtenção autônoma de renda; possibilitar a dispensa do trabalho infantil, visando eliminar a transmissão da pobreza entre gerações.

Page 185: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

179

- Quanto ao valor e duração do benefício: o valor respeitava um dos

seguintes modelos: i) fixo, igual para todas as famílias independente da

renda e do número de filhos e/ou dependentes ii) variável, complementar à

renda familiar total ou à familiar per capita. Nesse caso, este poderia

corresponder à diferença integral entre a renda existente e o limite para

participar no programa ou corresponder a uma parte da diferença. Quanto à

sua duração, em geral, era por 12 meses podendo ser renovado por mais

um ano.

- Quanto às contrapartidas dos beneficiários: a ênfase no

atendimento à infância estava evidenciada pela contrapartida comum a

todos os programas - a exigência de matrícula e freqüência à escola dos

filhos e/ou dependentes em idade de escolarização obrigatória.

- Quanto aos serviços complementares: estavam divididos em

assistência familiar, atendimento à infância, incremento de renda e

encaminhamento a outros serviços públicos.

- Quanto ao número de beneficiários: apresentavam variações

significativas, decorrentes da dimensão diferenciada dos beneficiários

potenciais e do estágio de desenvolvimento que cada programa se

encontrava.

- Quanto à gestão e financiamento: observou-se uma tendência de

equipes de programas do tipo bolsa escola serem menores do que as do

tipo renda mínima, já que os primeiros valiam-se de recursos da rede de

ensino. A quase totalidade dos programas tinha como única fonte de

financiamento os recursos advindos do orçamento (municipal ou estadual).

- Quanto às relações institucionais: no âmbito das relações

interprogramas, observou-se o papel de destaque assumido pelas

experiências do Distrito Federal e de Campinas.

Amaral & Ramos afirmam que “apesar da vasta gama de serviços

mobilizada pelos programas de renda mínima e bolsa-escola em todo o

país, na maioria ainda predominava a ausência de articulação ordenada de

ofertas” (1999:7)79. Tal fato merece destaque visto que estudos acerca

79Segundo os autores, tais programas são prejudicados igualmente pela falta da participação das organizações da sociedade civil nas parcerias que são firmadas em torno dos mesmos para a realização

Page 186: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

180

desses programas têm mostrado que os resultados afins são mais

relevantes quanto maior sua articulação e associação com outras ações de

cunho social. Um exemplo nesse sentido encontra-se no artigo que Márcio

Pochmann, ex-secretário municipal do desenvolvimento, trabalho e

solidariedade, na gestão da prefeita Marta Suplicy em São Paulo, publicou

no jornal Folha de S. Paulo:

“A implantação de um novo formato administrativo na área social foi

condição necessária para a implantação da estratégia paulistana de

inclusão social, capaz de permitir a adoção de políticas redistributivas

aliadas à emancipação social, política e econômica. [...] Por conta disso,

os programas redistributivos foram articulados e integrados aos

programas de natureza emancipatória e aos de apoio ao

desenvolvimento local. Tudo isso foi associado matricialmente às

políticas de saúde, educação, transporte, assistência, segurança,

cultura, esporte e lazer, entre outras dos governos federal e estadual”

(Folha Opinião, 14/9/2004).

De todo modo, segundo Amaral & Silveira (2001), pelo fato dos

programas de transferências monetárias em geral articularem suas ações

com outros serviços, como assistência materno-infantil, alfabetização de

adultos, capacitação profissional, estes contribuem para a concepção de um

novo modelo de política social no país, que pressupõe a integração e a

intersetorialidade, diferente da tradicional fragmentação característica dos

programas sociais aqui implantados.

Na percepção desses autores, tais programas contam com dois

elementos inovadores: i) a concessão do benefício em espécie, o que traz

implícita a idéia de que os beneficiários são capazes de gerir suas

necessidades e recursos da forma que lhes parece mais adequada, evitando

sua tutela; ii) o incentivo à escolaridade de crianças e adolescentes em

situação de vulnerabilidade pessoal e social (Amaral & Silveira, 2001), o

que, em tese, pode contribuir para romper com o ciclo da pobreza. de serviços complementares, como no acompanhamento e intermediação para a obtenção de documentação básica (carteira de identidade e de trabalho).

Page 187: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

181

Silva e Silva (2002), por sua vez, acredita que “programas de

transferências monetárias voltados para famílias como incentivo ao

encaminhamento e manutenção de crianças nas escolas, constituem, no

presente, a dimensão mais ampla do sistema de proteção brasileiro, pela

extensão geográfica alcançada, pelo volume de recursos aplicados e pelo

número de famílias atendidas”.

Em 2002 essa autora participou de uma parceria entre três

universidades (PUC/SP, UNICAMP e Federal do Maranhão) para a realização

de uma pesquisa visando traçar o perfil dos programas de renda mínima e

bolsa escola, implementados no Brasil por governos estaduais e municipais.

Esta, entre outros, revelou os seguintes problemas com relação aos

mesmos: dualidade e paralelismo entre os programas de diferentes níveis

de governo, com uma forte tendência de o programa federal se sobrepor

aos demais80; insuficiência de recursos para o funcionamento adequado

destes; existência de critérios altamente restritivos para o respectivo

acesso; limites severos para a autonomização de seus beneficiários

tornando crítico o momento de desligamento dos mesmos (Silva e Silva,

1999).

Assim, se os programas de transferência monetária revelam uma

série de potenciais podendo vir a funcionar como catalizadores de ações

sociais variadas, estes têm sido também objeto de críticas e ponderações,

inclusive no que diz respeito às suas limitações enquanto instrumentos para

a erradicação da pobreza e diminuição da desigualdade, já que sua

estratégia não está suficientemente explicitada nesse sentido. Tal estratégia

também não está clara no sentido de revidar argumentos contrários a esses

que se referem, basicamente, ao risco da aceitação dócil da exclusão de

trabalhadores desqualificados para o mundo do trabalho; à dependência do

beneficiário e a decorrente falta de estímulo por parte do mesmo para

80 Em 2002 em diversos municípios e estados brasileiros havia programas de renda mínima, bolsa-escola e similares que não dialogavam entre si, que foram instituídos em anos anteriores, independentemente do programa do governo federal. Este foi o caso, por exemplo, do estado e do município de São Paulo que, até bem pouco tempo, tinham programas diferentes entre si e daquele do governo federal, e que além de tudo não interagiam.

Page 188: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

182

buscar trabalho; ao seu caráter eminentemente compensatório (UNICEF,

1997:1).

Para além da chamada armadilha do desemprego, as principais

críticas que tais programas têm enfrentado dizem respeito ainda: i) à

dificuldade de focalizar as populações beneficiárias e de criar mecanismos

justos que evitem o clientelismo e o apadrinhamento político na sua

seleção; ii) à desvinculação entre o valor dos benefícios auferidos e os

mínimos sociais necessários à subsistência familiar; iii) à dificuldade de

definir e implementar critérios para o desligamento dessas populações, uma

vez que a duração do subsídio e dos meios de sua autonomização não está

devidamente equacionada (Amaral & Silveira, 2001, Silva e Silva, 2002).

Os fatos acima citados traduzem-se na falta de mecanismos que

assegurem a continuidade da formação educacional das crianças e

adolescentes envolvidos com programas de transferências monetárias após

o término do recebimento do benefício; e na ausência ou insuficiência de

estratégias voltadas para a inserção econômica do público beneficiário

nessa mesma ocasião; ou seja, as os respectivos familiares ou

responsáveis. Outro ponto crítico apontado com relação a tais programas

tem a ver com o seu monitoramento e avaliação, cuja complexidade é

atribuída à dificuldade de realização de um trabalho integrado por parte das

instituições responsáveis que, muitas vezes, envolvem os três níveis da

federação, além da existência de poucos profissionais preparados para tal

fim nas instâncias locais (idem).

Frente ao quadro acima exposto, com base nas experiências regionais

do Programa Bolsa Escola, a UNESCO (2002) fez recomendações com

relação às propostas de transferências monetárias, do tipo bolsa, similares

aquelas realizadas por outros organismos internacionais, os quais postulam

a necessidade de melhor focalizar os programas sociais no sentido de

aumentar a eficiência do gasto correlato (Barros et alli., 2000; Banco

Mundial, 2004). Dentre estas recomendações, se destaca:

Page 189: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

183

- A reestruturação dos critérios de acesso e permanência. A seleção

das famílias deve levar em conta para além da renda per capita, as

respectivas condições de vida;

- O estudo do tempo de duração do benefício, definindo um período

para que essas possam sair das linhas de pobreza;

- A realização de um trabalho de capacitação profissional e

alfabetização dos seus membros adultos para que não se dependa do

benefício eternamente;

- A ampliação do atendimento às mesmas, atendendo às carências

em outras áreas além da educação, como saúde e segurança

alimentar.

Para além das críticas que têm sofrido os programas de

transferências monetárias do tipo bolsa, implantados no Brasil,

pesquisadores do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS),

como André Urani, Ricardo Paes e Barros e outros são entusiastas dos

mesmos considerando-os uma alternativa válida para erradicar a pobreza e

reduzir a desigualdade no país. No entanto, acreditam que, assim como os

demais programas sociais no Brasil, estão mal focalizados desperdiçando

recursos escassos. Neste sentido sugerem que seu desenho seja revisto

para melhor atenderem os mais pobres visando garantir sua eficiência e

evitar tal desperdício (IETS, 2003).

