Escolha, e Aperte

24
Escolha, e Aperte! Por Douglas Eralldo

description

ARC de um trabalho experimental de literatura numa narrativa onírica em que um homem desperta, e a partir disso é levado por uma jornada fantástica tendo sempre de escolher um entre dos botões.

Transcript of Escolha, e Aperte

  • Escolha, e Aperte!

    Por Douglas Eralldo

  • Caros leitores,

    Este texto uma verso preliminar que ainda est em construo e que foi

    compartilhado com o objetivo de angariar sugestes e opinies acerca de seu

    carter experimental.

    Portanto, uma obra que no passou por qualquer processo de reviso ou

    edio, e por isso peo desculpas por possveis e provveis erros, e desde j

    fiquem a vontade de apont-los ou mencion-los.

    Como dito, a inteno de distribuir este ARC receber de vocs, leitores,

    o retorno com sugestes e feedbacks acerca desta obra estranha e onrica, projeto

    que tenho dedicado um pouco da minha escrita.

    Quem se interessar pelo mistrio desta narrativa e desejar acompanhar a

    mesma como beta reader pode contatar pelo e-mail [email protected].

    Tambm ficaria muito feliz com aqueles que compartilharem suas

    opinies nos comentrios da postagem deste arquivo no

    www.facebook.com/douglaseralldo ou no @douglaeralldo.

    Atenciosamente,

    Douglas Eralldo

    mailto:[email protected]://www.facebook.com/douglaseralldo
  • 1.

    Est gelado.

    O piso frio e se encontra com minha pele nua; eu estou nu. Tudo isso

    muito estranho. Desperto grogue e no sei onde estou, ou sequer quem sou eu, ou

    ainda, o que sou. Eu no sei nada, e isto a nica coisa que posso saber enquanto

    desperto.

    H uma luz intensa que penetra por meus olhos causando-me uma

    cegueira momentnea. No sinto dor, mas como se tivesse sentido h pouco

    tempo. Mexo-me ainda cado no cho, braos ao redor dos joelhos, msculos

    lentos cuja reao causa sofrimento e dores. Mordo meus lbios, h um gosto

    amargo na boca; um gosto de metal.

    Pisco duas ou trs vezes.

    Preciso me acostumar com a incandescncia do lugar. Toda aquela luz

    est jogada sobre mim; me ataca; me assusta. Quem sou eu?

    Algum que desperta, que tenta levantar-se, mas o corpo rui em fraqueza.

    Meus braos esto flcidos, minha ao lenta; estou sonolento.

    Leva algum tempo at que a tentativa de sentar-me no cho, enfim d

    certo. O piso continua gelado. E eu continuo preso?

    No saber quem sou atrapalha um bocado a tentativa de imaginar onde

    estou. como se no houvesse nada em mim ou dentro de mim at o momento

    que desperto dentro desta caixa; acho que uma grande caixa.

    No um ambiente espaoso. Quatro paredes de ao, imagino,

    aprisionam-me. A luz intensa vem de lmpadas fortssimas penduradas a um teto,

    um teto inalcanvel graas a sua altura.

    Tento pensar.

    Tento lembrar.

    Ainda no h nada dentro de mim. Apenas sei que preciso compreender o

    que acontece. Isso me faz olhar o local de forma analtica. Eu tenho instintos.

  • Estou preso em no mais que seis ou oito metros quadrados. Todo material

    da cela que me aprisiona frio, descubro ao tocar uma de suas paredes, to frias

    quanto o piso cinzento.

    Tudo cinza onde estou; a luz apenas altera suas tonalidades.

    Vejo ento que alm de mim, h outra coisa naquele pequeno espao: uma

    mesa. No sei como sei que aquilo uma mesa, apenas sei. uma mesa simples,

    parece de lata ou qualquer outro metal vagabundo. No tem mais que oitenta

    centmetros de comprimento e percebo que h algo nela.

    Caminhar at a mesa difcil. como se eu no soubesse caminhar. Os

    ps doem ao movimento. Minha mente parece saber como se faz, mas ainda

    estou grogue, e o corpo reage lentamente s minhas ordens.

    Ainda penso que se soubesse quem sou, certamente entenderia porque

    estou aqui. No entendo, porm deve haver algum motivo para que eu desperte

    em um lugar to inspito e misterioso. Um quarto de metal, vazio, sem janelas e

    luzes artificiais que pareciam agora comear a esquentar o ambiente.

    Com sacrifcio chego mesa. Ela tambm cinza. O papel no. O papel

    que est sobre ela pardo. No sei por que penso que h um contraponto

    acontecendo aqui. tanto metal que penso em futuro. O papel me diz que h

    passado, no entanto esse um tempo que a mim est fechado.

