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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DO JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM HISTORIA COMPARADA ESCRAVIDÃO, ABOLIÇÃO E NAÇÃO: CONEXÕES ENTRE BRASIL E VENEZUELA (1824 – 1854) Mariana Blanco Rincón Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DO JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM HISTORIA COMPARAD A

ESCRAVIDÃO, ABOLIÇÃO E NAÇÃO: CONEXÕES ENTRE BRASIL E VENEZUELA

(1824 – 1854)

Mariana Blanco Rincón

Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DO JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM HISTORIA COMPARAD A

ESCRAVIDÃO, ABOLIÇÃO E NAÇÃO: CONEXÕES ENTRE BRASIL E VENEZUELA

(1824 – 1854)

Mariana Blanco Rincón

Orientador: Prof. Dr. Flávio Dos Santos Gomes

Rio de Janeiro 2008

Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em História Comparada da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro, visando a obtenção do título de Mestre em História Comparada

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FICHA CATALOGRÁFICA

B641 Blanco Rincón, Mariana Escravidão, abolição e nação: conexões entre Brasil e Venezuela (1824 – 1854) / Mariana Blanco Rincón. -- 2008. 147 f. : il. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2008.

Orientador: Flávio dos Santos Gomes

1. Escravos – Tráfico – 1824-1854. 2. Brasil - Relações - Venezuela – 1824 – 1854. 3. Venezuela – Relações – Brasil – 1824 – 1854. 4. História comparada – Teses. I. Gomes, Flávio dos Santos (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História Comparada. III. Título.

CDD: 326

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Mariana Blanco Rincón

ESCRAVIDÃO, ABOLIÇÃO E NAÇÃO: CONEXÕES ENTRE BRASIL E VENEZUELA

(1824 – 1854)

Aprovada em

Prof. Dr. Flávio Dos Santos Gomes, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Prof. Dr. José Jorge Siqueira, Universidade Severino Sombra

Prof. Dr. Marcelo Paixão, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, visando a obtenção do título de Mestre em História Comparada

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Al Dios de la Vida y de la Historia

A Mariana,

a quien nunca conocí y de quien recibí mi nombre,

y a Belén Porque su herencia callada,

impregna, imperceptible e indeleble, mi historia familiar

A Leonor,

quien me ayudó a confiar en mi camino,

llegar al final de esta jornada y abrazar

la aventura de alcanzar mis Itacas

A Mercedes y Vincent,

incondicionales en todas las circunstancias,

oportunos en los momentos imprescindibles,

puerto seguro de Amor Fraterno y

Amistad Fiel.

A cada uno de mis sobrinos, porque son fuente de energía,

alegría y entusiasmo siempre renovados

porque ya son el futuro y me animan a luchar

por un mundo más humano y más justo

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AGRADECIMENTOS

O Manual de Tese coloca os agradecimentos como um elemento opcional dirigido àqueles

que contribuíram de maneira relevante na elaboração do trabalho. Sou consciente que graças à

ajuda e o apoio de muitas pessoas que de diversas maneiras me inspiraram a fazer este trabalho,

cheguei a concluir essa etapa de um percurso que espero continuar. Daí que considere os

agradecimentos mas que um elemento opcional, um elemento essencial.

Quero agradecer em primeiro lugar ao meu orientador, Prof. Flávio dos Santos Gomes,

por ter aceitado me orientar e pela enorme paciência que me mostrou sempre ao longo desse

tempo. Ele confiou no meu trabalho, mesmo nas horas em que eu duvidava do caminho. Quero

lhe agradecer sua visão da História, que me abriu os olhos a uma maneira nova de me aproximar

dela depois de muitos anos dedicada a outras áreas. É instigante re-descobrir nossa primeira

paixão orientada por alguém que ama e leva a serio seu trabalho.

A gestação desse estudo começou em 2001 em Uganda. Não sei até que ponto Peter,

Gery, Fons, Lázaro, Paulina e Mary Morin sabem quanto eles foram e continuam sendo

marcantes e inspiradores. Uganda significou uma renovação, me levando de volta às minhas

origens espirituais, humanas e profissionais. Isso unicamente foi possível graças à generosidade,

à sinceridade e à radicalidade de suas vidas.

Quando retornei na Venezuela meus pais acolheram meus projetos com entusiasmo e

respeito. Eles têm me acompanhado, mesmo na distância, com disponibilidade e fidelidade, nos

bons momentos e nas horas ruins. Obrigada por essa rica presença. Junto com eles, quero

agradecer meus tios Ted e Leo, que me mostraram de mil formas diferentes seu carinho e apoio.

Sem eles, minha vida teria sido mais triste e difícil. Às minhas irmãs e meus cunhados, obrigada

por me oferecer sempre o melhor de vocês!

Os caminhos de retorno são possíveis graças àqueles que compartilham conosco sua

experiência aprofundada das idas e vindas. A Prof. Michaelle Ascencio foi a primeira pessoa que

levou a serio minha inquietação apenas formulada. Ela abriu um mundo para mim e me mostrou

que a paixão unida à razão era uma força poderosa. Com ela fui descobrindo novas trilhas,

culturais, acadêmicas e artísticas que foram me trazendo até aqui. ¡Muchisimas gracias Profesora!

Agradecer a Mercedes Robles, Elvira Morcillo e Neus Edo, agora em diferentes lugares

do mundo, pela amizade e o compromisso que nos unem, pelo entusiasmo e interesse em tudo

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aquilo que empreendem, pelo apoio que sempre tem me oferecido. A Nora, minha madrinha,

verdadeira mãe generosa, forte e oportuna num momento importante da caminhada. A Maria

Flores, Lino, Carola e Marianella por ter concretizado a amizade e a família em muitos bons

momentos compartilhados, simples e inesquecíveis.

E Brasil, minha casa nos últimos anos. A terra estranha se torna lar quando as pessoas

abrem suas portas e convidam você a entrar. Como esquecer, então a Dona Sonia? Foi ela quem

preparou a primeira feijoada que comi neste país, quem me acolheu como mais uma filha.

Adorava seus pratos, sua conversa, sua forma particular de ver a vida... Por isso a saudade é

grande e também a certeza de que ainda está conosco... E a Giovana, minha irmã carioca.

Obrigada pela sua generosidade, seu tempo, sua alegria, sua energia e vontade de viver; pela sua

inteligência e sua seriedade no trabalho e no estudo. Obrigada por tudo!

A Fernanda, amiga incondicional, presente da vida na hora certa;

A Magalys, pelo “mar de la felicidad” compartilhado;

A Ekke e Maria Clara Bingemer pela amizade e o apoio espiritual, humano e material que

com grande generosidade sempre me oferecem;

A Alain, pela sua torcida incansável que, nestes últimos tempos, me deu o fôlego

necessário para chegar ao final;

A Ângela e Marcos, porque tenho a sorte de contar com sua amizade instigante e

inspiradora;

A Cecília e Consolação, sem elas, muitas portas permaneceriam fechadas e faltaria poesia

em nossas vidas;

A Maria Rosa Morala, Vera Candau, Kátia e Alexandre pelo carinho, a disponibilidade e

a amizade, e aos amigos da Instituição Teresiana que me receberam como parte da família.

Minha vida de nômade tem me presenteado com muitos amigos. Não poderei agradecer

cada um deles pelo seu nome, mas cada gesto, cada palavra ajudaram a construir esse caminho e

eles estão na minha memória e no meu coração. Obrigada!

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...El totalitarismo pasa por el relato del pasado.

Esta utilización de la historia es a menudo una preparación para la vendetta.

Escarbando en el pasado, siempre encontraremos algo de qué vengarnos.

El olvido no es la solución puesto que así

se permite que se vuelvan a instalar las condiciones de la repetición,

mientras que el abuso de memoria prepara para la repetición intencional.

Ni olvidar, ni utilizar:

el único medio de salir adelante es comprendiendo...

No utilizar la historia sino trabajar por comprenderla,

permite relacionar la memoria que da sentido con la desobediencia al pasado

que invita a la innovación (…)”

Boris Cyrulnik. La maravilla del dolor

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RESUMO

BLANCO, Mariana. Escravidão, abolição e Nação: conexões entre Brasil e Venezuela (1824 – 1854). Rio de janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Historia Comparada) – Instituto de filoso-fía e ciencias Humanas, universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008 O presente estudo propõe uma análise que estabelece conexões em torno dos debates, narrativas e processos sobre emancipação, nação, nacionalismos e construção de identidades no Brasil e na Venezuela do século XIX. O seu objetivo é iluminar os processos constitutivos da nação vene-zuelana ocorridos durante o século XIX (independência, construção da nação, fim do tráfico e abolição da escravidão) a partir das experiências e interrogações sobre os mesmos processos no Brasil. Baseado na perspectiva teórica da história atlântica, o estudo procura reconstituir cenários, agentes e contextos a partir do movimento de pessoas e da circulação de idéias no interior dos mundos transnacionais. São enfocados os trinta anos entre a Independência das colônias hispâni-cas (1824) e a emancipação da escravidão venezuelana (1854). A Venezuela é o ponto de obser-vação nas conexões com o Brasil. Partindo dos pressupostos teóricos da história comparada e da história atlântica, são utilizados alguns conceitos propostos por E. P. Thompson, especialmente os conceitos de agência, experiência e processo para as reconstituições históricas, o que permite decodificar as sociedades escravistas menos como uma estrutura estática do que como um siste-ma dinâmico, movimentado por seus múltiplos agentes e moldado por suas experiências. São consideradas as possibilidades de diálogo entre a produção bibliográfica brasileira e a historiogra-fia venezuelana acrescentando problemáticas e interrogações. Em termos de investigação empíri-ca é trabalhada principalmente a documentação diplomática da década de 1840-1850, do enviado brasileiro à Venezuela, localizada no Arquivo Histórico de Itamaraty, assim como a documenta-ção diplomática para o mesmo período, alocada no Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores da Venezuela. Essa troca de correspondência oficial é entendida como troca de expec-tativas e preocupações sobre escravidão, emancipação e construção do Estado, especialmente no que se refere à terra, à propriedade, ao liberalismo e aos demais projetos políticos.