Já Camargo & Ferreira (2001), identificando os limites do Programa

Bolsa-Escola (hoje integrado ao Bolsa-Família), por este não atender a

famílias com crianças na faixa de zero a 6 anos e não incluir gestantes

entre seus beneficiários, e inspirados na experiência do PROGRESA

(Programa de Educação, Saúde e Alimentação implementado no México

desde 1995, denominado Oportunidades, na atualidade), sugerem que

famílias brasileiras com renda mensal abaixo de R$ 75 tenham direito a um

benefício monetário desde que ofereçam algum tipo de contrapartida. Tal

sugestão foi elaborada por eles na forma do Benefício Social Único, um

programa de renda mínima, de natureza focalizada e condicional, ao qual

toda família vivendo em condições de pobreza teria direito, desde que

enquadrada no critério seletivo. A estas transferências monetárias os

Page 190: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

184

autores agregaram intervenções em políticas setoriais visando aumentar a

qualidade dos serviços afins, como de educação e saúde, o que aproxima

ainda mais o Bolsa Família de sua proposta 81.

Quanto ao professor da Fundação Getulio Vargas, Marcelo Néri, no

artigo “A Alvorada da Fome Zero”, publicado na Revista Agroanalysis,

ressalta que políticas de transferência monetária por si só não resolvem os

fundamentos da eqüidade. Segundo ele, mudanças sustentáveis da

distribuição de renda exigem alterações na própria distribuição de renda. O

autor traça um paralelo entre um programa de renda mínima (o Bolsa-

Escola) e a Renda de Cidadania ou a Universalidade Incondicional, como

prefere chamar. As principais diferenças entre ambos estariam no foco e

nos condicionantes, ressaltando que uma das vantagens da renda

incondicional seria a de eliminar efeitos colaterais sobre a disposição ao

trabalho e à informalidade, o que faz esta menos sujeita a vieses e mais

simples, ainda que mais custosa (dezembro/janeiro de 2003).

Outros autores, como Amélia Cohn (2002) e Francisco de Oliveira

(2003) destacam que iniciativas voltadas para a superação da pobreza e

diminuição da desigualdade deveriam politizar o social e alcançar a

universalização de direitos (como o direito à renda) e não buscar uma

melhor focalização de programas e maior controle ou restrição no gasto

social.

Segundo Francisco de Oliveira, é chegado o momento de “radicalizar

a questão social no país” e elevar o investimento na área por meio da

implementação da renda básica de cidadania, em lugar de dar

prosseguimento aos programas de renda mínima de cunho liberal. Em um

artigo publicado na Folha de S. Paulo, o autor afirma que os custos sociais

no Brasil devem ser aumentados, “para que eles se transformem em um

obstáculo de fato, para poder a pobreza ser transformada em classe - em

classe quer dizer, em interesses”. Francisco de Oliveira chama a atenção

para o papel estratégico que o Estado poderia cumprir nesse sentido, 81 A idéia do Benefício Social Único foi incluída no documento “Agenda Perdida: Diagnósticos e Propostas para a Retomada do Crescimento com Maior Justiça Social”, elaborado pelo IETS em 2002.

Page 191: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

185

universalizando os direitos de cidadania o que, segundo ele, se daria pela

elevação do gasto público (Folha de S. Paulo, 29/12/2002).

Francisco de Oliveira (2003, 2004) postula ainda que programas de

renda mínima são instrumentos de “funcionalização da miséria” por serem

extremamente focalizados em uma parcela da população específica e se

constituírem em uma espécie de "ajuda humanitária" para garantir a

sobrevivência dos mais pobres, sem alterar a condição social destes; ou

seja, por não alterarem a estrutura de distribuição de riquezas do país.

Nesse sentido, a avaliação positiva que faz da proposta de uma renda

básica de cidadania se baseia justamente no fato de esta ser universal e

incondicional, embora o autor apresente ressalvas com relação a esta. Nas

suas palavras:

"A renda básica só se converterá em um instrumento efetivo de

distribuição de renda na medida em que atender amplamente à

população com benefícios razoavelmente elevados" (Francisco de

Oliveira, 2004 apud Fiúza, 2004).

Amélia Cohn (2002) manifesta uma preocupação de que programas

de renda mínima se tornem mais um paliativo num contexto como o

brasileiro, onde se mascara a questão do social e se faz com que a pobreza

perca sua dimensão fundamentalmente política passando a ser percebida –

equivocadamente - como um fenômeno “natural”. Segundo ela, se faz crer

que não só esta

“é inevitável, como combatê-la eficazmente significa enfatizar a

manutenção de políticas econômicas de estabilização fiscal (o social

se transmudando assim em econômico). Em decorrência, os parcos

recursos que o modelo econômico vigente permite disponibilizar para

a área social devem ser dirigidos para os segmentos mais pobres da

população, ou no jargão das agências multilaterais, para os ‘grupos

socialmente mais vulneráveis’” (Cohn, 2002).

Page 192: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

186

Cohn (2000) percebe uma distância cada vez maior no país entre o

social e o político, o que faz com que a questão social seja resolvida

tecnicamente, de acordo com os limites econômico-financeiros do Estado;

além de acontecer uma maior segmentação na própria área social.

No sentido de reverter o quadro acima exposto, a autora propõe que

se coloque o “social no lugar”. Acredita que “o principal desafio que se

impõe para quem defende uma sociedade justa e democrática é, diante do

“governo do mercado”, preservar e fortalecer o Estado e, sobretudo, a

democracia”. Para tanto, Cohn sugere combinar políticas de transferências

monetárias com a universalização do acesso aos direitos sociais básicos; e

com políticas econômicas que gerem empregos, criem novos postos de

trabalho e desconcentrem a atividade econômica dos núcleos dinâmicos da

economia (idem).

Pelo exposto, observa-se que os programas de transferências

monetárias no Brasil circunscrevem um terreno polêmico, um campo de

disputa sobre os significados de direitos e cidadania. Disputa esta que,

segundo Telles (1998), tem a ver com as dimensões pragmáticas da vida

política e os modos como os programas sociais são concebidos e

implementados no Brasil. Para esta autora, a questão dos programas de

renda mínima é política, “inteiramente política”. Assim, pergunta:

“Até que ponto estes se mantém no terreno de políticas residuais e

apenas compensatórias, ou conseguem se realizar como instrumentos

de políticas sociais pautadas por critérios universais de cidadania? Até

que ponto reafirmam o pressuposto miserabilista dos “mínimos de

pobreza” [...] ou são pautados por padrões de civilidade, “os mínimos

sociais”, a serem conquistados e negociados como um conjunto de

direitos a serem garantidos a todos? Até que ponto a autonomia que

se pretende promover com a transferência de renda para indivíduos

ou famílias, se reduz ao pressuposto possessivo liberal (a liberdade

entendida estritamente como a posse de bens e renda), ou consegue

se efetivar como capacidade (e liberdade) para escolher e realizar

formas de vida consideradas valiosas e válidas de serem vividas? E

Page 193: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

187

até que ponto essa suposta autonomia [...] se reduz ao pressuposto

de que os destinos das vidas desses indivíduos e famílias é algo que

diz respeito apenas às circunstâncias de suas vidas privadas, ou essa

promoção interpela um sentido de responsabilidade pública capaz de

garantir o conjunto de condições (econômicas, institucionais,

políticas) sem as quais essa liberdade de escolha não é mais do que

uma ficção?” (Telles, 1998).

A proposta de renda básica de cidadania vem de encontro com as

questões colocadas por Vera Telles (1998), Francisco de Oliveira (2004),

Amélia Cohn (2002,2004) já que, diferentemente daquelas de renda

mínima, pretende a universalização do direito ao benefício monetário, de

forma equânime e incondicional, colocando especial ênfase no papel do

Estado neste sentido, além da perspectiva de emancipação por parte de

seus beneficiários. Além de superar a focalização no âmbito dos programas

sociais, esta modalidade de renda pode evitar a fragmentação de tais

programas estimulando a intersetorialidade e a atenção integral, uma vez

que pressupõe a inauguração de um novo marco para a política social.

III.4.2 Renda de cidadania

De cada um de acordo com sua capacidade; a cada um de acordo com a sua necessidade

Karl Marx

Partiu do senador Eduardo Suplicy a iniciativa de implantar uma

política no país que contribuísse para a melhoria da distribuição de renda.

Para tanto, apresentou no Senado Federal, em dezembro de 2001, o Projeto

de Lei nº 266 visando instituir a Renda Básica de Cidadania no Brasil.

Segundo seu artigo 1º, “é instituída, a partir de 2005, a renda básica de

cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no

país, e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não

Page 194: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

188

importando sua condição sócio-econômica, receberem, anualmente, um

benefício monetário”82.

Tal projeto recebeu parecer favorável do senador Francelino Pereira,

relator da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, o qual, apresentou

um substitutivo ao mesmo que manteve a universalidade do original

estabelecendo, no entanto, que sua execução se desse por etapas, “a

critério do Poder Executivo, dando-se prioridade às camadas mais

necessitadas da população, aos indivíduos à margem do mercado, que se

situam abaixo da linha da pobreza, ou seja, aos excluídos” (Senado Federal,

2003).

Outra alteração importante que o senador Francelino Pereira fez com

relação ao projeto original da renda básica de cidadania foi retirar o

referendo popular previsto para outubro de 2004 a fim de que os eleitores

pudessem decidir sobre a mesma (idem).

