ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é...

23
1 MOMENTOS E ESPAÇOS DE VIGIAR E PUNIR O PAPEL DO INSPETOR ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964-1985): UM ESTUDO DE CASO EM SÃO GONÇALO DO PARÁ - MG 1 INTRODUÇÃO A ditadura civil-militar caracterizou-se como um fenômeno de mudanças abruptas nas relações políticas, econômicas e sociais da nação brasileira por meio da institucionalização do poder, principalmente nas instâncias que dialogavam diretamente com a sociedade, entre elas, a escola. Apropriar-se das memórias de professoras que atuaram entre as décadas de 1964 até 1985 nas redes públicas de educação no município de São Gonçalo do Pará Minas Gerais, possibilitou perceber a forma como o poder era exercido por meio da burocratização no que tange à administração educacional e pelas hierarquizações das funções educacionais objetivando atender os anseios políticos, ideológicos e econômicos hegemônicos naquele período. Possibilitou, ainda, discutir os processos através dos quais o ideário político e educacional dos governos militares foi assimilado por aqueles que exerciam a docência. Esta análise ancora-se em autores que abordam temas como o poder e a dominação, tal como Michel Foulcault (1987), discutindo o vigiar e punir e a docilidade dos corpos, bem como o adestramento do indivíduo para cumprir e fazer cumprir as determinações instituídas no contexto político mencionado, e Pierre Bourdieu (1989), que trata das questões relacionadas à violência simbólica ofuscando a opressão explícita. Obviamente, faz-se necessário também analisar a legislação educacional referente ao período, mais especificamente, a lei 5692/71 e as resoluções e decretos acerca da função do inspetor escolar. As memórias das professoras permitem-nos afirmar que a dominação e o controle através dos processos burocráticos e da hierarquização do universo escolar tornaram-nas, se 1 Este texto foi produzido a partir do trabalho conclusivo de curso de licenciatura em História, Willian de Souza Brito (UEMG), a quem reconhecemos como coautor, orientado pelo autor do artigo.

Transcript of ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é...

Page 1: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

1

MOMENTOS E ESPAÇOS DE VIGIAR E PUNIR – O PAPEL DO INSPETOR

ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES

(1964-1985): UM ESTUDO DE CASO EM SÃO GONÇALO DO PARÁ -

MG1

INTRODUÇÃO

A ditadura civil-militar caracterizou-se como um fenômeno de mudanças abruptas

nas relações políticas, econômicas e sociais da nação brasileira por meio da

institucionalização do poder, principalmente nas instâncias que dialogavam diretamente com

a sociedade, entre elas, a escola. Apropriar-se das memórias de professoras que atuaram

entre as décadas de 1964 até 1985 nas redes públicas de educação no município de São

Gonçalo do Pará – Minas Gerais, possibilitou perceber a forma como o poder era exercido

por meio da burocratização no que tange à administração educacional e pelas

hierarquizações das funções educacionais objetivando atender os anseios políticos,

ideológicos e econômicos hegemônicos naquele período. Possibilitou, ainda, discutir os

processos através dos quais o ideário político e educacional dos governos militares foi

assimilado por aqueles que exerciam a docência.

Esta análise ancora-se em autores que abordam temas como o poder e a dominação,

tal como Michel Foulcault (1987), discutindo o vigiar e punir e a docilidade dos corpos, bem

como o adestramento do indivíduo para cumprir e fazer cumprir as determinações instituídas

no contexto político mencionado, e Pierre Bourdieu (1989), que trata das questões

relacionadas à violência simbólica ofuscando a opressão explícita. Obviamente, faz-se

necessário também analisar a legislação educacional referente ao período, mais

especificamente, a lei 5692/71 e as resoluções e decretos acerca da função do inspetor

escolar.

As memórias das professoras permitem-nos afirmar que a dominação e o controle

através dos processos burocráticos e da hierarquização do universo escolar tornaram-nas, se

1 Este texto foi produzido a partir do trabalho conclusivo de curso de licenciatura em História, Willian de Souza

Brito (UEMG), a quem reconhecemos como coautor, orientado pelo autor do artigo.

Page 2: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

2

não subservientes, colaboradoras deste mesmo processo. A adesão à lógica da

disciplinarização é ponto em comum em todas os relatos ouvidos.

No momento em que vêm à tona propostas de regulamentação da liberdade e

autonomia do trabalho docente e a apologia ao tecnicismo, tal como nesta segunda década

do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das

professoras sobre a escola pública nos anos da ditadura civil-militar coloca em questão a

importância de educar para a liberdade, o que só é possível, naturalmente, se as relações que

se estabelecem no espaço educacional forem marcadas, também, pelo princípio da liberdade

e da autonomia.

A ORGANIZAÇÃO ESCOLAR E A LÓGICA DA VIGILÂNCIA E DA PUNIÇÃO

A década de 1960, no Brasil, esteve marcada por vários acontecimentos políticos,

econômicos e sociais. Após a deposição de João Goulart, em 31 de março de 1964,

começaram a ser promulgadas, pelo então presidente da República Marechal Castelo Branco,

normas que validavam e sustentavam a manutenção dos militares no poder. Estas normas,

denominadas Atos Institucionais, foram outorgadas no período entre 9 de abril de 1964 a 14

de outubro de 1969.

A ordem política que havia se instaurado no país acreditava que o ensino era

ineficiente e que poderia acarretar uma situação de retrocesso para a nação. A perspectiva

educacional idealizada na época vislumbrava uma nação competitiva e liberal, perspectiva

esta cada vez mais presente nos discursos daqueles que estavam no poder, bem como a ideia

de que a melhor forma de atender as necessidades de um país em transformação seria adequar

o ensino, a fim de capacitar, instruir e formar o indivíduo para o mercado de trabalho,

visando obter mão de obra qualificada para atender as necessidades desse mercado.

A compreensão da política educacional desse período histórico exige que se busque

os antecedentes: antes da implantação de um governo ditatorial, tivemos um breve período,

conhecido como de redemocratização, que sucedia outro período ditatorial, no caso, o Estado

Novo (1937-1945). Assim que foi promulgada a nova constituição de 1946, “a educação

moral e cívica em nome dos princípios liberais que reservaram às famílias, às organizações

religiosas, às entidades culturais, aos sindicatos e aos partidos políticos a competência para

Page 3: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

3

tal educação2” foi extinta, visando resgatar, por meio da nova constituinte, a ideia de um

governo democrático em resposta aos regimes totalitários europeus.

No que tange à educação, a constituinte de 1946 resgatou discussões que haviam sido

iniciadas em 1891 por meio da primeira carta magna republicana e também através da

constituição de1934. Tais propostas não foram implementadas devido a instauração do

Estado Novo, em 1937, que negou as propostas de garantir um Plano Nacional de Educação

que minimamente propunha o direito de acesso à escolarização a todos os cidadãos. As

discussões educacionais que antes haviam sido fragmentadas retomaram com a constituição

de 1946.

[...] em 1948, quando já se discutia o Projeto Mariani; incendiou-se a questão com

o Substitutivo Lacerda; não se concluiu a polêmica com a promulgação da lei

4.024 em dezembro de 1961. O debate assumiu um papel questionador até 1964,

quando ocorreu o golpe de Estado, o verdadeiro “cala boca” nacional3.