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ABSTRACT

BLANCO, Mariana. Escravidão, abolição e Nação: conexões entre Brasil e Venezuela (1824 – 1854). Rio de janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Historia Comparada) – Instituto de filoso-fía e ciencias Humanas, universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008 The present study considers an analysis that establishes connections around the debates, narra-tives and processes on emancipation, nation, nationalisms and construction of identities in Brazil and Venezuela during the XIX century. The purpose is to clarify the constitutive processes of the Venezuelan nation during the XIX century (independence, construction of the nation, end of the traffic and abolition of slavery) from experiences and interrogations of the same process in Bra-zil. Based in the theoretical perspective of Atlantic history, the purpose of the study is to reconsti-tute scenes, agents and contexts from the movement of people and the circulation of ideas in the interior of transnational worlds. It approaches thirty years between the Independence of the His-panic colonies (1824) and the emancipation of the Venezuelan slavery (1854). The connections with Brazil are from the Venezuelan point of view. Starting from two historical theories, a com-parative and Atlantic theory some E. P. Thompson concepts are used, especially the concepts of agency, experience and process for historical reconstruction, that allows decoding the slavery societies more as a dynamic system than as a static structure, promoted by its various agents and modelled by their experiences. The study considers the dialogue possibilities between the Brazil-ian bibliographical production and Venezuelan historiography adding new problems and interro-gations. In terms of empirical research has been worked mainly with diplomatic documentation from 1840-1850, sent from Brazil to Venezuela, found in the Historical Archive of Itamaraty, as well as diplomatic documentation from the same period, found in the Archivo Central del Minis-terio de Relaciones Exteriores de Venezuela. The exchange of official correspondence is under-stood as exchange of expectations and concerns on slavery, emancipation and construction of the State, especially what concerns land, property, liberalism and political projects. .

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SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO 11

2. CAPITULO I – VENEZUELA: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA 21

COLONIAL E PÓS-COLONIAL

3. CAPITULO II – EM TORNO DO 59

"INFAME COMÉRCIO”: DEBATES E PROPOSTAS

PARA A EXTINÇÃO DO TRÁFICO ATLÂNTICO EM

PERSPECTIVA COMPARADA

3.1. Trafico e legislação anti-tráfico na Venezuela colonial e pós-colonial 65

4. CAPITULO III – ABOLIÇÃO NA VENEZUELA: 99

LUTAS, CENÁRIOS E EXPECTATIVAS

4. EPILOGO: COMPARANDO CONEXÕES E DIALOGOS 123

5. REFERÊNCIAS 136

6. ANEXOS 149

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APRESENTAÇÃO

“Como me preocupa o futuro deste povo que não se interessa do seu passado” 1

A preocupação de Tia Daiá, uma das personagens da peça “Candaces”, expressa mi-

nha motivação para a realização deste estudo. Ele nasce de um assombro e de uma inquietude

que se convertem na necessidade de interrogar o passado para encontrar na história respostas

e possíveis caminhos para decodificar contextos, experiências e sujeitos envolvidos nos cená-

rios da escravidão e abolição no Brasil e na Venezuela. Por isso, começar com uma breve ego

- historia2 parece um bom caminho para esclarecer onde se situam nossas preocupações e

interrogações sobre a temática a ser abordada..

Em 2001 circunstâncias inusitadas, pessoais e profissionais, propiciaram uma estadia

de seis meses em Uganda. Até então, para mim a África era definida apenas como um conti-

nente de guerras e catástrofes. Na minha imaginação alternavam-se confusamente imagens de

uma natureza bela e selvagem junto com cenas de sombras humanas marcadas pela fome e

pela violência. Em meio a estas imagens conflitantes, tentei me preparar psicologicamente

para o que sequer conseguia imaginar3.

Enquanto as pessoas estavam preocupadas achando que eu partiria para o “fim do

mundo”, minha primeira surpresa foi chegar a Nkozi4 e me sentir em casa. A natureza reme-

tia-me às paisagens de infância na Venezuela. Em termos geográficos, esta familiaridade não

era algo excepcional, visto que ambos os países encontram-se praticamente na mesma latitu-

de. Porém meu espanto foi maior ainda ao ter a oportunidade de conhecer os povoados e seus

habitantes. Reencontrei gestos, palavras e expressões que há tempos faziam parte de minha

realidade. Pouco a pouco, entre encontros, conversas e reflexões, a “ficha caiu”: descobri que

apesar das grandes e inegáveis diferenças culturais, aquele universo me era familiar; tinha a

sensação de já haver “bebido da sua fonte” na Venezuela. Como era possível considerar a

1 CANDACES. A reconstrução do fogo. Produção de Marcio Meirelles. Rio de Janeiro: Cia. dos Comuns, 2004. Peça teatral. 2 A ego - historia concebe-se como o relato do historiador que explica seu próprio processo de formação e a relação estreita que existe entre o objeto por ele observado e ele como observador. Desde os anos 1980 e 1990, tem sido observado o crescimento de “exercícios de ego historia”. Neles o itinerário pessoal do historiador con-forma-se como mais um elemento para a compreensão de sua pesquisa. Cf.. NORA, Pierre. Essais d’egohistoire, Paris: Gallimard. 1987; SERNA ALONSO, Justo. La ego-historia de Pierre Vilar in Claves de razón práctica, Septiembre 1999, nº 95, pp. 60-64; AURELL, Jaume. El texto histórico como relato autobiográfico in III Con-greso Internacional Historia y Debate, Santiago de Compostela, 14-18 de julio de 2004. 3 Uma abordagem crítica sobre as percepções da África como continente homogêneo está em MINTZ, Sidney & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Cândido Mendes, 2003. 4 Nkozi encontra-se sobre a linha do Equador, a 80 km de Kampala, capital de Uganda.

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África tão distante durante toda uma vida se na verdade ela sempre esteve ali, como uma das

raízes fundadoras de meu país? Por que havia ignorado a centralidade da África na minha

própria história? Minhas poucas referências eram representadas apenas por tambores, alguns

ritos e danças - agora praticados em massa - e considerados como manifestações folclóricas

no sentido estático já criticado por Thompson de folclore como “meras sobrevivências do

passado, vistas a partir de um sentido de distância que implicava superioridade e subordina-

ção”.5

A partir desse novo cenário fui repassando minha história a fim de encontrar uma ex-

plicação para esse grave silêncio. Reconstruí com as poucas informações que contava as ori-

gens dessa presença africana na Venezuela. Imagens cinematográficas recriando cenas da

escravidão... A escravidão, esse longo e doloroso processo, surgia como algo estranho e novo

naquele ambiente onde se respirava tanta liberdade... Como havia sido? Que marcas tinha

deixado? Ao final deste percurso vital e intelectual encontrei uma resposta para minha questão

inicial: o silêncio. Minha ignorância era produto do silêncio. Nem na escola, tampouco em

outros espaços ouvi falar de maneira significativa do sistema escravista colonial e dos escra-

vos na Venezuela. Era como uma história que não era nossa, que não nos tocava, enfim, uma

realidade quase mítica.

Então descobrir esta parte da história foi como compreender parte de minha existência.

Meu primeiro sentimento de indignação por esta história “silenciada” e por tanto negada, pas-

sou a guiar meu trabalho como historiadora, trabalho este marcado por uma inquietude em

forma de uma série de interrogações sobre a Venezuela. Esta foi a trilha percorrida até a pro-

dução deste trabalho.

A independência das antigas colônias americanas desencadeou um processo de cons-

trução de novas identidades sócio-políticas. Os antigos súditos das Coroas espanhola e portu-

guesa tornaram-se cidadãos. Esta nova realidade acarretou na obrigação de definir um projeto

nacional que assinalasse quem era cidadão e que condições deviam ser reunidas para o exercí-

cio dos direitos correspondentes. O ideal de nação dos libertadores latino-americanos, que

correspondia ao das idéias da Ilustração e da Revolução Francesa, buscava restituir homoge-

5 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional . Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1998, pp. 13-14.

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neidade a uma sociedade dividida. No entanto, faltou por parte da elite criolla6, a proposta de

um projeto de identidade que integrasse a população de cor (mestiços, negros, ameríndios) 7.

Na Venezuela, ao contrário do Brasil, pouco tem sido aprofundado a respeito das pos-

sibilidades de obtenção de cidadania para as populações de cor e mais especificamente para os

ex-escravos. No caso desse processo ter ocorrido, em que ele consistiu? Como ficou a situa-

ção de homens e mulheres escravos após a Independência? De que forma esses sujeitos recria-

ram seus códigos de vida frente à nova realidade de uma nação em construção? Que seqüelas,

conflitos, ensinos deixaram os anos de escravidão à sociedade venezuelana em processo de

construção? Como se deu a evolução deste homem liberado “por decreto da escravidão”? On-

de se situa? Quais são as suas referências históricas?

Essas perguntas têm como pano de fundo a leitura e a aplicação dos modelos liberais

que problematizavam cada vez mais a instituição escravista como forma de organização soci-

al. Parece-nos importante reconstituir o caráter desses processos históricos (independência,

abolição, construção da nação) para, no caso de se verificar, entender as suas recriações na

contemporaneidade. Caso estas recriações se comprovem, pode-se ir mais além e pensar nesta

continuidade como mecanismo operador de desigualdades sociais e discriminações raciais que

se refletem no nosso desenvolvimento? Partimos da premissa de que até que os processos

independentistas e abolicionistas da Venezuela não sejam reconstituídos, continuaremos repe-

tindo falsos modelos que limitam gravemente o nosso desenvolvimento individual e social.

No Brasil, boa parte dessas questões já tem sido tratada; entretanto, na Venezuela, elas ainda

são incipientes e precisam de investigações mais sistemáticas capazes de alocar cores e clas-

sificações raciais – e seus múltiplos significados - dentro do projeto de construção da identi-

dade nacional.

