Escolas Especificas Reformas Diversificadas

18
15 Educação & Sociedade, ano XXII, n o 75, Agosto/2001 REFORMA DO ESTADO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS: ENTRE A CRISE DO ESTADO-NAÇÃO E A EMERGÊNCIA DA REGULAÇÃO SUPRANACIONAL ALMERINDO JANELA AFONSO* RESUMO: Partindo de algumas observações prévias que ajudam a situar a posição do autor em relação ao tema em análise, o qual tem como referência o campo da sociologia das políticas educacionais, o texto procura, seguidamente, situar a crise do Estado-nação e as suas impli- cações para pensar algumas dimensões da educação, terminando por equacionar, sucintamente, a reforma do Estado, tendo em conta, sobre- tudo, os constrangimentos decorrentes das novas instâncias de regulação supranacional. Palavras-chave: Estado-nação; Instâncias de regulação supranacional; Reforma do Estado; Sociologia das políticas educacionais. Pelos valores políticos que defendo, quero começar por comunicar o meu desejo de manter uma atitude prudente e crítica sobre os limites teórico-conceptuais do conteúdo deste texto, dado, entre outras razões, estar consciente de a abordagem do tema que me foi proposto, ainda que feita por um português com um relativo conhecimento e vivência da realidade brasileira, poder, mesmo assim, incorrer em enviesamentos etnocêntricos, sobretudo pelo facto de muitos dos argumentos e autores aqui convocados seguirem alguns dos termos de referência do debate em contexto europeu – neste caso, o debate sobre o Estado-nação e a ressignificação da(s) cidadania(s), bem como a reforma do Estado e as suas implicações para a compreensão das políticas educacionais. 1 Apesar de ser uma temática susceptível de ser abordada a partir de perspectivas disciplinares muito diferenciadas, ela inscreve-se claramente, quer numa sociologia (política) da educação, quer numa sociologia das * Sociólogo, Doutor em Educação, vice-presidente do Instituto (Faculdade) de Educação e Psicologia, Director do Mestrado em Sociologia da Educação e Políticas Educativas e Professor Associado do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Universidade do Minho (Braga, Portugal). E-mail: [email protected]

description

Reformas escolares

Transcript of Escolas Especificas Reformas Diversificadas

  • 1 5Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    REFORMA DO ESTADO E POLTICAS EDUCACIONAIS:ENTRE A CRISE DO ESTADO-NAO E A EMERGNCIA

    DA REGULAO SUPRANACIONAL

    ALMERINDO JANELA AFONSO*

    RESUMO: Partindo de algumas observaes prvias que ajudam a situara posio do autor em relao ao tema em anlise, o qual tem comoreferncia o campo da sociologia das polticas educacionais, o textoprocura, seguidamente, situar a crise do Estado-nao e as suas impli-caes para pensar algumas dimenses da educao, terminando porequacionar, sucintamente, a reforma do Estado, tendo em conta, sobre-tudo, os constrangimentos decorrentes das novas instncias de regulaosupranacional.

    Palavras-chave: Estado-nao; Instncias de regulao supranacional;Reforma do Estado; Sociologia das polticas educacionais.

    Pelos valores polticos que defendo, quero comear por comunicaro meu desejo de manter uma atitude prudente e crtica sobre os limitesterico-conceptuais do contedo deste texto, dado, entre outras razes,estar consciente de a abordagem do tema que me foi proposto, aindaque feita por um portugus com um relativo conhecimento e vivncia darealidade brasileira, poder, mesmo assim, incorrer em enviesamentosetnocntricos, sobretudo pelo facto de muitos dos argumentos e autoresaqui convocados seguirem alguns dos termos de referncia do debate emcontexto europeu neste caso, o debate sobre o Estado-nao e aressignificao da(s) cidadania(s), bem como a reforma do Estado e assuas implicaes para a compreenso das polticas educacionais.1

    Apesar de ser uma temtica susceptvel de ser abordada a partir deperspectivas disciplinares muito diferenciadas, ela inscreve-se claramente,quer numa sociologia (poltica) da educao, quer numa sociologia das

    * Socilogo, Doutor em Educao, vice-presidente do Instituto (Faculdade) de Educao ePsicologia, Director do Mestrado em Sociologia da Educao e Polticas Educativas e ProfessorAssociado do Departamento de Sociologia da Educao e Administrao Educacional daUniversidade do Minho (Braga, Portugal). E-mail: [email protected]

  • 1 6 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    polticas educacionais. Neste caso, o enfoque que privilegiarei o dasociologia das polticas educacionais designao que venho adoptando,no apenas para indicar um dos meus objectos preferenciais de investigaoe de docncia, mas tambm com a inteno de dar visibilidade ao estudodas polticas educacionais, integrando-o no campo mais vasto (e maisconsolidado a nvel internacional) da sociologia da educao.2

    Ainda como observao prvia a este texto, procurarei adoptaruma opo analtica congruente com uma sociologia crtica, que no selimite desocultao das ambiguidades e contradies que atravessamas polticas educacionais, mas que possa tambm assumir certos valorese vises do mundo, sem que isso justifique menos esforo de rigor e deobjectividade. Neste sentido, e concordando com alguns autores, umaanlise integrada da poltica educativa deve, na perspectiva de umasociologia da educao crtica e poltica, possuir dois momentos: a anliseobjectiva dos determinantes da poltica pblica; e uma anlise da anteci-pao das condies de possibilidade das mudanas e das estratgiasprovveis de implementao de uma poltica de transformao (Morrow& Torres, 1997, p. 312-313). Neste texto, limitar-me-ei, no entanto, aoprimeiro momento, procurando colocar em evidncia alguns dos eixos econdicionantes das polticas educacionais actuais, e tendo como panode fundo a redefinio do papel do Estado. Do meu ponto de vista, estaparece ser uma etapa prvia antes que possamos estar em condies deimaginar os desenvolvimentos futuros e as polticas de transformao.