Desta forma, o golpe de 1964 encontra ainda “vivas as ideias autoritárias do Estado

Novo e sobreviventes muitos de seus partidários, formando, é claro, nas fileiras da

conspiração antidemocrática”4. Segundo Cunha e Góes (2002), os setores mais extremistas

do governo acreditavam que as instituições sociais eram incapazes de educar a sociedade de

acordo com os padrões morais e cívicos. Para além disso, havia o “medo” da influência

comunista, que deveria ser combatida através de uma educação escolar voltada para a

disciplinarização dos corpos docentes e discentes e pela instituição e ou fortalecimento de

mecanismos de controle, tais como listas de chamadas, provas, notas e outros.

Michel Foucault (1987) e suas análises acerca da docilidade dos corpos permite-nos

identificar mecanismos idealizados pelas instâncias de poder político a fim de garantir o

controle do indivíduo no sentido de preservar a manutenção do poder em determinados

momentos e circunstâncias históricas. Com a educação não foi diferente, para que os

militares garantissem sua estadia no poder, uma das manobras caracterizou-se pela

construção de uma nova consciência política e também pela edificação de um sentimento de

patriotismo e de moralidade, através de desfiles cívicos, pela obrigatoriedade de se cantar os

2CUNHA, Luiz Antônio. GOÉS, Moacyr. O Golpe Na Educação. 11ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

p. 71. 3CUNHA, Luiz Antônio. GOÉS, Moacyr. O Golpe Na Educação. 11 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

p 13. 4 Idem p. 71.

Page 4: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

4

hinos nas escolas e, em muitos casos, pelo ato de marchar diante de figuras que estariam

representando o Estado nas instituições escolares.

É neste contexto que podemos identificar, em junho de 1964, o primeiro dos acordos

assinados pelo Regime Militar em parceria com os Estados Unidos da América, os

denominados Acordos MEC-USAID. A “USAID concordava em fornecer uma quantia para

financiar o custo do contrato por dois anos, de um grupo de especialistas em educação

estadunidense, que auxiliariam o MEC em seu programa de aperfeiçoamento do ensino

primário no País”5, concomitante ao treinamento de professores e na elaboração de livros

didáticos, entre os anos de 1966 e 1968. Este foi o primeiro ato que determinava

explicitamente a necessidade de abolir certas práticas e certos conteúdos para inserir outros.

Simultaneamente, com o Programa Estratégico de Desenvolvimento, elaborado em

1967, que propunha “a reformulação do ensino médio juntamente com o ensino primário,

um sistema fundamental, que assegurasse uma formação básica qualitativa do educando a

fim de prepará-lo para as atividades econômicas na indústria, agricultura e serviços”6 inicia-

se o processo de adequação e inserção de novos métodos educacionais a fim de garantir que

o país conseguisse acompanhar o desenvolvimento do capitalismo moderno.

A política educacional do período entre 1964 e 1985 estava, em última instância,

vinculada organicamente ao modelo econômico que acelerou de forma autoritária,

o processo de modernização do capitalismo brasileiro [...]. Foram reformas

educacionais que estavam inseridas num contexto histórico de transição de uma

sociedade agrária para uma sociedade urbano-industrial, cujas transformações

societárias se desenrolavam desde19307.

Em 1971, a Lei 5.692, de 1971 altera em larga medida a concepção educacional

vigente até aquele momento, contrapondo, à tendência pedagógica humanista tradicional e à

concepção humanista moderna, a pedagogia tecnicista8. De acordo com Saviani (1999), “[...]

a partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade,

5 ARAPIRACA, José Oliveira. A USAID e a educação brasileira: um estudo a partir de uma abordagem crítica

da teoria do capital humano (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1979, p.161. 6 HORTA, J.S. A educação no Congresso Constituinte 1966-1967. In: FÁVERO, O. (Org.). A educação nas

Constituintes (1823-1988). Campinas: Autores Associados, 1996. p. 247. 7 FERREIRA JR, Amarilio; BITTAR, Marisa. Educação e ideologia tecnocrática na ditadura militar. Cad.

Cedes. Campinas, vol. 28, n. 76, p. 333-355, set./dez. 2008. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>. 8 Inspirada nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem sistêmica do ensino, que definiu uma

prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor com atividades mecânicas inseridas numa

proposta educacional rígida e passível de ser totalmente programada em detalhes. Acesso em:

http://www.educabrasil.com.br/home/tecnicismo-educacional/ 24/11/2015 as 21:16.

Page 5: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

5

eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de

maneira a torná-lo objetivo e operacional”9. Deste modo, as reformulações dos currículos

escolares desempenhariam um papel fundamental na política educacional da nação, tendo

em vista o contexto histórico “fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do

capital humano, isto é, pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento

econômico”, seduzindo grande parcela da sociedade brasileira e legitimando o grupo que

detinha o poder político no país.

A lei propunha fixar diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus e outras

providências que dão suporte ao desenvolvimento econômico especificamente:

Art. 1º - O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando

a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento

de auto realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício

consciente da cidadania.

Art. 4º - Os currículos do ensino de 1ºe 2º graus terão um núcleo comum,

obrigatório em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender, conforme

as necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos

estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos.

Art. 5º - As disciplinas, áreas de estudo e atividades que resultem das matérias

fixadas na forma do artigo anterior, com as disposições necessárias ao seu

relacionamento, ordenação e sequência, constituirão para cada grau o currículo

pleno do estabelecimento.

2º- A parte de formação especial de currículo:

I- Terá o objeto de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no

ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau.

II- Será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação profissional, em

consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista

de levantamentos periodicamente renovados.10

Ao fazermos uma leitura atenta da Lei, uma vez instituídas as propostas, entende-se

que o aluno ao ingressar no ensino primário passaria os próximos oito anos, a contar dos sete

anos de idade, estudando os conteúdos necessários ao seu desenvolvimento, levando em

conta principalmente as peculiaridades econômicas do seu meio. Logo, depois de cumprir

esta etapa existia a possibilidade de seguir para o ensino secundário que, na maioria das

vezes, pertencia ao setor privado de ensino, e dar continuidade aos estudos com um enfoque

nos conteúdos profissionalizantes, de acordo com as necessidades de determinada região.

9 DEMERVAL, Saviani. Escola e democracia - Campinas, SP: Autores Associados, 2008. - (Coleção educação

contemporânea); p. 10. 10 Lei nº 5.692 de 11 de agosto de 1971; acesso em; http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-

5692-11-agosto-1971-357752-publicacaooriginal-1-pl.html. 02/11/16 as 12:42 minutos.

Page 6: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

6

O artigo décimo da lei diz ainda que “será instituída obrigatoriamente a Orientação

Educacional, incluindo aconselhamento vocacional, em cooperação com os professores, a

família e a comunidade”11. O artigo décimo primeiro estabelece o mínimo de 180 dias letivos

anuais (e ou 90 dias por semestre), “excluído o tempo reservado às provas finais, caso estas

sejam adotadas”12. No inciso segundo deste mesmo artigo, fica estabelecido que “na zona

rural, o estabelecimento poderá organizar os períodos letivos, com prescrição de férias nas

épocas do plantio, colheita e de safras, conforme plano aprovado pela competente autoridade

de ensino”13, numa alusão ao atendimento do mercado e manutenção da produtividade.

