ESCOLA PÚBLICA E SEUS DETERMINANTES HISTÓRICOS, POLÍTICOS E ECONÔMICOS

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ESCOLA PÚBLICA E SEUS DETERMINANTES HISTÓRICOS, POLÍTICOS E ECONÔMICOS: ALGUNS APONTAMENTOS PELETTI, Amilton Benedito 1 “Coisas antes tidas por dificílimas provocam o riso da posteridade” (COMENIUS, 2002, p. 112) RESUMO: Este texto tem por objetivo levantar alguns apontamentos acerca das condições históricas, políticas e econômicas que determinaram a constituição da escola pública, bem como, as contradições e conflitos presentes neste processo. A presente análise é resultado da utilização de textos bem como das reflexões realizadas durante as aulas da disciplina de “Elementos históricos sobre a Escola Pública” no curso de Mestrado em Educação na Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE, no segundo semestre do ano de 2010. Para tanto nos utilizaremos aqui de autores considerados clássicos, por considerarmos que estes são fontes essenciais para a compreensão da gênese da escola pública. Abordaremos desde João Amós Comenius com sua obra “Didáctica Mágna”, Martim Lutero com sua obra “Educação e Reforma”, Adam Smith com a “Riqueza das Nações”, John Dewy com o texto “Experiência e Educação”, Georges Snyders com a obra intitulada “Escola, classe e luta de classes”, Antonio Gramsci com “Os Intelectuais e a Organização da Cultura”, Dermeval Saviani com o texto “O neoprodutivismo e suas variantes: neo-escolanovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo (1991-2001)”, dentre outros. PALAVRAS-CHAVE:Escola Pública, História, luta de classes. Gênese da escola pública Na busca de entendermos as questões históricas, econômicas e políticas que condicionaram a ampliação do acesso a educação escolar, é necessário nos reportarmos aos escritos de Martim Lutero (1483-1546), pois este pensador teceu severas críticas ao Estado clerical e a educação medieval em defesa de uma educação formal de qualidade ao afirmar que lugar de criança é na escola. Afinal, o que se aprendeu até agora nas universidades e conventos a não ser ficar burro, grosso e estúpido? Houve quem estudasse vinte, quarenta anos e não sabe nem latim tampouco alemão. Não quero nem 1 Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE, Professor da Rede Pública Municipal de Cascavel. E-mail: [email protected].

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ESCOLA PÚBLICA E SEUS DETERMINANTES HISTÓRICOS, POLÍTICOS E

ECONÔMICOS: ALGUNS APONTAMENTOS

PELETTI, Amilton Benedito1

“Coisas antes tidas por dificílimas provocam o riso da posteridade”

(COMENIUS, 2002, p. 112)

RESUMO: Este texto tem por objetivo levantar alguns apontamentos acerca das

condições históricas, políticas e econômicas que determinaram a constituição da escola

pública, bem como, as contradições e conflitos presentes neste processo. A presente

análise é resultado da utilização de textos bem como das reflexões realizadas durante as

aulas da disciplina de “Elementos históricos sobre a Escola Pública” no curso de

Mestrado em Educação na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, no

segundo semestre do ano de 2010. Para tanto nos utilizaremos aqui de autores

considerados clássicos, por considerarmos que estes são fontes essenciais para a

compreensão da gênese da escola pública. Abordaremos desde João Amós Comenius

com sua obra “Didáctica Mágna”, Martim Lutero com sua obra “Educação e Reforma”,

Adam Smith com a “Riqueza das Nações”, John Dewy com o texto “Experiência e

Educação”, Georges Snyders com a obra intitulada “Escola, classe e luta de classes”,

Antonio Gramsci com “Os Intelectuais e a Organização da Cultura”, Dermeval Saviani

com o texto “O neoprodutivismo e suas variantes: neo-escolanovismo,

neoconstrutivismo, neotecnicismo (1991-2001)”, dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE:Escola Pública, História, luta de classes.

