Escolhas possíveis

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Romance, ficção

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Marina Nunes

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Marina Nunes

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São Paulo - 2009

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Catalogação na Fonte. SNEL – Sindicato Nacional dos Editores de Livros.Rio de Janeiro, RJ

Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores, ilustradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais responsáveis por transformar

boas ideias em realidade e trazê-las até você.

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Impresso no Brasil. Printed in Brazil.

Esta obra é uma publicação da

Editora Livronovo Ltda.CNPJ 10.519.646/0001-33www.livronovo.com.br© 2009. São Paulo, SP

Projeto gráficoFabio Aguiar

DiagramaçãoAlexandra Aguiar

Editores-responsáveisFabio AguiarZeca Martins

CapaZeca Martins

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Prefácio

Preâmbulo. Preconceito. Predestinação. Predisposição. Pre-liminar. Prólogo. Prelúdio. Premissa. Premonição. Prenúncio. Presságio. Pressentimento.

Fazer escolhas é possível. Prever as consequências, nem sempre.Há quem diga que nada acontece por acaso. Tudo é providência – a

suprema sabedoria com que Deus conduz todas as coisas.Assim, independentemente de concepções religiosas, temos que ad-

mitir: Alguém ou Algo está por trás da Criação. Esta é regida por leis que, por mais adiantada que esteja a Ciência, ainda são desconhecidas.

Todas as vezes que se vai contra a Natureza, ela reage. A própria Ci-ência divide-a em Reinos: mineral, vegetal e animal. Se há reinos, há um Rei. Soberano.

Uma das leis é a perpetuação das espécies. Os seres vivos devem perpetuar-se.

Os vegetais, seres vivos mais elementares, são dependentes. Neces-sitam de condições externas para germinarem: ventos, insetos, aves e ou-tros animais, como o próprio homem. Não se pode esquecer, porém, que muitos deles possuem órgãos de reprodução semelhantes aos dos animais: femininos (pistilo e ovário) e masculinos (grãos de pólen, que são produzi-dos nas anteras das plantas).

Os animais, dependendo de sua constituição, são mais ou menos complexos. Pode haver reprodução assexual ou assexuada e reprodução se-xual ou sexuada. O bicho-homem está no segundo grupo. O Rei precon-

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cebeu: fez o homem e a mulher, à sua imagem e semelhança. Ele, do barro. Ela, de sua costela. E predestinou: “Crescei-vos e multiplicai-vos.”

Porém, segundo Blaise Pascal (19 de junho de 1623 – Paris, 19 de agosto de 1662 – cientista, matemático, físico e, posteriormente, folósofo, religioso e teólogo), “o coração tem razões que a própria razão desconhece.”

Com certeza, posso inferir que Marina tinha essa ideia em seu sub-consciente quando imaginou esta história.

Contextualizada na hipotética cidade de “Coração”, a trama desen-rola-se num clima de relacionamentos dos mais diversos. Usando do livre-arbítrio concedido pelo Criador, os personagens ou protagonistas seguem fazendo suas “escolhas possíveis”.

Sofrem consequências? Vivem seus sonhos. Com muita honra, fui escolhida para revisar esta obra. Com maior

prazer, pude apreciá-la em primeira mão. Mergulhei num mundo conheci-do, mas não vivenciado por mim. Aprendi muito.

Ler ou não é uma escolha. Faça a primeira. Não vai se arrepender.

Regina Mafra

Regina Mafra – psicanalista e especialista em Tecnologia da Comunicação.

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INTUIÇÃOEnsina-se sobre o que é certo e errado.Mas não como ouvir o próprio coração.