Todavia, preocupado com as restrições orçamentárias para a

implantação imediata da renda de cidadania no país, o senador Francelino

Pereira propôs o substitutivo supracitado em uma tentativa de conciliar o

que o Brasil já estava fazendo em termos de transferências monetárias com

a perspectiva futura de sua ampliação até alcançar a universalidade,

cabendo ao Poder Executivo definir o valor do benefício “em estrita

observância ao disposto nos artigos 16 e 17 da Lei Complementar número

101, de 2001 (Lei de Responsabilidade Fiscal)”, o que acrescentou ao

82Vale ressaltar que, em 1999, o senador Suplicy já havia apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 82 visando instituir o “Fundo Brasil de Cidadania”, cujo recurso inicial seria constituído por 10% da participação acionária da União no capital das empresas públicas, sociedades de economia mista, incluindo as instituições financeiras. Os recursos deste Fundo seriam formados ao final por dotações consignadas no Orçamento Geral da União, 50% dos recursos provenientes das concessões de obras e serviços públicos, 50% dos aluguéis de imóveis pertencentes à União, outros ativos e doações. Tal projeto recebeu parecer favorável do senador Álvaro Dias na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. No entanto, seu parecer veio acompanhado de um substitutivo que alterou o artigo 1º do mesmo, definindo que a denominação cidadania “se destina ao financiamento de programa de renda mínima [Lei nº 9.533 de 10 de dezembro de 1997] e retirando a explicação de que a renda mínima é garantida como um direito à cidadania” (ver voto do relator senador Álvaro Dias, 2000). Evidentemente, tal substitutivo alterou o próprio conceito do Fundo. De todo modo, o projeto em questão aguarda para ser votado, em caráter terminativo, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal.

Page 195: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

189

projeto original (Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado nº 266, de

2001)83.

O senador Suplicy concordou com as alterações realizadas no Projeto

nº 266, afirmando:

“A renda de cidadania pode ser vista como um objetivo a ser atingido

quando racionalizarmos todos os programas de transferência de

renda que existem hoje no Brasil. Também pode ser vista como um

patamar importante e básico tanto do sistema tributário quanto do

sistema previdenciário nacional” (Senado Federal, 2003:3).

Tal projeto, com as alterações feitas pelo senador Francelino Pereira,

foi aprovado por voto nominal e unânime de todos os partidos na Comissão

83 Cabe destacar que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) constitui-se em uma lei eminentemente instrumental, visando impedir o descontrole dos gastos públicos, a fim de garantir o equilíbrio fiscal, a não ocorrência de déficits orçamentários e, portanto, a estabilidade macroeconômica. Assim, nenhum programa a priori é vetado pela supracitada lei em função da natureza da finalidade da despesa. Ou seja, a LRF não restringe ideologicamente nenhuma despesa, mas visa compatibilizar a mesma com a capacidade de arrecadação do governo (André Fernandes, Consultoria Legislativa, 4 de setembro de 2002). Já os artigos 16 e 17 estabelecem, in verbis: Art 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da

despesa será acompanhado de:

I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e

nos dois subseqüentes;

II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Art 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.

§ 1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio. § 2º Para efeito do atendimento do § 1º, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no § 1º do art. 4º, devido seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa. § 3º Para efeito do § 2º, considera-se aumento permanente de receita o proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. § 4º A comprovação referida no § 2º, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias. § 5º A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no § 2º, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar. § 6º O disposto no § 1º não se aplica às despesas destinadas ao serviço da dívida nem ao reajustamento de remuneração de pessoal de que trata o inciso X do art. 37 da Constituição. § 7º Considera-se aumento de despesa a prorrogação daquela criada por prazo determinado.

Page 196: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

190

de Assuntos Econômicos do Senado Federal em dezembro de 2002. A partir

daí foi encaminhado para a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara

dos Deputados. Em dezembro de 2003, recebeu parecer favorável do

deputado Paulo Bernardo, relator dessa Comissão.

No dia 8 de janeiro de 2004, finalmente, o presidente Lula sancionou

a Lei nº 10.835, que institui a Renda Básica de Cidadania, a qual deverá ser

implementada gradualmente no Brasil, a partir de 2005, priorizando os

segmentos mais necessitados da população, até atingir todos os brasileiros

residentes no país e os estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais.

Assim, pela lei sancionada, a renda básica – uma vez implantada –

não será concedida inicialmente a todos no Brasil. Sua universalidade será

alcançada gradualmente, de acordo com as determinações do Poder

Executivo. Quanto ao valor do benefício a ser transferido, será definido

levando-se em consideração o grau de desenvolvimento do país e as

possibilidades orçamentárias respectivas84.

De todo modo, conforme afirma o senador Suplicy “é importante

notar que o Plano de Governo do Lula, aprovado pelo Congresso Nacional

do PT em 2001, enfatizou que a renda mínima e outras formas de

transferência de renda deveriam ser vistas como passos em direção à renda

básica de cidadania” (2003). Segundo ele, tal decisão foi reforçada em

março de 2003 pelo Diretório Nacional do partido, cuja resolução nesse

sentido é apresentada a seguir:

“[...] as propostas de reforma tributária, previdenciária e trabalhista

devem levar em consideração a instituição de uma Renda Básica de

Cidadania como a base de rendimento a que todo(a) brasileiro(a)

84Suplicy faz uma simulação do montante de recursos necessários para a implantação da renda de cidadania no país. Segundo ele, “se o Brasil pagar R$ 40,00 por mês, ou R$ 480,00 por ano, por pessoa, para todos os seus 179 milhões de habitantes, isto dará um dispêndio total de R$ 85,9 bilhões anualmente, o equivalente a 5% do PIB de cerca de R$ 1,8 trilhão (estimado para 2004), [o que, reconhece, é uma quantia muito significativa], mas bem inferior aos R$ 145 bilhões que o setor público do Brasil [...] pagou sob a forma de juros aos detentores da dívida interna e externa no ano de 2003” (2004).

Page 197: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

191

deve ter acesso como direito de participar da riqueza da nação.

Conforme consta no programa do Presidente Lula, os diversos

programas de transferência de renda [...] devem ser vistos como

passos na direção de uma Renda Básica de Cidadania. A Bancada do

PT na Câmara dos Deputados, em harmonia com o Poder Executivo,

deverá acompanhar com atenção a tramitação do Projeto de Lei do

Senado 266/2001 ou o Projeto de Lei da Câmara 254/2003 que cria a

Renda Complementar de Cidadania, de maneira compatível com as

reformas tributária, previdenciária e trabalhista” (Resolução sobre as

Reformas do Diretório Nacional do PT, item 23).

Em mensagem enviada por Phillipe Van Parijs ao presidente Lula por

ocasião da aprovação da lei que instituiu a renda de cidadania no Brasil, o

autor pondera que esta deve ser implantada no país de forma “ousada,

mas responsável”. Segundo ele, até completá-la, a concessão do benefício

monetário deverá ser condicionada à condição de renda, por meio de

regras simples e de procedimentos transparentes, visando evitar o

clientelismo. Van Parijs alerta igualmente para que desde o início da sua

implantação se preste especial atenção à “harmoniosa articulação com os

sistemas de seguridade social relacionados com o emprego formal e com os

sistemas de isenção incorporados ao mecanismo de imposto de renda”.

Segundo ele,

“Quanto mais cedo, mais aprofundado e de maneira inteligente os

vários esquemas forem integrados, menor será o risco de a renda de

cidadania ficar para sempre presa a um vasto programa direcionado

aos pobres, com todos os riscos de dependência e, finalmente, de

reações políticas que isso implica” (Van Parijs, 2004).

A economista Lena Lavinas acredita que a novidade do projeto que

institui a renda de cidadania no Brasil consiste em tentar estabelecer uma

regra de transição dos programas de transferências monetárias hoje em

execução em direção à renda universal e incondicional. Contudo, a autora

demonstra preocupação a respeito:

Page 198: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

192

“[...] num país onde a universalização está hoje sob custódia por

imperativos macroeconômicos, onde a sobre-focalização do gasto

social é tida como o único meio de reduzir a desigualdade e ampliar a

cidadania, onde 80% das transferências diretas de renda são de

cunho contributivo (aposentadorias e pensões), e alvo de propaladas

críticas por espelharem uma estrutura regressiva, e somente 2,2%

delas são de natureza compensatória, sujeita a diversas

condicionalidades, destinada a um percentual pequeno das dezenas

de milhões de pobres que conta o país, não deixa de surpreender que

a partir de 2005 estejamos adotando a renda básica de cidadania

como direito universal e incondicional de todos aqueles, brasileiros ou

não, que vivem legalmente no país” (Lavinas, 2004:4).

No artigo “Universalizando Direitos”, publicado na edição de 2004 do

Observatório da Cidadania/Social Watch, divulgado anualmente por

organizações não-governamentais, Lena Lavinas afirma que em vez de o

governo brasileiro gastar recursos e esforços para tentar atingir apenas os

segmentos mais pobres da população por meio de programas de transferência

de renda, como o Bolsa Família, deveria universalizar um benefício a todas as

crianças e adolescentes de zero a 16 anos de idade, residentes no país, no

sentido de obter um impacto de maior magnitude na superação da pobreza.