Obviamente, este modelo foi alvo de questionamentos, embora muitos deles não

pudessem vir à tona no período, uma vez que a censura e o controle das manifestações

contrárias aos governos militares impediam que isso ocorresse. Dentre estes

questionamentos, constata-se que o “magistério passou a ser submetido a um pesado e

sufocante ritual, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema

fabril, perdendo de vista a especificidade da educação”14, contribuindo para um crescente

número de evasão escolar.

Segundo Cunha e Góes (2002), a taxa de escolarização diminuiu drasticamente em

um período de 10 anos após a implantação da Lei, sendo que mais de um terço das crianças

brasileiras estavam fora da escola (cerca de um milhão de crianças), pois o Estado não

provinha recursos para atender a demanda, uma vez que não era obrigado a isso, exceto na

falta de uma instituição privada na região.

Tomando como parâmetro o texto já citado de Michel Foucault sobre a sociedade

europeia do século XVIII, podemos refletir sobre a maneira como os mecanismos são

utilizados a fim de se construir uma sociedade disciplinada, sociedade esta que era alvo e

objeto de concretude no ideário político e econômico do Brasil pós 1964, uma vez que o

objetivo era o desenvolvimento econômico e, com um novo governo, seria fundamental que

a sociedade se adequasse às normas. “Era o tempo do ‘Brasil Grande’; ‘ame-o ou deixe-o’;

os incomodados que se mudassem – senão, a polícia cuidaria deles...”15.

11 idem 12 idem 13 idem 14 SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007. p.

381. 15CUNHA, Luiz Antônio. GOÉS, Moacyr. O Golpe na Educação. 11ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

p. 55.

Page 7: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

7

Foucault sugere que “houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como

objeto e alvo de poder”, este poder estaria diretamente relacionado à manipulação dos

corpos, sobre como eles devem ser treinados e modelados, garantindo obediência e resposta

de forma hábil. Sendo assim, para atingir este objetivo várias instituições foram idealizadas

e uma delas seria a escola.

Não temos a intenção de comparar a escola do Brasil da década de 1960 com as

instituições educativas do século XVIII, mas minimamente é possível compreender a

estrutura física e ideológica dentro dos moldes previstos pela conjuntura política e

econômica do país, uma vez considerando que todo o processo de consolidação do regime

esteve estritamente ligado ao desenvolvimentismo econômico.

Portanto, em se tratando dos corpos, ou seja, do fator humano especificamente, ao

levar em conta o processo de construção ideológica, as instituições escolares passam a ser

compreendidas como ferramentas para a consolidação de algo maior, neste caso, a ascensão

do capitalismo e a consolidação dos processos de industrialização. O corpo então é visto e

considerado como objeto de poder para a classe dominante e para alcançá-lo a melhor forma

é por meio dos discursos ideológicos ou pela disseminação de informações cujo conteúdo

poderá ser leviano ou verdadeiro. Fato este que poderíamos chamar de “violência

simbólica”, apoiando-nos em Pierre Bourdieu. Segundo o autor, o fenômeno caracteriza-se:

[...] enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de

conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de

instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para

assegurar a dominação de uma classe sobre outra dando o reforço da sua própria

força às relações de força que as fundamentam e contribuem assim, segundo a

expressão de Weber, para a domesticação dos dominados.16

Também em Foucault encontramos amparo para esta reflexão. O autor discute a

domesticação, mas referindo-se especificamente à disciplina no sentido de docilizar os

corpos por meio da organização dos espaços físicos, para que estes atendam às necessidades

do poder hegemônico:

A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do

ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional [...]. Determinando

lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo

de todos. Organizou uma nova economia de tempo de aprendizagem. Fez

16 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. RJ. Ed, Bertrand. 1989. p. 11.

Page 8: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

8

funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar,

de hierarquizar, de recompensar17.

O texto de Foucault (2011), sobretudo em se tratando do panoptismo, provoca-nos a

reflexão acerca das repartições, das hierarquizações, do ato de fiscalizar, bem como de

penalizar infrações cometidas através de um processo que se assemelha a uma máquina

invisível, na qual o corpo social é o conjunto de engrenagens e o operador, neste caso, seria

o Estado. Cada indivíduo é destinado a cumprir uma função específica, seguindo uma

hierarquia de execução e comando, mas o propósito seria o mesmo, manter um controle

social a fim de atender as necessidades daqueles que detinham o poder.

Para Bourdieu, “a classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos

princípios de hierarquização: as frações dominantes, cujo poder assenta no capital

econômico, têm em vista impor a legitimidade da sua dominação”18.E, ao considerarmos a

educação, as instituições escolares seriam o meio utilizado pelo Estado para impor suas

ideologias através de disciplinas tais como Educação Moral e Cívica, Organização Social e

Política Brasileira (OSPB), Economia Doméstica, Educação para o Lar, Técnicas

Comerciais, dentre outras. O sujeito estaria, então, fadado a reproduzir aquilo que lhe cabia,

tendo em vista a sua posição na sociedade, considerando o que o mercado da região tinha a

oferecer e, ao mesmo tempo, reforçava a ideia de limitar o espaço que a mulher poderia vir

a ocupar, que na maioria das vezes se resumia ao lar ou ao magistério.

Saviani (2008) atribui esta lógica ao fenômeno da marginalidade:

Marginalizados socialmente porque não possuem força material (capital

econômico) e marginalizados culturalmente porque não possuem força simbólica

(capital cultural). E a educação, longe de ser um fator de superação da

marginalidade, constitui um elemento reforçador da mesma19.

Salientamos, ainda, os meios utilizados para programar certas práticas opressivas

implícitas ou explícitas nas escolas públicas, tendo em vista os processos hierárquicos

inerentes às funções que compreendem o sistema educacional. Inconscientemente,

consideramos a existência de transferência simbólica da cultura de função para função, sendo

que o último que se apropriou de determinada função nunca percebe a mudança como ela de

17 FOUCAULT, Michel. Vigiar E Punir: Nascimento Da Prisão; Petrópolis, Vozes, 2011. p. 142. 18 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. RJ. Ed, Bertrand. 1989. Pág. 12. 19

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2008. p. 17.

Page 9: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

9

fato ocorreu no início, e desta forma possibilita a legitimação daquilo que foi implantado,

possibilitando sua execução de maneira prática e consciente sem questionamentos.