– Quem falou...? Alô! Há alguém aí?Olha para todos os lados.Não há ninguém a vista.Está só, com os seus pensamentos. – Basta saber olhar. O sussurro é intenso e delicado e, no meio daquela delicadeza, expe-

rimenta uma emoção profunda que não sabe definir.É como se alguém estivesse...– Impressão minha. Estou ouvindo coisas. É melhor eu não esquen-

tar a cabeça com isso. Tenho mais o que fazer da vida.Apesar do que diz...– Mas olhar o quê? – A existência vai além da forma. Essa voz de novo.É comovente. Quase como se a gente estivesse conversando com a gente mesmo.Pensa nisso sem perceber e logo esquece. – Ouça. Ouvir? Uma parada.Estica os ouvidos. Nada. Dá de ombros.– Estou desperdiçando minha beleza...– Ouvir para descobrir o que está por trás das palavras. Fazer uma esco-

lha entre as palavras e o sentir. Havia muita coisa acontecendo por trás daquelas palavras.Algo quase sagradoPodia sentir... Sentir nos ossos?Que coisa mais estranha...Apalpa-se. Está diferente.Diferente, como?– Algo me diz que logo terei que pensar sobre o significado disso,

mas ainda não é o momento.Realmente, por que haveria de me preocupar com essas coisas, jus-

tamente agora?

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OUTRAS PALAVRASNinguém se lembrou de explicar a você sobre culpa.Ninguém disse a você que era possível não senti-la.Aprendeu a reagir para curar a dor, mas não entendeu

de onde ela vem.Pensa que é normal senti-la após a perda.Quando deveria saber que não há perda.

– Tudo bem. Saquei. Estou perdendo o juízo! – Não. – Ó de casa! Onde está todo mundo? Tem que ter mais alguém aqui.

Por que eu não estou conseguindo ver...? – Olhe direito. – Mas será possível! Já olhei para tudo quanto é lado. Não tem uma

viva alma.Só essa... –Todas as respostas chegam quando se pára de buscá-las. – Conta uma novidade. Por exemplo: onde eu estou? – Não seria melhor perguntar quem você é? – Ora, mas isso eu sei. – Sabe mesmo? – Não venha com essa conversa de maluco para cima de mim. Mas

eu não estou dizendo mesmo! Se você está querendo me dizer alguma coi-sa, diga logo. Não fique de embromação.

– Você estava dizendo... – Eu estava me apresentando. Embora não saiba por que estou per-

dendo meu tempo, com isso. Para seu governo, eu me chamo... Branco. Pode me chamar de...

Um início de vertigem, uma sensação de estar sonhando e estar acor-dada ao mesmo tempo.

Assusta-se. – Vá com calma, não atropele. – Eu não estou entendendo... – Eu sei. Mas coragem. Não está só nisso.– N-Não...? Eu... Onde você está? – Bem na sua frente. – Como disse? Entendi bem?

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UMA CONVERSA AO PÉ DA ORELHAPara se sentir vivo não é necessário sofrer.Basta acolher o que está ocorrendo e respeitar os próprios limites.A dúvida toma espaço? Quais são as dúvidas que surgem?

Em que direção elas apontam? Siga em direção contrária.A angústia bate à porta? Deixe as emoções fluírem.O “estar aberto” para respirar, acalmar e ir de novo e cada

vez mais profundo, isso é o que se pede e se recomenda. Nada mais, nada menos.

– É muito para a minha cabeça!– Não se cobre tanto. – Cobrar-me? Essa é boa. – A chave de tudo está no movimento. – O bicho pegou, mesmo. – Por que está questionando cada palavra que eu digo? Por que não

confia em mim? Posso saber? – Você acabou de falar que está... – E é verdade. – Sério? Então eu devo estar perdendo a visão. Pois não vejo nin-

guém. Mas é provável que eu esteja perdendo o juízo... Estou aqui, no meio do nada, falando comigo... coisas sem pé nem cabeça...