Fazendo simulações do impacto de um programa de transferência de

renda do tipo universal junto a vários segmentos populacionais, a autora

conclui que a melhor relação entre o respectivo custo e benefício se daria com

um benefício individual, no valor de R$ 80, a todas as crianças e adolescentes.

Daí o porquê da sua proposta. Segundo ela, este reduziria a pobreza no país

em um terço e levaria a uma queda expressiva do GINI, uma vez que

permitiria que a renda dos 20% mais pobres dobrasse vis-à-vis a dos 20%

mais ricos85.

85Segundo Lavinas, como há 56,7 milhões de crianças de zero a 16 anos no país, o custo desse benefício alcançaria R$ 54,6 bilhões o que, perto do que o governo gasta com programas como o Bolsa-Família (cerca de R$ 11,5 bilhões em 2004), pode parecer alto. Cita como possível fonte de financiamento a suspensão da desvinculação da receita da União no orçamento da Seguridade Social, prevista para este ano em R$ 46,5 bilhões. Ao defender a proposta, ela diz também que teria impacto na geração de emprego e renda, criando 2,3 milhões de novos postos de trabalho remunerados. "Se o gasto for considerado alto demais, é possível começar o programa com um valor por criança inferior a R$ 80 e ir aumentando em uma progressão a ser definida” (2004:4).

Page 199: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

193

Dessa forma, Lavinas defende que as políticas universais podem

impactar positivamente a redistribuição de renda. Nesse sentido, propõe o

modelo supracitado, o qual, para a autora, pode ser percebido como uma

transição dos programas de renda mínima em direção a uma política de

renda básica universal, conforme aquela prevista na Lei nº 10.835,

sancionada pelo presidente Lula em janeiro de 2004 (IBASE, 2004)86.

Pochmann (2003) ressalta a necessidade de se expandir os gastos

sociais no Brasil com vistas à universalização das políticas sociais e ao

aumento do seu impacto distributivo. Sobre este último aspecto vale

considerar os desafios para os quais Paulo Henrique Martins (2004) aponta

no sentido de discriminar um programa emancipatório (distributivo) de um

assistencialista (compensatório). Nas suas palavras:

“[...] o primeiro deles refere-se justamente à diferenciação entre

renda mínima e renda básica, pois se [este programa] for pensado

como um montante irrisório, mal suficiente para a sobrevivência,

dificilmente será percebido senão como assistencialista. O segundo

desafio relaciona-se à burocracia de Estado: ela deve ser competente

e legalista, mas para que o programa seja apreendido como

emancipatório, um elemento além é fundamental – o vínculo

simbólico entre técnicos e beneficiários deve ser marcado pela

confiança mútua. Por fim, o último desafio corresponde à capacidade

do programa de gerar redes sociais [...], o que significa uma

mudança do paradigma individualista para o coletivista, mais capaz

86 Nesse sentido vale considerar que para além do significado da focalização enquanto uma política seletiva, tal focalização por vezes assume o significado de uma ação reparatória visando restituir o acesso a direitos universais “formalmente” iguais por determinados grupos sociais mais vulneráveis que têm dificuldade em efetivá-los. Segundo Kerstenetzky, essa ação focalizada, caso implementada, complementaria “as políticas públicas universais, justificadas por uma noção de direitos universais, afeiçoando-se à sua lógica, uma vez que diminuiria as distâncias que normalmente tornam irrealizável a noção de igualdade de oportunidades embutida nesses direitos” (2003:84). Sobre este aspecto, portanto, a focalização faria parte de uma concepção universalista de direitos de cidadania. Seria a “discriminação positiva”, compatível com o princípio da retificação ou da reparação, nas palavras da autora (idem).Tal focalização, na percepção de Kerstenetzky (2003), seria compatível ainda com a concepção de justiça social ralwsiana, em função da qual as liberdades formais para se converterem em liberdades reais requerem a distribuição reparatória de oportunidades. Essa reparação, entretanto, conforme postula Rawls, deve se dar ex ante.

Page 200: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

194

de proporcionar uma percepção emancipatória e não assistencialista

do benefício” (in Justo, 2004:16).

Neste caso, o que dizer de programas que:

“possuem um valor irrisório?; estimulam a qualificação profissional e

a recolocação dos desempregados no mercado de trabalho?; tão

somente entregam o benefício como direito do cidadão, sem fazer

nenhuma exigência, porém sem também oferecer qualquer incentivo

para a inserção dos desempregados no mercado de trabalho? [...]

que aspectos da cidadania são enfatizados e/ou negligenciados por

eles? Mais pontualmente, programas que visem a solucionar,

paralelamente, ao problema patente do desemprego, estariam

fundados numa concepção ultrapassada de cidadania, que não se

adequa mais aos novos tempos?” (Justo, 2004:14).

De todo modo, na discussão acerca da progressividade da renda

mínima em direção à renda básica de cidadania parece fundamental

recuperar a participação da sociedade na definição dessa política, o que

poderia se dar por meio dos conselhos setoriais os quais vêm sendo

considerados, na literatura especializada, como um importante mecanismo

da chamada democracia deliberativa, que permite “uma ampliação do

espaço público, com a possibilidade de discussão aberta e deliberação

acerca de políticas públicas e a democratização do processo decisório, além

da possibilidade do controle social” (Schattan et alli., 2001; Gerschman,

2004).

Nesse mesmo sentido, Paulo Henrique Martins (2003) referindo-se à

discussão brasileira com relação aos programas de transferências

monetárias, afirma que a introdução de uma renda básica no país deve ser

acompanhada de uma discussão ético-moral da reforma do Estado no

sentido de sua relação com a sociedade civil, a qual, a seu ver, deveria ser

mais democrática. De fato, segundo ele, esta deveria contemplar o

protagonismo dos diversos atores sociais e a cidadania ativa como dois

Page 201: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

195

componentes importantes que dão o tom de uma sociedade madura e

emancipada.

Sobre esse último aspecto, Cohn (2004), ressalta a importância da

idéia de construção da cidadania como um processo de habilitação para o

desenvolvimento das capacidades dos indivíduos para que possam defender

e representar coletivamente seus interesses e participar, de forma efetiva,

da esfera produtiva e societária. Dessa forma, uma política de renda de

cidadania requer que se traga à cena instâncias representativas da

sociedade civil para participar da formulação e gestão respectiva.

Daí a pergunta: como serão definidas as necessidades que deverão

ser contempladas por meio da renda básica de cidadania? Conforme

ressalta Medeiros (2003), Sen (1995) mostrou que a questão central nas

considerações sobre igualdade (ou desigualdade), que está por trás da

proposta dessa modalidade de renda, é responder à pergunta: “igualdade

de quê?”, o que mostra que a valoração de uma alocação depende do que

se venha a definir como necessidade. Mas a quem caberá essa definição?

Page 202: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

196

IV CONCLUSÃO

A renda básica de cidadania tem potencial de contribuir para a

promoção de uma distribuição menos desigual de bens primários, vindo de

encontro ao principio de igual liberdade formulado por John Rawls, na sua

teoria de justiça. A eficiência de tal modalidade de renda está na

transferência de um beneficio monetário que permitirá aos cidadãos (ãs) o

exercício de suas liberdades fundamentais, uma vez que estes terão suas

necessidades básicas satisfeitas. Nesse sentido, passarão do universo das

carências para aquele dos direitos socais em função do qual poderão

reinscrever seu lugar no espaço público e terão condições de atuar como

sujeitos ativos, capazes de reivindicar e criar direitos novos.

Essa renda vem de encontro também com o princípio de igual

oportunidade e com o da diferença formulado por Rawls, segundo o qual as

desigualdades sociais e econômicas deverão ser ajustadas visando

proporcionar maior vantagem para as pessoas mais desfavorecidas da

sociedade. De fato, já que a renda básica de cidadania será transferida de

forma equânime e incondicional, individualmente, faz com que o sistema de

proteção social passe a beneficiar tais membros de forma privilegiada.

Dessa maneira, uma das mais importantes características dessa modalidade

de renda refere-se ao fato da não-exigência de contribuição.

A renda básica de cidadania, no entanto, está situada para além dos

‘mínimos sociais’ representando, igualmente, um meio eficaz de promover

as liberdades propostas por Amatya Sen, na sua teoria do desenvolvimento

como liberdade. Conforme previsto, por meio desta, as pessoas poderão

utilizar o benefício monetário livremente, da forma que lhes parecer mais

adequada, segundo suas próprias escolhas e preferências, o que contribuirá

para a respectiva emancipação. Conclui-se, portanto, que a existência de

benefícios não contributivos, como a renda básica de cidadania concedida a

toda a população, poderá vir a representar um dos trunfos imprescindíveis

do sistema de seguridade social, capaz de minimizar a desigualdade

distributiva e promover a solidariedade. A partir daí, enfatiza-se, o eixo da

Page 203: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

197

equidade e da cidadania, por um lado e se critica o eixo da estigmatização

de setores populacionais de mais baixa renda, por outro, o que com uma

política de renda básica de cidadania, será ultrapassado.

No contexto europeu, a adoção de tal modalidade de renda vem

sendo discutida de forma amadurecida tendo em vista o respeito às

características peculiares que os sistemas de Welfare State assumiram, nos

diferentes países do continente. Estes permitiram que benefícios sociais

fossem incorporados à estrutura da sociedade sob a forma de direitos

sociais, de modo que tal sistema não sofresse um desmantelamento. Muito

pelo contrário, nesses países, em geral, cada vez mais políticas universais

vêm sendo propaladas como solução para a problemática social. Nesses

casos, os programas de transferência direta de renda têm funcionado como

complementares ao sistema de proteção social como um todo, em fase de

aperfeiçoamento.