    Pego o papel pardo, mas no sem antes de uma srie de tentativas por

    causa da debilidade de minhas mos que parecem no ter firmeza, ainda. H

    grafismos naquele papel, ento descubro que posso l-lo.

    Voc deve procurar pela sada; h perigo para encontr-la. Seu fracasso

    o fim; seu sucesso pode no ser sua vitria. Para encontrar a sada voc

    precisa escolher, e apertar. Sempre dois botes, uma escolha. Boa Sorte!

    o que est escrito no papel. Nada mais.

    Ento percebo os dois botes sobre a mesa. Esto mesmo ali. Um branco.

    Outro preto. E preciso escolher um deles.

    E ainda no sei quem sou.

  • 2.

    Aperto o boto preto.

    Algo me diz que h alguma coisa na cor negra, alguma coisa confivel. O

    branco soa como armadilha, falsa paz, nele tudo se reflete, tudo pode ser outra

    coisa que no o prprio branco. No sei de onde brotam tais concluses, mas so

    elas que levam-me a apertar o boto preto.

    Um som nasce; rasga o silncio que havia at ento. um arrastar-se

    metlico, estridente. O ao abre-se. H uma porta, um losango negro de linhas

    indefinidas que surge em plena parede. Penso que ali pode ser a sada, mas e se

    no for?

    Talvez o seguro seja permanecer neste grande quarto vazio. Talvez eu

    tenha apertado o boto errado. Cogito ficar, esperar, por que no? Porque sirenes

    soam alto, e urgentes. Sinto um frio percorrer meu abdmen, pois mesmo

    ignorante de tudo, h um instinto de que o barulho infernal que toma minha

    priso uma marcao de tempo, um tempo que se acelera, como percebo

    atravs da distino sonora. Compreendo que aquilo um aviso, um aviso de que

    minha escolha foi feita e eu preciso seguir em frente.

    Caminho at a porta que se abriu em plena parede. Ela est a uns vinte

    centmetros do piso, e no corredor de formato estranho h uma base com largura

    suficiente apenas para que eu caminhe por ela, embora caminhar seja para mim

    algo ainda difcil.

    Entro pela abertura feita. Estou coberto por sombras. No h luz. Negro

    como o boto apertado o corredor. Zzziip. Um som rasga s minhas costas.

    Clinc. Sei que foi a porta fechando-se atrs de mim.

    O breu intransponvel. Tateio com as mos, mas elas no encontram

    nada, absolutamente nada alm de mais metal frio. Continuo preso.

    Click...

    Uma lmpada circular acende-se atrs de mim.

    click... click...

  • Luzes acendem-se sobre mim.

    Click... Click... Click... click... click...

    Agora h um pequeno corredor iluminado diante de mim. Sinto que devo

    caminhar; seguir em frente. Fao isso vagarosamente j que meus passos so

    lentos e desajeitados. Ao que avano novos clicks trazem luz ao corredor. Ainda

    no sei onde estou, mas estou em um lugar muito diferente de onde despertei.

    Imagino que isto bom. Click. Me parece um corredor longo.

    Clack.

    Percebo a vogal. Percebo coisas que no sabia poder perceber. A vogal

    nesse caso a lmpada que se apaga atrs de mim.

    Continuo caminhando. Ainda nu e desajeitado. Minhas pernas parecem

    compridas demais, faltam-lhes carnes, quase vejo os ossos. A coisa pendurada

    entre elas balana com o andar, e at isso traz mais cansao. Mas eu sei que o

    caminho em frente.

    Clack...

    Clack... Clack... Clack...

    Cresce a tenso dentro de mim. H algum tempo ouo mais clacks do que

    clicks.

    Clack... Clack... Clack... Clack...

    A luz se desfaz em escurido atrs de mim. o breu que volta, o breu

    que sei que me deseja para sempre perdido nas entranhas deste corredor. Mais

    uma vez o instinto bafeja vozes inexistentes, corra.

    Eu corro.

    Clack... Clack... Clack... Click...ClackClack

    Busco foras que sequer sabia que tinha. Eu preciso correr, no sei bem

    como se faz, mas assim mesmo fao, eu corro. Minhas pernas doem, meus

    joelhos se batem, minha boca arfa por ar. Sei que se o breu chegar at mim,

    adeus, sada! Eu quero sair, descubro. S no sei ainda os motivos deste querer.

    Corro tanto que clacks e clicks no chegam mais at mim. No posso lhes

    dar ateno. Tenho de me concentrar na corrida. A corrida mais desengonada de

  • todos os tempos, uma corrida que interrompida pelo final de um corredor sem

    sada. Estanco, parado como um poste.

    Clack... Clack... Clack... Clack....