– Posso contar-lhe uma história? – Contar uma história?Aquela mulher não batia muito bem da cabeça, estava claro.Lá tinha tempo para ficar ouvindo histórias...Tinha que dar um jeito de descobrir onde estava, isso sim!Onde estava e quem era. Não se lembrava de quem era. Isso era o

mais preocupante. Estaria com amnésia, por acaso? Era difícil raciocinar com tantas coisas esquisitas acontecendo ao

mesmo tempo. – Criança... – Oi... – Sobre a história... Escute-a. Tenho certeza de que vai ajudá-la a en-

tender muita coisa... – Não me leve a mal. Mas é que... Tenho que resolver... Tenho que ir...

Outro dia. Noutro dia, eu paro um minutinho e você me conta essa história... – Não tem jeito, não é? Você não confia em mim. Não sei por que. Eu

sou boa ouvinte. Eu sou acolhedora. Eu sou amorosa. Acredito.– Não precisa mentir para mim.

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– Desculpe. É que estou com pressa. E você fica aí falando este mon-te de coisas. Coisas sem nenhum sentido para mim.

– Porque você não presta atenção. Se prestasse, já teria se dado conta do que está acontecendo.

Silêncio.– Não se zangue. Não tive a intenção de criticá-la. Não estou...– Não me zanguei... Surpreendi-me... Não esperava...– Entendo.Uma pausa. – Não há porque se surpreender desse jeito. Aconselho a não ficar, porque

sou sua amiga; mas, confesso a você, eu sou uma que vive se surpreendendo. Sentimentos. Esses eram os que mais me pegavam no contrapé. Volta e

meia, eu confundia um deles com alguma parentela, as benditas emoções. Aí era um deus nos acuda.

Aquele repente traz grande satisfação. Por quê? Mais uma coisa que não sabe ou não... À colocação, já não se sentira tão... ignorante? Ri. Aquela mulher era muito inteligente. Sabia muita coisa. Só que não ficava zangada. Respondia às suas perguntas, embora nem soubesse o que perguntar. – Que estou dizendo? Ah! Bolas! – Você está falando com o seu coração? – Ham-Ham... Quer dizer... Não é que não tinha certeza? Era melhor... – Já parou para pensar que sua alma pulsa em seu coração? A sensação é

engraçada. Quando a gente consegue escutar o coração, a gente se sente pleno de vontade. Como se fosse capaz de tudo. Bom, quase tudo. Não creio que nenhum coração saiba ser complacente. Não lhe peça para ter complacência, pois isso é algo que não faz parte da natureza dele e não é uma coisa boa mudar o que a gente é.

Permanece a pergunta: o que está acontecendo? – O que me faz pensar. O assunto que me traz aqui. Preciso contar

uma história. – E eu é que não presto atenção? Não ouviu quando eu... – É a história de uma mulher. Pelo visto a mulher não iria lhe dar ouvidos.Seguia com sua ladainha sem fim...Pouco se lixando para as preocupações que tinha... – Uma dessas mulheres que levou quase a vida toda para abrir o

coração ao amor.

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AMARAmar não é agradar.Amar, muitas vezes, é ensinar a ter respeito e esclarecer

as dúvidas e os sentimentos.O amor está no íntimo, dentro de cada um, no âmago das

relações, na intimidade que se tem e se compartilha com o outro. É por isso mesmo que nasce e se projeta tanto este fator chamado traição, para se perceber o que se esconde por trás dela.

A traição está presente na maioria das relações, porque o ser humano não ama. Não se permite amar. Está aí para mostrar o que se quer e não se consegue viver, que é viver o amor.

– Como é que é!? – Amor. Obviamente, tem tudo a ver comigo. Mas você pode estar se

perguntando: por que é que eu desejo compartilhar justamente esta história? – Eu não. – Sou uma romântica. Convenhamos. É uma história que toca o coração. – Se você está dizendo...Um olhar em torno de si.Ainda nenhuma viva alma a vista. Só aquela bendita vozinha que teimava em não se calar. – Antes que eu me esqueça, fique sabendo: a vida é um grande sonho,

um maravilhoso sonho, em que apenas se pede que se acredite, que se brinque. Sim! A vida é uma grande brincadeira, um grande jogo.