Gênese da escola pública

Na busca de entendermos as questões históricas, econômicas e políticas que

condicionaram a ampliação do acesso a educação escolar, é necessário nos reportarmos

aos escritos de Martim Lutero (1483-1546), pois este pensador teceu severas críticas ao

Estado clerical e a educação medieval em defesa de uma educação formal de qualidade

ao afirmar que “lugar de criança é na escola”.

Afinal, o que se aprendeu até agora nas universidades e conventos a

não ser ficar burro, grosso e estúpido? Houve quem estudasse vinte,

quarenta anos e não sabe nem latim tampouco alemão. Não quero nem

1 Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Professor da Rede

Pública Municipal de Cascavel. E-mail: [email protected].

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falar da vida vergonhosa e libertina na qual a nobre juventude foi

estragada tão miseravelmente.

É bem verdade: se as universidades e conventos não aplicarem novos

métodos de ensino e modos de vida para a juventude, eu acharia

melhor que nenhum jovem aprendesse qualquer coisa e ficassem

mudos (LUTERO, 2000, pp. 13-14).

No entanto é com João Amós Comenius (1592-1670), mais especificamente com

sua obra “Didática Magna” que a universalização do ensino começa a ser pensada e

exigida de forma mais contundente.

Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte

universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter

resultados; de ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e

discentes se molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande

alegria; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer

maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a

uma piedade mais profunda. Finalmente, demonstramos esses coisas a

priori, partindo da própria natureza imutável das coisas, como se

fizéssemos brotar de uma fonte viva regatos perenes, que se unissem

depois num único rio para constituir uma arte universal, a fim de

fundar escolas universais (COMENIUS, 2002, pp. 13-14).

É nesse sentido que Comenius vai estabelecendo um novo rumo para a

educação, afirmando inclusive que, “O homem para ser homem, precisa ser formado”

(2002, p. 71), e, segundo o mesmo autor, é interessante que esta formação ocorra ainda

na juventude:

No homem essas coisas são obtidas do mesmo modo: o cérebro (que,

como dissemos, ao receber através dos sentidos imagens das coisas

comporta-se como a cera) na idade infantil é úmido, tenro, pronto para

receber todas as imagens que lhe chegam; aos poucos vai secando e

endurecendo, e por isso as coisas nele serão impressas e esculpidas

com maior dificuldade, como demonstra a experiência. Donde a

célebre afirmação de Cícero: “As crianças apreendem rapidamente

inúmeras coisas”. Assim, mesmo as mãos e os outros membros só

podem exercitar-se nas várias atividades nos anos de primeira

infância, enquanto os nervos estão maleáveis. Quem quiser tornar-se

bom copista, pintor, alfaiate, músico etc., deverá aplicar-se ao ofício

desde os primeiros anos (quando a imaginação ainda é ágil e os dedos

flexíveis), pois de outro modo não atingirá seus fins. Da mesma

maneira, para que a piedade finque suas raízes no coração de alguém,

deverá ser plantada desde os primeiros anos; se quisermos preparar

alguém para que venha a ter hábitos refinados, será preciso desbastá-

lo em tenra idade; quem tiver de fazer grandes progressos no estudo

da sabedoria precisará abrir seus sentidos para que eles tudo acolham

logo nos primeiros anos, quando o ardor é vivo, o engenho vivaz e a

memória tenaz. “Ver um velho a aprender os primeiros elementos do

saber é coisa repugnante e ridícula. O jovem deve ganhar, e o velho

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deve fazer bom uso do que ganhou e acumulou”, diz Sêneca na

Epístola 36 (COMENIUS, 2002, pp. 79-80).

Neste contexto Comenius ao afirmar que “[...] Os pais raramente estão em

condições de educar os filhos com proveito ou raramente têm tempo para isso: segue-se

que deve haver pessoas que exerçam apenas essa profissão, e desse modo toda educação

se provê a toda comunidade” (2002, p. 85), defende que essa formação aconteça num

determinado local que não mais pode ser a casa, principalmente devido à falta de tempo

e por ser melhor que essa instrução seja realizada em espaços que comportem grupos

maiores:

No entanto, como tanto os homens quanto as questões humanas se

multiplicaram, raros são os pais que sabem ou podem educar os filhos

se que têm tempo suficiente para isso: felizmente, já há tempos

firmou-se o hábito de confiar muitos filhos em conjunto a pessoas

escolhidas para instruí-los, pessoas eminentes pela cultura e pela

austeridade dos costumes. Esses educadores são chamados

preceptores, pedagogos, mestres e professores: os locais destinados a

esse ensino comum são chamados escolas, institutos, auditórios,

colégios, ginásios, academias etc. (COMENIUS, 2002, pp. 83-84).