    Apenas as ltimas trs lmpadas no apagam-se sobre mim. Suas luzes

    revelam os poucos metros daquele corredor em que a viso pode ver algo. Seu

    final to slido quanto as paredes de meu ltimo cativeiro. nesse fim de linha

    que vejo os dois botes acoplados ao metal.

    Um boto cinza. Um boto laranja.

    Tenho de escolher um deles.

    Algo me diz que a escolha correta o boto cinza. Ainda assim aperto o

    boto laranja.

  • 3.

    O cho abre-se sob mim.

    Perco meu peso. Minhas tripas se revoltam. Mergulho vertiginosamente

    num novo vazio. Sou passageiro do destino, no h nada que possa fazer, sou ao

    mesmo tempo pluma e tambm pedra. Rio, meu corpo manda-me rir, como se

    sofresse descargas de alguma energia desconhecida.

    Est escuro. Mesmo assim fecho os olhos e amplio as sombras. Estou

    caindo, a nica coisa que sei. Tragado por alguma fora que me leva para baixo

    em alta velocidade. Vai acabar, penso.

    Perco os sentidos novamente.

    Desperto com o corpo ainda mais dodo. Sinto um piso quente e arenoso.

    Tento abrir os olhos, mas h tanta luz, que mais uma vez estou cego. As coisas

    parecem se repetir. No entanto no estou mais naquele pequeno quarto de metal,

    tampouco so luzes artificiais que me ilumina.

    Abro e fecho os olhos por algum tempo buscando me acostumar com a

    claridade vinda de uma nica fonte, um sol esplendoroso fixado no meio de um

    cu muito azul. Teria eu encontrado a sada?

    Isso muito curioso, no bilhete havia a uma ordem expressa de que eu

    deveria encontrar uma sada. Penso agora que no sei por que preciso de uma

    sada e muito menos para onde ela poder me levar. Porm, ou encontro-a, ou

    chego ao fim. O fim parece-me finito, sem volta; a sada posterga. um

    argumento, enfim.

    Tento levantar-me, mas nesse momento todos sabem do quo fraco estou.

    E ca novamente, ou seja, estou ainda mais fraco.

    Meus olhos esto quase acostumados com a luminosidade natural de um

    dia fora de qualquer priso metlica. Eu ca, e disso tenho certeza, embora no

    haja neste lugar qualquer indcio de onde eu ca. No h nada no cu sobre mim

    alm de sua abboda celeste. Pensei ter escorregado por algum cano, senti em

  • alguns momentos meu corpo tocar suas bordas. As queimaduras em meu corpo

    provam isto.

    Mas no h nada sobre mim. E se houver est to distante que meus olhos

    no podem ver, se este for o caso eu no deveria estar vivo.

    Mas estou. Sinto meu corpo, ainda nu, arder, doer, queimar. Alis, est

    quente sob meus ps; areia, areia de um deserto que parece no ter fim. Devo

    ter me enganado de boto, s pode ser isso...

    Au. Au. Au. Auau.

    um co que surge no sei de onde. Pelos pardos e negros, late e faz

    movimentos com a cabea como se quisesse alguma coisa de mim. No falo a

    lngua dos ces. No posso entend-lo, e talvez se pudesse pensaria estar ficando

    louco; acho que no sou louco...

    Aauuuuuuuuuu...

    O uivo vem de trs de uma duna. Arrepio-me ao ouvi-lo. Algo me diz que

    isto representa perigo. O latido do co me pareceu mais amistoso. O uivo,

    ameaa. Um novo uivo ecoa pelo deserto e a loba surge em uma silhueta

    sombreada no topo do cmoro.

    O cachorro vem at mim, dana na minha frente e late novamente. Atrs

    de mim um trovo ribomba no cu, nuvens erguem-se ameaadoras no horizonte

    distante enquanto o cachorro late alguns passos a minha frente. Ainda no

    compreendo a lngua dos ces, mas acabo deduzindo que preciso seguir o co.

    E seguir tambm a loba, pois na direo dela que o co me guia.

    Sigo-os.

    No demora muito e caminhamos juntos, lado a lado. E no meio,

    debilitado e nu. Minha nudez deve continuar por algum tempo, pois no h

    vislumbre de qualquer coisa neste imenso deserto. Apenas areia, calor e a

    companhia dos caninos que descubro olharem-me com certa ternura. Poderia

    esperar isso do co, talvez no da loba. De repente sinto uma frouxido nas

    pernas, desmaio.

  • O sol j se adiantou de posio. Percebo isso ao despertar novamente.

    Dessa vez no fiquei to cego quanto nas outras. Talvez a gua cuspida pelo co

    em minha cara tem ajudado nisso. gua, sequer tinha parado para pensar nela,

    sentir sua falta. No lembro nada antes de acordar naquele quarto, no sei h

    quanto tempo estou sem beber gua, mas agora estou com uma sede imensa.