A voz é pura empolgação. – Um jogo em que não é necessário controlar, agredir, ter medo ou se

defender. Não se trata de uma competição. Trata-se de um jogo cujo resultado é o sonho de cada um, o sonho de como ser feliz.

Parecendo se tocar quanto aos próprios devaneios... Não. Ainda não ia ser daquela vez. Pelo menos não é o que está a

indicar a frase seguinte.– Então, quer vir comigo? Antes que possa responder... – Noite de 16 de setembro de 1995. Um sábado. Recorda-se? Um balançar negativo de cabeça. – Talvez você esteja se adiantando demais. [Outra voz se insinua.] – Quem...? Pronto.Agora o negócio estava ficando bom. Não era mais uma voz,

apenas. Enlouqueci! Estou ouvindo vozes! – Às vezes, acontece, apresso-me.

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Volta a falar a voz de mulher. A primeira que escutara no dia. Apa-rentemente, alheia ao seu desassossego.

– Compreendam. Há uma ligação muito séria entre as nossas emoções e as palavras. Mas deixem-me por uma ordem nesta nossa conversa. Vamos recuar no tempo um pouquinho.

Não é que vou ter que escutar esta história? Onde é que eu fui me meter...?

– Psiu! Confie. O sussurro abarca todo o espaço, numa quase carícia. Um doce silêncio... e a voz volta pontuando: – Comecemos por dias antes deste momento. Falando sobre Gina Visitor

Mancinni e as escolhas que ela fez. Uma história dentro de histórias.

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I

Sábado, 1º de julho de 1995. O sol reflete-se na superfície espelhada do lago. A temperatura é

agradável. O som de vozes e risadas ressoa na paisagem bucólica. Dois rapazes estão preparando um pequeno bote. Um pouco mais afastadas, conversando enquanto observam o movimento deles, duas jovens e lindas garotas estão sentadas sobre toalhas coloridas. Mais acima, na lateral da casa, de frente para a pequena baía onde estão, há um grupo de cavalheiros e de damas num bate papo animado. Os homens, com suas bebidas na mão, preparam o churrasco. As mulheres, atualizando as últimas novida-des, arrumam a mesa.

Longe de tudo, uma garota, de uns vinte anos talvez, está sentada so-bre uma pedra em forma achatada, engastada nos rochedos que contornam o lago ao sul. Suas feições, de traços irregulares, revelam surpreendente força de vontade. Os olhos de um negro brilhante são vivazes e emoldura-dos por espessas e sedosas sobrancelhas. Os macios lábios róseos carnudos, arqueados e graciosos, denotam uma amargura inesperada em alguém tão jovem. Mechas de cabelos caem em desalinho sobre os ombros firmes e de um bronze próprio daqueles dados a atividades ao ar livre. O corpo magro se apresenta forçadamente relaxado, como a esconder o vigor e a ardência latentes. Veste um short azul minúsculo que deixa suas pernas torneadas

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francamente expostas, e um pequeno top de mesma cor, a dar vulto ao colo generoso. Mão no queixo, parece distraída; mas um olhar mais atento per-ceberia que está registrando tudo que se passa. Porém, nem remotamente, desconfia ser ela o tema da conversa entre as duas jovens que descansam na estreita enseada em sua frente.

– Ela sempre se mantém afastada de todos? – deixa escapar naquele momento a visitante, Michelle Lang. A boa educação, que manda não se imiscuir em assuntos alheios, vencida pela curiosidade.

– Não. Bem, antes pelo menos não. – responde meio que sem jeito, Samantha White.

– Como assim? – insiste Michelle. O que você quer dizer exatamente?– Desde que a mãe faleceu, cinco anos atrás, Gina foi se fechando,

isolando-se de tudo. As brigas com o pai se tornaram tão frequentes a pon-to de ele enviá-la para um colégio interno. Uma vez, ouvi uma conversa entre minha mãe e Charlotte Visitor, sabe de quem estou falando, não?