Com a difusão dessas ideias vai também se difundindo a premissa de que com a

criação de escolas deveria também ser ampliado o acesso a elas, pois:

As considerações abaixo demonstram que devem ser confiados à

escola não só os filhos dos ricos ou das pessoas mais importantes, mas

todos em igualdade, de estirpe nobre ou comum, ricos e pobres,

meninos e meninas, em todas as cidades, aldeias, povoados, vilarejos

(COMENIUS, 2002, p. 89).

Ou ainda,

Se alguém perguntasse: o que acontecerá se os operários, os

camponeses, os almocreves e até as jovens mulheres adquirirem

cultura? Eu responderia; acontecerá que, instituída com meios

apropriados essa educação universal da juventude, a ninguém faltará

matéria para refletir, para propor-se e perseguir fins, e para agir. Cada

um saberá para onde dirigir todas as ações e os desejos da vida, que

caminhos trilhar e como conservar o seu próprio lugar. Todos se

dedicarão de bom grado, mesmo em meio a trabalhos e lidas, à

meditação sobre as palavras e as obras divinas, evitando os perigosos

ócios da carne e do sangue pela assídua leitura da Bíblia e dos outros

bons livros (doce prazer que atrai os que já o experimentaram). E digo

uma vez por todas: deverão aprender a ver, a louvar, a abraçar Deus

em toda parte; por esse motivo, aprenderão a viver com mais alegria

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esta vida cheia de afãs e a aguardar com maior desejo e esperança a

vida eterna. E porventura não é verdade que tal condição da igreja

representa para nós o Paraíso que é possível obter abaixo do céu?

(COMENIUS, 2002, pp. 92-93).

Comenius aponta também em seu texto a necessidade de “ensinar tudo a todos”,

defendendo que o principal não seria um conhecimento profundo da ciência e da arte,

mas um conhecimento geral:

Cumpre-nos agora demonstrar que nas escolas é preciso ensinar tudo a

todos. Isso não quer dizer que queiramos um conhecimento (exato e

profundo) de todas as ciências e artes: isso não seria útil em si mesmo

nem possível a ninguém, tendo em vista a brevidade da vida. Toda

arte (por exemplo a física, a aritmética, a geometria, a astronomia,

mas também a agricultura e o cultivo das plantas) é tão extensa em

amplitude e profundidade que pode exigir uma vida inteira mesmo de

homens de mente excelsa, caso estes se empenhem em estudos

teóricos e experimentais; isso ocorreu com Pitágoras com a aritmética,

a Arquimedes com a mecânica, a Agrícola com a metalurgia, a

Longueil com a retórica (mesmo cuidando apenas disso, para tornar-se

um ciceroniano perfeito). Todos aqueles, porém, que estão no mundo

não só como atores, devem aprender a conhecer os fundamentos, as

razões, os fins de todas as coisas mais importantes, que existem ou

existirão. E é preciso cuidar (aliás, garantir) para que ninguém no

mundo jamais depare com alguma coisa que lhe seja tão desconhecida

que não consiga sobre ela emitir um juízo moderado ou dela fazer um

uso adequado, sem erros nocivos (COMENIUS, 2002, p. 95).