    Giro meu corpo enfiando meu rosto numa pequena poa em meio a tanta

    areia. Demoro a me importar com esse fato, apenas bebo, bebo muita gua.

    Apenas quando sinto-me satisfeito que paro para refletir, no havia qualquer

    sinal de gua quando desmaiara no sei quanto tempo atrs.

    Olho ao meu redor, a areia ainda domina, mas h gua e estranhas rvores.

    Vejo frutos nelas, e agora sinto fome. Mas os frutos esto no alto, e enquanto

    penso como fazer a loba que ainda est prxima resolve o problema com uma

    cabeada num tronco. O fruto cai, eu como-o.

    O co volta a latir. Diz-me novamente que preciso seguir em frente, e

    como se tivesse alguma relao entre os latidos do animal e o clima, volta a

    trovejar. Mais uma vez compreendo qual a necessidade.

    Antes de deixar o pequeno osis olho para trs, tento imaginar como eu

    cheguei at ali, ou se ali chegou at mim. A resposta est grafada em linhas

    tortas na areia. Fui arrastado at ali, ou pela loba, ou pelo co.

    J no importa, aprendi a confiar em ambos desde que escolhi segui-los.

    Nossa jornada recomea. No estamos mais to prximos. O co parece ir

    mais a frente enquanto a loba fica na retaguarda. Preocupo-me porque meus

    salvadores esto preocupados.

    Mas no tenho muito tempo para martirizar tais preocupaes no

    pensamento. A mim, o perigo parece sempre espreitar, e mais uma vez sinto-me

    sugado por alguma coisa. Nesse caso pela areia que afunda sob meus ps. Estou

    sendo engolido pelo deserto, literalmente.

    A loba uiva, se esgania, anda em crculos, mas no se aproxima do

    terreno movedio. A esta altura j estou pelos joelhos tapado com areia. O co v

    nosso desespero, mas some. Pensou mal de seu desaparecimento enquanto cada

    vez mais me afundo no cho ao forar uma sada. Estou com a cintura coberta

  • quando o co retorna trazendo boca um galho forte o suficiente para que possa

    me puxar.

    E o co me puxa do atoleiro. Estou nu e muito mais arranhado; a areia

    grossa e cheia de pedregulhos. Percebo alguns finos fios de sangue em minha

    pele, e espero sinceramente que isso no atice a fome de meus companheiros de

    jornada.

    Sento-me exausto. Tenho vontade de gritar, de chorar, de ficar ali mesmo.

    Mas recomeo minha jornada inslita ao som de latidos e troves, e estes agora

    parecem prximos.

    Entretenho-me durante a caminhada. Deixo pensamentos irrelevantes

    dominarem-me e apagarem-me de tal modo que assim tambm queimam o

    tempo. Quando dou por mim h crepsculo, o sol apenas fragmentos

    alaranjados desaparecendo no horizonte. quando ouo o grasnar mais tenebroso

    que tenho a impresso de ter conhecido. Volto-me na direo do som diablico, e

    por um momento vejo apenas um ponto negro movendo-se no cu crepuscular.

    Um novo grasnido quase congela-me. O ponto negro parece aumentar de

    tamanho. Voa com rapidez, e no demora muito para que se aproxime de tal

    forma que as formas terrveis do imenso pssaro se apresentem claramente a

    mim. Bicos longos, mortais e famintos; suas garras do a impresso de no

    deixar escapar uma s presa. Tudo isso numa constituio enorme, anormal,

    monstruosa. E o monstro vem at mim, traz junto sua fome irascvel, posso

    pressentir.

    H um encantamento na cena que transcorre. No consigo deixar de olhar

    para a figura que se agiganta cada vez mais sobre mim. Os latidos do co

    parecem distantes, no soam o alerta que deveria soar. Poucos metros separam-

    me da criatura alada. Serei sua presa mais voluntariosa...

    Mas o encanto se quebra quando a no mais do que quatro ou cinco

    metros de mim o ataque do pssaro bloqueado por um salto fantstico da loba.

    Ela abocanha o pssaro pela ligao de uma das asas com o dorso e os dois se

    engalfinham caindo no cho deixando um grande rastro pela areia riscada.

  • Olho o combate mortal. O monstro de penas no se d por vencido. Rasga

    a loba com suas garras. Ela contra-ataca, mas o pssaro muito maior, livra-se

    do bote e agora ataca-a com o bico. Por sorte ela desvia o golpe e morde o

    pssaro em uma de suas pernas...

    No vejo o desfecho da luta, os latidos do co, enfim, tem minha ateno.