Neste sentido, nosso estudo propõe uma análise que estabelece conexões em torno dos

debates, narrativas e processos sobre emancipação, nação, nacionalismos e construção de i-

dentidades no Brasil e na Venezuela do século XIX. O nosso objetivo é iluminar os processos

constitutivos da nação venezuelana ocorridos durante o século XIX (independência, constru-

ção da nação, fim do tráfico e abolição da escravidão) a partir das experiências e interroga-

ções sobre os mesmos processos no Brasil.

6 Termo que se utiliza na América hispânica para denominar os descendentes de espanhóis nascidos nas colônias. 7 PINO ITURRIETA, Elías, Caballeros, clérigos y hombres de Armas: o por qué los ciudadanos no existen en Venezuela. In: Ciudadanía y ser ciudadano. Primer encuentro venezolano-francés, Caracas: Coedición Insti-tuto de Altos Estudios de América Latina, Universidad Simón Bolívar y Embajada de Francia en Venezuela, 2000.

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O século XIX venezuelano tem sido abordado a partir de visões e escolhas temáticas e

metodológicas que até os anos 1990 mantiveram em silêncio a participação de amplos setores

da sociedade nesses processos, especialmente aqueles compostos pelas populações livres de

cor e os escravos, assim como silenciaram processos chaves como o do fim do tráfico.

Para tal, nos baseamos na perspectiva teórica da história atlântica, procurando recons-

tituir cenários, agentes e contextos a partir do movimento de pessoas e da circulação de idéias

no interior dos mundos transnacionais. A idéia de uma história atlântica se refere à necessida-

de de considerar diálogos sócio-culturais marcados pela transnacionalidade contrapondo-se à

pouca amplitude das análises presas apenas ao contexto do nacional. Dessa forma, as experi-

ências que envolvem a escravidão, a abolição e seus sujeitos devem ser repensadas a partir do

movimento de pessoas e da circulação de idéias no interior destes mundos atlânticos8.

Tentaremos recuperar a historicidade desses processos a partir de suas conexões com

as classificações raciais, pois este nos parece um caminho válido já observado na historiogra-

fia brasileira e ainda escasso na venezuelana9. Durante estes anos, qual foi o debate em torno

do estatuto de cidadania? No Brasil, como demonstra Lima10, a construção da identidade na-

cional implicou um processo de racialização de suas populações. Acreditamos que essa inter-

pretação possa ser estendida para Venezuela. Como a cor foi tratada? Quais os seus senti-

dos?11 Como foi entendida pelos múltiplos agentes da nação? Como a sua menção desencade-

ou conflitos e solidariedades no interior das populações? Havia algum tipo de atuação das

pessoas livres de cor no processo de definição da cidadania venezuelana? Quais foram as dis-

putas e os consensos ao longo desses anos?

Enfocaremos os trinta anos entre a Independência das colônias hispânicas (1824) e a

emancipação da escravidão (1854). A Venezuela será o nosso ponto de observação nas cone-

xões com o Brasil. Neste período, a emancipação ainda estava longe de acontecer no Brasil. O

debate girava em torno do final do tráfico, mas ele não implicava a discussão sobre o final da

escravidão: acabar com o tráfico era acabar com a presença africana. Qual é o ponto de cone-

xão entre os dois países neste momento de debates aparentemente diferentes? A historiografia

8 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001; LINEBAUGH, Peter. Todas as monta-nhas do Atlântico estremeceram. In: Revista Brasileira de História, v.6, 1983. 9 Trabalho inovador de Ivana Stolze tenta pensar no contexto brasileiro as articulações entre nação e classifica-ções raciais. STOLZE LIMA. Ivana. Cores, marcas e falas. Sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 10 STOLZE LIMA. Ivana, Op. Cit. 11 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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mais recente12 fornece-nos algumas pistas relacionadas ao medo generalizado das elites das

revoltas escravas e das idéias abolicionistas.

Tanto na Venezuela quanto no Brasil, o medo da “haitinização”, ou seja, de levantes

escravos inspirados no modelo da revolução negra de São Domingos de 1791 que expulsou a

elite branca da ilha, teve importantes desdobramentos representados no Brasil pela discussão

sobre a conveniência e a necessidade de não continuar com o comércio negreiro. Além disso,

ao contrário do que se pensa, a legislação da época, supostamente dirigida ao fim gradual da

escravidão, na realidade orientava o seu prolongamento. O caso venezuelano é exemplar nes-

se aspecto, pois a reforma da lei de manumissão em 1830 prolongou a maioridade do liberta-

do, ofereceu um pequeno aporte econômico ao fundo de manumissão e avaliou o trabalho dos

libertos pela metade do valor do trabalho escravo13. Durante as guerras de independência fo-

ram recrutados escravos das fazendas como soldados pelas duas partes enfrentadas. Isso levou

a uma situação muito difícil na agricultura que fez com que os fazendeiros, uma vez restabe-

lecida a paz, tentassem recompor o sistema escravista.

A História Comparada apresenta-se como caminho bastante frutífero para reconstitui-

ção de processos históricos ligados à escravidão, à abolição e à independência. Além disso,

ela vai de encontro com a perspectiva teórica da história atlântica já esboçada por autores co-

mo Sidney Mintz, Peter Linebaugh, Richard Price, Stuart Hall e Paul Gilroy. Estes autores

tentam demonstrar a necessidade de levar em conta trocas socioculturais marcadas pela trans-

nacionalidade e pela interculturalidade considerando as conexões entre Europas, Américas e

Áfricas como processos dialógicos.

Nesta perspectiva, a história comparada é compreendida no sentido de uma história

conectada, isto é, que resgata conexões que sempre existiram no mundo atlântico, trazendo-as

para as abordagens historiográficas. Notícias sobre as revoluções européias, protestos diver-

sos, insurreições escravas, arte médica... Juntas estas diferentes visões de mundo viajavam e

espalhavam-se junto às mercadorias efetivando assim conexões transatlânticas.

Projetos em alguns lugares eram acompanhados com expectativas em outros. Assim, é

interessante observar como o delegado do Império do Brasil na Venezuela entre 1842 e 1854,

acompanhou os acontecimentos políticos e sociais venezuelanos como o processo de abolição

12 Cf.. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos (1800-1850). Campinas: Editoria da UNICAMP, 2000. 13 Cf.. RAMOS GUEDEZ, J. M. Simón Bolívar y la abolición de la esclavitud en Venezuela 1810-1830. Pro-blemas y frustración de una causa. Ponencia presentada en la VII Jornada Nacional sobre Investigación y Docencia en la ciencia de la Historia in Memoriam March Bloch, Barquisimeto, 23 al 26 de Julio de 1997; CHACON, Alfredo. Poblaciones y culturas negras de Venezuela, Caracas, 1983, Gobernación del Estado Miranda, Instituto Autónomo Biblioteca Nacional y Servicios de Bibliotecas

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ressaltando-o, com preocupação, às autoridades brasileiras. Graças a essas e outras conexões,

a comparação dos processos históricos em espaços e tempos diferentes é possível e cada vez

mais necessária para uma melhor compreensão deles.

Do intercruzamento de ambas as histórias emerge um pensamento dialógico que faz

com que, como sugere Paul Gilroy “dentro das fronteiras do atlântico negro”, as experiências

que envolvem a escravidão, a abolição e seus sujeitos ganhem novos sentidos, pois são repen-

sadas a partir do movimento de pessoas e da circulação de idéias no interior dos mundos a-

tlânticos14. Neste sentido, Peter Linebaugh, no seu artigo “Todas as montanhas atlânticas es-

tremeceram” ao tratar da crise do século XVII, analisa os vínculos entre Europa, África e

América. Ele interpreta de forma inovadora como as tradições oposicionistas inglesas da épo-

ca viajaram com os “(...) pobres ingleses e dispersaram-se pela América com os exilados polí-

ticos, criminosos deportados e trabalhadores com obrigação de serviços. Nas colônias inglesas

e no Caribe estes operários juntaram-se aos africanos escravizados em suas lutas pela liberda-

de e aliaram-se a piratas e corsários: no final do século XVII e durante a primeira metade do

XVIII esta tradição se internacionalizou, ganhando tons de uma ideologia anti-escravista e

libertária.

Tal como um “bumerangue” navegando pelo Atlântico, estas tradições aportaram no-

vamente em Londres engrossando o movimento abolicionista na Inglaterra e contribuindo

para a formação da classe operária inglesa.” 15 A idéia de transnacionalidade diz respeito às

experiências ou contextos históricos conectados que não podem ser expressos sobre a organi-

zação de uma história nacional que isolada não dá conta da absorção, da recriação e da lógica

de aproximação de visões do mundo que dialogam entre si. Assim, um dos problemas de parte

da historiografia é a sua perspectiva nacional engessada, perspectiva esta que homogeneiza

questões, pessoas e experiências.

Em termos de perspectivas teóricas pretendemos utilizar alguns conceitos propostos

por E. P. Thompson. Sua influencia teórica é esboçada em recentes trabalhos que analisam os

cenários da escravidão, da pós-abolição e do movimento operário. Mais recentemente, Silvia

Lara destacou a importância das categorias thompsonianas nos estudos brasileiros16. Partindo

dos pressupostos teóricos da história comparada e da história atlântica, as reflexões de

14 Neste sentido, Peter Burke trabalha com a idéia de circularidade cultural. Para o autor, a metáfora do círculo é útil para se referir a “adaptações de itens culturais estrangeiros que são tão completas que o resultado pode às vezes ser re-exportado para o lugar de origem do item” Cf.. BURKE, Peter. Hibridismo cultural , São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003, pp. 32 e 94. 15 Cf.. HUNOLD LARA, Silvia. Blowin’ in the wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil in Projeto Historia . São Paulo: Outubro 1995, n. 12, p. 44. 16HUNOLD LARA, Silvia. Op. Cit.

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Thompson são fundamentais, especialmente os conceitos de agência, experiência e processo

para as reconstituições históricas. Dentro dessa perspectiva é possível decodificar as socieda-

des escravistas menos como uma estrutura estática do que como um sistema dinâmico, movi-

mentado por seus múltiplos agentes e moldado por suas experiências.