No entanto isso não diminui a defesa que Comenius faz da “arte de ensinar tudo

a todos”,

Portanto, a arte de ensinar não exige mais que uma disposição

tecnicamente bem feita do tempo, das coisas e do método. Se formos

capazes de estabelecê-la com precisão, ensinar tudo a todos os jovens

que vão à escola, sejam quantos forem, não será mais difícil que

imprimir mil páginas por dia com bela escrita em caracteres

tipográficos, transportar casas, torres e qualquer peso com a máquina

de Arquimedes, ou navegar sobre o oceano e ir para o Novo Mundo. E

tudo ocorrerá de modo tão fácil quanto o funcionamento de um

relógio perfeitamente equilibrado pelos pesos. Tudo será tranquilo e

agradável, assim como tranquilo e agradável é ver tal autômato, e será

também tão seguro quanto um desses instrumentos criados pela arte

(COMENIUS, 2002, p. 127).

No entanto, para que isso fosse se efetivando aos poucos, era necessário que este

ensino que ora passara a ser ministrado em uma instituição e não mais em casa tivesse

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alguém que o financiasse, já que se deixasse a cargo de cada um, continuaria a ser

destinado a uma pequena parcela da população.

É nesse contexto que Adam Smith (1723-1790), na Inglaterra, pensando em

questões econômicas tendo em vista o modo de produção capitalista, começa a esboçar

como deveria funcionar o financiamento dessas instituições, justificando que:

A dotação provém, em toda parte, sobretudo de algum rendimento

local ou provincial, do arrendamento de uma propriedade territorial,

ou dos juros de alguma soma de dinheiro concedida e confiada à

gestão de curadores para esse fim específico, ora pelo próprio

soberano ora por algum doador

Particular.

As dotações concedidas a escolas e colégios necessariamente

diminuíram, em menor ou maior grau, a necessidade de os professores

se aplicarem em sua profissão. Sua subsistência, na medida em que

provém de seus salários, tem provindo evidentemente de um fundo

que independe totalmente do sucesso e da reputação que conseguem

em suas ocupações especializadas. (SMITH, 1993, pp. 199-200).

Portanto, seria necessário, como forma de suprir a diminuição das dotações que

até então garantiam o funcionamento das escolas, que o Estado organizasse-as em todos

os locais,

O Estado pode facilitar essa aprendizagem elementar criando em cada

paróquia ou distrito uma pequena escola, onde as crianças possam ser

ensinadas pagando tão pouco que até mesmo um trabalhador comum

tem condições de arcar com este gasto, sendo o professor pago em

parte, não totalmente, pelo Estado, digo só em parte porque, se o

professor fosse pago totalmente, ou mesmo principalmente, com o

dinheiro do Estado, logo começaria a negligenciar seu trabalho.

“O Estado pode estimular a aquisição desses elementos mais

essenciais da educação oferecendo pequenos prêmios e pequenas

distinções aos filhos das pessoas comuns que neles sobressaírem.

O Estado pode impor à quase totalidade da população a

obrigatoriedade de adquirir tais elementos mais essenciais da

educação, obrigando cada um a submeter-se a um exame ou período

de experiência em relação aos mesmos, antes que ele possa obter a

liberdade em qualquer corporação ou poder exercer qualquer

atividade, seja em uma aldeia, seja em uma cidade corporativa

(SMITH, 1993, pp. 215-216).

Adam Smith, também tece criticas a educação que até então era baseada mais

nos aspectos religiosos que científicos, apontando elementos, tais como: educação e

violência, educação como ocupação e o papel do Estado frente à educação.

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Existem, porém, dois remédios muito fáceis e eficazes com os quais,