Weber (1978) nos chama a atenção para as organizações burocráticas de modo que

estas é que dão a verdadeira legitimidade da autoridade exercida em determinados cargos e

consequentemente respeitando as hierarquias, seja por meio de acordos ou até mesmo por

imposição, estabelecendo uma interdependência entre as relações daqueles que detêm um

determinado tipo de poder sobre os seus subordinados, estas relações dar-se-ão por meio de

normas previamente estabelecidas, visando à obediência daqueles que fazem parte de uma

determinada organização, na qual “inclui todas as pessoas dentro da esfera da autoridade ou

poder em questão [...] desde que estejam em determinada relação social ou executem formas

de ação social que, dentro das ordenações da associação, sejam consideradas importantes”.20

Considerando as estruturas escolares, na última classe da hierarquia encontraríamos

o educando, acomodado de acordo com o seu nível de aprendizado e maturidade. No terceiro

plano, encontraríamos o professor, responsável por coordenar as disciplinas e inserir os

conteúdos previamente estabelecidos, mediante discussões e acordos realizados entre as

instituições escolares, com a Secretaria de Estado da Educação e seus respectivos

representantes. Na segunda posição, teríamos a direção escolar que cuidaria dos processos

burocráticos e político-pedagógicos das instituições. E, em primeiro, o inspetor, que irá

inspecionar e fiscalizar as relações entre seus subalternos, as frequências escolares, os planos

pedagógicos, bem como o seu cumprimento, se os conteúdos foram lecionados conforme o

planejamento e o nível de aprendizado do alunado.

Foucault, em “Vigiar e Punir - O Nascimento da Prisão” (2011), faz referência a um

tipo de inspetor. Embora seja fundamental considerar as diferenças quanto ao contexto socio-

histórico, é possível estabelecer uma analogia entre os inspetores do sistema fabril da época

e os inspetores escolares das décadas de 1964 a 1985. Por outro lado, encontraríamos

elementos que a fundamentam dentro da perspectiva de que a escola pós 1964 estaria fadada

a cumprir ou a reproduzir o sistema fabril nas instituições escolares, como dito anteriormente

é o “tecnicismo educacional da teoria do capital humano como pressuposto para o

desenvolvimento econômico”21.

20 WEBER, Max. Os Fundamentos da Organização Burocrática: uma Construção do Tipo Ideal. In: CAMPOS,

Edmundo (Org.). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 15. 21CLARK, J.U; NASCIMENTO, M.N. M; SILVA, R. A. A Administração Escolar No Período Do Governo Militar (1964-

1984). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. especial, p.124–139, ago. 2006 - ISSN: 1676-2584.

Page 10: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

10

Como no século XVIII, ao considerarmos os inspetores das oficinas, das indústrias e

até mesmo nas instituições educacionais, encontraríamos similaridades que faziam parte do

cotidiano escolar pós 1964 que é o ato de fiscalizar e de inspecionar dentro de uma

perspectiva burocrática e hierárquica específica denominada de inspeção.

O INSPETOR ESCOLAR

A função da inspeção escolar vem sofrendo transformações ao longo do tempo de

maneira que suas especificidades se adequem às necessidades de cada período, exigindo

reformulações que extinguem ou acrescentam novas obrigações no intuito de garantir a

objetividade necessária a fim de cumprir e fazer cumprir as normas estabelecidas nas

políticas públicas educacionais no país.

A inspeção está diretamente relacionada ao ato de fiscalizar, vigiar, examinar,

averiguar e a observar. Não obstante, para todos estes sinônimos encontraremos em Foucault

(2011) impressões que nos ajudam a compreender a mudança de paradigma em detrimento

das relações de poder no que concerne, por exemplo, aos princípios que auxiliarão no

controle e na fiscalização da sociedade em um determinado tempo e espaço.

Na Idade Moderna, por exemplo, a forma mais comum de se fazer valer as leis estaria

condicionada ao inquérito, quando as instituições de poder como o Santo Ofício e mesmo o

Monarca, por meio de perguntas, inquiriam o acusado no intuito de obter respostas e na

medida em que as iam obtendo construía-se o desfecho, se caberia ou não uma condenação,

bem como a sentença que seria aplicada. Ginzburg (2006) nos traz uma experiência que

retrata bem a questão do inquérito por meio de Menocchio, um moleiro Friulano do século

XVI “que foi denunciado ao Santo Oficio, sob a acusação de ter pronunciado palavras

‘heréticas e totalmente ímpias’ sobre Cristo”22 e, após sofrer dois processos inquisitoriais, é

condenado à fogueira sob a acusação de heresia.

Fatos como este e ainda outros evolvendo assassinatos, roubos e até mesmo calúnias

eram solucionados, na maioria das vezes, desta forma, não necessariamente pela fogueira,

mas com penalidades que incluíam açoites, decapitações, enforcamentos e, na melhor das

22

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução

de Maria Betânia Amoroso; Tradução dos poemas José Paulo Paes; Revisão Técnica Hilária Franco Jr. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006. Pág. 32. Sic.

Page 11: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

11

hipóteses, prisões. O fato é que as formas de poder bem como as de punir giravam em torno

dos processos inquisitoriais, onde normalmente tinha-se uma pessoa pretensamente neutra

que iria ouvir as partes e por fim daria o veredito aos envolvidos.

O inquérito perpetuou até a transição para o período contemporâneo, contudo no pós-

Revolução Industrial e Francesa inicia-se o aparelhamento do Estado, constituindo uma nova

forma de poder e de dominação, mudando a perspectiva de controle, baseada no exame.

Foucault exemplifica o contexto por meio do panoptismo, mecanismo que consiste em obter

controle e disciplina por meio de uma constante hierarquia.

Embora o exemplo utilizado pelo autor datasse do final do século XVII a respeito de

uma peste na Europa23, somente a partir do século XIX é que vamos encontrar, de fato,

instituições físicas aparelhadas, como os hospitais, prisões, manicômios, escolas, polícias,

dentre outros mecanismos que visavam o controle e a dominação. De acordo com Foucault

(2011), seguindo a lógica do panoptismo, após ser colocado em prática o controle e a

dominação, já não é mais necessário que haja repressão ou coerção, o que também não quer

dizer que ela não exista.

O esquema panóptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades,

é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação se tornar aí uma função

generalizada. [...] tem um papel de amplificação; organiza-se o poder, não é pelo

próprio poder, nem pela salvação imediata de uma sociedade ameaçada: o que

importa é tornar mais fortes as forças sociais – aumentar a produção, desenvolver

a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e

multiplicar24.

Desta forma, justifica-se a função da inspeção e o ato de fiscalizar de vigiar e até

mesmo de punir tende a ser realizado de forma implícita, como na verificação de cadernos,

planos pedagógicos, avaliações dos alunos, ou explícita, como, por exemplo, as visitas às

escolas, a observação nas salas de aula e reuniões com o corpo docente e ou administrativo.

No Brasil, vemos a inspeção como função educacional amparada por lei a partir da

década de 1930 para o ensino secundário. Embora saibamos que a inspeção escolar remonta

a períodos anteriores, estabelece-se, aqui, como recorte temporal, a Lei de Diretrizes e Bases

23

Ver. FOUCAULT, Michel. Vigiar E Punir: Nascimento Da Prisão; tradução de Raquel Ramalhete.

Petrópolis, Vozes, 2011. Pág.186 - O Panoptismo. 24FOUCAULT, Michel. Vigiar E Punir: Nascimento Da Prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,

Vozes, 2011. Pág 196-197.

Page 12: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

12

4.024, de 20 de dezembro de 1961, capítulo V, título VIII, da Orientação Educativa e da

Inspeção:

Art. 63. Nas faculdades de filosofia será criado, para a formação de orientadores

de educação do ensino médio, curso especial a que terão acesso os licenciados em

pedagogia, filosofia, psicologia ou ciências sociais, bem como os diplomados em

Educação Física pelas Escolas Superiores de Educação Física e os inspetores

federais de ensino, todos com estágio mínimo de três anos no magistério.