Mais do que uma simples escolha teórica, a obra de Thompson oferece possibilidades

analíticas sobre a construção de novas lógicas para se compreender os mundos da escravidão,

cenários, agentes e processos. Partindo dos desdobramentos teóricos e políticos de suas análi-

ses, alguns historiadores no Brasil começaram a insistir na necessidade de incluir a experiên-

cia escrava na história da escravidão.

De maneira geral, o uso de tais conceitos nos estudos de escravidão pauta-se na neces-

sidade de conferir voz às populações escravas até então canonizadas pela história como mer-

cadorias sem vontade própria. Nesse sentido, as relações sociais devem ser pensadas a partir

do conceito de agency. Assim sendo, esta agência representa a capacidade humana de movi-

mentar processos históricos complexos e de produzir experiências diferenciadas de acordo

com os sujeitos e contextos históricos inerentes a cada época. Aqui homens e mulheres da

“gente comum” são vistos como agentes e a história é considerada para além das estruturas,

como um processo social dinâmico movimentado a partir da atração dos múltiplos sujeitos

sociais, ou seja, um “processo com sujeito”.

Tal perspectiva teórica torna-se útil para novas escolhas temáticas e metodológicas em

termos de historia e historiografia venezuelana referentes aos processos sociais do século XIX

(escravidão, independência e abolição) . Enfim, este estudo também considera as possibilida-

des teóricas e metodológicas da historiografia brasileira para o contexto venezuelano, apli-

cando assim o conceito de historia comparada. .

Para concretizar nosso objetivo, consideramos as possibilidades de diálogo entre a

produção bibliográfica brasileira e a historiografia venezuelana acrescentando problemáticas e

interrogações. Em termos de investigação empírica trabalhamos principalmente com a docu-

mentação diplomática da década de 1840-1850, do enviado brasileiro à Venezuela, Miguel

Maria Lisboa, Barão de Japurá, localizada no Arquivo Histórico de Itamaraty, assim como

com a documentação diplomática para o mesmo período, alocada no Archivo Central del Mi-

nisterio de Relaciones Exteriores da Venezuela. Essa troca de correspondência oficial é aqui

entendida não apenas como mera retórica, mas como troca de expectativas e preocupações

sobre escravidão, emancipação e construção do Estado, especialmente no que se refere à terra,

à propriedade, ao liberalismo e aos demais projetos políticos.

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Também, a utilização combinada destas fontes situa-se na perspectiva analítica de his-

toria comparada de pensar os processos e cenários da escravidão e abolição e suas múltiplas

experiências transnacionais abrindo novos horizontes teóricos para a produção venezuelana.

Os enviados diplomáticos constituem-se em agentes privilegiados dessa circulação de pessoas

e idéias própria do mundo atlântico e especialmente no momento da construção das novas

nações latino-americanas. A aproximação aos processos históricos do século XIX venezuela-

no tendo como pano de fundo a historiografia brasileira numa perspectiva comparada ajuda a

descortinar semelhanças e singularidades, permanências e rupturas, conflitos e solidariedades

na construção das identidades nacionais pós-coloniais.

A escolha do Brasil e da Venezuela para estabelecer conexões é extremadamente per-

tinente visto as semelhanças em ambos os países no que se refere ao modelo colonial de traba-

lho e acumulação de capital. Foi esse tipo de economia, baseada na agricultura de plantation e

no trabalho escravo, a responsável por desenhar contornos bastante próximos nessas duas so-

ciedades, entretanto, essa aproximação não elimina, nem tampouco diminui os diferenciados

processos históricos desses dois cenários.

Este estudo está dividido em três capítulos. No primeiro abordamos a historiografia

venezuelana sobre a independência e o século XIX, assim como a descrição de um rápido

panorama das instituições, processos políticos, econômicos e sociais da época colonial que

configuraram as lutas de independência. O processo de independência venezuelano deve ser

entendido como herdeiro dos movimentos independentistas do final dos setecentos, movimen-

tos estes que adquirem força nas primeiras décadas do século XIX e que culminam em treze

anos de guerras civis que se prolongam até 1823, data da expulsão dos espanhóis do território

depois de quase três séculos de domínio. Marca-se desta forma o final do período colonial e o

começo de uma série de tentativas da elite criolla para criar uma república inspirada nos ide-

ais revolucionários e liberais da Europa e dos Estados Unidos.

Esse processo corre paralelo ao projeto de criação de uma grande república integrada

pelos atuais países da Venezuela, Colômbia (Nova Granada) e Equador: a República da Co-

lômbia. Nesse projeto alguns libertadores se destacam, dentre eles Simón Bolívar. Se a inde-

pendência da Venezuela proclamou-se no final de 1823, cabe ressaltar que os esforços políti-

cos e institucionais para constituição da Grande Colômbia encontram no meio das guerras de

independência em diferentes regiões, importantes momentos constitutivos. Contudo, as divi-

sões no interior das elites inviabilizam tal projeto unificador, fazendo com que cada uma das

repúblicas se mantivesse construindo suas respectivas nações de forma isolada.

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Apresentamos ainda brevemente o processo de independência brasileiro com intuito de

reconstituir e analisar semelhanças, ambigüidades e contradições entre os processos vividos

nos dois países assim como para ampliar nossa compreensão a respeito dos processos e deba-

tes posteriores. Unido ao processo de independência de uma sociedade que se descobre como

“mestiça” correm os esforços da elite para construir uma nação homogênea no interior dessa

sociedade fragmentada. Trata-se do processo de construção de novas identidades sócio-

políticas desencadeado pela independência. Esta nova realidade acarretou a obrigação de pre-

parar um projeto nacional que definisse as condições necessárias para ser cidadão. Novas rea-

lidades redefiniram diferentes projetos nacionais, assim como as próprias idéias de liberdade e

cidadania. Nesse contexto, observa-se, por parte da elite, a ausência de projetos identitários

preocupados em integrar a população “de cor” (mestiços, negros e ameríndios). Assim, as

novas sociedades pós-coloniais foram pensadas pelas elites como países “sem povo” (povo

aqui entendido como “conjunto de cidadãos”) criando uma ordem no nível da representação,

completamente distanciada do real e que, portanto os impossibilitava na edificação da nação.

No segundo capítulo, analisamos e reconstituímos o debate sobre o fim do tráfico na

Venezuela, tema pouco abordado na historiografia venezuelana. Inicialmente criticamos a

insistência desta historiografia em proclamar o fim do tráfico no final do século XVIII. Con-

duzimos nosso principal argumento através do diálogo com a historiografia brasileira, especi-

almente do estudo de Jaime Rodrigues. Em termos de debate sobre a extinção do comercio de

escravos, estabelecemos um contraponto entre as questões colocadas para o Brasil e para Ve-

nezuela. A análise do sentido da promulgação das leis anti-tráfico, das transformações do co-

mércio e da observação dos conflitos, contextos econômicos e conjuntura política ligados à

extinção do tráfico indicam os significados diferentes nos debates e propostas nos dois países.

Contrariamente ao que destaca Rodrigues no seu estudo - ressaltando fatores internos

no fim do tráfico no Brasil além da ingerência inglesa - abordamos como foi a atuação inglesa

na Venezuela, nas negociações do tratado anti-tráfico e, posteriormente, nas pressões que e-

xerceu para conseguir o cesse definitivo do trato. Consideramos importante tal reflexão posto

que os estudos sobre o tráfico na Venezuela no século XIX enfatizam que a ingerência da

Inglaterra no fim do tráfico e da abolição de escravos foi quase inexistente. Por outro lado,

analisamos a extinção do tráfico como algo separado da abolição da escravatura. Desenvol-

vemos as possibilidades de conexão em torno da análise dos processos históricos que articula-

ram as idéias de nação com os debates acerca da extinção do tráfico negreiro atlântico. Tam-

bém na Venezuela – como sugere Rodrigues para o Brasil - a legislação, supostamente dirigi-

da ao fim gradual da escravidão, na realidade orientava o seu prolongamento através de me-

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canismos presentes nas leis anti-tráfico, naquelas das manumissões e finalmente na da aboli-

ção imediata (1854 na Venezuela e 1888 no Brasil).

No último capítulo, analisamos o processo de abolição na Venezuela com o olhar da

documentação diplomática, na década de 1840-1850, período em que se estabeleceu a primei-

ra representação brasileira marcada pela chegada, em agosto de 1843, do encarregado de ne-

gócios, Barão de Japurá. Diferente do Brasil, a abolição na Venezuela ocorreu simultânea às

guerras de independência, marcada por componentes sociais e raciais decisivos. Esta caracte-

rística irá imprimir uma dinâmica específica ao processo, por um lado porque responderá às

necessidades dos exércitos em luta e por outro porque esse processo estará influenciado de

uma forma diferente daquela que ocorreu no Brasil pelo exemplo do Haiti devido às conexões

da Terra Firme (e, mais especificamente, dos patriotas no caso venezuelano) com a ilha anti-

lhana. Na época havia uma atmosfera de temor de conflitos raciais. Nosso interesse neste ca-

pítulo será analisar estas questões para a sociedade pós-colonial venezuelana durante a eman-

cipação tendo como pano de fundo lutas, cenários e expectativas ocorridos no Brasil.

Avaliamos, por fim, que as conexões entre Brasil e Venezuela apresentadas neste estu-

do ajudam a continuar descortinando semelhanças singularidades, permanências, rupturas,

conflitos e solidariedades em torno das identidades nacionais nas Américas.