    A crise do Estado-nao e as polticas educacionais

    As polticas educacionais, at muito recentemente, eram polticasque expressavam uma ampla autonomia de deciso do Estado, ainda queessa autonomia fosse, necessariamente, a resultante das relaes (complexase contraditrias) com as classes sociais dominantes, e fosse igualmentesujeita s demandas das classes dominadas e de outros actores colectivose movimentos sociais. Todavia, ainda que, cada vez mais, haja indicadoresque apontam para uma crescente diminuio dessa autonomia relativa,continua a ser necessrio fazer referncia ao papel e lugar do Estado-nao, mesmo que seja para melhor compreender a sua crise actual e aredefinio do seu papel agora, necessariamente, tendo em conta asnovas condicionantes inerentes ao contexto e aos processos de globalizaoe transnacionalizao do capitalismo.

    Como sabido, o projecto da modernidade capitalista (enquantoprojecto societal impulsionado pelas esperanas de desenvolvimento social

  • 1 7Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    e econmico associadas revoluo industrial e, simultaneamente,enquanto projecto poltico e cultural induzido pelas aspiraes racio-nalistas do humanismo burgus das revolues americana e francesa) foi,em grande medida, construdo e consolidado em torno do Estado-nao.Como refere Renato Ortiz,

    Revoluo industrial e modernidade caminham juntas. Elas trazem consigoum processo de integrao at ento desconhecido: a constituio da nao.Diferentemente da noo de Estado (muito antiga na histria dos homens), anao fruto do sculo XIX. Ela pressupe que no mbito de um determinadoterritrio ocorra um movimento de integrao econmica (emergncia de ummercado nacional), social (educao de todos os cidados), poltica (adventodo ideal democrtico como elemento ordenador das relaes dos partidos e dasclasses sociais) e cultural (unificao lingustica e simblica de seus habitantes).(Ortiz, 1999, p. 78)

    Assim, como elemento mais antigo do binmio Estado-nao, oEstado tem j uma longa durao histrica. Tendo isso em conta, e noesquecendo que s poder ser bem caracterizado por referncia s muta-es particulares que foram ocorrendo na sua configurao, natureza efunes, o Estado ser aqui genericamente entendido como a organizaopoltica que, a partir de um determinado momento histrico, conquista,afirma e mantm a soberania sobre um determinado territrio, a exer-cendo, entre outras, as funes de regulao, coero e controlo social funes essas tambm mutveis e com configuraes especficas, etornando-se, j na transio para a modernidade, gradualmente indispen-sveis ao funcionamento, expanso e consolidao do sistema econmicocapitalista.

    No que diz respeito ao outro elemento do binmio a nao higualmente que considerar que ele sofreu tambm uma evoluo dife-renciada e lenta antes de coincidir com o seu significado mais actual.Para Puhle,

    quando o Estado j existia e comeava a democratizar-se, como aconteceu nosEstados Unidos, na Frana e, mais tarde, na Gr-Bretanha, a nao era apenasdefinida como o conjunto dos cidados do Estado. A cidadania era universal eabstracta. A homogeneidade cultural ou tnica no era exigida [...] No plooposto do espectro, encontramos os movimentos nacionais e os nacionalismossem um Estado prprio preexistente [...]: a a nao ou o povo, como sede dasoberania mxima, no podiam ser definidos por uma cidadania comum, sendo,em vez disso, concebidos em termos (ditos objectivos) de lngua, cultura, religio,e outros critrios histricos ou tnicos, frequentemente com conotaes racistase insinuaes fundamentalistas. (Puhle, 2000, p. 26-27)

  • 1 8 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    Sem perder de vista o facto de muitas naes serem originariamenteunidades fictcias impostas pela fora e construdas pelo prprio poderestatal (cf. Hirsch, 2000), pode dizer-se que uma das vises (eurocn-tricas) mais divulgadas (e tambm mais criticveis, por no levarem emconta, por exemplo, as especificidades histricas de pases que so origina-riamente espaos de muitos povos, culturas e lnguas, como o Brasil) aviso que faz corresponder a um Estado coeso, ou fortemente integrado,uma nao, ou mesmo, apenas, uma etnia, em qualquer dos casos suposta-mente identificveis pela lngua e pela cultura dominantes, pelas tradiese pela histria. , alis, tambm por essa razo, que a articulao entre oEstado e a nao tem sido frequentemente designada pela expresso Estado-nao, reforando assim a ideia de uma organizao tendencialmenteisomrfica de territrio, etnia, governo e identidade nacional.

    Foi, alis, como contributo para a construo (idealizada) do Esta-do-nao e como instrumento de reproduo de uma viso essencialista deidentidade nacional que o papel da escola pblica (enquanto escola doEstado) foi decisivo, sobretudo nos dois ltimos sculos. Neste sentido, acentralidade da Escola decorreu at agora, em grande medida, da suacontribuio para a socializao (ou mesmo fuso) de identidades disper-sas, fragmentadas e plurais, que se esperava pudessem ser reconstitudasem torno de um iderio poltico e cultural comum, genericamente designa-do de nao ou identidade nacional. A interveno do Estado teve, assim,um papel importante e decisivo na gnese e desenvolvimento da escola demassas (enquanto escola pblica, obrigatria e laica), e esta no deixou deter tambm reflexos importantes na prpria consolidao do Estado. Podemesmo dizer-se que a construo dos modernos Estados-nao noprescindiu da educao escolar na medida em que esta se assumiu comolugar privilegiado de transmisso (e legitimao) de um projecto societalintegrador e homogeneizador, isto , um projecto que pretendeu, mesmocoercitivamente, sobrepor-se (e substituir-se) s mltiplas subjectividadese identidades culturais, raciais, lingusticas e religiosas originrias.