Art. 65. O inspetor de ensino, escolhido por concurso público de títulos e provas

vetado25... deve possuir conhecimentos técnicos e pedagógicos demonstrados de

preferência no exercício de funções de magistério de auxiliar de administração

escolar ou na direção de estabelecimento de ensino26.

É importante notarmos as especificidades exigidas pelo cargo. Até o presente

momento a inspeção era função dos órgãos federais e atendia escolas privadas, no ensino

médio e superior. A LDB de 1961 propunha a continuidade do cargo e o sujeito interessado

teria que participar de concurso público e ter formação de no mínimo três anos no magistério,

comprovando conhecimentos técnicos e pedagógicos. Contudo, o debate acerca da proposta

de Lei de Diretrizes e Bases sofreu uma ruptura com o golpe de 1964, ficando a inspeção e

todo o sistema de ensino a cargo dos estados, então fica assim instituído pela constituição de

1967: “Art. 169 - Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de ensino, e,

a União, os dos Territórios, assim como o sistema federal, o qual terá caráter supletivo e se

estenderá a todo o País, nos estritos limites das deficiências locais”27.

A nova conjuntura política, no que concerne à educação, obteve apoio e

financiamento dos Estados Unidos por meio da United States Agency International For

Development – USAID em parceria com o Ministério da Educação e Cultura – MEC. Deste

modo, cada estado organizaria seus sistemas de ensino de acordo com suas necessidades e

prioridades. Mais tarde, com a Lei 5.692/71, a fim de garantir que os estados organizassem

suas estruturas obedecendo as normas federais, foram instituídos novos parâmetros quanto

às atividades administrativas das escolas. No artigo 33 desta lei fica previsto que a formação

do inspetor, dos diretores, supervisores, orientadores “e demais especialistas de educação

25 Nota: No lugar da palavra (vetado) estava escrito “ou por promoção de carreira”. A proposta da LDB/61

advinha do Projeto Mariani, como houve vários embates políticos na época com o substitutivo Lacerda, muitos

artigos e incisos foram vetados prevalecendo à proposta original parcialmente. 26 Acesso em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4024.htm. Ás 20h25min minutos do dia 02 de

novembro de 2016. 27 Acesso em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm. As 01h18min do dia 03

de novembro de 2016.

Page 13: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

13

seria realizada em curso superior de graduação, com duração plena ou curta, ou de pós-

graduação”28. O artigo 82 estabelece que “os atuais inspetores federais de ensino poderão

ser postos à disposição dos sistemas que necessitem de sua colaboração, preferencialmente

daquele em cuja jurisdição esteja lotado”. E no artigo 84 “ficam ressalvados os direitos dos

atuais diretores, inspetores, orientadores e administradores de estabelecimentos de ensino,

estáveis no serviço público, antes da vigência da presente Lei”. Ou seja, aqueles que já

estavam lotados nos cargos continuariam exercendo a profissão, mas dentro da jurisdição

que correspondia à sua área e, após a lei, para ingressarem ao cargo os candidatos deveriam

atender requisitos mínimos específicos para compor a função almejada.

No caso de Minas Gerais, o cargo de inspeção entrou em vigor no dia 13 de outubro

de 1977 através da Lei 7.109, Art. 13 inciso IV: “de Inspetor Escolar, a inspeção, que

compreende a orientação, assistência e o controle em geral do processo administrativo das

escolas, e, na forma do regulamento, do seu processo pedagógico.”29 No entanto, naquele

mesmo ano, por meio do decreto nº 18.804, modificou-se e adequou-se a lei anterior a fim

de garantir que a função de inspeção escolar pudesse de fato estar amparada por lei para

atender os objetivos almejados pelo governo, uma vez que as regras estendiam-se para todo

o setor administrativo do estado, assim expressa o artigo 26 do decreto:

Aos Diretores e Coordenadores de Escola, bem como aos Inspetores Escolares e

Diretores de Delegacias Regionais de Ensino, compete cumprir e fazer cumprir as

disposições deste Decreto e das Instruções complementares expedidas pela

Secretaria de Estado da Educação.

Parágrafo único - Será responsabilizada disciplinarmente a autoridade que, por

ação ou omissão, transgredir as presentes normas.30

Ao compararmos as especificidades da inspeção na LDB/1961 com a Lei 5.692/71,

fica clara a carga de responsabilidade da função, tendo em vista suas obrigações: fiscalizar

o ensino, observar se o que está sendo lecionado condiz com as propostas de ensino e, mais

do que isso, garantir que a proposta seja continuada.

28 Acesso em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5692-11-agosto-1971-357752-

publicacaooriginal-1-pl.html. As 14:11 do sai 16 de novembro de 2016. 29 Acesso em: http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa-

novamin.html?tipo=LEI&num=7109&comp=&ano=1977&texto=original. As 01h13 minutos do sai 03 de

novembro de 2016. 30 Idem.

Page 14: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

14

E nas escolares públicas de educação básica, como funcionava? Como eram as

práticas de inspeção no interior do país? Qual foi a influência da ditadura longe dos grandes

centros urbanos?

A MEMÓRIA DAS PROFESSORAS

Quanto ao papel do inspetor escolar e o contexto sociopolítico e cultural dos anos

1960 a 1980, discutindo a presença / ausência do controle estatal sobre os corpos e mentes

de discentes e docentes, foram ouvidas cinco professoras que atuaram naquele momento

histórico na cidade de São Gonçalo do Pará, interior do estado de Minas Gerais.

Optou-se por entrevistas semiestruturadas e pelo diálogo a fim perceber como se deu

o processo de formação daquelas docentes e também como eram suas relações com os seus

pares enquanto profissionais da educação. Procuramos também estabelecer critérios que

permitissem, por meio das falas das entrevistadas, compreender as relações hierárquicas e a

figura do inspetor escolar, tendo em vista sua função no que tange aos mecanismos de

controle de poder e dominação diante de seus subordinados. Ao considerarmos os inspetores

no exercício de suas funções fica evidente o quão sua presença modificava a rotina das

escolas, principalmente entre os anos de 1964-1977, aproximadamente, ano em que a função

de inspeção em Minas Gerais sofreu algumas alterações que compreenderemos mais adiante.

As memórias de professoras que atuaram neste período nos permitem compreender

os sentimentos que cercavam alguns dos profissionais quando o inspetor ia à escola. Uma

das entrevistadas nos aifmra: Ele vinha... Ah... só de falar o inspetor chegou, era... era como

se tivesse chegado... não sei... um BICHO PERIGOSO, todo mundo tremia. Os professores,

os alunos, caladinho, ca-la-di-nho31. Percebe-se o mesmo na fala de outra entrevistada,

quando faz referência ao inspetor, não como professora, mas, sim, como aluna. Enfatizando

suas impressões em relação à escola, quando a mesma desloca da zona rural para dar

continuidade nos estudos na cidade, diz-nos que o que chocou foi quando eu cheguei em São

Gonçalo, né, e que vinha um inspetor, parece que de Belo Horizonte, esse a gente tinha

medo dele, eu não sei porque, a gente tinha medo”32.

