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O ator e o boneco: animosidade de corpos cênicos distintos. Ronaldo de Queiroz Lima 1 . Poderíamos elucubrar sobre teorias distintas e distantes da realidade teatral na qual se inserem nossas práticas. No entanto, opto por “devanear” sobre o movimento do corpo de ator quando em situação de cena a partir de um espetáculo da companhia Grupo Formosura de Teatro, da qual faço parte como ator e bonequeiro 2 . O método do devaneio, aparentemente arbitrário, auxilia no pensar sobre o sentido que o corpo assume ou ganha ou ainda constrói quando em cena. Neste caso, serão observadas cenas da peça “Heróis do Papelão”, que estreou em junho de 2010 em Fortaleza. Essa montagem foi composta por três atores e duas atrizes, cada um desses manipula um determinado boneco, que, em alguns casos, corresponde ao duplo do ator/atriz. Há também três músicos para a execução da música ao vivo, como também da trilha sonora e, em alguns casos, a sonoplastia do espetáculo. Heróis do Papelão reúne situações vivenciadas por catadores de resíduos sólidos, que percorrem as veredas da cidade procurando por algo que os alimente a vida, produtos em desuso, amor, companhia, latinhas, papelão e etc. As cenas ganham o movimento da rua à medida que as personagens dialogam andando continuamente, salvo algumas cenas pontuais. Nesse contexto o ator está declarado em cena para o público, que o ver entrar e sair da personagem que interpreta, ocasionando um estado, uma emoção que repercute no corpo, tanto fora como dentro da cena. Faço um personagem de nome “Lorde” que “cata” latinhas e as guarda em um saco que carrega sobre os ombros. Na imagem desse personagem, que é um boneco, há uma fusão entre o corpo do 1 Bacharel em Ciências Sociais pelo Departamento de Ciências Sociais da UFC, ator e bonequeiro. 2 Apresentador, diretor, criador e confeccionador dos personagens, muitas vezes também o autor de espetáculos de bonecos. (Dicionário do Teatro Brasileiro. 2009:69).

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O ator e o boneco: animosidade de corpos cênicos distintos. Ronaldo de Queiroz Lima1.

Poderíamos elucubrar sobre teorias distintas e distantes da realidade teatral na qual se inserem nossas práticas. No entanto, opto por “devanear” sobre o movimento do corpo de ator quando em situação de cena a partir de um espetáculo da companhia Grupo Formosura de Teatro, da qual faço parte como ator e bonequeiro2. O método do devaneio, aparentemente arbitrário, auxilia no pensar sobre o sentido que o corpo assume ou ganha ou ainda constrói quando em cena. Neste caso, serão observadas cenas da peça “Heróis do Papelão”, que estreou em junho de 2010 em Fortaleza. Essa montagem foi composta por três atores e duas atrizes, cada um desses manipula um determinado boneco, que, em alguns casos, corresponde ao duplo do ator/atriz. Há também três músicos para a execução da música ao vivo, como também da trilha sonora e, em alguns casos, a sonoplastia do espetáculo. Heróis do Papelão reúne situações vivenciadas por catadores de resíduos sólidos, que percorrem as veredas da cidade procurando por algo que os alimente a vida, produtos em desuso, amor, companhia, latinhas, papelão e etc. As cenas ganham o movimento da rua à medida que as personagens dialogam andando continuamente, salvo algumas cenas pontuais. Nesse contexto o ator está declarado em cena para o público, que o ver entrar e sair da personagem que interpreta, ocasionando um estado, uma emoção que repercute no corpo, tanto fora como dentro da cena. Faço um personagem de nome “Lorde” que “cata” latinhas e as guarda em um saco que carrega sobre os ombros. Na imagem desse personagem, que é um boneco, há uma fusão entre o corpo do ator e o da personagem, pois as pernas do “Lorde” são as do ator, enquanto que mãos e cabeça são do próprio boneco. Esse último, por sua vez, ganha animosidade a partir da transmissão da emoção pelo ator manipulador. O sentido do movimento do corpo é concebido no ator que o redireciona para o boneco, um corpo distinto do seu. Pensando a idéia de um corpo cênico, que carrega a semântica dramatúrgica, o boneco quando manipulado em situação de cena é um corpo em movimento por uma vontade alheia a sua. Há uma cena que somente dois atores e uma atriz faz. No decorrer da “cena da comida”, ocorrem alguns conflitos em relação à disputa pela afetividade da mulher. Os três conversam e contam experiências de seus cotidianos, que ocupam um lugar à margem da sociedade, enquanto ouvem pessoas passando pela rua. De fato essas situações sugerem emoções que acontecem no corpo desses atores e atriz, emoções essas concebidas por eles próprios e as quais são expandidas no uso do corpo e ainda mais na relação construída entre os três. 1 Bacharel em Ciências Sociais pelo Departamento de Ciências Sociais da UFC, ator e bonequeiro.