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CAPITULO I

VENEZUELA: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

COLONIAL E PÓS-COLONIAL

O século XIX venezuelano se apresenta como palco de múltiplos acontecimentos e expe-

riências originais. Adentrar nele é o primeiro passo para reconstituir processos históricos conec-

tados em torno da escravidão, da independência e da abolição numa perspectiva comparada. No

presente capítulo pretendemos estabelecer o contexto histórico e historiográfico venezuelano a

partir do qual organizaremos o nosso estudo comparativo. Assim, começaremos desenhando o

quadro colonial venezuelano em linhas gerais, especialmente o século XVIII, momento de refor-

mas que ajudaram a originar a Venezuela da independência. Parece-nos importante esta apresen-

tação não só porque, como bem assinala Lombardi, os elementos estruturais da colônia persisti-

ram de um modo ou outro no período pós-colonial1, mas também porque é importante lembrar e

salientar que a estrutura colonial do Império Português foi diferente da estrutura do Império Es-

panhol configura-se em elemento de compreensão imprescindível. O Império Espanhol seguiu

um modelo territorial contínuo que levou a uma forma de administração unitária, enquanto o Im-

pério Português era confrontado à gestão de um espaço descontínuo e disperso entre os três con-

tinentes: o africano, o asiático e o americano2. Essa circunstância levou os portugueses a adota-

rem formas diferentes de administração de acordo com as possibilidades de estabelecimento e as

realidades locais. Além disso, parte-se do pressuposto de que as colônias americanas não podem

se entender sem compreender o Estado que esteve na frente de sua formação. No caso espanhol,

pode-se dizer que a construção do Estado Moderno correu paralela à conquista e à colonização.

Sua monarquia

desde a origem, foi um constructo político de tipo imperial, no sentido de afirmar-se como ponto de reunião de um agregado politicamente pactado entre várias nações e uma única Coroa, nações cujas liberdades tinham o

1 LOMBARDI, John V. Venezuela. La búsqueda del orden. El sueño del progreso. Barcelona: Editoral Crítica, 1985, p.19. 2 Para a historiografia sobre o Império Português, Cf. MADEIRA SANTOS, Catarina. Expansión y descubrimientos portugueses: problemática y líneas de investigación in Cuadernos de Historia Moderna, nº 20, Servicio de Publi-caciones de la Universidad Complutense. Madrid, 1998, pp. 111-128

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respaldo de ancestralidades traduzidas em direitos que àquela obrigavam, e que eram respaldados por instrumentos adequados para fazê-lo”.3

Foi este o modelo sobre o qual se baseou o ordenamento administrativo e político na A-

mérica espanhola: um Império colonial formado por unidades de caráter próprio sob um poder

político centralizado numa Monarquia de tipo imperial. Por sua vez, o Reino de Portugal foi

construído com base na simetria entre o rei e a nação, esta última estruturada em torno da monar-

quia. A assimetria entre suas partes – o rei e seus súditos das colônias - resultou da expansão ul-

tramarina. Os colonizadores da América sabiam-se portugueses e com base nessa perspectiva

estenderam o espaço de poder do seu Rei e ampliaram a geografia da sua nação.

Destacam-se nesta primeira parte três questões fundamentais: as reformas bourbônicas

que configuraram o território e a administração venezuelanos do século XIX, os aspectos econô-

micos e especialmente as características sócio-étnicas da época, que marcariam os acontecimen-

tos em torno da independência. A segunda parte envolve os processos de independência e defini-

ção da nação no século XIX, mais precisamente entre os anos de 1810 até 1858, seguida de um

balanço historiográfico. Na apresentação dos traços mais importantes da história venezuelana é

possível captar a historiografia sobre diversos temas, entretanto não se pretende fazer uma refle-

xão historiográfica exaustiva, mas sim oferecer uma síntese a partir da qual estabeleceremos co-

nexões sobre os debates, narrativas e processos brasileiros de emancipação, nação, nacionalismos

e construção de identidades.

A América Hispânica do século XVIII está marcada pelas reformas bourbônicas. O cha-

mado “século de reformas” (1739-1808) é um esforço de reestruturação e centralização da admi-

nistração do império espanhol. Procurou-se uma reagrupação do território para acabar com a di-

visão em numerosas províncias quase independentes sem laços claros de subordinação às autori-

dades4. Tratava-se de assegurar um melhor controle político, administrativo e econômico. Conse-

qüentemente, essas reformas estabeleceram novas relações econômicas e políticas e a aparição de

novas jurisdições.

Las reformas borbónicas abrieron y sometieron a revisión muchas con-troversias previamente zanjadas. Compañías monopolistas como la Compañía Guipuzcoana de Caracas, establecieron nuevas relaciones que

3 Cf.. JANCSÓ. Istvan. Independência, Independências in JANCSO, Itsvan (org.). Independência, história e histo-riografia . São Paulo: Ed. HUCITEC, 2005, p. 19 4 HEBRARD, Véronique. Le Venezuela indépendant. Une nation par le discours 1808-1830. Paris: Éditions L’Harmattan, 1996, p. 22.

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conectaron a productores, labradores, comerciantes, exportadores y auto-ridades políticas internas, con el mundo comercial atlántico. Nuevos agentes políticos, principalmente los intendentes, pero incluyendo el per-sonal militar muy aumentado en fortalezas y cuerpos armados, retaron la autoridad de burócratas tradicionales y elites locales, creando jurisdic-ciones superpuestas, reduciendo las posibilidades de control local e in-troduciendo nuevos canales para la resolución de conflictos. Nuevas ju-risdicciones territoriales, tales como los virreinatos del Río de la Plata y Nueva Granada, o la audiencia y Capitanía General de Venezuela, crea-ron oportunidades para ventajas y autodefinición locales, y al mismo tiempo reacomodaron patrones de autoridad y responsabilidad burocráti-cos, políticos y económicos (...) 5

Embora a construção da Venezuela como uma unidade seja progressiva e gradual desde o

século XVI, será a partir das reformas que vão se estender ao longo de quase setenta anos (entre

1728 e 1804) que surgirá a Venezuela independentista. Dentro desse período, a década de 1776 –

1786 é fundamental porque será nesses anos que se realizará o processo de unificação política e

administrativa de territórios até então dispersos. Caracas se tornará o centro dessa nova jurisdi-

ção, o que provocará tensões e rivalidades inter-regionais6. Daí o interesse em fazer um breve

percurso por esse processo que vai configurar a futura Venezuela em termos territoriais, políticos

e econômicos.

Em 1717 é criado o primeiro Vice-Reinado de Nova Granada que tinha jurisdição sobre

as províncias de Antioquia, Cartagena, Santa Marta, Caracas, Maracaibo, Guayana, Popayán e

San Francisco de Quito. A sede foi estabelecida na cidade de Santa Fé de Bogotá. Seis anos de-

pois tal Vice-Reinado foi suprimido para ser restabelecido mais uma vez em 1739. Nesse mo-

mento, as províncias de Panamá e Portobelo foram acrescentadas aos territórios anteriores. Em

1776, é criada a Intendencia de Ejército y Real Hacienda de Venezuela, cuja sede é a cidade de

Caracas. Ela foi formada pelas províncias da própria Caracas, além daquelas de Cumaná, Guaya-

na, Trinidad, Margarita e Maracaibo. As atribuições da intendência eram de ordem econômica e o

seu objetivo principal seria integrar a economia das diferentes gobernaciones no intuito de forne-

5 LOMBARDI, John V. Venezuela en la época de la transición. Caracas: Academia Nacional de la Historia, El libro menor 228, 2002. 6 “El régimen federal establecido por el congreso de 1811 tiene entonces sus raíces en el período de dominación hispánica, en cuyo transcurso la vida política de las provincias se había sustentado en gran arte en la acción de los municipios, instituciones que contribuyeron a consolidar el poder de las oligarquías locales y a alimentar su aspira-ción por conservar las autonomías regionales” BANKO, Catalina. Pugnas políticas y caudillismo en el Oriente vene-zolano (1810-1835) in Bolivarium , Año V, 1996, p. 10.

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cer maior eficácia às questões fiscais, assim como à defesa e ao desenvolvimento econômico. Os

intendentes de províncias estavam sob a autoridade direta do intendente de Caracas7. Um ano

depois, realiza-se a união política dessas províncias com a fundação da Capitania General de

Venezuela através da Real Ordem de 8 de Setembro de 1777. Ela foi constituída pelas mesmas

gobernaciones que a Intendência e tinha competências de caráter governativo e militar. Tratava-

se de reunir politicamente as províncias que dependiam do Vice-Reinado de Nova Granada. Do

ponto de vista da administração da Justiça, unifica-se o território porque integrado à Audiência de

Santo Domingo8, sendo que até então, Maracaibo e Guyana dependiam da Audiência da Santa Fé.

De ambas as reformas nasce uma nova jurisdição composta de uma província maior, Caracas, da

qual dependem cinco províncias menores ao nível de governo, da justiça e do exército. Nove anos

depois desta integração política, cria-se a Real Audiência de Caracas, com jurisdição sobre todo

o território da Venezuela, com o objetivo de acabar com a dependência da audiência de São Do-

mingos.

Em 1785, cria-se o Real Consulado, em essência um tribunal de justiça mercantil que só

será efetivo em 1793. Finalmente, em 1804, Caracas é convertida em sede metropolitana, sancio-

nando desse modo a unidade religiosa. Mérida e Guyana estarão sob sua jurisdição. Em 1810,

essa unidade atravessará duros problemas, mostrando que os anos de integração (1777 e 1810)

não foram suficientes para consolidá-la. A colônia tinha sido organizada de forma federativa e as

províncias, com uma grande margem de autonomia antes das reformas, não tinham se conforma-

do com sua perda de poder. As guerras de independência evidenciaram esses conflitos ao mesmo

tempo em que foram um elemento integrador chave.