31 Entrevista realizada no dia 29 de agosto de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito. (1º entrevistada). 32 Entrevista realizada no dia 04 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (3º entrevistada).

Page 15: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

15

Diante do questionamento quanto ao porquê do medo, todas apresentaram a mesma

resposta: Eu não sei. No entanto, uma das entrevistadas, a mais idosa (com 80 anos de idade

no momento da realização da entrevista), diante do questionamento quanto à origem do

medo dos professores e alunos em relação ao inspetor, afirma que se não comportasse direito

ia ser expulso, ser expulso naquela época... era o fim do mundo33. E, no caso dos professores,

o medo estaria diretamente relacionado com as propostas disciplinares, tendo em vista que

o planejamento escolar vinha predefinido e o não cumprimento do planejamento poderia

implicar em um possível processo administrativo: o inspetor, ele tinha acesso ao secretário

de educação. Era direto com a Secretária de Educação. Direto pra LÁ. E aí, esse direto pra

lá implicaria que você poderia perder o seu cargo34.

Neste sentido, constatamos duas particularidades. Uma delas é que as professoras

entrevistadas, ao relembrarem de suas relações com a escola enquanto alunas, revelam o

contato com o mesmo inspetor ao qual a entrevistada número um se refere (já quando

professora). E as quatro professoras referem-se ao inspetor como uma pessoa muito rígida:

[...] ele mandou que a gente passeasse pelo pátio [...] E mandou que a gente andasse

marchando [...] até um canto, e aí ele acabou com a gente [...] falou que era a pior turma

de alunos que existia durante o trabalho dele35. Na fala de outra entrevistada percebemos

com mais clareza a questão relacionada à imposição da disciplina no ambiente escolar, a

professora, que foi aluna neste mesmo contexto, diz:

Eu me lembro do inspetor que o dia que ele chegava à escola, a diretora levava,

e a gente fazia uma fila lá no pátio e todo mundo tinha que fazer continência para

ele, era a época mesmo da ditadura, e o inspetor era quase um militar, eu lembro

direitinho [...] a gente tinha que fazer continência, cantar o hino nacional, então

era mais que quase que um militar na escola, gerava certo medo. Falavam: o

inspetor está vindo, o inspetor está vindo, não podíamos nem sair no corredor,

era aquele medo.36

Os relatos das professoras nos permitem também identificar práticas pedagógicas

ligadas ao civismo, ao patriotismo difundido de forma autoritária e elementos que apontam

para uma prática educacional baseada na memorização e na quantificação: [...] Era tudo

33 Entrevista realizada no dia 29 de agosto de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito. (1º entrevistada). 34 Idem 35 Entrevista realizada no dia 08 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (4º entrevistada). 36 Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (5º entrevistada).

Page 16: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

16

decorado, então era obrigado a decorar poesias, né, não faziam com que o aluno

compreendesse aquilo, mas sim que memorizasse. Isso era muito importante nessa época37.

Outra professora destaca a prática pedagógica relacionada ao civismo:

[...] era uma época que você tinha que decorar poesias, tinha os momentos

cívicos, as horas cívicas, tinha o dia da bandeira, você tinha que saber o hino da

bandeira, o hino da independência [...]era o policial que te ensinava a marchar e

enquanto você não aprendesse mesmo, a marchar direitinho ele não desistia

daquele ensaio.38

A burocracia nos processos escolares foi contumaz e largamente utilizada pelo

regime militar durante os anos 1964-1985 com o objetivo de manter a ordem e a disciplina

nas intuições de educação pública. Uma leitura atenta da legislação 5.692/71 revela-nos a

necessidade de dar continuidade aos sistemas de fiscalização garantindo a burocratização do

sistema de ensino tendo em vista o controle do que estava sendo transmitido aos alunos, bem

como à comunidade. Percebe-se o fenômeno no artigo 72 da legislação no que diz respeito

à transferência de algumas obrigações para os estados, sendo que cada um deveria adequar-

se à lei de acordo com as necessidades e particularidades da região:

A implantação do regime instituído na presente Lei far-se-á progressivamente,

segundo as peculiaridades, possibilidades e legislação de cada sistema de ensino,

com observância do Plano Estadual de Implantação que deverá seguir-se a um

planejamento prévio elaborado para fixar as linhas gerais daquele, e disciplinar o

que deva ter execução imediata.39

No art. 81 desta mesma lei ficam estabelecidos que a contar da aprovação do Plano

Estadual todas as instituições escolares deverão ter os seus regimentos adaptados à lei

5.692/71, e que nos três primeiros anos desta lei os estabelecimentos de ensino do 1º grau

que não tiverem regimento próprio regularmente aprovado deverão ser regidos pelas normas

expedidas pela administração dos sistemas que, no caso, seriam as delegacias de ensino. Para

garantir o planejamento disciplinar, o art. 82 permite que o inspetor federal seja colocado à

disposição dos sistemas que necessitarem de fiscalização. A nova ordem consistia

principalmente na mudança do tempo escolar, considerando a obrigatoriedade que atinge a

37 Entrevista realizada no dia 08 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (4º entrevistada). 38 Entrevista realizada no dia 04 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (3º entrevistada). 39 Acesso em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm no dia 21 de novembro de 2016 as

22h19min.

Page 17: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

17

faixa etária dos 7 aos 14 anos e ao mesmo tempo a antecipação da iniciação para o trabalho,

quando consideradas a idade do aluno e suas aptidões profissionais, conforme artigo 76.

Se antes da lei a instauração de uma ordem repressora contribuía para a construção

de uma escola adestradora dos professores e professoras, bem como das crianças e

adolescentes, com a legislação em vigor percebe-se uma mudança pragmática do ensino

levando em conta a materialização natural das práticas que tendem a disciplinar o indivíduo.

Na medida em que o tempo avança, as burocracias, bem como as relações das instâncias

administrativas se estreitam, e o que era visto como estranho passa ser compreendido como

natural, transformando-se em cultura escolar, no sentido de que aquilo que era visto com

“medo”, como imposição ou punição, se torna banal.

A organização hierárquica do sistema educacional, permitiu que as ações explícitas

do Estado se tornassem implícitas, o inspetor não é mais visto como uma figura que estava

ali para vigiar e punir. O cotidiano profissional, bem como as obrigações de cada sujeito,

naturalizou e automatizou os processos de vigilância e punição. Num processo hierárquico

em que cada um tendia a responder àquele que estava acima de si, as relações entre inspetor

e aluno se extinguem e, com o professor, é encarado dentro de uma perspectiva profissional.

O contato do inspetor se restringe ao(à) diretor(a) e era a diretora que fazia o papel da

supervisora, ela que acompanhava os planos, que olhava o lado pedagógico, os conteúdos,

tudo era a diretora que fazia40. As normatizações (que o inspetor recebia da Secretaria de

Estado da Educação e repassava para a direção escolar) eram repassadas para o(a)

professor(a), que repassava para os estudantes. Exceto quando havia reuniões gerais, quando

o(a) inspetor(a) reunia toda a equipe da escola para dar algumas orientações que já havia

sido passadas anteriormente para a direção da escola, a hierarquização e a burocratização

contribuíam para uma invisibilidade da fonte do poder – do domínio, do controle...