    Sei o que ele quer, e agora parece tudo mais urgente. Corro atrs dele. Ainda

    escuto os sons da luta quando vejo o co parar em um local e comear a cavar a

    areia com as patas. Ele tem pressa, e quando chego at ele para da areia removida

    revela algo enterrado na areia, uma caixa, um cubo enferrujado que deve estar ali

    h muito tempo.

    neste cubo que esto os dois botes.

  • 4.

    Um boto amarelo. O outro verde. Ambos esto com as cores

    desgastadas; no fcil discernir suas cores. O co late novamente e aperto o

    boto verde torcendo para no errar.

    Dessa vez nada acontece. O cho no se abre sob mim e tampouco surge

    alguma porta no horizonte. verossmil, portas no se abrem no horizonte, e por

    isso tempo por ter apertado o boto que leva ao fim.

    Levanto-me ao som de troves como plano de fundo de minha narrativa.

    Sinto o bafejar da tempestade prxima. Traz uma sensao de frio refrescante, e

    quero olhar para trs e observar sua chegada. Mas no fao isso porque sinto a

    presena de algum minhas costas, e o medo me paralisa. Quando enfim,

    segundos aps a indeciso defino por descobrir o que essa presena sinto o

    impacto na nuca.

    Clanc.

    Estou comeando a ficar incomodado com tanta violncia. H sempre em

    meu caminho algo para me fazer sentir dores. Desperto, e por instinto a mo

    massageia a nuca dolorida. H um galo no local exato da pancada. Di.

    Provavelmente uma paulada. No sei quem ou o qu me atacou, mas

    caramba, doeu e eu desacordei novamente.

    Mesmo assim consigo recordar de tudo, de tudo at o maldito quarto de

    metal. Antes disso, nada, como se eu no existisse at ento.

    Tento me levantar do cho. Estou num novo ambiente, percebo. mido e

    fofo. A luz no cegou-me porque penetra parcialmente atravs das folhas. Olho

    para o alto e vejo as copas das rvores danarem ao ritmo do vento. Estou numa

    floresta.

    Tambm estou cercado, descubro.

  • H um crculo de selvagens ao meu redor. So feios, medianos e de

    aspecto violento. Parecem curiosos com a minha presena. Vestem-se com peles

    rsticas que mal cobrem seus corpos. Ainda assim esto vestidos, e por causa

    disso sinto-me envergonhado por ainda estar nu. Na verdade estava quase

    esquecendo desce detalhe, andar pelado por a. Mas agora, entre outros, bem,

    parece-me humilhante minha nudez.

    Estou amarrado, agora mais lcido, percebo. Uma corda ata-me como um

    animal. H um burbrio que se espalha pelos membros do crculo. Talvez se

    estivesse mais forte e meu corpo no doesse tanto pudesse lutar contra meus

    captores. Mas no momento acho melhor manter-me calmo, resiliente.

    Descubro que assim como no compreendia a lngua dos ces, tambm

    no compreendo a lngua destes selvagens. Eles falam, gesticulam, mas so os

    puxes na corda que me fazem caminhar seguindo-os pela trilha na floresta.

    uma trilha estreita. Galhos e folhas arranham o corpo. O piso irregular,

    hora fofo demais, hora pedregoso, e s vezes preciso saltar por sobre galhos e

    troncos cados.

    Uma sinfonia de sons ecoa pela mata. Deve ser seus habitantes. Pela

    diversidade de sons, a diversidade de bichos tambm deve ser grande, imagino.

    Alguns sons parecem canes de to belos, outros, porm, de to agourentos

    causam-me horror. Meus captores, talvez acostumados com o lugar, no parecem

    dar muita importncia para esta sinfonia.

    A no ser alguns deles, cujo medo impresso durante os piores sons.

    Nesses casos, s vezes percebo que a marcha acelerada. Por isso, caminhamos

    um bom bocado. Ento, quando menos espero, uma clareira revela o povoado.

    Fica incrustrado aos ps de um monte rochoso bastante vertical. Esta

    enorme parede rochosa no deve distar mais que quinhentos metros da pequena

    vila. Olhando daqui parece que o monte pode tocar o cu de to alto. E como se

    fosse uma lgrima, uma grande queda dgua desenha um risco nas pedras.

    Estou to interessado no paredo que demoro e perceber para onde os

    selvagens me levam. Um monumento feito de pedras. H uma espcie de

    escadaria, e o topo numa base bem no alto. A palavra sacrifcio me assusta.

  • Mas com o crculo agora uma meia-lua fecha, sou libertado das amarras.

    Um dos selvagens gesticula apontando para seu monumento. Ele parece exigir

    algo. Seria mais fcil se eu compreendesse sua lngua, mas estou quase

    acostumando, e entendo que o que todos querem de mim que siga em frente.