– Sim. Sei. A tia dondoca. E? Vamos, fale logo, deixe de suspense. – pede Michelle.

– Comentavam a morte de dona Bárbara, sra. Bárbara Visitor Man-cinni, a mãe de Gina, o que teria acontecido naquele dia e, pelo que enten-di, o pai a responsabiliza pelo falecimento da esposa.

– Por quê? O que faz Victor pensar que Gina teve algo a ver com a morte da mãe?

– Você não sabe? – surpreende-se Samantha.Já impaciente, Michelle debocha:– Claro que não, ninguém toca no assunto por aqui, não percebeu

ainda? Vamos, não se faça de tonta. Você é a primeira a driblar esse tema quando ele pinta na parada.

Sem graça, meio desconcertada pelo tom de voz empregado pela amiga, Samantha mais balbucia do que fala.

– Bem, durante a comemoração dos quinze anos de Gina, houve uma discussão séria entre eles. Dava para se ouvir os berros do sr. Mancin-ni acima do som. Ele estava descontrolado, possesso mesmo. Gina ficava calada; vez por outra, dizia alguma coisa, tentando se libertar dos braços do pai, que àquela altura a sacudia bruscamente.

– E onde Bárbara entra nesta história?– Calma! Afinal, você quer ou não que eu conte o que aconteceu?– Desculpe! Pode continuar. – Onde eu estava mesmo? Ah, sim! Dona Bárbara interveio, pro-

curando apaziguar os ânimos, mas não adiantou muito, talvez mesmo por não ter tido chance, já que começou a passar mal. Foi o maior alvoroço. O sr. Mancinni gritando para que chamassem uma ambu-

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lância, enquanto fazia nela uma massagem cardíaca. Alguém ainda trouxe a sua maleta, na tentativa de aplicarem algum medicamento. Tudo em vão, ela morreu em poucos minutos, não deu tempo nem de chegar o socorro médico.

– E Gina, nessa confusão toda?– Coitada! Até que tentou amparar a mãe, contudo o sr. Mancinni

não permitiu. Tascou-lhe um empurrão. Depois disso, não esboçou ne-nhuma ação. Aliás, como a maioria dos convidados. Quedou estática ao lado da mãe, só se movendo quando levaram o corpo. Acho que nunca vou esquecer aquela noite. Não sei o que foi pior, se os instantes em que se pro-curava ainda salvar dona Bárbara ou logo em seguida. Estávamos todos no gabinete. Eu, um pouco afastada, encolhida no sofá próximo à porta de vi-dro que se abre para o jardim. Minha mãe e Charlotte tentando acalmar o sr. Visitor. O pai de Bárbara soluçava de dar pena, tiveram que administrar um tranquilizante. Peter, sentado na cadeira da mesa de carvalho, as lágri-mas deslizando pela sua face. Penso que Peter nem se dava conta. Arrisco dizer que a súbita morte da mãe o chocou mais que a qualquer outra pessoa nesta casa. Meu pai querendo convencer o sr. Mancinni a acompanhá-lo para adotarem as medidas exigidas. Você sabe, liberação do corpo, etc., etc., e o sr. Mancinni andando de uma ponta a outra da sala, esbravejando que “agradecia” à Gina ter perdido a esposa. Foi horrível.

– Foi uma crueldade, pois sim! Como se não bastasse ter acabado de perder a mãe, ainda ser responsabilizada pelo pai por isso?