    Em complemento aos aspectos que acabei de referir, vem a prop-sito convocar a perspectiva de Boaventura S. Santos quando observa que

    os Estados-nao tm tradicionalmente desempenhado um papel algo ambguo.Enquanto, externamente, tm sido os arautos da diversidade cultural, daautenticidade da cultura nacional, internamente, tm promovido a homo-geneizao e a uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas locaisexistentes no territrio nacional, atravs do poder da polcia, do direito, dosistema educacional ou dos meios de comunicao social, e na maior parte dasvezes por todos eles em conjunto. (Santos, 2001)

  • 1 9Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    tambm por estas e outras razes que a construo histrica dosEstados-nao e a sua relao com a educao pblica e a ideia de cida-dania sempre foram extremamente complexas e ambivalentes, e sempretiveram implicaes polticas e culturais importantes muitas das quaisesto hoje a ser retomadas e criticamente analisadas pelo facto de o prpriopapel do Estado estar em redefinio, em grande medida, por influncia,mais ou menos directa, dos processos de globalizao cultural e detransnacionalizao do capitalismo.

    A implicao dos aspectos que acabei de mencionar relativamenteevidente para algum que estude as polticas educacionais. Por um lado,j no sendo possvel fazer este estudo tendo apenas como referncia oespao nacional, til, por outro lado, observar que quando se fala emcrise do Estado-nao isso no deve necessariamente querer significar amorte anunciada do Estado como organizao poltica, nem o anacronis-mo da ideia ou do ideal de nao. Neste sentido, e para alm da realidademundial que mostra que ainda hoje muitos povos e naes lutam para aconstituio do seu prprio Estado soberano, sabemos que a chamadacrise do Estado-nao tambm uma crise ideologicamente construda,na medida em que nem todos os Estados nacionais so igualmente afecta-dos pela globalizao, e nem todos cumprem (ou esto destinados acumprir) os mesmos papis nos processos de transnacionalizao docapitalismo; tambm uma crise ideologicamente construda porque,dependendo das perspectivas terico-conceptuais adoptadas, embora oEstado permanea como realidade poltica, so cada vez mais retricasdo que reais as hipteses de resistir globalizao econmica, poltica ecultural quando se pensa neste mesmo Estado como principal ou nicomobilizador nacional de processos contra-hegemnicos.

    A propsito desta ltima afirmao, Lcio Flvio de Almeidaadverte para a necessidade de se fazer com muito cuidado o exame dasrelaes entre os Estados nacionais e os processos de transnacionalizaodo capitalismo porque, como o neoliberalismo faz a apologia da globa-lizao, ocorre uma forte tendncia para atribuir aos Estados nacionais opapel de vtimas deste processo, s variando as avaliaes quanto aopapel que se pode esperar deles (Almeida, 1998, p. 20). No entanto,acrescenta este autor, se os Estados nacionais forem concebidos comorepresentantes de interesses de classe ver-se- que estes interesses s podemser salvaguardados porque os Estados tambm desempenham um impor-tante papel na fase actual de transnacionalizao do capitalismo. Nestecaso, acentuar a importncia das relaes com as classes dominantes po-der implicar abandonar ou pr em questo a ideia, defendida por alguns,

  • 2 0 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    de o Estado nacional poder vir a reagir internamente contra a globali-zao, reassumindo-se como representante do bem-comum.

    Por outro lado, no que diz respeito ideia de nao e de identidadenacional, tambm hoje se colocam questes importantes para a anlisesociolgica da crise do Estado-nao e das suas implicaes para as polti-cas educativas. Enunciar esta crise pode ser tambm uma forma de chamara ateno para a existncia de novos factores subnacionais, regionais etransnacionais que condicionam e limitam os campos da autonomia rela-tiva dos Estados e que, entre muitas outras expresses, podem traduzir-se em tenses e desconexes, mais ou menos evidentes, entre, por umlado, as identidades culturais, lingusticas, tnicas, religiosas e raciais e,por outro, as soberanias territoriais. Neste sentido, como chama a atenoArjun Appadurai,

    o territrio como base para a lealdade e o sentimento nacional est cada vez maisdivorciado do territrio como lugar da soberania e controlo estatal da sociedadecivil. Os problemas de jurisdio e lealdade esto cada vez mais desvinculados.Isto no um bom pressgio sobre o futuro do Estado-nao na sua formaclssica, na qual os dois so imaginados como coexistentes e sustentando-semutuamente. (Appadurai, 1997, p. 37-38)

    Por isso, numa poca de transio entre o apogeu do Estado-naoe a emergncia de novas instncias de regulao global e transnacional,alguns dos desafios que se colocam s polticas educativas remetemnecessariamente para a necessidade de se inscreverem na agenda polticae educacional os processos e as consequncias da reconfigurao e ressi-gnificao das cidadanias, resultantes, entre outros factores, do confron-to com manifestaes cada vez mais heterogneas e plurais de afirmaode subjectividades e identidades, em sociedades e regies multiculturais,e aos quais os sistemas educativos, as escolas e as prticas pedaggicasno podem ser indiferentes.

    No que diz respeito reconfigurao ou ressignificao das cidada-nias, h que ter em conta que a Escola e as polticas educativas nacionaisforam muitas vezes instrumentos para ajudar a nivelar ou a unificar osindivduos enquanto sujeitos jurdicos, criando uma igualdade mera-mente formal que serviu (e ainda continua a servir) para ocultar e legitimara permanncia de outras desigualdades (de classe, de raa, de gnero),revelando assim que a cidadania historicamente um atributo poltico ecultural que pouco ou nada tem a ver com uma democracia substantivaou com a democracia comprometida com a transformao social. Noque diz respeito, mais especificamente, ao sistema educacional, faz aqui

  • 2 1Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    sentido convocar alguns adquiridos da sociologia (nomeadamente aquelesque derivam dos trabalhos de Pierre Bourdieu) porque eles nos lembramque a Escola se tornou um dos lugares centrais do exerccio da violnciasimblica e precisamente isso que est aqui em causa quando verifica-mos que a funo de socializao (ou homogeneizao) faz parte de ummais amplo processo de transmisso da cultura hegemnica e de incul-cao de conhecimentos, valores e vises do mundo que, sendo emboraconsiderado um arbitrrio cultural, dissimula o seu carcter impositivo,ao levar a considerar como sendo do interesse de todos aquilo que, defacto, tende a coincidir sobretudo com interesses das classes dominantes,a que o Estado capitalista, neste caso, continua a ser particularmentepermevel.