Já no contexto latino-americano e, mais especificamente, brasileiro,

tais programas são de natureza residual e compensatória não estando claro

o seu papel enquanto instrumento para uma política social pautada em

critérios universais de cidadania.

Frente ao quadro acima exposto, parece pertinente a colocação de

Lavinas (2004) acerca do paradoxo que significa a aprovação recente da lei

que institui a renda básica de cidadania no país, no momento em que o

sistema de proteção social brasileiro “se configura como residual, num

misto de condicionalidades e acesso fortemente restritivo, na direção oposta

ao espírito universalista redistributivo da reforma social que levou à

constituição da seguridade social”.

De fato, embora no Plano do Governo Lula (2001) e na Resolução do

Partido dos Trabalhadores sobre as Reformas (2003) se aponte para o

conjunto de iniciativas de transferência monetária em curso no país (hoje

reunidas em parte no Programa Bolsa-Família), como uma etapa inicial de

implantação da renda básica de cidadania, ainda não se observa um

movimento mais consistente por parte desse governo no sentido de discutir

Page 204: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

198

esta proposta de forma ampliada e planejar os passos subseqüentes para

sua implementação. Também ainda não se observou uma atitude que

subsidiasse sua implantação no tempo previsto como, por exemplo, a

dotação orçamentária necessária para o ano de 2005, quando formalmente

seria iniciada. O que se tem por enquanto são vozes isoladas, como a do

próprio autor da proposta, o senador Eduardo Suplicy, de intelectuais, como

Francisco de Oliveira (USP) e outros que estão à espera dos ecos das suas

falas.

Na realidade, o Bolsa-Família, pela sua natureza extremamente

seletiva, está tentando sair das armadilhas que colocou para si, ajustando

seu foco no sentido de garantir que a complementaridade da sua ação

aconteça por meio da intersetorialidade sem a qual assumiria um caráter

puramente assistencialista e nada emancipatório.

Nesse contexto, o governo brasileiro continua a prescindir de políticas

socioecoômicas que resultem em mudanças estruturais visando à superação

da pobreza, à redução das desigualdades e à desconcentração da renda. De

fato, isto não está explícito em uma política integrada, onde o social assume

simultaneamente sua dimensão econômica e política, o que é demonstrativo

de que a cidadania ainda espera por avanços mais significativos no país.

De todo modo, já que a renda básica de cidadania está fundamentada

em um paradigma diferente daquele adotado pelos programas de

transferências monetárias vigentes, é fundamental precisar em que

momento ou através de quais pressupostos e condicionantes o governo

brasileiro terá condições de efetuar a mudança paradigmática proposta; ou

seja, a transição de programas compensatórios e focalizados para uma

política redistributiva e universal, que implica numa alteração profunda na

área social [no que se refere à estrutura de distribuição de renda e

riquezas] e econômica [no que se refere à revisão de prioridades e ao

aumento do gasto social], se é que existe vontade política para tanto.

Caso essa transição não se esclareça, o sistema de proteção social do

país provavelmente continuará preso a políticas que se identificam com

Page 205: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

199

modelo de Walfare State residual, como os programas de transferência

monetária hoje implantados no Brasil que atuam, em geral, ex post na

medida em que, para a concessão do benefício, sujeitam as pessoas ao

teste de renda. Estes são, na sua grande maioria, de caráter temporário e

segmentam a sociedade entre dois grupos – excluídos e incluídos –, não

contando, portanto, com a dimensão integradora dada pela condição

universal de cidadania.

Assim, com a adoção de programas compensatórios a dimensão da

cidadania fica restrita “a uma dimensão parcial do atendimento e do

consumo, assegurado pelo estatuto de uma cidadania cívica e segmentando

a condição de inserção e a relação dos cidadãos com o Estado: aqueles

parcialmente assistidos, os protegidos e a grande maioria dos desassistidos,

conforme destaca Cohn(2002).

Frente ao exposto, o desafio maior agora no Brasil está em

internalizar e fazer cumprir a lei supracitada, além de preceitos

constitucionais que levaram à universalização de direitos de cidadania no

Brasil, o que significou uma vitória da mobilização e da organização popular.

Mas como universalizar no país, da forma mais eficaz possível, os novos

instrumentos de cidadania introduzidos por uma política que, de fato,

represente um avanço com relação a tudo que já foi feito antes? Até que

ponto o governo e a sociedade estão preparados para abraçá-la? Quais os

principais fatores político-institucionais que viabilizarão sua efetividade? Ou,

perguntado de outra forma: em que medida o governo brasileiro está

respondendo a contento demandas sociais por meio das suas políticas e

programas? Logo, em que medida está exercendo seu papel de

representação ao definir as diretrizes e propósitos com relação a estas? Ou

mais especificamente, em que medida os programas de transferência

monetária são expressão de demandas sociais, que conseguiram se fazer

representar a ponto de adquirir expressão política o suficiente para serem

objeto de políticas públicas?

Page 206: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

200

No sentido de responder a tais questões vale considerar que só se

pode determinar a eficiência de programas de transferência monetária uma

vez que se tenha determinado quais os propósitos a realizar por meio das

políticas públicas. Pois, a decisão quanto a estes [propósitos] é crucial para

conduzir o debate da focalização versus a universalização considerando as

implicações diretas daí decorrentes [na estrutura de desigualdades, nos

gastos e nas dimensões da máquina administrativa para operacionalizar

políticas e/ou programas correlatos] e aquelas indiretas, sobretudo as que

se referem ao processo político que decide a pertinência de sua

manutenção.

Finalmente, do ponto de vista teórico, vale considerar que se acredita

na pertinência da adoção de uma renda básica de cidadania com vistas a

promover a justiça social. De fato, se o problema da desigualdade é aquele

que se faz mais premente na realidade brasileira, de cuja solução

dependem diversos outros problemas, o mais eficaz, desse ponto de vista, é

distribuir melhor o já que se tem, ou seja, priorizar a justiça social. Já, do

ponto de vista prático, se acredita que é o momento de abrir a discussão

em torno desse tema para que este seja amadurecido junto aos principais

beneficiários da política em questão; qual sejam: os diversos segmentos

que integram a sociedade brasileira.

Page 207: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

201

V REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABONG (2004). In: DURAO, Jorge E.S. “Lula e o desgaste da confiança na política”. Disponível em: http://www.abong.org.br/novosite/livre.asp?cdm=1887 . Acesso em 28 março 2004 ALVARES DE SOUSA, Marcelo (2003). “A Tese da Perda de Centralidade do Trabalho como Despolitização do Capitalismo Contemporâneo”. Mimeo ALVAREZ, J. Francisco (2001). “Capacidades, liberdades y desarrollo: Amartya Kumar Sen”. In: Máiz, R. (comp.) (2001). Teorias Públicas Contemporâneas. Serviço de Publicações da Universidade de Valencia AMARAL, Carlos (1997). Programas de Renda Mínima e Bolsa-Escola: concepção, gestão e financiamento. Rio de Janeiro. Napp/UNICEF AMARAL, Carlos e RAMOS, Silvia (1999). “Programas de Renda Mínima e Bolsa Escola: panorama atual e perspectivas”. In: Interface. No 1. Belo Horizonte AMARAL, Carlos e SILVEIRA, Caio M. (2001). “O Programa Bolsa Escola em Minas Gerais: concepção, implementação e desafios”. Mimeo ANTONIA DE SOUZA (1998). “Desigualdade e Exclusão: Reflexões a partir da obra de Robert Castel”. Mimeo AVRITZER, L.. (1993). “Além da Dicotomia Estado-Mercado”. In: Novos Estudos, nº 36, São Paulo ASSIS, J. Carlos de (2003). “A crise da economia enquanto crise do trabalho”. Disponível em: http://www.desempregozero.org.br/palestras/a_crise_da_economia_enquanto_crise_do_trabalho.php. Acesso em 06 fevereiro de 2004 AUGUSTO RAMOS, César (s/d). “A Concepção de Pessoa no Liberalismo de John Rawls”. Universidade Federal do Paraná. Mimeo AZNAR, Guy (1994). “Pour le travail minimum garanti. Non au revenu déxistence, oui à l’indemnité de partage du travail”. In: Futuribles. Paris, no 184 BANCO MUNDIAL (2004). Um Brasil Mais Justo, Sustentável e Competitivo: estratégia de assistência ao país 2004-2007 BALTAZAR, M. Cristina (1996). “Transformações Atuais do Estado de Bem-Estar Social: Programas de Garantia de Renda Mínima, as ONGs na Prestação de Serviços Sociais e a Dscentralização de Politicas Sociais”. Campinas. Unicamp. Núcleo de Estudos de Políticas Públicas, monografia 4