– Também acho. Ainda estremeço quando me lembro dessas coisas. Gina ficou ali, bem perto de mim, de costas para todos, olhando fixa-mente a folhagem lá fora. Não chorou. Estava alheia a tudo. Lívida, a face totalmente desfigurada pela dor. O olhar era um pedido mudo de socor-ro. Podia sentir a tensão que se desprendia de seu corpo. Fiquei torcendo para que ela explodisse, mas não, nem quando ouviu as acusações do pai. Sem sequer se virar, pediu licença educadamente e saiu caminhando pelo jardim. Não sei se os outros perceberam algo, também, mas ela me pare-ceu sem vida, e eu sinto vergonha até hoje por não ter feito nada. Nem sequer fui ao encontro dela. – Samantha se prende a este detalhe, como se ele traduzisse o ato mais condenável por ela praticado. – Queria não tê-la deixado só. Mas não tive forças. Fiquei quieta, rezando para que ninguém me notasse e que saíssemos logo dali.

– Não se cobre tanto. Acho que não teria adiantado procurá-la na-quele instante. – Michelle busca confortar a amiga com aquelas palavras, embora elas não reflitam a sua verdade. Em sua opinião a amiga havia falhado muito para com a outra moça. Mas, de que adiantaria ficar re-moendo isso agora? Alimentar o remorso de Samantha não iria mudar os

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fatos passados. – Por que Victor culpou Gina pelo ataque cardíaco? – ainda pergunta Michelle, sensibilizada pela história que acabara de ouvir.

– Sei lá! Que eu me lembre dona Bárbara não era dada a discussões, muito menos com Gina. Elas se adoravam. Gina idolatrava a mãe.

– Agora é que não estou entendendo nada mesmo. Se elas se davam tão bem, como Victor foi acusá-la da morte da mãe? Pense, se analisarmos o que você acabou de contar, poderíamos dizer perfeitamente que ele foi o pivô do escândalo na ocasião. Quem seria o “vilão” da história, então? Qual é! Foi uma fatalidade!

– Pois é! E é por isso que ninguém entende até hoje o que mo-tivou a atitude do sr. Mancinni. Natural, portanto, que surgissem as mais variadas histórias. A verdade acabou sendo enterrada juntamente com dona Bárbara.

– Credo! Também não precisa ser tão mórbida.– É sério! Acredito que nem Charlotte e os outros parentes de Bár-

bara saibam direito o que se passou naquela noite e, muito menos, o que se deu posteriormente entre esses dois. Houve questionamentos, principal-mente por parte do pai de Bárbara, o sr. Joseph Visitor, que não se confor-mava. Mas nunca se pôs em pratos limpos essa história.

– Como era o relacionamento de Victor com Joseph? Hoje, a gente nota de longe que não se bicam.

– Nunca foi muito estreito; porém, Bárbara... dona... Bárbara... sem-pre acabava acalmando a todos e ajeitando tudo. Ah! Uma lástima o que aconteceu. Ela era tão jovem ainda, tão doce. Uma grande dama, como costuma falar minha mãe quando se refere a ela. A família girava em torno dela. Era uma família de sucesso, feliz e tranquila e, de repente, boom, uma cena lamentável, a morte de dona Bárbara e os desentendimentos de pai e filha até agora. O que a gente pode pensar?

– Realmente! É no mínimo desconcertante. Não os conhecia na épo-ca, mas me parecem pessoas legais. Está certo que acho Victor aristocrático demais para o meu gosto.

– Hah, hah! É, minha amiga, o homem não é fácil. Possessivo que só ele. Lembro-me de uma vez em que escutei a cobra da Charlotte comen-tando que ele tinha ciúme até do relacionamento da esposa com a filha. Não sei não, daquela mulher eu espero qualquer coisa, por isso não ponho muita fé no que disse, mas...

O fim da frase se perde no ar. Samantha, decidida a pôr fim às lem-branças desagradáveis, trata de direcionar a atenção da outra para a confu-são que os rapazes estão fazendo na arrumação do bote:

– Olhe lá os rapazes! Você acredita que esta pescaria vai sair? Michelle volta-se a tempo de ver Peter mergulhando nas águas frias

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do lago, após tropeçar no remo largado no fundo do bote. Entre risos, as jovens se aproximam. Samantha apressa-se em socorrer o namorado, que está tentando se livrar da camisa molhada.