No século XVIII, os territórios que hoje conformam a Venezuela foram considerados,

dentre as terras sem minerais, as regiões mais proveitosas da colônia. A base da economia era a

agricultura, o gado e o comércio, sendo que cabia ao setor agrícola a configuração do seu comér-

cio. O cacau é o principal produto exportado, já o tabaco, o índigo, a carne o algodão e o café

eram exportados em menor escala. Até 1732, as exportações de cacau iam especialmente para o

Vice-Reinado de Nova Espanha (comércio muito ativo com Veracruz) que desde o século XVII

os comerciantes criollos monopolizavam quase de forma absoluta, sendo que o contrabando era

7 Cf. HEBRARD, Véronique. Op. Cit. p. 22 8 As audiências eram tribunais aos quais correspondiam funções judiciais que iam do direito civil até o eclesial. A significação das audiências foi tão importante que o âmbito geográfico da audiência marcará o âmbito das entidades resultantes das independências. Cf. “Audiencia de Caracas” in DHV. Caracas: Fundación Polar, 1989. CD-ROM

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também uma via de comercialização importante, especialmente com os holandeses através de

Curaçao. No intuito de controlar esse comércio de contrabando, foi criada em 1728 a Compañía

Guipuzcoana9, responsável por deter o monopólio comercial de Caracas e Maracaibo até sua de-

saparição em 1784. O seu objetivo era colaborar com a Coroa na consolidação da centralização

econômica. Isso criou uma tensão entre a Compañía e os interesses das províncias que já conta-

vam com um comércio próprio e autônomo. Mesmo assim, ela conseguiu extinguir o contrabando

de cacau, o que não aconteceu com outros produtos10.

A atividade da Compañia e a criação da Intendência favoreceram o aumento, a ampliação

e a comercialização de produtos de exportação, e conseqüentemente também provocaram mudan-

ças estruturais e econômicas, das quais destaca-se o enriquecimento dos grandes proprietários.

Estes, para obter mais benefícios, aumentaram a demanda de trabalhadores, isto é, de mão de

obra escrava. Desse modo, o tráfico cuja tendência que até então tinha sido decrescente, retomou

com força. Entre 1730 e 1780, observa-se a entrada de um grande número de africanos. Mas a

partir das últimas décadas do século XVIII, o quase mono-cultivo do cacau decai em favor de

uma maior diversidade de produtos exportáveis, reduzindo os ganhos das fazendas e empobre-

cendo os seus proprietários11. A partir de 1790, começa a ascensão do café, que atingiu o mesmo

9 A Compañía Guipuzcoana foi criada pela real Cédula de 25 de setembro de 1728, que lhe outorgava o privilégio do comércio recíproco entre a Espanha e a província de Venezuela. O consumo de cacau na Espanha tinha se generali-zado e era um produto de primeira necessidade, mas as guerras às vezes a deixavam sem provisões. O comércio do cacau venezuelano era muito cobiçado por causa de sua qualidade. A Compañía levaria dois ou mais navios mercan-tes na Venezuela que poderiam carregar qualquer tipo de mercadorias na Espanha, e transportá-las até os portos de La Guaira ou Puerto Cabello, para comerciar a partir dali com todas as cidades da jurisdição. Também se comprome-tia na vigilância do litoral da província. Durante 50 anos ela manteve o trato exclusivo entre a Província da Venezue-la e Espanha. O estabelecimento da Compañía causou uma grande indignação na província porque o contrato provo-cava una alteração profunda dos negócios regulares entre os cultivadores e os mercadores criollos, com a metrópole (acabava com seu comercio direto), Nova Espanha e o Caribe. Os conflitos se repetiram com freqüência, o que fez a Coroa desconfiar das atividades da Compañia. Os seus diretores eram acusados de fazer negócios pessoais. A partir do estabelecimento da Intendencia de Ejército y Real Hacienda em 1776, a Compañía enfrentou a resistência do primeiro intendente quem quis controlá-la com mais rigor e limitar seus privilégios. A guerra contra a Grã Bretanha em 1779, fez com que não conseguisse cumprir seus compromissos com a Coroa e a província. Foi necessário esten-der franquias para o tráfico com o estrangeiro aos mercadores criollos. Os privilégios da Compañia acabaram a partir de 1780, e finalmente a real cédula de 10 de março de 1785 ordenou sua dissolução oficial. Cf. “compañía Guipuz-coana” in DHV. Caracas: Fundación Polar, 1989 CD-ROM 10 IZARD, Miguel. El miedo a la revolución. La lucha por la libertad en Venezuela (1777-1830). Madrid: Ed. Tecnos, 1979, p. 27 11 LOMBARDI, John V. Decadencia y abolición de la esclavitud en Venezuela, 1820-1854, Caracas, 1971, Uni-versidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca, 1971, p. 20

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nível do cacau no começo do século XIX. Sua produção foi crescendo durante toda a primeira

metade do século para decair na segunda12.

Uma vez feito esse rápido percurso pela economia, é imprescindível compreender o con-

texto sócio-étnico da sociedade colonial venezuelana já que ele é determinante para a compreen-

são das modalidades do projeto político elaborado pelas elites criollas e a forma como foi recebi-

do e integrado esse projeto na sociedade: « Il s’agit, en effet, d’une société hétérogène, complexe,

dans la mesure où la société vénézuelienne est à la fois une société de castes du fait de la présen-

ce d’indiens, de noirs (esclaves et libres) et de blancs espagnols, et une société d’ordres et d’états

héritée de la Péninsule » 13 O problema da população venezuelana da época é, pois, complexo

porque a diferenciação econômica dos diferentes grupos estava ligada ao status jurídico e aos

elementos étnicos que, por sua vez contribuíam para a estratificação da população14. Tradicio-

nalmente fala-se de uma sociedade dividida em castas, entendendo neste sentido a casta como

“um grupo social estratificado, unido pela origem étnica, com idêntico status jurídico e um mes-

mo tipo de ofícios e atividades econômico-profissionais que se herdavam de geração em geração” 15. A noção de casta serviu para outorgar um status jurídico aos homens sem “classe”, isto é, nas-

cidos de uniões inter-étnicas. No Vice-Reinado da Nova Granada, estes mestiços eram chamados

de “livres”, denominação reveladora de sua origem africana. A classificação “livre” só se justifi-

cava como um modo de tirar qualquer forma de ambigüidade dos mestiços de sangue africano. A

sua aparência física era associada imediatamente à condição servil, porém, nas cidades ninguém

podia dizer à primeira vista se um pardo era escravo ou livre. “Dans la hiérarchie des catégories

malheureuses, le stigmate servile prenait le pas sur celui de la couleur, les catégories de liberté et

de métissage se superposant”16. Mesmo assim, essa estratificação apresentava variantes e um

dinamismo próprio.

A divisão sócio-étnica da população da Capitania Geral de Venezuela (refletindo a ordem

peninsular hispânica unida à especificidade das colônias americanas da presença das populações

de cor) se apresenta diferente da estratificação social no Brasil, onde os portugueses estabelece-

12 IZARD, Op. Cit., p. 27 13 HEBRARD, Véronique. Op. Cit. p. 27 14 BRITO FIGUEROA, Federico. Insurrecciones de los esclavos negros en la sociedad colonial venezolana. Cara-cas: Ed. Cantaclaro, 1961, p. 11. 15 Idem, p. 34 16THIBAUT, Clément. “Coupé têtes, brûlé cazes”: Peurs et désirs d’Haiti dans l’Amérique de Bolivar in Annales Histoire, Sciences Sociales, 58e année, nº 2 mars/avril, 2003. p. 312

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ram uma estrutura com aparência menos rígida, marcada pela distinção jurídica entre homens

livres e escravos. É importante frisar a diferença da Espanha e da França, em relação a Portugal,

que nunca teve uma política oficial, expressa em lei ou códigos, em relação às populações de cor.

Dentre a população de homens livres, aquilo que os portugueses chamaram de “acidente da cor”

era considerado uma contingência, logo não deveria ser utilizada para excluir ninguém17. Esta

flexibilidade na organização social, se comparada com aquela das sociedades coloniais francesa e

espanhola, marcadas pela ausência explícita do preconceito da cor, levou vários autores à con-

cepção de uma integração harmoniosa étnica entre o colonizador português que teria se misturado

ao colonizado. Este debate adentra o século XX18. Contudo, autores como Charles Boxer, na sua

obra Relações Raciais no Império colonial Português19 relativiza essa visão de integração har-

moniosa. Para ele,

essa presteza de acasalamento com mulheres de cor não ocasionou a au-sência de preconceito no homem português, como é muitas vezes asseve-rado por apologistas modernos. Havia, evidentemente, algumas exce-ções, mas a regra geral que prevalecia (e prevalece) na sociedade é a de uma consciente superioridade branca 20.

Esse sentimento de superioridade branco teria se expressado erigindo

Uma estrutura social de racialização explícita na forma de regimentos militares de pretos, pardos e brancos, de irmandades religiosas segrega-das, de cemitérios separados, de estatutos clericais de pureza de sangue e também das restrições ao acesso de cargos públicos impostas àqueles com “defeitos de cor”. Havia, é certo, exceções gestadas pelas práticas sociais das colônias em seu dia-a-dia, momentos esses em que alguém conseguia “passar” para as esferas públicas dominantes, porém doravante “embranquecido” para todos os efeitos legais. Contudo, pode-se dizer que o Estado português, auxiliado pela Igreja católica, constituíra ao lon-go dos séculos de colonização uma sociedade escravista cujos segmentos livres da população organizavam-se em termos de uma hierarquia racial pública 21.

17 MELLO, José Antonio Gonsalves de, O Acidente da cor, in http://bvjagm.fgf.org.br/obra/Imprensa/030404-00046.pdf 18 Gilberto FREYRE, com sua obra Casa Grande e Senzala, é um dos mais importantes autores representante desta visão. A primeira edição da obra foi publicada em Rio de Janeiro em dezembro de 1933. 19 BOXER, Charles. Relações Raciais no Império Colonial Português 1415-1825. Porto, Afrontamento, 1988 (2º edição portuguesa). Cabe ressaltar que a primeira edição da obra foi em 1963. Catarina Madeira Santos assinala que nesse momento, a obra de Boxer ofendeu o meio historiográfico oficial português dos anos 1960. Op. Cit, p. 113. 20 Citado por GOUVEIA MENDONÇA Pollyanna. Por força da escravidão: concubinato de padres com escravas no Maranhão setecentista in Outros Tempos , volume 03, p. 211. Ver www.outrostempos.uema.br 21 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. A recusa da “raça”: anti-racismo e cidadania no Brasil dos anos 1830 in Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 297-320, jul./dez. 2005

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Na ordem social da Venezuela, podiam-se distinguir três níveis sócio-étnicos22: os bran-

cos, que não constituíam um grupo social uniforme, embora suas origem étnica e a limpieza de

sangre os colocavam numa situação privilegiada em relação à dos pardos e à da população de

cor23. Para os mecanismos sociais excludentes serem eficazes, era necessário determinar quem

tinha ascendência espanhola e quem tinha ascendência africana. Mas era difícil definir a “cali-

dad” da pessoa pelo fenótipo. Por isso, foi adotado esse mecanismo jurídico da limpieza de san-

gre. Isto era obtido após uma longa revisão genealógica para determinar os ancestrais de alguém.