    Assim, num sentido mais amplo, a noo inicial de cidadaniapode, do meu ponto de vista, ser tambm entendida, na sua gnesehistrica, como um dos produtos esperados do exerccio legtimo daviolncia simblica, isto , pode ser vista como o resultado de uma impo-sio cultural e identitria, cuja eficcia social, poltica e econmica resultajustamente do facto de dissimular a sua natureza arbitrria e violenta. o reconhecimento da cidadania que nas sociedades capitalistas permiteque os indivduos possam ser tratados juridicamente como iguais e livres o que, alis, sendo uma condio necessria para o estabelecimento derelaes mercantis e de explorao no se destina, obviamente, a resolveras verdadeiras e reais desigualdades sociais e econmicas. Por isso, a noode cidadania deve tambm ser discutida tendo em conta a natureza declasse do Estado e o papel que este tem vindo a desempenhar, nomea-damente nas sociedades capitalistas. Mais precisamente, a cidadaniamoderna, que se desenvolve igualmente ao longo dos sculos XVIII eXIX, est fortemente associada ao poder do Estado, na medida em que este que a reconhece e garante.

    No seu sentido mais restrito, a cidadania pressupe o reconheci-mento de uma relao jurdica de pertena a uma determinada comuni-dade poltica e, como consequncia, o acesso a alguns direitos elementaresdirectamente decorrentes da posse legal de uma nacionalidade tuteladapor um determinado Estado. Neste sentido, se recuarmos um pouco notempo, verificamos que esse reconhecimento poltico foi, e ainda continuaa ser muitas vezes, um acto arbitrrio e extremamente selectivo. Come-ando por fazer-se tendo sobretudo em considerao caractersticaspessoais ou grupais, e factores econmicos e culturais (como, por exemplo,os nveis de alfabetizao, a propriedade, a raa ou o sexo), o reconheci-mento da cidadania, apesar de ter vindo a incorporar critrios cada vez

  • 2 2 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    mais abrangentes, tem sido historicamente um processo baseado naincluso de alguns e na excluso de muitos. No entanto, mesmo entre osindivduos e grupos sociais que acabam por ser includos como resultadoda atribuio da cidadania jurdica ou formal, continuam a subsistirdesigualdades profundas e diversas que no nos podem fazer esquecerque a noo de cidadania surge na alvorada do capitalismo em estreitarelao com prticas poltico-ideolgicas cuja reiterao adquire impor-tncia crucial para a dominao burguesa (Almeida, 1998, p. 24).

    Apesar disso, como construo histrica, a cidadania tem muitasoutras dimenses. Se, por um lado, o contedo ambivalente e contra-ditrio da problemtica da cidadania reflecte a existncia de um terrenode disputa onde se confrontam processos sociais, polticos, econmicose culturais de restrio e excluso com processos de incluso, de nego-ciao e de reconhecimento, por outro lado, enquanto construo demo-crtica de novos direitos, a cidadania pode ser entendida tambm comouma categoria dinmica e inacabada, fortemente permevel s lutas sociais,econmicas e polticas.

    Neste ltimo sentido, e pensando, por exemplo, na funo daspolticas sociais no contexto das sociedades capitalistas democrticas,pode dizer-se que estas revelam muitas das diferentes e contraditriasfacetas dos processos de construo e ampliao dos direitos (e do prprioconceito) de cidadania. Assim, se, por um lado, as polticas sociais eeducacionais podem ser interpretadas como instrumentos de controlosocial e como formas de legitimao da aco do Estado e dos interessesdas classes dominantes, por outro lado, tambm no deixam de poderser vistas como estratgias de concretizao e expanso de direitos sociais,econmicos e culturais, tendo, neste caso, repercusses importantes(embora, por vezes, conjunturais) na melhoria das condies de vida dostrabalhadores e dos grupos sociais mais vulnerveis s lgicas da exploraoe da acumulao capitalistas. As polticas sociais (e a consequente expansode direitos de cidadania) foram, alis, um dos pilares do chamado Estado-providncia, que se caracterizou, sobretudo em alguns dos pases capita-listas avanados e num contexto histrico particular, pela capacidade degerir as contradies e tenses resultantes das exigncias da legitimaodemocrtica e da acumulao capitalista (cf., entre outros, OConnor,1977; Offe, 1984; Santos, 1993).

    O que est ocorrendo na fase actual de globalizao e transnacio-nalizao do capitalismo mostra que estamos perante a emergncia denovos factores e processos (econmicos, polticos e culturais) que trazemconsigo as incertezas em relao aos direitos sociais conseguidos na esfera

  • 2 3Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    nacional, deixando tambm em aberto outras possibilidades para umanova gerao de polticas e direitos que possam actualizar as conquistasda cidadania democrtica, agora na esfera de outras instncias e contextosque transcendem o prprio Estado-nao, embora podendo e devendoarticular-se com este. Neste sentido, se, por um lado, o conjunto dosprocessos e interconexes regionais e globais em curso gera restriescrescentes cidadania democrtica de base territorial soberana tambm,por outro lado, abre possibilidades efectivas de ampliao de umacidadania democrtica de base cosmopolita (Gmez, 2000, p. 14). Estaspossibilidades, no entanto, s agora comeam a ser equacionadas, sendopor isso necessrio estar atento a todos os debates em torno de desenvol-vimentos possveis e a todas as experincias sociais e polticas que surjamcomo alternativas credveis nesta fase de transio.

    Instncias de regulao supranacional, reforma do Estado e educao

    Como referi em pginas anteriores, embora estejamos ainda relati-vamente longe de poder constatar empiricamente a existncia de umcompleto e irreversvel esvaziamento da autonomia relativa do Estado-nao moderno, no podemos, ainda assim, deixar de considerar queessa autonomia relativa est sendo cada vez mais desafiada e constrangidapelos processos de globalizao e de transnacionalizao do capitalismo.