    Fao isso, subindo degrau por degrau da escadaria de pedras. bem mais

    alto do que imaginava. Estando pouco mais da metade da subida j possvel

    observar toda a clareira e suas choupanas. Chego ao topo e um imenso universo

    verde descortina-se ao sul. Estou acima da altura das rvores, e a floresta parece

    infinita vista daqui. Parece quase impossvel que eu tenha chegado at aqui, e

    inevitavelmente pergunto-me por quanto tempo fiquei inconsciente desde a

    ltima pancada?

    Olho para baixo, os selvagens agora parecem formiguinhas agitadas no

    solo. A rocha fica ao norte, e mesmo no topo do monumento ainda no o

    suficiente para emparelhar altura. Tento observar a tudo, para s ento procurar

    pelo que j suspeitava. Agacho-me, fico de joelhos e ali esto eles. Dois botes

    entalhados na pedra. Dois botes com cor-de-pedra, apenas um mais claro que o

    outro. Recordo da j distante mensagem encontrada na priso de metal, escolha e

    aperte.

    Escolho. E aperto o boto cor-de-pedra mais claro.

  • 5.

    Estou me acostumando com coisas fantsticas. Vivo como se fosse um

    sonho. Porm, tudo real, minhas dores podem comprovar, no?

    To logo aperto o boto comeo a ouvir o barulho de engrenagens. Mas

    so engrenagens rspidas e o som seco, como se as pedras do monumento

    trocassem de lugar entre si. Sinto o leve tremor que toda essa movimentao

    provoca, e ento percebo, o monumento est andando.

    como se a grande escadaria tivesse ganhado vida. Rasga o solo e se

    dirige lentamente para o rochedo. Imagino que seja outro tipo de estgio. Ainda

    no sei nada sobre mim, ainda estou nu, mas j consigo perceber estar tendo de

    enfrentar diferentes estgios de desafio. Ao menos isso que penso que esto

    fazendo os botes, jogando-me de um estgio ao outro.

    Ainda no consigo imaginar qualquer sentido para tudo isso. Talvez se eu

    me lembrasse de alguma coisa anterior a esta jornada ajudaria; mas continuo

    vazio.

    Estou a muitos metros de altura, no tenho o qu fazer, a no ser aguardar

    para onde me levara este monumento andante. No imagino que tenha apertado o

    boto Fim, creio que quando cometer esse erro saberei de imediato. As chances

    so grandes, afinal, meio a meio em cada escolha, no sei se estou tendo sorte, ou

    sabedoria, at aqui.

    O rochedo se agiganta ainda mais. A proximidade revela que o

    monumento chega ao mximo a uma tera parte da altura da imensa parede

    rochosa que nos aguarda. Seguimos uma linha muito reta na direo das pedras,

    mais precisamente da cachoeira imensa. diretamente para ela que o

    monumento me leva cativo. Volto a considerar a possibilidade de sacrifcio. No

    momento que a queda dgua me atingir certamente serei atirado para a morte.

    Minha nica chance segurar-me com firmeza no topo do monumento.

    Deito-me o possvel em seu cume e agarro-me s extremidades das pedras.

    Entramos no domnio das guas, e elas caem com violncia. Meu corpo

  • espancado pelo peso da gua e como se tivesse levado uma centena de

    pontaps.

    Mas no caio do monumento.

    Transpomos as guas e paramos justamente na altura da entrada de uma

    caverna. No era enfim um monumento, mas sim uma ponte.

    Sei o que tenho de fazer. Sigo em frente.

    H pouca luz no tnel por qual penetro o rochedo. como se tivesse de

    caminhar numa noite sem lua. Caminho a passos seguros, lentos, sem afobao.

    De toda forma no poderia ser mais veloz que isso, estou acabado, tudo di. Mas

    no vou desistir.

    As pedras irregulares do piso do tnel rasgam partes da sola dos ps.

    Tateio as paredes, apenas pedras tambm. Em determinados lugares teias de

    aranhas proliferam em estranha arquitetura. No me parece haver aqui qualquer

    lugar para dois botes. Continuo em frente.

    O tnel ento cortado por outro tnel. Os caminhos fazem um xis nas

    entranhas da montanha. Estaco sem saber o que fazer. A vejo ela. Primeiro um

    vulto disforme que vem pelo tnel da interseco. Depois os contornos de

    algum como eu, mas no totalmente como eu, uma mulher, afinal.

    Ela tambm est nua. Ela corre e de to distrada em sua corrida no me

    v, bate em mim e cai. Imagino que ela v me xingar. No o que faz.

    Desculpa a, cara. Preciso encontrar a sada a nica coisa que diz

    quando se levanta do cho e continua sua corrida pelo tnel, o que no o meu

    tnel.

    Sua presena me impacta. Sei que ao v-la estou diante de pistas ou

    elementos que podem me auxiliar com tudo isso que est acontecendo. Porm,

    no consigo ligar as coisas e perco algum tempo paralisado por estes

    pensamentos.