Na América, a prioridade era determinar se a pessoa possuía ou não ascendência africana, fator

que determinava a “calidad” da pessoa nessa sociedade de castas. Se uma pessoa era estimada

branca, sua “cor legal”, com todos seus efeitos, primava sobre a “cor real” mesmo que essa cor

fosse escura. Os pardos tentavam por todos os meios “branquear” suas linhagens, o que conse-

guiam “ favoreciendo uniones conyugales con personas de mejor calidad, o valiéndose de los fa-

vores de algún cura complaciente o corruptible, que consintiese en mudar alguna partida de bau-

tismo, convenientemente escogida, del libro de los pardos al de los blancos”. 24

Numa sociedade altamente hierarquizada, os brancos estão na cúspide da pirâmide. Divi-

didos em dois grupos diferenciados pela condição econômica encontram-se, por uma parte, os

grandes proprietários de terras e escravos, chamados de grandes cacaos ou mantuanos25 que

normalmente moravam nos centros urbanos mais importantes; os criollos26 que exerciam profis-

sões liberais, administrativas e eclesiásticas, sendo o grupo que controlava o Ayuntamiento, a

Universidade e a Igreja. Formavam uma verdadeira oligarquia. Mas eram os brancos peninsula-

res, isto é, os espanhóis residentes na província que representavam a menor porcentagem da po-

pulação, aqueles que detinham as funções oficiais mais altas. Por outra parte, estavam os blancos

22 Seguimos a divisão sócio-étnica proposta por Brito Figueroa. Dada justamente a complexidade da classificação, não todos os autores coincidem com a divisão social da época colonial. Ver para outra classificação RIOS, Alicia. Op. Cit., p. 336-338. 23 BRITO FIGUEROA, Op. Cit. , p.24 24 Cf. GOMEZ, Alejandro E. El “Estigma Africano” en los mundos Hispano-Atlánticos, siglos XIV al XIX in Revis-ta de História, nº 153 (2º semestre 2005), São Paulo, Universidade de São Paulo, pp. 172. 25 Gran cacao: No final do século XVII foram chamados de «grandes cacaos» os fazendeiros que cultivavam este produto. Além de agricultores, eles tinham barcos dedicados ao comércio com o México, onde vendiam seu produto e investiam parte dos ganhos em mercadorias demandadas no mercado de Caracas. Cf.. DHV, Caracas: Fundación Polar, 1989. Mantuano: Durante a Colônia, o vestido estava regulamentado segundo as castas. Assim, só as mulheres criollas podiam levar “manto” ou “mantilla”, daí a denominação de “mantuanos” para os criollos. Cf.. RIOS, Alicia. Op. Cit. p. 337; DHV, Caracas: Fundación Polar, 1989. CD-ROM 26 Termo que se utiliza na América espanhola para denominar os descendentes de espanhóis nascidos nas colônias

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de orilla, categoria formada por aquelas famílias de cuja origem duvidava-se ou aquelas que mo-

ravam longe do centro da cidade sem influência nenhuma nas questões públicas em geral27. Esta-

vam assimilados aos pardos por se dedicarem ao artesanato, ao pequeno comércio e à mão de

obra assalariada e identificavam-se com eles pelas suas aspirações como grupo social.

Um segundo grupo estava formado pelos pardos, negros livres e libertos. Durante o perí-

odo colonial fora chamado de pardo toda pessoa não branca na prática (pela sua cor de pele) ou

segundo a lei. O uso do termo foi utilizado em relação aos negros e aos escravos em geral. Ao

longo do século XVIII, o termo se generaliza para nomear os mestiços de branco e negro. Mas

ficou impreciso, já que nestes séculos são designados como pardos os mestiços pertencentes aos

diferentes grupos étnicos28, mesmo que os mantuanos reservavam o termo de pardo só aos des-

cendentes de escravos (equivalente a mulato) e o termo de moreno aos outros mestiços. 29 Era um

grupo heterogêneo que desenvolvia atividades de comércio e artesanato. Por sua vez, os libertos

trabalhavam como mão de obra assalariada. Como grupo, estavam em uma situação inferior aos

brancos em todos os aspectos da vida social. A legislação da sociedade colonial proibia o casa-

mento entre brancos e pessoas de cor e estas últimas eram excluídas das instituições políticas.

Alguns autores consideram as restrições aos casamentos como um dos mecanismos mais eficazes

para o isolamento e a discriminação dos “homens de cor”, a nova “plebe” americana dos espa-

nhóis. Assim, a “Real Pragmática de Matrimônios” promulgada em 1776 na Península e dois

anos mais tarde nas Américas, para evitar “a confusão de classes e de raças” 30, resguardava es-

panhóis, índios e mestiços, deixando de fora os “mulatos, negros, coyotes e individuos de castas e

(otras) razas semejantes” 31.

27 BRITO FIGUEROA. Idem. p. 18. 28 Os mulatos, zambos (indio e negro), coyote (mestiço e índia) e as outras classificações raciais estabelecidas pelos espanhóis. Cf. Tarot del amor mestizo. Caracas: Fundación Polar, 1994. 29 Cf. LANGUE, Frédérique. La pardocratie ou l’itineraire d’une “classe dangereuse” dans le Vénèzuela des XVIIIe et XIXe siècles in BAC, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Em linha no 14 de fevereiro de 2005, disponivel em : http://nuevomundo.revues.org/document643.html. 30 LANGUE, Frédérique. Idem 31 Cf.. GOMEZ, Alejandro E. El “Estigma Africano” en los mundos Hispano-Atlánticos, siglos XIV al XIX in Re-vista de História, nº. 153 (2º semestre 2005), São Paulo, Universidade de São Paulo, pp. 170. O autor faz um apon-tamento importante sobre a proibição dos casamentos inter-étnicos: “Es necesario aclarar que detrás de las iniciati-vas que pretendían impedir los matrimonios interraciales, existían otras dos motivaciones: una material; velar por el patrimonio de los colonos amos de esclavos, evitando que sus negros se favoreciesen de la legislación castellana y consiguiesen su emancipación y la libertad de sus futuros vástagos, casándose con una india (“vientre libre”). Y otra inmaterial; evitar la “contaminación” de los linajes de gente de “sangre pura”, y así mantener el orden cromá-tico del mundo”. GOMEZ, Alejandro E. Idem.

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Na base da pirâmide colonial encontramos os escravos negros e os índios. Os escravos

negros ocuparam progressivamente a força de trabalho indígena que se tornou marginal, além do

fato de que os índios conseguiram alguns privilégios legais e eram menos numerosos32. É impor-

tante analisar com mais detalhe o dinamismo social destes grupos, notadamente dos pardos, os

quais no processo da independência tiveram um papel político, econômico e social notável. Eles

tinham conseguido privilégios importantes ao longo do século XVIII adquirindo um peso social

maior, fato este que se evidencia pelas tensões com os mantuanos. Neste sentido, o conflito gera-

do pela aprovação por parte da Coroa Espanhola da “Real Cédula de Gracias al Sacar” de 179533

ilustra a significação social que adquiriram nas portas das guerras de independência. A Cédula foi

uma nova figura jurídica que estabelecia a igualação dos pardos aos brancos mediante o paga-

mento de uma quantidade de dinheiro que os dispensava de sua qualidade de pardos. Isso permi-

tia sua mobilidade social, traduzida especialmente na possibilidade de casamento com os brancos

e no acesso a cargos até então proibidos para eles. Daí que os pardos tivessem a convicção que

eles podiam se “limpar” do estigma africano, sendo que as autoridades, com decisões como a

aprovação da Cédula de Gracias al Sacar, procuravam flexibilizar a rigidez das normas de mobi-

lidade social e, logicamente, arrecadar dinheiro.

Como apontamos acima, o status da população parda é impreciso, definido sempre pelo

negativo, isto é, não são nem índios nem brancos e também não são escravos, o que faz deles um

grupo sem unidade. Juridicamente eram considerados como “estrangeiros”, já que não usufruíam

dos mesmos direitos civis dos considerados “naturais” da Colônia. Assim, a sociedade de castas,

como bem assinala Thibaud, gera uma zona de confusão racial, jurídica e social que desborda os

rígidos status da sociedade criolla34, o que terá conseqüências importantes nos processos que

estamos analisando.

32 RIOS, Alicia. Op. Cit. p, 338. Alguns índios possuíam terras e a maioria deles pertenciam a comunidades proprie-tárias de suas terras. HEBRARD, Véronique. Op. Cit., p. 28 33 Sobre o conflito gerado pela Cédula Gracias al Sacar, ver a obra de PELLICER, Luis Felipe. La vivencia del honor en la provincia de Venezuela 1774-1809. Estudio de casos. Caracas: Fundación Polar, 1996; e o estudo de CORTÉS SANTOS, Rodulfo. El régimen de las «Gracias al Sacar» en Venezuela durante el período hispánico. Caracas: Aca-demia Nacional de la Historia, 1978. 2 v 34 THIBAUD, Clément. Op. Cit. p. 316

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Dentre os pardos, existia uma elite poderosa, os chamados “pardos beneméritos” 35, grupo que se

formou desde os tempos da conquista em toda a América hispânica, mas que na Venezuela só

chegou a se consolidar como grupo social definido no século XVIII graças ao comércio de cacau.