aplicados conjuntamente, o Estado pode corrigir sem violência tudo

aquilo que de anti-social ou desagradavelmente rigoroso existe na

moral de todas as pequenas seitas em que se dividiu o país. O primeiro

deles é o estudo da ciência e da filosofia, que o Estado poderia tornar

mais ou menos geral entre todas as pessoas de posição e fortuna

médias ou superiores à média — não pagando aos professores salários

que os tornam negligentes e preguiçosos, mas instituindo algum tipo

de período de experiência, mesmo nas ciências mais elevadas e mais

difíceis, a que se submeteria toda pessoa antes de se lhe permitir

exercer alguma profissão liberal ou de poder ela ser admitida como

candidata a qualquer cargo de prestígio, de confiança ou lucrativo. Se

o Estado impusesse a essa classe de pessoas a obrigatoriedade de

aprender, não precisaria ter preocupação alguma em arranjar-lhes

professores adequados. Essas pessoas logo encontrariam professores

melhores do que os que o Estado lhes poderia fornecer. A ciência é o

grande antídoto para o veneno do fanatismo e da superstição, e quando

todas as classes superiores da população estivessem imunizadas contra

esse veneno, as classes inferiores não poderiam ficar muito expostas a

ele. O segundo dos citados remédios é a freqüência e a alegria das

diversões públicas. O Estado, ao estimulá-las, isto é, ao dar inteira

liberdade de ação a todos aqueles que, movidos pelo próprio interesse,

procurassem, sem escândalo ou indecência, divertir e distrair o povo

com a pintura, a poesia, a música, a dança, com todos os tipos de

representações e exibições, facilmente dissiparia, na maior parte da

população, a melancolia e a tristeza que quase sempre alimentam a

superstição e o fanatismo populares. As diversões públicas sempre

têm constituído objeto de medo e ódio para todos os fanáticos

promotores desse delírio popular. A alegria e o bom humor que essas

diversões inspiram seriam totalmente inconciliáveis com esse estado

de espírito que constitui o terreno mais propício para os propósitos

desses fanáticos ou sobre o qual eles podem trabalhar melhor. Além

disso, as representações dramáticas, ao expor muitas vezes os

artifícios desses fundadores de seitas à irrisão pública, e às vezes até

mesmo à execração popular, constituíram para eles, sob esse aspecto,

objeto de aversão especial, mais do que todas as outras diversões

(SMITH, 1993, pp. 223-224).

Nesse mesmo sentido Rousseau, na França, também defendendo uma

escola/educação dualista, ou seja, que a educação deve ser diferenciada de acordo com a

posição social que o indivíduo ocupa na sociedade, afirma que:

Na ordem social, onde todos os pontos são marcados, cada um deve

ser educado para o seu. Se um particular formado para seu posto vem

deixá-lo, já não serve para nada. A educação só é útil na medida em

que a fortuna se harmonize com a vocação dos pais; em qualquer

outro caso, ela é nociva ao aluno, ao menos pelos preconceitos que lhe

inculcou (ROUSSEAU, 2004, p. 14).

O autor argumenta ainda que:

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Repito a educação do homem começa com o nascimento; antes de

falar, antes de ouvir, ele já se instruiu. A experiência antecipa as

lições; no momento em que conhece sua ama-de-leite, ele já descobriu

muitas coisas. Ficaríamos surpresos com os conhecimentos do mais

grosseiro dos homens se seguíssemos seu progresso desde o momento

em que nasceu até onde está. Se dividíssemos toda a ciência humana

em duas partes, uma comum a todos os homens, outra particular aos

doutos, esta seria muito pequena em comparação com a outra. Mas

pouco nos preocupamos com os conhecimentos gerais, pois são

adquiridos sem pensar e antes mesmo da idade da razão, e, de resto, o

saber só se faz notar por suas diferenças e, como nas equações de

álgebra, as quantidades comuns não contam (ROUSSEAU, 2004, p.

48).

O que podemos apreender dos autores “apresentados” é que a escola pública

desde a sua gênese foi pensada de forma a oferecer uma educação diferenciada de

acordo com a posição de classe ocupada pelo sujeito. Isso evidencia a articulação

existente entre a esfera educacional e a sociedade, ou seja, sendo a sociedade capitalista

cindida em classes, será a educação oferecida de forma diferenciada, dualista.

Escola pública e luta de classes

Numa sociedade cindida em classes antagônicas, como é o caso da sociedade

capitalista, torna-se impossível que a educação seja homogênea, que defenda os

interesses comuns. No entanto pode a educação ser um instrumento de transformação,

pois:

Numa sociedade dividida em classes, é impossível que a escola

consiga contrabalançar o conjunto das condições de vida e as regras

de funcionamento social, as regras de exploração social, ao ponto de

interessar, em massa, os filhos da classe operária na rede SS. Cabe a

Baudelot-Establet o mérito de nos terem recordado vigorosamente que

a escola, em si, é incapaz de ultrapassar a divisão da sociedade, da

nossa sociedade, em classes antagônicas: Isto não é mais do que o

capitalismo secreto das estruturas escolares segregativas – e elas não

conseguem ser abolidas num regime capitalista; que não há

complementariedade simples e harmoniosa entre as formas da

escolaridade reduzida e a escolaridade prolongada. Por isso é que a

perspectiva revolucionária só pode ser a unificação da escolaridade

numa sociedade que tiver vencido os antagonismos de classes

(SNYDERS, 1976, p. 69).