    Ento volto minha realidade. Tambm preciso encontrar a sada. Sigo

    em frente pelo meu tnel.

  • Depois de uma longa caminha montona, enfim chego onde imagino

    precisaria chegar. Este um salo bem interessante para estar no fundo de

    rochas. Parece com alguma base secreta de algum experimento mais secreto

    ainda. H um salo cuja nave bem espaosa e seu domo como se fosse um

    prato invertido. Do cho ao domo suas paredes so tomadas por centenas de

    aparelhos, e cada um deles consegue reproduzir a imagem de gigantescos olhos

    que observam minha chegada.

    Isso muito assustador, na verdade.

    No h sons, no h cores aqui. Apenas esses olhos curiosos que parecem

    observar-me. De certo, especulam qual ser minha escolha. Os botes esto em

    uma banqueta cinzenta disposta bem no centro do salo. H o boto de um azul

    cobalto, e o boto de um vermelho bastante tmido.

    Decido apertar logo um boto. Ter aqueles olhos vigilantes sobre mim

    apressa-me para a escolha. No consigo raciocinar com clareza sendo observado

    de forma to invasiva. Fecho os olhos e aperto o boto. Quero me livrar logo

    daquelas terras.

    A fora de meu punho enterra o boto na banqueta, sinto. justamente

    quando toda a montanha rochosa comea a tremer.

  • 6.

    o rolar de um pedregulho minsculo que me desperta. Esse pequeno

    gro desliza abrindo um caminho por qual passa o nfimo fio de luz em meio a

    tanto breu.

    No sequer questo mais de dor, meu corpo simplesmente parece prestes a

    explodir. Estou pressionado, h peso sobre mim, muito peso. Distante como se

    fossem sonhos ouo passos corridos e vozes que no me alcanam de forma

    legvel. Um Mundo de acontecimentos parece pairar sobre mim.

    Vez por outra ouo estouros.

    Regularmente ouo passos. Eles no param.

    Quero gritar. No consigo. Meu peito arfa e di. Um grito impossvel.

    Ento grunho; meu grunhido um chamado por esperana. Mas no acredito que

    serei ouvido, l em cima as coisas parecem agitadas.

    Ouo ento algo animador.

    H movimento nas pedras. Escuto-as sendo arrastadas. Imagino que fui

    descoberto. Descoberto sob meu cativeiro mortal. A suspeita se confirma, muito

    vagamente tenho a sensao de escutar Ei, senhor. Acho que o encontramos.

    Enfim algum a minha procura. Pode ser uma pista, afinal se algum me procura,

    deve ao menos saber quem sou.

    Espero. o que h para fazer. Grunho mais um pouco para certificar-me

    de cumprir algum papel em meu resgate.

    A nesga de luz vai aumentando. Vejo mos enluvadas penetrar brechas

    por entre os entulhos. De repente liberdade. O que me oprimia retirado de cima

    de mim. como mijar, um alvio. O vulto ento desdobra-se sobre mim. Suas

    mos me encontram e ele me puxa.

    Venha homem, no est na hora de partir, ainda. Diz pouco antes de eu

    desfalecer, exausto.

  • Acordo.

    Pela primeira vez no vejo-me nu. Estou atirado sobre uma cama de

    campanha. H outros que grunhem como eu. Muitos outros. Estamos num galpo

    imenso. Fileiras triplas. Visto panos leves que alguma lembrana remota diz ser

    um pijama.

    Tento lembrar ou imaginar onde possa estar. No sei. Imaginava estar sob

    uma montanha. Agora estou aqui. Vejo de relance a bolsa de onde sai o lquido

    que entra em meu corpo por dois pequenos tubos.

    Ainda estou cansado. Adormeo novamente.

    Levante-se, homem. Voc ainda tem algo a fazer. um homem nanico,

    mas de fisionomia carrancuda. Veste roupas camufladas e pelo tom de voz sei

    que tem autoridade. Vista-se logo e me siga imediatamente.

    Ganhei roupas camufladas; visto-as.

    Mal estou vestido e o Homem Nanico comea a caminhar. Marchar. Sigo-

    o como fiz com o co e a loba, embora tais lembranas soem agora como algum

    tipo de sonho. O Homem Nanico rpido, logo samos do galpo e atravessamos

    um longo corredor.

    Estou numa sala com outros homens, todos fardados, todos armados,

    apenas eu no por arma alguma. Voc... Berra o Homem Nanico apontando em

    minha direo. Suba naquela maldita torre e desarme a porcaria do sistema

    deles. Ordena. Os garotos vo te dar cobertura. Diz apontando agora para o

    restante do grupo, os que esto armados.