Page 208: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

202

BARACHO, José Alfredo de O. (2002). “A pobreza e a luta contra a exclusão social: a cidadania degradada”. Mimeo BARROS, Ricardo Paes, HENRIQUES, Ricardo, MENDONÇA, Rosane (2000),“Evolução Recente da Pobreza e da Desigualdade: marcos preliminares para a política social no Brasil”. In Pobreza e Política Social, Cadernos Adenauer, no 1, São Paulo. Fundação Konrad Adenauer BARROS, Ricardo Paes de, HENRIQUES, Ricardo/ MENDONÇA, Rosane (2000). “Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 15 n° 42 BAVA, Sílvio C. (1998). “Alcances e Limites dos Programas Municipais de Renda Mínima”. In: Programas de Renda Mínima no Brasil, São Paulo, Instituto Poli BENEVIDES, Maria Victoria (2001). “A Questão Social no Brasil: os Direitos econômicos e sociais como direitos fundamentais”. Mimeo BITTAR, Mariana (2002). O Sistema de Proteção Social Brasileiro e o Combate à Pobreza. IUPERJ, Rio de Janeiro, Tese de Mestrado BORLANDY, L. (2003). Comunidade Solidária. Tese de Doutorado. ENSP/FIOCRUZ BOBBIO, Norberto (1982). Dicionário de Política. Brasília/DF, Editora UnB CÂMARA DE DEPUTADOS. Comissão de Finanças e Tributação (2003). Parecer do relator deputado Paulo Bernardo relativo ao Projeto de Lei número 254, que institui a Renda de Cidadania e dá outras providências CAMARGO, José M. (2003). “A herança maldita”. In: FOLHA DE SÃO PAULO, Opinião Tendências/Debates, São Paulo 07/12/2003 CAMARGO, José M. e FERREIRA, Francisco (2001). O Benefício Social Único: Uma proposta de reforma da política social no Brasil. Rio de Janeiro. PUC. Texto para Discussão número 443 CASTEL, Robert (1995): Les métamorphoses de la question sociale. Une Chroniquedu salariat. Paris. Fayard. CASTEL, Robert (s/d). “Da indigência à exclusão, à desfiliação: precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional”. In: Saúde e Loucura no. 4, São Paulo, Hucitec CASTEL, Robert (1998, 2001). As metamorfoses da questão social. Petrópolis. Editora Vozes COELHO DE SOUZA, M.M. (1999). A Transposição de Teorias sobre a Institucionalização do Welfare State para o Caso dos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro. IPEA. Texto para Discussão no 695

Page 209: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

203

COHN, Amélia (2002). “O lugar do social”. In: Observatório da Cidadania. Rio de Janeiro, IBASE COHN, Amélia (2000). “As políticas sociais no governo FHC”. In: Tempo Social. São Paulo. Revista de Sociologia da USP COHN, Amélia (2003). “Reconfigurações da questão social no Brasil”. In: Observatório da Cidadania. Rio de Janeiro, IBASE COHN, Amélia (2004). “Programas de Transferência de Renda e a Questão Social no Brasil”. In: Estudos e Pesquisas nº 85. Mini-Fórum em homenagem aos 40 anos do IPEA. Rio de Janeiro. Instituto Nacional de Altos Estudos CONH, Amélia (1998). “Permanência e reestruturação das políticas sociais nos anos 90”. In: Observatório da Cidadania, Rio de Janeiro, IBASE COSTA, Bruno L.D. (2002). “As mudanças na agenda das políticas sociais no Brasil e os desafios da inovação”. In: Carvalho, et all. (organiz). Políticas Públicas. Belo Horizonte. Editora UFMG COUTROT, Thomas e HUSSON, Michel (2004). “Refundar e superar o mercado de trabalho”. In: Revista Viento Sur DIAS, Maria Clara (2004). “Justiça: procedimental ou substantiva?” Rio de Janeiro. Centro de Ética da Mente/UFRJ. Mimeo DIEESE-SEADE (2002). Pesquisa Emprego / Desemprego. São Paulo. Boletim de Resultados DOWORKIN, Ronald (1981). “What is equality?” In: Philosophy and Public Affairs, no 10 DRAIBE, Sônia (1997). “Uma nova Instiutionalidade das Políticas Sociais ? Reflexões a propósito da experiência latino-americana recente de reformas de programas sociais”. In: São Paulo em Perspectiva, no 11 DRAIBE, Sônia e HENRIQUE, Wilnês. (1988). "Welfare State, Crise e Gestão da Crise: Um Balanço da Literatura Internacional". In: Revista Brasileira de Ciências Sociais (ANPOCS), n.º 6, vol. 3 DRAIBE, Sônia (2002). “Brasil 1.980-2.000: proteção e insegurança sociais em tempos difíceis”. Trabalho para Taller Inter-Regional “Protección Social en una Era Insegura: Un Intercambio Sur-Sur sobre Políticas Sociales Alternativas en Respuesta a la Globalización”. Santiago. Maio 14-16 DRAIBE, Sônia (2002). “,Brasil, a proteção social após 20 anos de experimentação reformista”. Mimeo ESPING-ANDERSEN, Gosta. (1991). “As Três Economias Políticas do Welfare State”. In: Lua Nova – Revista de Cultura e Política. São Paulo: CEDEC, n.º 24

Page 210: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

204

ESPING-ANDERSEN, Gosta (1990). The Three Worlds of Welfare Capitalism. Cambridge University Press ESTEVES, Julio (2002). “As Criticas ao Utilitarismo por Rawls”. Mimeo ESTIVILL, J. (2003). « Panorama de la Lucha contra la Exclusión Social. Conceptos y Estrategias ». STEP/Potugal, OIT. Mimeo EUZEBY, Chantal (2002). “Renda Mínima: uma revolução tranqüila”. In: Le Monde Diplomatique. Edição brasileira, ano 1, no 9 FASCIOLI, Ana (2002). “Capacidades, perfeccionismo y autonomía del sujeto en el pensamiento de Amartya Sen”. Actio no 2. Universidade de la República. Mimeo FONSECA, Ana M. Medeiros da (2001). Família e política de renda mínima. São Paulo: Editora Cortez FRANCISCO DE OLIVEIRA (2003). “O enigma de Lula: ruptura ou continuidade?”. Disponível em: <http//www.brasilnews.com.br/News3.php3?CodReg=7737&edit=Artigos&Codnews=> Acesso em:03 novembro de 2004 FRANCISCO DE OLIVEIRA (2001). “O que é Formação para Cidadania?” In: Revista da ABONG, edição especial, São Paulo, ABONG FRANCISCO DE OLIVEIRA (2003). “É preciso manter o estado de rebeldia”. In: Reportagem – Revista da Oficina de Informações. São Paulo, Editora Três, ano IV, no 41 FRANCISCO DE OLIVEIRA (2004). In: Jornal da Unicamp. “Francisco de Oliveira vincula reforma a interesses do mercado” 29/8/2003 - Edição 225 FRIEDMAN, Milton (1977). Capitalismo e Liberdade. Editora Arte Nova FURTADO, Celso (2004). Mensagem enviada para o presidente Lula em 7 de janeiro de 2004 GAETANI, Francisco (1997). Gestão e avaliação de políticas e programas sociais: subsídios para discussão. Brasília/DF. ENAP. Texto para discussão número 14 GERSCHMAN, Sílvia (2002). “Municipalização e inovação gerencial. Um balanço da década de 1990”. Mimeo GERSCHMAN, Sílvia (1995). A Democracia Inconclusa. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz GERSCHMAN, Sílvia (nov/dez 2004). “Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das comunidades populares”. In Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro. Vol. 20 no 6. Editora Fiocruz

Page 211: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

205

GOMEZ, Jorge Montenegro (2002). “ Crise e Mutações do Trabalho”.Trabalho de final de curso da disciplina “A Questão cidade-campo: agroindústria e movimentos sociais”. Presidente Prudente. Programa de Pós-graduação em Geografia da FCT/UNESP GOUGH, I. ((2000). Global Capital, Human Needs and Social Policies. Selected Essays: 1994-99. London: Palgrave. GOVERNO FEDERAL (2004). Plano Brasil de Todos: desenvolvimento, participa;cão e inclusão. Plano Plurianual 2004-2007 GRONDONA, Mariano (2000). Os pensadores da liberdade. São Paulo: Editora Mandarim GRZYBOWSKI, Cândido (2004). “Programa sob fogo de barragem”. www.ibase.org.br. Acesso em 27 outubro 2004 GRZYBOWSKI, Cândido (1998). “Cooperação Internacional Desenvolvimento Social: em busca do elo perdido”. In: Democracia Viva, no.2, Rio de Janeiro, Editora Moderna e IBASE HABERMAS, Jurgen (1984). Theory of Communicative Action. Boston. Beacon Press IBASE (2004). Prefácio. In: Observatório da Cidadania. Rio de Janeiro/RJ IETS, Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (2002). “A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social”. Rio de Janeiro. Mimeo IETS, Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (2001). Desenvolvimento com Justiça Social: esboço de uma agenda integrada para o Brasil. Rio de Janeiro Policy Paper 1 INOJOSA, R. (1997). A Gestão de Políticas de Desenvolvimento Social: Aspectos Organizacionais do Aparato de Estado. São Paulo: Fundap. TextosTécnicos INTER REDES (abril de 2004). “PPA e a construção coletiva da participação social”. Mimeo IVO, Anete B. L. (2004). “O Acirramento do Conflito Distributivo na Base: o novo tratamento da política social focalizada”. Salvador. Mimeo JOHNSTON, David (1996). “The Idea of a Liberal Theory: A Critique and Reconstruction”. In: JOHNSTON, David. Rawls e o utilitarismo. New Jersey: Princeton Universtity Press JUNQUEIRA & INOJOSA (1997). Desenvolvimento social e intersetorialidade na gestão pública municipal. São Paulo. Fundap. Textos Técnicos