Seguindo com o raciocínio, Snyders afirma:

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Mas não se conseguirá destruir o regime capitalista sem se reunirem

contra ele todas as camadas sociais que ele procura cada vez mais

violentamente maltratar, esmagar, expropriar. A revolução tornar-se-á

eternamente impossível se, mercê de progressos evidentemente

fragmentários, condenados a permanecer ainda muito tempo

fragmentários, a classe operária não consolidar as suas possibilidades

de coerência e de austeridade, de maneira a manter até ao fim o seu

papel de força revolucionária, a menos que só se considerem

revolucionários autênticos os desclassificados e os marginais

(SNYDERS, 1976, p. 69).

No entanto a escola pode, também, ser “[...] um aparelho de luta a serviço da

burguesia, um instrumento da ditadura da burguesia. A sua função efectiva consiste em

provocar o fracasso das crianças proletárias para finalmente as sujeitar aos seus postos

de exploradas” (SNYDERS, 1976, p. 78). Mas o autor chama a atenção também para o

fato de que não é a escola que gera as desigualdades, pois seria atribuir-lhe um poder

muito maior do que realmente ela exerce, ou seja:

A escola é uma superestrutura e não o princípio motor da sociedade

[...] Aqui a escola confirma mais os privilégios do que os institui, e

esses privilégios, na sua incontestável realidade, têm uma relação

directa com a posse dos meios de produção – e de exploração. Pode

ser desanimador que a escola não seja capaz de suprir os privilégios.

Não é o mesmo que acusá-la de os ter provocado [...] a classe

dominante, quando se esforça por conservar a sociedade tal e qual,

reproduzir a sociedade, concentra todos os seus esforços a fim de que

as crianças vindas do proletariado fiquem limitadas a uma

escolaridade reduzida, a menos escolaridade do que as outras; bem

longe de ter em vista o efeito, para ela vantajoso, da escolaridade,

encarniça-se, em toda a medida do possível, para transformar em não-

escola a escola das classes exploradas (SNYDERS,1976, p. 94).

O fato de a escola na sociedade capitalista ser dualista, não impede que se lute

pela superação desse dualismo. Antonio Gramsci (1891-1937) vai justamente atuar

nesse sentido, ou seja, na defesa da “escola unitária” e financiada pelo Estado (educação

pública), pois segundo ele:

A escola unitária ou de formação humanista (entendido este termo,

“humanismo”, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional)

ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na

atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de

maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa

autonomia na orientação e na iniciativa. [...] A escola unitária requer

que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da

família, no que toca à manutenção dos escolares, isto é, que seja

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completamente transformado o orçamento da educação nacional,

ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-o mais complexo: a

inteira função de educação e formação das novas gerações torna-se, ao

invés de privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas

as gerações, sem divisões de grupos ou castas (GRAMSCI, 1991, p.

121).