    Existem, porm, muitas e relativamente divergentes perspectivasem confronto sobre o fenmeno da globalizao, sendo, por isso, prefervelfalar de globalizaes no plural e no de globalizao no singular (cf.Santos, 2001). Do meu ponto de vista, e seguindo muitos outros autores,parece ser mais adequado, e ter maiores possibilidades heursticas, pensarem termos de globalizaes, na medida em que a globalizao no umfenmeno unvoco, coerente e consensual; no um fenmeno que con-tenha aspectos e dimenses com consequncias apenas positivas ou desej-veis; no expressa somente decises, relaes, tenses e influncias quepartam unidireccionalmente e impositivamente do nvel global para osnveis regional, nacional ou local, ou que tenham apenas como objectivoorganizar ou garantir interesses voltados para a acumulao capitalista epara a dominao (globalizao hegemnica). Quando se fala de globa-lizao, tambm se pode ter em mente, quer a expresso de movimentossociais de resistncia, quer as experincias e iniciativas concretas de mu-dana social, muitas vezes iniciados localmente e ampliados globalmente,em ambos os casos tendo como fundamento perspectivas (econmicas,culturais, ticas e polticas) que se constituem como propostas alter-

  • 2 4 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    nativas sobre a organizao do mundo, sobre os direitos dos seres huma-nos e sobre a preservao da vida na Terra (globalizao contra-hegem-nica). Pelo que acabei de referir, e apesar de serem conhecidos alguns argu-mentos que consideram no ser o vocbulo globalizao isento de cono-taes ideolgicas, acho que pode ser adoptado criticamente desde que setenha em conta e se especifiquem os sentidos e os contextos em causa.

    Assim, algumas perspectivas, que sustentam e aprofundam umcontnuo e interessante debate em torno das razes histricas da globali-zao e das suas dimenses sociolgicas, ideolgicas, econmicas, polticase culturais, no deixam de apresentar a este propsito um amplo consensorelativamente a um facto que quero reconvocar neste texto: inegvelque, com uma intensidade maior ou menor, todos os pases se confrontamhoje com a emergncia de novas organizaes e instncias de regulaosupranacional (ONGs, Mercosul, Organizao Mundial do Comrcio,Unio Europeia), cuja influncia se vem juntar a outras organizaesque j no so recentes, mas que continuam a ser muito influentes (BancoMundial, OCDE, FMI), sendo que elas tm sempre implicaes diversas,entre as quais, e de acordo com o objecto deste trabalho, aquelas quedirecta ou indirectamente ditam os parmetros para a reforma do Estadonas suas funes de aparelho poltico-administrativo e de controlo social,ou que induzem em muitos e diferentes pases a adopo de medidasditas modernizadoras que levam o Estado a assumir tambm, de formamais explcita, uma funo de mediao, de adequao s prioridadesexternamente definidas ou, mesmo, de promoo das agendas que secircunscrevem a ditames mais ou menos ortodoxos da fase actual detransnacionalizao do capitalismo e de globalizao hegemnica.

    Talvez seja til lembrar, na sequncia do que tenho estado adesenvolver, que a chamada reforma do Estado tem hoje uma amplitudemuito maior do que aquela que pode estar subentendida quando se falaem simples modernizao da administrao, sugerida, neste caso, porexpresses como reinveno do governo, aco administrativa orientadapara os resultados, new public management, entre outras. A este propsito,

    quando, por exemplo, se insiste na substituio do paradigma burocrtico daadministrao pelo paradigma administrativo-empresarial isso traduz-se tambmna emergncia de um novo paradigma do Estado que hoje tende a serdenominado paradigma do Estado-regulador. (Gomes Canotilho, 2000, p. 21)

    E, tendo em mente mudanas mais amplas que dizem sobretudorespeito actual situao de Portugal em contexto europeu, este mesmoautor sintetiza:

  • 2 5Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    Comeou-se, nos anos setenta e oitenta, pela liberalizao e privatizao. Seguiu-se, nos anos noventa, a re-regulao, ou seja, o controlo das escolhas privadas porimposio de regras pblicas, precisamente em domnios dos quais os Estados sehaviam retirado. Assiste-se hoje, de forma difusa, articulao de regulaes, isto, articulao das regulaes nacionais que tomam em conta variantes institu-cionais especficas, com a regulao europeia. (Gomes Canotilho, 2000, p. 29-30).

    Mas no apenas a expresso Estado-regulador que vem acentuaro facto de o Estado ter deixado de ser produtor de bens e servios para setransformar sobretudo em regulador do processo de mercado. H hoje,no que diz respeito reforma do Estado e s suas conexes com a realidademultidimensional da globalizao e das instncias de regulao supra-nacional, uma mirade de designaes que acentuam outras dimenses eformas de actuao, e que no podem, por isso mesmo, deixar de passardespercebidas a um investigador atento e crtico. No pretendendo apro-fundar este tema por agora, quero, a mero ttulo de exemplo, nomearalgumas outras: Estadoreflexivo, Estado-activo, Estado-articulador; Estado-supervisor; Estado-avaliador; Estado-competidor. So todas denominaesactuais e correntes na literatura especializada que expressam novas formasde actuao e diversas e profundas mudanas nos papis do Estado; emqualquer dos casos quase sempre impulsionadas (e justificadas) por factoresexternos que dizem respeito, predominantemente, aos efeitos decorrentesda transnacionalizao do capitalismo e da actuao de instncias deregulao supranacional efeitos esses que so desigualmente sentidosconsoante a situao de cada pas no sistema mundial, embora sejamnecessariamente (re)interpretados ou recontextualizados ao nvel nacional.