Peter Mancinni, filho mais velho do anfitrião, é possuidor de feições juvenis e atraentes. Os cabelos fartos, de um loiro pálido, tocam-lhe os ombros magros. O corpo alto e esguio acha-se coberto apenas por uma sunga preta vivamente contrastante com a cor de sua pele. Pernas abertas, com os pés firmemente plantados no chão, e o brilho dos olhos azulados desmentindo o tom de zanga dado à voz:

– Enfim, vocês resolveram nos ajudar?Fazendo coro ao amigo, Charles Donner:– É isso aí, garotas! Uma mãozinha aqui não seria nada mal.Entrando na brincadeira, Samantha:– Dê-nos um bom motivo para que, em vez de ficarmos nos bronze-

ando, prefiramos fazer força.– Isso é coisa de homens, não foi o que disseram ontem à noite? –

ainda acrescenta Michelle.– Que garotas vingativas! – exclama Charles, assumindo ares

de ofendido.– Quem diria! Nunca pensei que minha namorada e sua amiga pu-

dessem negar ajuda a dois pobres homens trabalhadores. – compactua Pe-ter, fazendo cara de dor e tristeza.

– Coitadinhos! Afinal, o que pode haver de tão difícil em preparar umas iscas e pôr um bote na água? – diz jocosamente Michelle, juntando-se à amiga, que, próxima ao bote, verifica o que ainda falta ajeitar.

Entre brincadeiras e gozações, logo tudo está devidamente acertado. As iscas, os anzóis, a bebida, nada é esquecido, e lá se vão eles avançando pelo lago em direção ao rio mais acima.

Vendo os dois rapazes sumirem além da curva do lago, Samantha convida a outra a subir a casa.

– Vá você, vou ficar mais um pouco aproveitando o sol. – é a resposta despreocupada de Michelle, enquanto procura uma posição confortável sobre a toalha estendida na areia.

– Tem certeza? Vai ficar aqui sozinha? – argumenta Samantha, na tentativa de convencer a amiga a acompanhá-la.

A outra garota ri alegre. – Claro! Não seja boba. Só quero bronzear-me um pouco mais, depois eu subo para almoçar.

– Tudo bem, se é o que deseja. Eu estou faminta, vou ver se a carne está pronta. Só espero que o doutor David White não tenha aprontado das suas de novo. – ainda brinca Samantha, antes de se dirigir ao grupo lá no alto.

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Michelle sorri à lembrança do ocorrido no dia anterior – o pai da amiga se revelara um completo desastre na cozinha, apesar da decantada fama de mestre-cuca – e relaxa preguiçosamente ao sol.

Minutos depois, sentindo ardência na pele, Michelle resolve passar nova camada de protetor solar. Senta-se, o biquíni a marcar-lhe as curvas suaves e generosas. Os olhos cor de mel de um brilho ambarino, cheios de vida, como se estivessem a ver sempre o que há de mais belo na exis-tência, atentos unicamente à tarefa de espalhar uma camada finíssima e uniforme do creme por todo o corpo sinuoso. Fios de farta cabeleira dourada cascateando-lhe pelas costas retesadas pela posição meio encur-vada assumida naquele momento. A pele sedosa, intensamente bronze-ada, está coberta por minúsculas gotas de suor e iluminada pelo sol, é quadro por demais estimulante. Mordisca o lábio inferior, perdida em pensamentos insondáveis, pelo menos não-revelados no rosto delicado, levemente anguloso, que termina num queixo voluntarioso e bem-feito. As mãos pequenas movem-se numa dança graciosa e cálida, explorando carinhosamente as ondulações que vão encontrando no caminho, com cuidado para não se esquecer de nenhuma...