Page 212: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

206

JUSTO, Carolina R. (2004). “Experiência de Renda Mínima no Brasil: mapeamento dos programas e modelos paulistas”. Trabalho apresentado no IV Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política. Rio de Janeiro. PUC. Julho, 22-24 KERSTENETZKY, Célia (2001). “Brasil – a violência da desigualdade”. In: Observatório da Cidadania. Rio de Janeiro. IBASE KERSTENETZKY, Celia (2003). “Desigualdade como questão política”. In: Observatório da Cidadania. Rio de Janeiro. IBASE LACABANA, Miguel e MAINGON, Thais (s/d). “La focalización: políticas sociales «estructuralmente ajustadas»”. Mimeo LAISNER, Regina (2002). “Democracia e justiça: em busca de uma nova relação nas lições de John Rawls”. Trabalho apresentado no 3O Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política. UFF/ Niterói LAVINAS, Lena (2003). “Luta contra a Pobreza Urbana”. Documento de Guia. Rede URBAL 10. Mimeo LAVINAS, Lena & VERSANO, Ricardo (1997). Programas de Garantia de Renda Mínima e Ação Coordenada de Combate à Pobreza. Rio de Janeiro, IPEA, Texto para Discussão número 534 LAVINAS, Lena (2004). “Excepcionalidade e paradoxo: renda básica versus programas de transferência direta de renda no Brasil”. Rio de Janeiro. Instituto de Economia. UFRJ. Mimeo LAVINAS, Lena (1999). Combinando Compensatório e Redistributivo: o desafio das políticas públicas sociais no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA. Documento apresentado no Seminário Desigualdade e Pobreza no Brasil LAVINAS, Lena (2002). The Appeal of Minimum Income Programmes in Latin America. Genebra, ILO. Documento para discussão LAVINAS, Lena (2001). Renda Mínima: por quê vale à pena? Brasília,/DF. Seminário realizado no Congresso Nacional LOLIS, Dione (1999). “Solidariedade e Politica Social”. Mimeo LOPES ALVES (2002). “Justiça e Democracia: algumas notas sobre o caso de Rawls”. In: Metacritica no 2. Gradiva publicações. Disponível em: http://metacritica.ulusofona.pt/detalhe.asp?id=11. Acesso em 25 AGO 2004 LO VUOLO, Rubén; BARBEITO, Alberto e RODRÍGUEZ, Corina (2002). “La Inseguridad Sócio-Economica como Política Pública. Transformación del Sistema de Proteccion Social y Financiamiento Social en Argentina”. Buenos Aires. Ciepp – Centro Interdisciplinar para o Estudo de Políticas Públicas LO VUOLO, Rubén (1998). “El Ingreso Ciudadano Frente al Problema de La Pobreza: nuevos conceptos para un sistema de políticas públicas más

Page 213: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

207

eficiente e igualitário”. Trabalho elaborado para o Seminário “Reforma da Administração Pública: possibilidades e obstáculos”. Recife. Mimeo LO VUOLO, Rubén (org.) (1995). Contra la exclusión. La propuesta del ingreso ciudadano. Buenos Aires, CIEPP/Mino y Dávila MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio (2004). “Cidadania, Democracia e Justiça Social”. In: Revista Democracia Viva no 22. MAGALHÃES, Rosana (2001). “Integração, exclusão e solidariedade no debate contemporâneo sobre as políticas sociais”. In: Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 17(3) mai-jun MANFREDO, A. de Oliveira (s/d). “Rawls e o Brasil contemporâneo”. Mimeo MANKIW, N. Gregory (1999). Introdução à economia. Rio de Janeiro: Campus MARQUES, Rosa M. (1997). A Proteção Social e o Mundo do Trabalho. São Paulo. Bienal MARQUES, Rosa M. e MENDES, Aquila (2003a). “Notas sobre o Social no governo Lula: a construção de um novo populismo em tempos de aplicação de uma agenda neoliberal”. Mimeo MARQUES, Rosa M. e MENDES, Äquila (2003). “O governo Lula e acontra-reforma previdenciária”. Mimeo. MARTINI, Marcus (2002). “Notas sobre o Neocontratualismo na Teoria da Justiça de John Rawls”. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/filosofia-juridica/neocontratualismo_rawls.htm>. Acesso em: 25 agosto de 2004 MARTINS, Paulo Henrique (org.) (2003). A Dádiva entre os Modernos. Petrópolis: Editora Vozes MARTINS, Constantino (2000). “Políticas Sociais para a Inserção: Traços da Aplicação do RMG em Vila Nova de Famalicão”. Trabalho apresentado no IV Congresso Português de Sociologia, Coimbra, Abril, 17-19 MAURIEL, Ana Paula (2004). “O debate sobre as reformas das políticas de bem-estar na União Européia”. IFCH/Unicamp. Mimeo MEADE, James E. (1989). Agathotopia: The Economics of Partnership, Aberdeen: Aberdeen University Press MEDEIROS, Marcelo (1999). Princípios de Justiça na Alocação de Recursos em Saúde. Rio de Janeiro. IPEA. Texto para Discussão no 687 MEDEIROS, Marcelo (1999). A Transposição de teorias sobre a institucionalização do Welfare State para o caso dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro. IPEA. Texto para Discussão nº 695

Page 214: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

208

MÉDICI, André (s/d). “Welfare State no Brasil”. Mimeo MESA-LAGO, C. (2000). « Desarollo social, reforma del estado y de la seguridad social, al umbral del siglo XXI ». Series Politicas Sociais. Santiago do Chile : CEPAL. Miller, David; Walzer, Michael (eds.) (1995). Pluralism, justice, and equality. Oxford: Oxford University Press MINISTERIO DA FAZENDA (2003). Política econômica e reformas estruturais. MINISTÉRIO DA FAZENDA (2003).“Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002”. Brasília/DF MINISTÉRIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME (2005). Bolsa Família: saiba como o programa muda a vida dos brasileiros NAVARRO Vicenço; SCHMITT John e ASTUDILLO Javier (2002). “La importancia de la política en la supuesta globalización económica. La evolución de los Estados del Bienestar en el capitalismo desarrollado durante la década de los años noventa”. Mimeo NEDEL, José (2000). John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: Edipucrs NERI, Marcelo C. (dez/jan 2003). “A alvorada da fome zero”. In: IBRE/FGV. Fome Zero em Debate. Rio de Janeiro. Revista Agroanalysis, vol 22, número 10 NOZICK, Robert (1974). Anarchy, State and Utopia. Basic Bookd, Harper Collins NUSSBAUM, Marta e SEN, Amarthya (1993). The Quality of Live. Clarendon Paperbacks OFFE, Claus (1989). Trabalho e sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da sociedade do trabalho. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, v. 1 OFFE, Clauss (1989). “Trabalho: a categoria sociológica chave?” In: Capitalismo Desorganizado. São Paulo: editora brasiliense OFFE, Clauss (1996). “Un diseño no productivista por las politicas sociales” In: LO VUOLO, Rubén. Contra la exclusión. La propuesta del ingreso ciudadano. Buenos Aires, CIEPP/Mino y Dávila OLIVEIRA, Neiva Afonso (2000). Rosseau e Rawls: contrato em duas vias. Porto Alegre: Edipucrs

Page 215: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

209

PAINE, Thomas (1796). "Agrarian justice". In: The Life and Major Writings of Thomas Paine (P.F. Foner ed.), Secaucus (New Jersey): Citadel Press, 1974 PAUGAM, Serge (2002). « The RMI in France : the limits of a progressive social policy>. Mimeo PAUGAM, Serge (1999). « A Abordagem Sociológica da Exclusão ». In : Por uma Sociologia da Exclusão. O Debate com Serge Paugam. Bicudo Véras M. P. (Ed.) São Paulo: EDUC PAUGAM, Serge (ed.) (1998). L’Europe face à la pauvreté. Les expériences nationales de revenu minimum. Paris, La Documentation Française PARTIDO DOS TRABALHADORES (2001). Plano de Governo PARTIDO DOS TRABALHADORES (2003). Resolução sobre reformas. São Paulo PEIXOTO, João Paulo (2003) “Statecraft: o legado do governo Fernando Henrique e os desafios de Lula”. Trabalho apresentado no VIII Congresso Internacioanal sobre Reforma do Estado e da Administração Pública, Panamá, outubro, 28-31 PEIXOTO RAMOS, Daniela (2003). A Justiça Distributiva Liberal e a Previdência Social no Brasil. Brasília. Texto para Discussão no 937 PEREIRA SILVA, Josué (1998). “Renda mínima, trabalho e cidadania: o projeto Suplicy em debate”. In: Revista Estudos Econômicos. São Paulo. IPE/USP/SP, vol.28. no 4 PEREIRA, Francelino (2002). Parecer sobre o Projeto de Lei do Senado 266, de 2001, que institui a renda básica incondicional. Brasília/DF. Congresso Nacional, Comissão de Assuntos Econômicos PIERSON, Paul (2001). “Post-Industrial pressures on the mature welfare state”. In: PIERSON, Paul (org). The News Politics of the Welfare State. Oxford University Press POCHMANN, Márcio (2003). “Desigualdade de Renda e Gastos Sociais no Brasil: algumas evidências para o debate”. Prefeitura do Município de São Paulo. Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade. Mimeo POCHMANN, Márcio (2004). Rumo à renda de cidadania. In: FOLHA DE SÃO PAULO, Opinião Tendências/Debates, São Paulo 14/09/2004 PORTO, M. (2000). Promoção da Saúde e Intersetorialidade: a experiência da vigilância em saúde do trabalhador na construção de redes. Salvador: VI Congresso Nacional de Saúde Coletiva