De uma figura temida a uma colaboração com o trabalho docente... De acordo com

a memória das entrevistadas, a função de inspeção é vista como uma função que

complementa, que colabora com a instituição escolar: quando ela vinha ela trazia tanta coisa

boa [...] naquelas reuniões em que ela passava as novas normas [...], uma pessoa tão

bondosa que a gente já nem lembrava mais daquele inspetor da época que a gente era

40 Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (5º entrevistada).

Page 18: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

18

criança41. No entanto, seja por adesão ao sistema ou pelo simples fato dos processos

burocráticos já estarem materializados no cotidiano escolar, notamos que implicitamente a

apropriação burocrática se dava quase que de forma religiosa no sentido de [...] fazer

históricos, ofícios, resolver o problema de secretaria, [...] a folha de pagamento [...]

preencher o livro toda manhã para as pessoas assinarem, fazer horário [...]42, e antes de

tomar determinadas decisões tinha que esperar o inspetor vir, às vezes, se tinha alguma

dúvida você ligava ou ia à delegacia [...] tinha o livro do inspetor e ele assinava que visitou

a escola43.

Tudo isso vai ao encontro da lógica explicitada por Weber na obra Sociologia da

Burocracia, organizado e traduzido por Campos (1978):

A experiência tende a mostrar universalmente -escreve ele -que o tipo duro de

administração-burocrática... É de uma perspectiva puramente técnica, capaz de

atingir o mais alto grau de eficiência e é nesse sentido o meio mais racional

conhecido de exercer a dominação sobre seres humanos.44

Por outro lado, levando em consideração a intenção da pesquisa é necessário propor

uma reflexão considerando as relações profissionais na docência a partir de uma perspectiva

dialética que nos permita perceber confluências entre as relações burocráticas que visam

necessariamente à especialização do homem a fim de consolidar uma sociedade

hierarquizada. De acordo com Bertucci (2010), em História e Formação, é fundamental

compreendermos as diferentes formas de reação desses agentes escolares às ingerências

daquelas instâncias no sentido de recuperá-las não como adesão cega, tampouco como

resistência, mas, sim, numa perspectiva dialógica.

Ao contrário da concepção idealista da educação, que crê na possibilidade de uma

mudança através da consciência e da quantidade de educação, a concepção

dialética da educação, baseada na análise concreta das relações existentes no

trabalho, sustenta que o processo de emancipação do homem é antes de tudo

econômico, histórico e não espiritual.45

41 Entrevista realizada no dia 04 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (3º entrevistada). 42 Entrevista realizada no dia 05 de outubro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (2º entrevistada). 43 Idem. 44 Apud. WEBER, Max. Os Fundamentos da Organização Burocrática: uma Construção do Tipo Ideal. In:

CAMPOS, Edmundo (organização e tradução). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978.

Pág. 65. Sic. 45 Idem. pág. 57.

Page 19: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

19

As memórias das professoras ouvidas durante a realização deste trabalho revelam

também a escola como um espaço de conflitos, de lutas e de confronto entre diferentes

posicionamentos políticos. Ainda que a burocratização e a hierarquização tenham avançado

no sentido de naturalizar o controle, os conflitos revelam as disputas profissionais e os

diferentes posicionamentos entre as docentes. Tal questão pode ser percebida na transcrição

do que diz uma professora acerca do convívio com outros profissionais.

Eu me lembro na época, se não me engano, (******)46 estava já como diretora, e

era aquela... Não sei se era competição, o que é, mas ela tinha uma mania de

sempre estar menosprezando. Então para eu mostrar que eu era capaz, eu

comprava os livros e fazia os planos, no CAPRICHO, no capricho, pra ela não

encontrar defeito algum. Era conflito, conflito, conflito, conflitos...47

[...] Olha, o relacionamento com professores não era bom... Porque cada um

achava que queria ser melhor que a outra, e quando alguém sobressaía havia uma

inveja muito grande... E tinha fofocas, sabe! E judiava e massacrava com a

gente...48

Salientamos aqui percebemos a crítica às relações interpessoais constituídas em meio

a um sistema político ideológico voltado para a competitividade, ou seja, a cultura escolar

como reprodutora do sistema fabril refletida e exemplificada no sentido de que quase sempre

um visava produzir mais do que o outro. Contudo, embora existissem as críticas por parte de

alguns professores, por outro lado existia adesão, ou melhor, uma adaptação em relação ao

sistema, como expressam duas das professoras ouvidas.

...eu não sei se porque eu nunca gostei de discussão de briga de confusão [...] eu

nunca tive conflitos, é lógico que a gente tem alguma coisinha assim com um

aluno, às vezes a gente chama atenção e ele te responde às vezes eu chamava a

atenção de novo e ele começava a falar muito, eu me calava, eu sou assim49.

[...] assim, às vezes, eu não me lembro, não me lembro mesmo. Assim, discussões,

não por causa do ensino [...] Eu acho que a escola... É... Vou te falar assim... A

escola, era uma escola modelo, era uma escola modelo, vou falar a verdade, era

uma escola modelo sabe50.

46 O nome foi censurado por considerarmos desnecessário ao proposito do trabalho e também a pedido da

entrevistada. 47 Entrevista realizada no dia 29 de agosto de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito. (1º entrevistada). 48 Entrevista realizada no dia 08 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (4º entrevistada). 49 Entrevista realizada no dia 04 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (3º entrevistada). 50 Entrevista realizada no dia 05 de outubro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história, Willian de

Souza Brito (2º entrevistada).

Page 20: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

20

É neste sentido que constatamos o dinamismo das “culturas escolares como

processos vivos e encarnados naqueles indivíduos que as fazem, pensam e sentem”51, seja

através da apropriação das novas concepções educacionais e ou práticas pedagógicas ou por

resistência a estes mesmos parâmetros. O que se percebe é a ideia de que existiam opiniões

e posicionamentos implícitos devido às circunstâncias políticas do período, assim como

existia adesão explícita do profissional por ele considerar o sistema enquanto estrutura

pedagógica um fator que iria de alguma forma beneficiá-lo, como também beneficiar a

comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletirmos sobre os professores, diretores, supervisores e inspetores como

agentes escolares, produtores de saberes e construtores de uma realidade histórica, ou seja,

elementos constitutivos de um processo sociocultural determinante para qualquer

transformação no âmbito político, econômico e social, justifica-se a apropriação de suas

narrativas objetivando valorizar suas experiências e suas ações de modo que estas

contribuíram para com a construção do momento histórico vivenciado por eles.

Em se tratando do estudo de caso em São Gonçalo do Pará – MG, por meio das

análises realizadas com os discentes das instituições educacionais públicas da cidade, bem

como das particularidades no que tange aos processos administrativos escolares do estado

de Minas Gerais, foi possível perceber a influência da conjuntura política de 1964 a 1985

nessas instituições.

Por meio das relações profissionais e das lembranças destes profissionais,

confirmamos a teoria de que a lógica burocrática tende a dominar de forma organizada e a

legitimar as relações de poder no que tange aos preceitos ideológicos como objeto de

concretude para a edificação de uma lógica centrada no capital e na especialização do sujeito.