    No que diz respeito educao, comeo por fazer uma breve alusoa algumas das dimenses do Estado-avaliador (evaluative state). Estaqualificao, inicialmente proposta por Guy Neave e mais recentementerevisitada por este mesmo autor ainda no mbito de trabalhos relativoss polticas de ensino superior, visa sobretudo sinalizar o facto de estarem curso a transio de uma forma de regulao burocrtica e fortementecentralizada para uma forma de regulao hbrida que conjuga o controlopelo Estado com estratgias de autonomia e auto-regulao das insti-tuies educativas. Em relao a Portugal, um trabalho recente tambmsobre o ensino superior refere como trao distintivo que uma das carac-tersticas do Estado avaliador reside exactamente na nfase simultnea,por um lado, na desregulao e na autonomia institucional, e, por outro,no desenvolvimento de um corpo regulatrio condicionando a acoinstitucional (Seixas, 2001). Nesta mesma linha de argumentao, umoutro autor refere que

  • 2 6 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    parece legtimo levantar a hiptese de que o modelo de regulao emergente,para alm da retrica fundada na autonomia institucional e na f na regulaopelo mercado, sublinhar mais a lgica intervencionista, isto , uma maiorpresena da administrao central nas instituies, nas suas caractersticasorganizacionais e nos modelos de governao e de autoridade no interior dasinstituies, nomeadamente sob as formas que o Estado avaliador vemapresentando.

    Neste sentido, na esteira de trabalhos de referncia nesta temticacomo so os de Guy Neave ou van Vught, acrescenta-se ainda que, quandoconsiderados os desenvolvimentos dos sistemas de ensino superior naEuropa Ocidental desde meados dos anos oitenta, os governos come-aram a interferir mais profunda e extensivamente no sistema e nasinstituies, radicalizando a figura do Estado intervencionista. Assim,conclui este autor, O Estado avaliador corresponder a esta radicalizao(Magalhes, 2001, p. 133).

    Se pensar agora em termos de ensino no-superior no mbito darealidade portuguesa, posso dizer, em funo do trabalho que eu prpriorealizei sobre este tema h alguns anos (cf., por exemplo, Afonso, 1998),que a presena do Estado-avaliador, embora com dimenses comuns, relativamente distinta da anterior, uma vez que a configurao da autono-mia das escolas dos ensinos bsico e secundrio est muito longe daconfigurao da autonomia das universidades, ou mesmo de outrasinstituies de ensino superior. A presena do Estado-avaliador ao nveldo ensino no-superior expressa-se sobretudo pela promoo de um ethoscompetitivo que comea agora a ser mais explcito quando se notam, porexemplo, as presses exercidas sobre as escolas nos nveis de ensino acimareferidos (ensinos fundamental e mdio no Brasil) atravs da avaliaoexterna (exames nacionais, provas aferidas ou estandardizadas e estratgiasde presena mais assdua de agentes da Inspeco Geral da Educaoenquanto rgo central do Ministrio da Educao), e atravs do predo-mnio de uma racionalidade instrumental e mercantil que tende a sobre-valorizar indicadores e resultados acadmicos quantificveis e mensurveissem levar em considerao as especificidades dos contextos e dos processoseducativos. Neste caso, a autonomia dos estabelecimentos de ensino no-superior (que tem vindo a ser discutida desde meados dos anos oitenta eque tem neste momento uma nova regulamentao legal) continua aparecer mais retrica do que real, acabando, sobretudo, por ser um pre-texto para a avaliao e para a responsabilizao dos actores o que, porsua vez, sendo uma estratgia pragmtica e com alguns efeitos simb-licos, visa tambm promover uma nova representao sobre o papel do

  • 2 7Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    Estado, que est cada vez mais distante das funes de bem-estar sociale das obrigaes que assumira quando era o principal provedor e fornece-dor de bens e servios educativos.

    Neste sentido, quando procurei perceber as especificidades portu-guesas, tendo como referncia as mudanas educacionais promovidaspela Nova Direita em pases como os EUA e a Inglaterra, pude constatarque o hibridismo inerente s coligaes neoliberais e neoconservadores,com particular expresso no caso das polticas educacionais e de avaliao,podia ser adequadamente interpretado pela articulao dos conceitos deEstado-avaliador (cf. Neave, 1988, 1998) e de quase-mercado (cf. LeGrand, 1991). Esta articulao, tensa e relativamente contraditria, tinhaprecisamente uma expresso hbrida porque, atravs da avaliao, pudeverificar que era possvel compatibilizar, quer o aumento (neoconservador)do poder de controlo central do Estado em torno dos currculos, dagesto das escolas e do trabalho dos professores, quer a induo e imple-mentao (neoliberal) de mecanismos de mercado no espao pblicoestatal e educacional, neste caso, em funo das presses de alguns sectoressociais mais competitivos e das prprias famlias. Ao propor, com basena anlise emprica, a designao de avaliao estandardizada criterialcom publicitao de resultados quis precisamente dar conta destaarticulao (cf. Afonso, 1994, 1998, 1999, 2000).

    Tendo ganho uma nova centralidade desde meados dos anosoitenta, a avaliao continua, j no incio de um novo milnio, a ser umdos eixos estruturantes das polticas pblicas, em geral, e das polticaseducacionais, em particular. Como refere Patricia Broadfoot autoraque h muitos anos vem trabalhando com regularidade estas questesnuma perspectiva sociolgica , os procedimentos de avaliao consti-tuem hoje um dos mais importantes meios de controlo da educao.Neste sentido, como o seu artigo mais recente acaba por demonstrar,tomando como exemplo o conceito de accountability e as suas implicaespara perceber as diferenas relativamente ao que ocorre na Frana e naInglaterra, so tambm cada vez em maior nmero os estudos de anlisecomparada de resultados, procedimentos e polticas de avaliao queprocuram ter em considerao as especificidades polticas, administrativas,ideolgicas e as tradies culturais dos diferentes pases. A este propsito,esta autora concretiza:

    A nfase colocada numa determinada forma de accountability num pas ounoutro reflecte em princpio as tradies ideolgicas e o ethos caracterstico deuma cultura nacional particular. Por isso, pases que actualmente enfrentam