2 Apresentador, diretor, criador e confeccionador dos personagens, muitas vezes também o autor de espetáculos de bonecos. (Dicionário do Teatro Brasileiro. 2009:69).

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Diferentemente do trabalho com o boneco, o trabalho do ator dá uma dimensão da emoção que o impulsiona a agir e a modelar seu próprio corpo na expressão da personagem que assume. No entanto, o corpo do boneco recebe de fora para dentro o impulso emotivo que movimenta seu corpo, esse impulso é, sobretudo, algo concebido fora do corpo do boneco. Talvez o uso do ator e boneco seja uma estética híbrida que produz uma imagem híbrida, tão quão são os sentimentos do ator/atriz com a emoção que sugere a personagem, pois os primeiros concebem a emoção que move o corpo e o põe em cena ao dar vida ao segundo. De fato, a animosidade é dada ao boneco pelo ator, no entanto, o primeiro sempre sugere uma personalidade a partir de sua face, de sua expressão e ainda por auxílio da proposta dramática. Nesta peça, o personagem “Lorde” é um sujeito do interior, que não tem muito estudo, que formou família cedo, que foi deixado pela mulher, que foi demitido de uma firma e que busca sobreviver da reciclagem. Então, a expressão do rosto do “Lorde” e a sua estrutura física foram estudadas e projetadas para expressarem um sujeito que vivencia dificuldade econômica e afetiva, um sujeito enrijecido pela vida dura que leva, mas que persiste na produção lícita através do trabalho. Na sua simplicidade de viver e de perceber o mundo esta personagem ganha vazão à medida que pulsa numa forma híbrida produzida por ator e boneco.No contexto da peça “Heróis do Papelão” os corpo dos bonecos evidenciam uma dinâmica, são eles densos em significados psicológicos de suas personagens, mas também consistentes em estética. Fora assim construído o sentido da dinâmica dos corpos cênicos a partir de uma leitura sobre alguns catadores em movimento na rua: puxando o carrinho ou carregando um saco nas costas.Dessa maneira, podemos pensar num corpo cênico como algo construído a partir de um contexto real, que contêm conteúdo cognitivo denso em sentidos, os quais dizem respeito à proposta com a qual se trabalha. No entanto, este mesmo corpo cênico concebido e impulsionado pela emoção que ativa uma vontade, cuja conseqüência é uma ação concreta, ao se relacionar com os demais para contar uma história ou várias, cria um novo contexto: o da dinâmica teatral, que gera uma experiência de fruição artística. Esse contexto é também construído pela dramaturgia desenvolvida para a peça, o que reforça ainda mais o teor fictício do fazer teatral, que não significa irreal ou algo mentiroso, mas algo cujo acontecimento foi estudado e planejado.

Então, livre de qualquer determinismo ou de definição fechada, podemos dizer que o boneco compõe um corpo que se torna cênico com a manipulação do ator. Nesse momento, o corpo do ator manipulador assume um estado físico de neutralidade para a platéia, mas desenvolve sucessivas ações impulsionadas pela emoção que concebe e transmite ao corpo do boneco. Na “cena da comida” as personagens acontecem através dos atores e da atriz, sem o trabalho com bonecos. Nesse momento a emoção dos atores e da atriz impulsiona sucessivas ações que

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acontecem através de seus próprios corpos, os quais se tornam cênicos por uma vontade própria do artista. Diferentes sentidos são construídos na relação ator e boneco, cujos diálogos são construídos com os músicos através da musicalidade de cada cena e de cada transição de cena. Isso dá um novo sabor à dinâmica dos corpos cênicos e, sobretudo, às transições entre ator e personagem, construindo uma estética híbrida e plástica, ao mesmo tempo.

Referências Bibliográficas.

Coordenação J. Guinsburg, João Roberto Faria, Mariangela Alves de Lima.Dicionário do teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2009. BACHELARD, Gastón. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BACHELARD, Gastón. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GREINER, Christine. O colapso do corpo a partir do ankoku butô de Hijikata Tatsumi. 2005.GREINER, Christine, HELENA, Katz. Por uma teoria do corpomídia ou a questão epistemológica do corpo.