Levando em conta a situação na qual o País se encontrava, constatamos que os

indivíduos vinculados ao ensino, neste caso, numa cidade interiorana, não viam a ditatura

como algo ruim, embora pudessem dar a entender em vários momentos que sim. Neste

51BERTUCCI, Liane Maria. Edward P. Thompson: História e Formação. Liane Maria Bertucci, Luciano

Mendes de Faria Filho, Marcus Aurélio Taborda de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG 2010 –

(HumanitasPocket). Pág. 71

Page 21: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

21

sentido, ao relembrarem suas memórias, as entrevistadas afirmam que a rigidez daquele

momento contribuiu para que estes profissionais e alunos se tornassem indivíduos melhores,

mais educados, e consequentemente obedientes. Não obstante, podemos confirmar a teoria

da docilidade dos corpos de Michel Foucault (2011) dentro da concepção de que para

alcançar este objetivo seria necessário o ato de vigiar e de punir por meio de estruturas

hierárquicas e burocráticas.

Esta constatação também vai ao encontro do que nos diz Pierre Bourdieu, de modo

que os sistemas simbólicos tendem a instituir e fazer cumprir uma “função política de

instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação [...] para a domesticação dos

dominados”52, visando construir uma lógica estrutural que se adeque às necessidades

econômicas e políticas do período.

Concordando ainda com Weber (1978), estas relações interpessoais estabeleceram,

por conseguinte, uma interdependência entre si, aqueles que detêm um poder sobre os seus

subordinados e, inversamente, as relações se deram por meio das normas instituídas pelo

Estado e visando necessariamente à obediência daqueles que são parte da organização ou

que se utilizam delas. No caso dos alunos, percebe-se a difusão da disciplina por meio de

concepções morais voltadas para o civismo, dialogando com conteúdos voltados para a

família e o lar. Em relação aos professores, a insistência na manutenção dos processos

burocráticos hierarquizados contribui para que estes conteúdos fossem transmitidos para

com a garantia e manutenção do sistema.

FONES E REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. RJ. Ed, Bertrand.

1989.

WEBER, Max. Os Fundamentos da Organização Burocrática: uma Construção do Tipo

Ideal. In: CAMPOS, Edmundo (organização e tradução). Sociologia da Burocracia. Rio de

Janeiro, Zahar Editores, 1978.

CLARK, J. U.; NASCIMENTO, M. N. M; SILVA, R. A. A Administração Escolar No

Período Do Governo Militar (1964-1984). Revista HISTEDBR, On-line. Campinas. n.

especial, p.124–139, ago. 2006 - ISSN: 1676-2584.

52BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. RJ. Ed, Bertrand. 1989. Pág. 11.

Page 22: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

22

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. - Campinas, SP: Autores Associados, 2008.

SAVIANI, Demerval. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil, - 2 ed. rev.e ampl. –

Campinas, SP: Autores Associados, 2008.

FERREIRA JR, Amarilio; BITTAR, Marisa. Educação e ideologia tecnocrática na ditadura

militar. Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 76, p. 333-355, set./dez. 2008.

ARAPIRACA, José Oliveira. A USAID e a educação brasileira: um estudo a partir de uma

abordagem crítica da teoria do capital humano (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro:

Fundação Getulio Vargas, 1979, p.161.

http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=DEC&num=18

804&comp=&ano=1977; 24/11/2015 ás 22h50min.

FOUCAULT, Michel. Vigiar E Punir: Nascimento Da Prisão; tradução de Raquel

Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

ALBUQUERQUE, A. S. N. Legislação e Política Educacional Brasileira. R. bras. Est.

Pedag., Brasília, n.184, p.699-734, set/dez. 1995.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. Moderna, São Paulo, 1996.

PELLANDA, Nize Campos. Ideologia e educação & Repressão no Brasil Pós 64. Porto

Alegre: Mercado Aberto, 1986.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva; Tradução de Laurent Léon Schaffter. São

Paulo, Vertice, 1990.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia E Aparelhos Ideológicos De Estado.Tradução de Joaquim

José de Moura Ramos. Lisboa, Editorial Presença, 1984.

E. P. Thompson. A Formação da Classe Operária Inglesa. A Árvore da Liberdade. Rio de

Janeiro: Paz e Terra. 1987.

CUNHA, Luiz Antônio. GOÉS, Moacyr. O Golpe Na Educação – 11ed. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2002.

GADOTTI, Moacir. Concepção Dialética da Educação: Um Estudo Introdutório. 11. Ed. São

Paulo, Cortez, 2000.

BERTUCCI, Liane Maria. Edward P. Thompson: História e Formação. Liane Maria

Bertucci, Luciano Mendes de Faria Filho, Marcus Aurelio Taborda de Oliveira. Belo

Horizonte: Editora UFMG 2010. 123 P. – (HumanitasPocket).

FARIA FILHO, L. M. A Legislação Escolar Como Fonte Para A História Da Educação:

Uma Tentativa De Interpretação. In: _. (Org.). Educação, Modernidade e Civilização. Belo

Horizonte: Autentica. 1998.

Page 23: ESCOLAR NA DISCIPLINARIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS MENTES (1964 ... · do século XXI, tal estudo é de grande relevância social e acadêmica. A memória das ... em 31 de março de

23

FARIA FILHO, L. M. A Cultura Escolar Como Categoria De Analise E Como Campo De

Investigação Na História Da Educação Brasileira. Educação e Pesquisa, 30 (1): p 139-160,

jan/abr. 2004.

FÁVERO, O. (Org). Cultura Popular – educação popular: memória dos anos 60. Rio de

Janeiro: Graal, 1983.

STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história.

In: Revista de História. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1991.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido

pela inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso; Tradução dos poemas José Paulo

Paes; Revisão Técnica Hilária Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

FÁVERO, Osmar. A Educação nas Constituintes brasileiras 1923-1988. (org.). – 2.ed. ver.

Ampl. – Campinas. SP: Autores Associados. – ( Coleção memória da educação). 2001.

HORTA, J.S. A educação no Congresso Constituinte 1966-1967. In: FÁVERO, O. (Org.). A

educação nas Constituintes (1823-1988). Campinas: Autores Associados, 1996.

FERREIRA, Marieta de Moraes; ABREU, Alzira Alves... [et al.].: Entre - vistas;

abordagens e usos da história oral – Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas,

1994. 172 p.

MARINGONI, Maria Cecília de Carvalho (org.). : Construindo o saber: Metodologia

científica – Fundamentos e técnicas/: PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini; O Trabalho

monográfico como iniciação à pesquisa científica. – 24º ed. – Campinas, SP: Papirus, 2012.

Pág. 185 a 213.

Entrevista realizada no dia 29 de agosto de 2016 pelo graduando de licenciatura em história,

Willian de Souza Brito. (1º entrevistada).

Entrevista realizada no dia 05 outubro de 2016 pelo graduando de licenciatura em história,

Willian de Souza Brito (2º entrevistada).

Entrevista realizada no dia 04 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em

história, Willian de Souza Brito (3º entrevistada).

Entrevista realizada no dia 08 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em

história, Willian de Souza Brito (4º entrevistada).

Entrevista realizada no dia 09 de novembro de 2016 pelo graduando de licenciatura em

história, Willian de Souza Brito (5º entrevistada).