  • 2 8 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    dificuldades semelhantes nos seus sistemas educativos parecem responder deformas diferentes. Na minha opinio, o que est subjacente a essas aparentesdiferenas , no entanto, partilhado por todos como sendo o mesmo problema,que o de ter de recorrer a mecanismos de accountability como forma decontrolo, e de pr em prtica esses mesmos mecanismos atravs da combinaode diferentes procedimentos de avaliao. Mais uma vez, as formas que estesprocedimentos adquirem variam segundo o momento e o lugar, mas as funesfundamentais destes mesmos procedimentos, como, por exemplo, o facto deassegurarem o exerccio do controlo atravs da linguagem da accountability,continuam a ser as mesmas. (Broadfoot, 2000, p. 45)

    Finalmente, gostaria de fazer um breve comentrio a propsito deuma outra designao recente sobre a mudana na forma de actuao doEstado que vem sendo trabalhada por alguns autores tambm para pensaras questes relativas s polticas educacionais. Trata-se da designaoEstado-competitivo (competition state) que Philip Cerny define por refe-rncia a um processo onde os actores do Estado e do mercado procuramreinventar o Estado como uma associao quase empresarial num contex-to mundial (Cerny, 1997, p. 251, apud Robertson & Dale, 2001, p.117). Na interpretao de Robertson & Dale (2001, p. 117-118), odiscurso e a prtica da competitividade e da implementao da lgica demercado orientam a agenda poltica do Estado e, simultaneamente, sousados para legitimar essa mesma agenda, tanto a nvel externo comoexterno. Como que estas caractersticas podem ser observadas nas pol-ticas educativas actuais o principal objectivo deste ltimo artigo, queno poderemos por agora desenvolver.

    Referindo-se a esta nova forma de actuao do Estado, Roger Dale(1998) mostra num outro trabalho que o que est em causa essen-cialmente uma redefinio de prioridades relativamente a cada um dostrs problemas centrais que tm caracterizado o mandato para a educaonas sociedades capitalistas democrticas, aparecendo agora em primeirolugar o apoio ao processo de acumulao; em segundo lugar, a garantiada ordem e controlo sociais; em terceiro lugar, a legitimao do sistema.Entretanto, o modo como a educao apoia o processo de acumulaopode variar em funo das dominncias que configurarem, de uma formamais precisa, a actuao do Estado-competidor. Assim, ainda segundoDale, esta actuao pode passar por uma forte interveno do Estado napromoo da investigao e da inovao para atender s necessidades dotecido produtivo; pode passar pela adopo de lgicas e mecanismos demercado na educao; ou pode passar ainda pela contribuio da educaopara a reproduo de mo-de-obra especializada.3

  • 2 9Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    A finalizar

    Em trabalhos que pretendem reflectir sobre temticas relativa-mente complexas e actuais, como aquela que aqui muito sucintamenteenunciei, todas as concluses so, em rigor, provisrias. Como estamos aviver uma poca de transio, com contornos ainda muito indefinidos, tambm mais difcil contar com referncias polticas e terico-conceptuaisconsistentes e seguras que nos ajudem a equacionar a realidade social eeducacional. A anlise sociolgica das polticas educacionais , deste pontode vista, particularmente sugestiva e estimulante para exercitar a reflexi-vidade crtica; preciso, no entanto, como referi no incio deste texto, irmais alm para encontrar polticas de transformao congruentes comas vises do mundo em que acreditamos. Por mim, estou disponvel paraequacionar alternativas e dar um contributo em dilogo e confronto cr-tico; sei, no entanto, que projectos e polticas de transformao em educa-o so uma tarefa rdua que s poderemos verdadeiramente retomar erealizar colectivamente.

    Recebido para publicao em julho de 2001.

    Notas

    1. Retomo aqui, de uma forma mais sistematizada, a minha interveno numa sesso conjuntapromovida pelos Grupos de Trabalho Poltica de Educao Superior e Estado e Poltica Educacionalrealizada no mbito da XXIII Reunio Anual da Anped Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (Brasil, Caxambu, MG, Setembro de 2000). Gostaria dedeixar aqui registado o meu agradecimento, pelo convite que me foi dirigido, direco daAnped e, em particular, aos colegas ento responsveis pela coordenao dos referidos GTs(Maria do Carmo Lacerda Peixoto e Luiz Fernandes Dourado), e tambm testemunhar o meuapreo aos colegas que aceitaram a tarefa de comentar criticamente a minha exposio (Joo dosReis Silva Jr. e Carlos Roberto Jamil Cury), bem como a todos aqueles que intervieram nodebate que se seguiu.

    2 . esta a perspectiva que defendo em artigo recentemente publicado em Espanha na Revista deEducacin, num nmero monogrfico que integra um conjunto de colaboraes de diferentesautores e que tem como intuito fazer um balano sobre a Sociologia da Educao em algunspases (cf. Afonso, 2001). No caso de Portugal (tal como, alis, em outros casos) as ltimasduas dcadas foram particularmente propcias implementao de reformas neoliberais, e isso,em parte, deslocou a ateno para o estudo das polticas educacionais, independentemente doseixos privilegiados (ensino tcnico, escolas profissionais, currculo, gesto escolar, ensinoprivado, educao bsica, avaliao, entre outros). A propsito da avaliao educacional comoeixo estruturante para o estudo sociolgico das polticas educacionais, ver, por exemplo, Afonso(1999, 2000).

    3. Para um desenvolvimento muito recente deste quadro terico aplicado educao em Portugal,ver, por exemplo, o trabalho de Ftima Antunes (2001). Para uma problematizao dasquestes actuais em torno da educao, da competitividade e da cidadania em funo dasmudanas polticas e econmicas em curso, ver tambm (Afonso & Antunes, 2001, no prelo).