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II

Gina mexe-se inquieta. Sua vontade é ir até a casa comer alguma coisa. Saiu cedo para não correr o risco de topar com o pai a sós, e agora a fome devora-lhe o estômago. Não está a fim, porém, de conversar com ninguém. Michelle Lang, esse é o nome da garota à beira do lago, a nova namoradinha do irmão. Não. Está fazendo confusão. Ela deve ser a mais recente paquera de Charles. Bem, não importa, só não está com humor para ser sociável.

Ah!... Não! Está cansada de brincar com as palavras para simu-lar uma simpatia que está longe de sentir. E, nesse sentido, os anos de afastamento forçado não ajudaram muito. Conseguiu, pelo menos, manter-se distante dos seus parentes, principalmente de seu pai; este sim devia achar que se livrara da incômoda presença dela. Ri amarga. Ele a mandara para um internato, com certeza acreditando que lá rece-beria o corretivo que necessitava.

Um colégio interno, rígido e conservador, seria o ideal, por que não? O que ela precisava era de disciplina. E, apesar da saudade imensa do lar que durante tantos anos fora seu porto seguro, naquele período de maior incerteza, quando seu mundo acabava de desmoronar, ela se viu concluindo ser melhor dar as costas a tudo. Um contrassenso? Não. An-tes, estava consciente do que havia em jogo naquela ocasião. Ah!... Sim!

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Ainda sentia suas entranhas revolverem à simples recordação da alterna-tiva dada pelo pai... Também esperava que assim conseguisse acalmar as ideias. Não podia continuar do jeito que estava. Com a morte da mãe, acabara sendo reprovada naquele ano... Contudo, demorara a se ajustar e foi aos trancos e barrancos que terminou o Científico. Ri doloridamente. Mas aí viera a bomba no vestibular, e o pai, claro, soltara os cachorros em cima dela de novo...

– “Bolas! Não adianta ficar divagando a essa altura. Tenho algo a resolver. Preciso me alimentar e rápido. Estou faminta e, se para isso tiver que jogar conversa fora com os esnobes amigos de minha família, dane-se.” – pensou consigo.

Uma vez decidido o que fazer, Gina levanta-se resoluta. Caminhan-do apressadamente, segue por entre as pedras, em direção à pequena trilha de areia que a levaria à casa de veraneio da família White. Está quase ultra-passando a outra jovem, quando ela se vira e a vê. “Droga!” – resmungou. Não sem esforço, Gina contém o mau humor. Saúda, laconicamente:

– Bom dia! Michelle, pega de surpresa, tarda a responder – até por estar ainda

sob o efeito do que ouvira antes – e, sem saber ao certo como se dirigir à outra garota:

– Oi, Gina. Seu nome é Gina, certo? Gina inclina a cabeça levemente, concordando. Pensa consigo mes-

ma: “Andaram falando sobre mim para a garota. Ela se assustou ao se de-parar comigo.” É uma conclusão errada. E não resistindo:

– Exato, e não mordo, por incrível que pareça. – fala num tom claramente irônico.

Sem graça, esquecendo-se de todos os propósitos de ser amigável e compreensiva, Michelle trata de devolver a alfinetada, mas a voz, a princí-pio, sai rouca, quase inaudível, pelo esforço de controlar a súbita raiva que lhe acometeu. Pigarreia, constrangida e, por fim, retruca mordazmente:

– Não foi o que ouvi.– E o que ouviu exatamente? – pergunta Gina, aproximando-se e

encarando-a fixamente. “Deveria deixar essa petulante falando sozinha”, pensa Michelle.

“Por que Gina preferia agir de forma gratuitamente desagradável? Podia pelo menos ser educada com alguém que não conhecia, uma convidada de sua família; talvez seja por isso mesmo que está se esforçando para ser inconveniente.” Michelle segue tentando raciocinar sobre o que escutou e, tão entretida, não percebe o silêncio que se seguiu à pergunta da outra.

– Nem político demora tanto a responder! – Gina chama sua aten-ção, um sorriso incontrolável esboçando-se no canto dos lábios.

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