A escola deve também superar o senso comum, folclore, superstições e mitos, ou

melhor,

A escola, mediante o que ensina, luta contra o folclore, contra todas as

sedimentações tradicionais de concepções de mundo, a fim de difundir

uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e

fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis

naturais como algo objetivo e rebelde, às quais é preciso adaptar-se

para dominá-las, bem como de leis civis e estatais que são produto de

uma atividade humana estabelecidas pelo homem e podem ser por ele

modificadas visando a seu desenvolvimento coletivo; a lei civil e

estatal organiza os homens do modo historicamente mais adequado à

dominação das leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil o seu

trabalho, que é a forma própria através da qual o homem participa

ativamente na vida da natureza, visando transformá-la e socializá-la

cada vez mais profunda e extensamente [...]A escola tradicional era

oligárquica, pois era destinada à nova geração dos grupos dirigentes,

destinada por sua vez a tornar-se dirigente: mas não era oligárquica

pelo seu modo de ensino. Não é a aquisição de capacidades diretivas,

não é a tendência a formar homens superiores que dá a marca social

de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada

grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar

nestes grupos uma determinada função tradicional, diretiva ou

instrumental. Se se quer destruir esta trama, portanto, deve-se evitar a

multiplicação e graduação dos tipos de escola profissional, criando-se,

ao contrário, um tipo único de escola preparatória (elementar-média)

que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional,

formando-o entrementes como pessoa capaz de pensar, de estudar, de

dirigir ou de controlar que dirige (GRAMSCI, 1991, p. 136).

No Brasil a ideia de obrigatoriedade e universalização da escola Pública ganha

força no período de transição da Monarquia para a República e fica mais evidente com o

“Manifesto dos Pioneiros” em 1932 com viés Liberal (Período de grande incentivo ao

processo de industrialização do país), tendo como um de seus principais expoentes

Anísio Teixeira (1900-1971), pois a nova finalidade da escola, quando refletirmos que

ela deve hoje preparar cada homem para ser indivíduo que pense e que se dirija por si

em uma ordem social, intelectual e industrial eminentemente complexa e mutável. No

entanto, embora avance o ideário liberal, não rompe com os ideais positivistas que

propunham uma educação e consequentemente uma escola elitista.

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A presença do ideário liberal fica ainda mais evidente na igualdade de direitos e

na igualdade de oportunidades, pois as democracias, sendo regimes de igualdade social

e povos unificados, isto é, com igualdade de direitos individuais e sistema de governo

de sufrágio universal, não podem prescindir de uma sólida educação comum, a ser dada

na escola primária, de currículo completo e dia letivo integral destinada a preparar o

cidadão nacional e o trabalhador ainda não qualificado, e, além disto, estabelecer a base

igualitária de oportunidade, de onde irão partir todos, sem limitações hereditárias ou

quaisquer outras, para os múltiplos e diversos tipos de educação semi-especializada,

ulteriores ä educação primária.

Numa sociedade onde há constantemente a disputa entre classes antagônicas, é

difícil, senão ingenuidade, acreditar que a igualdade de oportunidades por si só, ou seja,

sem a igualdade de condições, seja suficiente para romper com os “privilégios

hereditários” da classe dominante.

Nesse sentido é que podemos afirmar que a produção educacional está

estreitamente ligada à produção social.

Essa listagem, apesar de enfadonha e meramente descritiva, possibilita

lançarmos duas observações gerais que elucidam melhor o que se está

querendo afirmar ao expor tal produção. A primeira é que a produção

historiográfica educacional não emerge descolada do conjunto da

produção educacional brasileira (no âmbito da produção histórica, por

exemplo), mas se dá no interior dos trabalhos que têm por objetivo

analisar (e em alguns casos periodizar) a pesquisa educacional no

Brasil – inclusive a produção histórico-educacional. A segunda

observação é que o debate das principais questões da pesquisa

histórico-educacional tem se concentrado a partir de algumas poucas

iniciativas, geralmente sobrepostas: aquelas motivadas pelo trabalho

individual e/ou coletivo de pesquisadores (geralmente ligados a

alguma instituição universitária) (LOMBARDI, 2000, p. 16).

Percebemos no decorrer desta análise que devemos olhar para estes autores

como homens do seu tempo, ou seja, que as ideias que os mesmos defendem são as

ideias que o contexto histórico, que as disputas políticas e que as lutas travadas em cada

período permitiram que fossem pensadas.

Assim, evidencia-se que a Escola não foi inventada, ela foi produzida

socialmente, sendo, portanto, um produto que resultou e resulta das lutas sociais pela

hegemonia, das relações de poder, ou melhor, a escola é produto da produção humana e,

ao mesmo tempo, em que produz também é produzida socialmente.

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Referências Bibliográficas

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