  • 3 0 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    REFORM OF THE STATE AND EDUCATIONAL POLICIES:IN BETWEEN THE CRISIS OF THE NATION-STATE AND THE EMERGENCE

    OF THE SUPRANATIONAL REGULATION

    ABSTRACT: The text starts with a few previous observations that helpthe reader to position the author as far as the analysed thematic is concerned.Then, having a sociology of education policy as a reference, the author triesto situate the crisis of the Nation-State and its implications in order to lookinto some of the dimensions of education. At last, he makes an outline of thereform of the State, which is mainly based on the restraints deriving fromthe new supranational regulation instances/agencies.

    Key words: Nation-State; Supranational regulation instances/agencies;State reform; Sociology of education policy.

    Referncias bibliogrficas

    AFONSO, Almerindo J. A centralidade emergente dos novos processosde avaliao no sistema educativo portugus. Forum Sociolgico,Lisboa, 1994, n 4, p. 7-18.

    ______. Polticas educativas e avaliao educacional. Braga: Universidadedo Minho, 1998.

    ______. Estado, mercado, comunidade e avaliao: Esboo para umarearticulao crtica. Educao & Sociedade, Campinas: Cedes, 1999,n 69, p. 139-164.

    ______. Avaliao Educacional: Regulao e emancipao. So Paulo:Cortez, 2000.

    ______. Tiempos e itinerarios portugueses de la sociologa de la educacin:(dis)continuidades en la construccin de un campo. Revista deEducacin, Madrid, 2001, n 324, p. 9-22.

    ______. & ANTUNES, Ftima. Educao, cidadania e competitividade:Algumas questes em torno de uma nova agenda. Cadernos dePesquisa, So Paulo, 2001, n 114. (No prelo).

    ALMEIDA, Lcio Flvio de. Estado, nao, transnacionalizao: Reflexesem torno do Manifesto do Partido Comunista. Lutas Sociais, So Paulo,1998, n 4, p. 19-26.

    ANTUNES, Ftima. Os locais das escolas profissionais: Novos papispara o Estado e a europeizao das polticas educativas. In: STOER,

  • 3 1Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    S. R. et al. (Orgs.), A transnacionalizao da educao: Da crise daeducao educao da Crise, Porto: Afrontamento, 2001, p. 165-210. (No prelo).

    APPADURAI, Arjun. Soberania sem territorialidade: Notas para umageografia ps-nacional. Novos Estudos Cebrap, So Paulo, 1997, n49, p. 33-46.

    BROADFOOT, Patricia. Un nouveau mode de rgulation dans unsystme dcentralis: ltat valuateur. Revue Franaise de Pdagogie,Paris, 2000, n 130, p. 43-55.

    CERNY, Philip. Paradoxes of the competition state: The dynamics ofpolitical globalization. Government and Opposition, Londres, 1997,vol. 32, n 2, p. 251-274.

    DALE, Roger. Globalization: A new world for comparative education?.In: SCHRIEWER, Jrgen (Org.), Discourse and Comparative Education,Berlin: Peter Lang, 1998.

    GOMES CANOTILHO, Jos J. Paradigmas de Estado e paradigmasde administrao pblica. In: AAVV, Moderna Gesto Pblica: dosmeios aos resultados. Oeiras: INA, 2000, p. 21-34.

    GMEZ, Jos Mara. Poltica e democracia em tempos de globalizao.Petrpolis: Vozes, 2000.

    HIRSCH, Joachim. Estado nacional, nacionalismo y conflicto de clases.Revista Herramienta, Buenos Aires, 2000, n 10. [http://www.herramienta.com.ar].

    LE GRAND, Julian. Quasi-markets and social policy. Economic Journal,Londres, 1991, vol. 101, n 408, p. 1256-1267.

    MAGALHES, Antnio M. A transformao do modo de regulaoestatal e os sistemas de ensino: A autonomia como instrumento.Revista Crtica de Cincias Sociais, Coimbra, 2001, n 59, p. 125-143.

    MORROW, Raymond & TORRES, Carlos Alberto. O Estadocapitalista e a elaborao da poltica educativa. In: MORROW, R. &TORRES, C.A. (Orgs.), Teoria Social e Educao, Porto: Afrontamento,1997, p. 311-337.

  • 3 2 Educao & Sociedade, ano XXII, no 75, Agosto/2001

    NEAVE, Guy, On the cultivation of quality, efficiency and enterprise:An overview of recent trends in higher education in Western Europe,1986-1988. European Journal of Education, Oxford, 1988, vol. 23,nos 1/2, p. 7-23.

    ______. The evaluative state reconsidered. European Journal of Education,Oxford, 1998, vol. 33, n 3, p. 265-284.

    OCONNOR, James. USA: A crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro:Paz & Terra, 1977.

    OFFE, Claus. Contradictions of the Welfare State. London: Hutchinson,1984.

    ORTIZ, Renato. Diversidade cultural e cosmopolitismo. Lua Nova Revista de Cultura e Poltica, So Paulo, 1999, n 47, p. 73-89.

    PUHLE, Hans-Jrgen. Cidadania e Estado-nao. In: VIEGAS, J.M. &DIAS, E.C. (Orgs.) Cidadania, integrao, globalizao. Oeiras: Celta,2000, p. 25-35.

    ROBERTSON, Susan & DALE, Roger. Regulao e risco na governaoda educao: Gesto dos problemas de legitimao e coeso socialem educao nos Estados competitivos. Educao, Sociedade &Culturas, Porto, 2001, n 15, p. 117-147.

    SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado, as relaes sociais e o bem-estar social na semiperiferia: O caso portugus In: SANTOS, B.S. (Org.),Portugal. Um retrato singular. Porto: Afrontamento, 1993, p. 15-56.

    ______. Os processos da globalizao. In: SANTOS, B.S. (Org.),Globalizao: Fatalidade ou utopia? Porto: Afrontamento, 2001, p.33-106. (No prelo).

    SEIXAS, Ana Maria. Polticas educativas para o ensino superior: Aglobalizao neoliberal e a emergncia de novas formas de regulaoestatal. In: STOER, S.R. et al. (Orgs.), A transnacionalizao daeducao: Da crise da educao educao da crise, Porto:Afrontamento, 2001, p. 211-239. (No prelo).