Page 216: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

210

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto no 5209 de 17 de setembro de 2004. Regulamenta a Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que cria o Programa Bolsa-família e dá outras providências PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei no 10.838 de 9 de janeiro de 2004, que cria o Programa Bolsa-família e dá outras providências PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (2002). Uma Estratégia de Desenvolvimento Social. Brasília: Governo Federal PROGREBINSCHI, Thamy (2001). John Rawls: da Justiça como equidade ao liberalismo político. Rio de Janeiro. Fórum de alunos do IUPERJ RAMOS, Carlos Alberto (1994). Programa de garantia de renda mínima. Brasília/DF, IPEA. Texto para Discussão número 367 RAWLS, John (2001). Justice as fairness: a reestatement. The Belknap Press of Harvard University Press RAWLS, John (1982). Uma Teoria da Justiça, Brasília, Editora UnB RAWLS, John (1971). A theory of justice. The Belknap Press of Harvard University RAWLS, John (1993). O Liberalismo Político. México. Fondo de Cultura Econômica RAWLS, John (2000). O Liberalismo Político. São Paulo. Editora Atica RAWLS, John (1992). “Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica”. São Paulo. Lua Nova, Revista de Cultura e Política no 25 RENTERIA, Pablo (s/d). O Real-Libertarianismo de Rawls. Mimeo RITS (2004). “ONGs reclamam o primado dos Direitos Sociais, do desenvolvimento sustentável e da ampliação da democracia”. Rio de Janeiro. Revista do Terceiro Setor. Disponível em”<http//www.negocionacional.com.br/abong.htm> Acesso em 22 outubro 2004 ROSANVALLON, Pierre (1995). La nueva cuestión social: repensar el Estado providencia. Buenos Aires. Manantial ROSÁRIO COSTA, Nilson (2002). “Política social e ajuste macroeconômico”. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 18(Suplemento) ROUANET, Luiz Paulo (2002a). “Justiça como eqüidade: uma proposta brasileira” Trabalho apresentado no 3º Encontro Nacional da ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política. UFF/Niterói/RJ 28 – 31 de julho ROUANET, Luiz Paulo (2002b). Rawls e o Enigma da Justiça. São Paulo. Unimarco Editora

Page 217: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

211

SANTOS, Wanderley G. (1979). Cidadania e Justiça – A Política Social na Ordem Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda. SCHATTAN V.; ARAÚJO L.; CIFUENTES M. (2000). “Política Social: o que podemos esperar da participação?”. Mimeo SEN, Amartya (1999). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras SEN, Amartya (1980). "Equality of What?". In: S. McMurrin (org.). Tanner Lectures on Human Values. Cambridge. Cambridge University Press SEN, Amartya (1992). Inequality Reexamined. Cambridge, Harvard University Press SEN, Amartya (2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Record SEN, Amartya (2000). Social Exclusion: Concept, Application and Scurtinity, Asia Development Bank, Manila, Social Development Papers no.1 SENADO FEDERAL. Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (2000). Parecer do relator senador Álvaro Dias relativo ao Projeto de Lei do Senado número 82, que autoriza o Poder Executivo a criar o Fundo Brasil Cidadania SENADO FEDERAL (2003). Renda de Cidadania SILVA FILHO, Francisco Bento (s/d). “Liberdade e Igualdade: do limiar da modernidade à sociedade em rede”. UFPB. Mimeo SILVA E SILVA, M. (1996). Crise da sociedade salarial e renda mínima: nova forma de política social? Campinas: unicamp SILVA E SILVA, m. (1997). Renda mínima e reestruturação produtiva. São paulo, Cortez Editora STANDING, Guy (1999). Global Labour Flexibility: Seeking Distributive Justice. Basingstoke: Macmillan SPOSATI, Aldaíza (2002). “Regulação social tardia: características das políticas sociais latino-americanas na passagem entre o segundo e o terceiro milênio”. In: Políticas sociais para um novo mundo necessário e possível. Porto Alegre. Caderno Ideação. II Fórum Social Mundial SUPLICY, Eduardo (nov/dez 1999). “Uma proposta contra a pobreza”. In: Revista Problemas Brasileiros SUPLICY, Eduardo M. (2002a). Renda de Cidadania: a saída é pela porta. São Paulo, Cortez Editora SUPLICY, Eduardo M. (2002). Da Renda Mínima à Renda Básica no Brasil: a evolução recente de um instrumento de combate à pobreza e à desigualdade. Mimeo

Page 218: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

212

SUPLICY, Eduardo M. (2002b). Renda Básica: a resposta está sendo soprada pelo vento. Genebra. Paper apresentado no IX Congresso Mundial da BIEN SUPLICY, Eduardo M. (2003). Programa Fome Zero do Presidente Lula e as Perspectivas da Renda Básica de Cidadania no Brasil. São Paulo, Conjuntura Econômica, v.4, n.1 SUPLICY, Eduardo (2003). Renda da cidadania. Projeto de lei do senado federal que institui uma renda de cidadania e parecer do senador Francelino Pereira. Brasília: Senado federal. SUPLICY, Eduardo M. (2000). Em direção à renda de cidadania: uma contribuição à tese guia. Documento para discussão. SUPLICY, Eduardo M. (dez./jan. de 2003). Da renda mínima à renda básica: evoluem os instrumentos de combate à pobreza e resgate da cidadania. In: IBRE/FGV. Fome Zero em Debate. Rio de Janeiro. Revista Agroanalysis, vol 22, número 10 SUPLICY, Eduardo (2001) O Direito Inalienável a Uma Renda Básica no Século XXI Palestra proferida no Fórum Social Mundial - 25 a 30/01/2001 em Porto Alegre/RS. TAVARES DE ALMEIDA, Maria H. (2003). “A política social no governo Lula”. Mimeo TAVARES, Laura e SETÚBAL, Mariana (2003). “O debate sobre o gasto social do Governo Federal ou “os economistas da Fazenda atacam outras vez”. Mimeo TELLES, Vera da Silva (1998). “No Fio da Navalha: entre carências e direitos, notas a propósito dos programas de renda mínima no Brasil”. In Programas de Renda Mínima no Brasil. São Paulo. Instituto Polis, número 30 THOMAS, H. (1999) Les Exclus. Paris: PUF. UNICEF (1997). Resultados da Avaliação do Programa Bolsa-escola-DF. Mimeo VANDERBORGHT, Y. (2002) “Basic income in Belgium and the Netherlands: implementation through the back door? Mimeo. E-mail: [email protected]. VAN PARIJS, Philippe (1997). O que é uma sociedade justa? São Paulo: Editora Ática VAN PARIJS, Philippe (2000). “Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?”. In: Estudos Avançados, 14 (40)

Page 219: ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ

213

VAN PARIJS, Philippe (2002). “Faz sentido transformar a renda básica em projeto mundial?” Trabalho apresentado no 9 Congresso Internacional da BIEN, OIT, Genebra, 12 a 14 de setembro. Traduzido pelo gabinete do senador Eduardo Suplicy VAN PARIJS, Philippe (1996). “Mas allá de la solidariedad. Los fundamnetos éticos del estado de bienestar y de su superación”. In: LO VAN PARIJS, Philippe (2003). “ Renda Básica e Renda Mínima”. Econômica, v. 4 VAN PARIJS, Philippe (1992). “Competing justifications of basic income”. In: Arguing for Basic Income; ethical foundations for a radical reform. London, Verso VAN PARIJS, Philippe (2004). “Renda de Cidadania: vontade e sabedoria do Brasil”. Mensagem enviada para o presidente Lula em 07 de janeiro de 2004 VETHENCOURT, Fabiola (s/d). “La teoría de la capacidad de Amartya Sem”. Trabalho apresentado no IV Congresso Português de Sociologia. Humánitas. Portal Temático em Humanidades VIEIRA, L. (1997). Cidadania e Globalização. Editora Record. Rio de Janeiro. VITA, Álvaro de (1998). As Exigências Motivacionais da Justiça Igualitária. VITA, Álvaro de (1993). Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. SãoPaulo: Paz e Terra VITA, Álvaro de (1999a). “Uma Concepção Liberal-Igualitária de Justiça Distributiva”.. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo. vol.14 no 39 VITA, Álvaro de (1999b). “Justiça Distributiva: A Crítica de Sen a Rawls”. In: Revista Dados. Rio de Janeiro. vol.42 no 3 WERNECK VIANNA, M.L. (1998) A Americanização (perversa) da política social no Brasil. Rio de Janeiro: Revan. WOLFE, A. (1992). “Três Caminhos para o Desenvolvimento: Mercado, Estado e Sociedade Civil. Desenvolvimento”. Cooperação lnternacional e as ONGs. Rio de Janeiro. IBASE-PNUD ZALUAR, Alba (1997). “Exclusão e políticas públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas”. São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35 ZIMMERMANN , Clóvis (2004). “Combate à fome e o direito humano à alimentação no Brasil: o primeiro ano do Programa Fome Zero do governo LULA”. FIAN International. Mimeo