    A porta se abre, e a noite escura adentra minha realidade. Vielas sombrias

    e decadentes. Runas em plena construo. Comeo a andar, os homens montam

    linhas em minha defesa.

    Comeo um andar tranquilo. Sequer sei onde fica a maldita torre, mas

    logo descubro. No foi difcil v-la, gigante entre tantas construes rasteiras.

    Comeo a andar na direo da torre.

    Ra-ta-ta-t

    quando comeam os primeiros tiros.

  • Ra-ta-ta-t rata-ta-t...

    Comeo a correr. Balas tracejam desenhando linhas luminosas na noite.

    Vem e vo. Os tiros do inimigo so rechaados com tiros de minha cobertura.

    No sei como desarmar merda de sistema algum. Para o Homem Nanico parecia

    que sim.

    No me resta nada alm de tentar, ao menos.

    Quebro por ruas estreitas, muros esfacelados por tiros.

    Um tiro rasga sobre mim e se choca contra os escombros de uma casa.

    chuva de ao sobre meu grupo. Sinto medo. Tambm vejo o medo na face de

    meus companheiros.

    Nas sombras os inimigos movimentam-se. Sobre-humanos. Vejo uma ou

    outra silhueta. No se parecem como ns. Tenho a impresso de ver trs pernas.

    De ver quatro braos. Provavelmente o calor de uma batalha.

    Dou por mim na base da torre. Conseguimos chegar. A tarefa de subir em

    minha. Comeo a escalada por suas escadarias.

    Uo u u...

    Um alarme dispara. Sinto que h relao com o que estou fazendo. Meu

    peloto de proteo parece encurralado. Coisas se movimentam nas sombras.

    Tiros ecoam. O cerco se fecha.

    Quando enfim estou na sala que imagino estar, gritos tenebrosos dos

    homens invadem a noite. Arrepio-me. So gritos de horror. O silncio ainda

    mais assustador, instala-se logo aps o ltimo grito.

    Devo ser o prximo a gritar.

    Tenho de agir com rapidez, penso. No sei como desligar o sistema como

    dissera o Homem Nanico. Ainda no sei quem sou, ou o que sou. Parece-me que

    sou um soldado, um guerreiro. Ainda no tive tempo de esclarecer isso.

    Procuro por algum lugar que possa haver alguma chave ou comandos. No

    os encontro, mas encontro dois botes.

    Descubro ento que ainda estou no jogo.

  • 7.

    Um boto prata, o outro dourado.

    Minha desconfiana que sonhara com desertos, florestas e prises rui por

    terra com a apario destes dois botes. Eles esto ali, e esperam por minha

    deciso.

    Aperto o boto prata.

    Um som mecnico ecoa pelo salo da torre. Surge uma vez, duas vezes,

    trs vezes...

    Tenho a impresso de que h uma contagem em andamento. Decrescente,

    conforme as nuances da tonalidade dos tons. Sinto um pressgio. Um ltimo som

    vibra com autoridade.

    A torre estremece. Penso em terremoto, seja l o que for isso. As

    estruturas metlicas da estrutura cantam numa vibrao sonora que ainda no

    ouvi. Pelo menos no desde o que consigo lembrar-me da minha existncia, meu

    despertar naquele quarto de ao.

    Ao menos no estou mais nu. Visto-me com roupas militares. Talvez seja

    uma pista de quem sou o que sou. Mas no consigo pensar nada agora. O agora

    to somente a preocupao com a torre, com sua locomoo.

    A torre est em movimento. Sobe reto em direo ao cu. No estranho. J

    ca em canos profundos, afundei em areia e cavalguei monumentos andantes.

    Uma torre que voa no me parece assim to ridculo.

    Supero o tremor em minhas pernas e caminho at a borda do vitral da

    torre. A janela revela uma cortina de densa fumaa sob ns e uma cidade que se

    distancia.

    A torre continua tremendo. por imposio que ela corta o espao.

    A cidade cada vez menor.

    Distante.

    To distante que suas luzes so como estrelas. No sei mais onde estou.

    como se estivesse entre dois cus. Sob e sobre estrelas luminosas.

  • O movimento da torre se estabiliza. Pelo vidro vejo apenas uma imensido

    negra e sem vida.

    Ouo um chiado. Um assobio.

    Olho por todo o salo. Percebo a fumaa que emana das entranhas

    metlicas desta torre curiosa. No me nada bom.

    A fumaa toma a base do cho, e aumenta em volume.

    Temo ter feito a escolha errada. O silncio no espao permite-me ouvir

    meu prprio corao. Retumbante como tambores. No h como no ficar tenso.

    A fumaa est na altura de meu peito.

    Uma fumaa de cheiro estranho. Difcil de descrever.

    No vejo mais nada. Respiro. Tento, ao menos...

    Mas sinto sono...

    Muito sono...

    Sono...