Foi essa consciência de grupo que os levou a se verem diferentes do resto dos “livres de cor”, por

serem “mais brancos”, ter mais educação e terem servido ao Rei nas milícias. Só eles tinham os

recursos suficientes para conseguir a “dispensa de qualidade”, as quais tiveram acesso após a

introdução da Cédula de “Gracias al Sacar”. Isso lhes conferia privilégios que faziam com que

atuassem no cotidiano de forma parecida com a aristocracia branca, isto é, como uma “nobreza de

cor”. Assim, só pertenciam à condição de pardo os homens de cor de ascendência européia e não

as castas, nem aquelas pessoas pardas que tinham se misturado de novo com negros36 Mas para

os brancos, os pardos eram considerados a pior das misturas possíveis. Assim, por exemplo, no

momento que a Cédula chegou, os mantuanos se reuniram no Cabildo de Caracas reagindo contra

ela e endereçando uma carta ao Rei onde lhe explicavam que:

Los pardos o mulatos son vistos aquí con sumo desprecio, y son tenidos y reputados en la clase de gente vil, ya por su origen, ya por los pechos que vuestras reales leyes les imponen, y ya por los honores de que ellas mismas los privan. Ellos han de descender precisamente de esclavos, [y] de hijos ilegítimos, porque los que se llaman mulatos, o pardos son los que traen su origen de la unión de blancos con negras.37

Isto é, os pardos eram descendentes de escravos, já que todos os escravos trazidos para as

Américas eram africanos. Possuíam origens ruins, pois no passado suas linhagens se formaram

como fruto de relações ilícitas entre espanhóis e escravas negras. Por isso, quando eles consegui-

am “limpar” seu sangue de sua origem desonrosa e ascender na escala social, defendiam a nova

posição, excluindo por sua vez aqueles que não eram considerados pardos. Com efeito, nessa

sociedade ambígua onde a mobilidade era possível, cada grupo racial buscava garantir seu status

da melhor forma possível, mesmo fechando o acesso aos grupos inferiores. É conhecido o caso

35 GÓMEZ, Alejandro E. Las revoluciones blanqueadoras: elites mulatas haitianas y "pardos beneméritos" venezola-nos, y su aspiración a la igualdad, 1789-1812, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Coloquios, 2005, Em linha no 19 de março de 2005. Disponível em : http://nuevomundo.revues.org//index868.html 36 Idem 37 “Representación de Juan Germán Roscio a los señores decano y oficiales del ilustra Colegio de Abogados de Cara-cas.” [Caracas, 11 de septiembre de 1798] Cf. CORTÉS, Santos Rodulfo. El Régimen de Gracias al Sacar en Vene-zuela durante el Período Hispánico, tomo II. Caracas: Academia Nacional de la Historia (Col. Fuentes para la His-toria Colonial de Venezuela, No.136), 1978, p.146. Citado por GOMEZ, Alejandro E. El “Estigma Africano” en los mundos Hispano-Atlánticos, siglos XIV al XIX in Revista de História, nº 153 (2º semestre 2005), São Paulo, Uni-versidade de São Paulo, pp. 173.

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da carta enviada ao Capitán General de Venezuela em 1774 pelo Batallón de Pardos de Caracas

pedindo a exclusão de um de seus membros porque não tinha a mesma “calidad de sangre” que os

outros. Esse fato, não só violava a lógica reprodutiva do grupo sócio-étnico, senão que “(…) [sus

padres] en lugar de adelantarse a ser blancos, han retrocedido, y se han acercado a la casta de los

negros” 38. Assim, qualquer tipo de solidariedade racial era invalidada.

A dupla lógica dessa sociedade de castas, isto é, o seu desejo de promoção e ao mesmo

tempo de liberdade, igualdade e representação, as leva a uma grande contradição. Por uma parte

elas não podiam eliminar certa consciência racial, refletida nas suas incapacidades jurídicas e

simbolizadas pela sua cor e, ao mesmo tempo, deviam renunciar a qualquer estratégia coletiva

para reivindicar uma identidade parda porque o que eles procuravam era a igualdade de status39.

A mesma apreciação negativa dos brancos frente aos pardos foi transmitida aos índios. Gómez

aponta essa transmissão como uma estratégia para manter a ordem social, evitando os casamentos

entre escravos e índios, já que o mesmo era uma forma de se alforriar. A mesma posição era man-

tida pelos mestiços, que tinham conseguido durante o século XVIII um status parecido com aque-

le dos brancos, conforme evidencia a lei sobre os casamentos40.

No que diz respeito ao número de habitantes e ao peso que representava cada um dos gru-

pos sócio-étnicos acima descritos, as cifras variam de um autor para outro. Brito Figueroa avança

uma hipótese de trabalho fundamentada “em fontes documentais de primeira mão, na bibliografia

utilizada por outros pesquisadores que têm trabalhado no problema e nas interpolações e estima-

tivas comuns nos estudos sócio-demográficos” 41. Com base nos cálculos dos padrões da popula-

ção da província de Caracas entre 1800 e 181042, ele faz uma extrapolação para calcular a popu-

38 “Los diputados del Batallón de Pardos pidiendo se excluya de él a Juan Bautista Arias. 1774” Citado por GOMEZ, Alejandro. Idem. p. 176. 39 THIBAUD, Clément. Op. Cit. p. 317. É interessante observar que Kabengele Munanga na sua obra Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, traz argumentos parecidos como explicação para a dificuldade encontrada pelo mestiço e pelo negro brasileiro para construir uma identidade forte. “ Vejo difícil a tomada de consciência ao nível grupal dos diversos mestiços (mamelucos, mulatos e outros) para se auto-proclamarem como povo brasileiro, com identidade própria mestiça. Esse processo teria sido prejudicado pela ideologia e pelo ideal do branqueamento. Se todos (salvo as minorias étnicas indígenas) negros, mestiços, pardos aspiram à brancura para fugir das barreiras raciais que impe-dem sua ascensão socioeconômica e política, como entender que possam construir uma identidade mestiça quando o ideal de todos é branquear cada vez mais para passar à categoria branca?” MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 118 40 GOMEZ, Alejandro. Idem. pp. 174-176. Para o autor, os mestiços tinham conseguido essa posição graças às suas elites e ao fato que, durante o século XVIII, aumentaram as uniões sacramentadas, o que fez com que deixaram para trás o estigma de uma origem ruim, que compartilhavam com os pardos. 41 BRITO FIGUEROA, Federico, Op. Cit. p. 12 42 A repartição da população era muito desigual, sendo que a metade morava na província de Caracas. Daí que Cara-cas serva de referência para os cálculos populacionais da época.

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lação venezuelana desse período e sua estratificação social. Assim, ele afirma que a Venezuela

contava com 898.043 habitantes, dos quais 20,3 % eram brancos, 61,3 % pardos, negros livres,

escravos e cimarrones e 18,4 % índios43. Outros autores proporcionam cifras diferentes. Assim,

J.M. Morales Alvarez44 afirma que para 1810, a população da Capitania General de Venezuela

contava com 772.000 habitantes, dos quais 51,8 % eram pardos; 25,9 % brancos criollos; 12,9 %

índios; 7,7 % escravos e 1,5 % brancos peninsulares. Lombardi45 calcula que a população da Pro-

víncia de Caracas em 1810 contava com 427.205 habitantes, isto é, 50 % da população total. A

repartição étnica seria de 38,2 % pardos; 8,1 % negros livres; 25,5 % brancos; 15,1 % escravos e

13,1 % índios. Por sua vez, Manuel Lucena Salmoral46 estima que entre 1810 e 1811 a população

da Província de Caracas estava composta por 25,62 % de brancos (mantuanos, espanhóis, bran-

cos criollos, brancos de orilla ); 12,24 % de índios; 37,83 % de pardos; 6,64 % de pretos livres,

isto é 44,47 % % da população de cor livre e 15,65 % de escravos. Apesar das projeções feitas a

partir da população de Caracas, a desproporção entre brancos e pessoas de cor foi provavelmente

maior em outras regiões da Capitania, especialmente nos Llanos, com uma grande população de

cor, mistura de preto com índia (os chamados de zambos) muito dispersa geograficamente e por

isso difícil de contabilizar47.

Sejam quais forem as estimativas mais reais, o que é constante nos diferentes cálculos é a

importância da população de cor entre livres, pardos, e negros, estimada em mais da metade da

população total; o número mais reduzido de brancos, aproximadamente um quarto da população e

a pequena porcentagem de escravos. Esses dados serão muito importantes durante as guerras de

independência já que a adesão das populações de cor e escravas a um ou outro campo decidirá a

vitória. Depois da queda da I Republica, os patriotas tomarão consciência desse fato e tentarão

atrair os pardos e escravos para lutar com eles contra os realistas.

43BRITO FIGUEROA, Federico. Idem 44 MORALES ALVAREZ (J. M.). Aspectos económicos y sociales de Venezuela (1810-1830) in Historia General de España y América, Tomo XIII, Emancipación y nacionalidades americanas, Madrid: RIALP, 1992, p. 457. Cita-do por HEBRARD, Véronique. Op. Cit., p. 27 45 LOMBARDI, John V. People and places in Colonial Venezuela. Bloomington, Indiana University, 1976. Citado por HEBRARD, Véronique. Idem. 46 Manuel LUCENA SALMORAL, La Sociedad de la Provincia de Caracas a Comienzos del Siglo XIX, in Anuario de Estudios Americanos, XXXVII, pp.8-11 Citado por GOMEZ, Alejandro. The ‘Pardo Question’, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Materiales de seminarios, 2008, Em linha no 15 de setembro de 2008. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index34503.html. 47GÓMEZ Alejandro E., La Revolución de Caracas desde abajo, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2008, Em linha no 17 de maio de 2008. Disponível em : http://nuevomundo.revues.org/index32982.html.

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Para resgatar conexões entre o Brasil e a Venezuela do século XIX que ajudem a uma

melhor compreensão dos debates, narrativas e processos sobre emancipação, nação, nacionalis-

mos e construção de identidades nos dois países, é preciso estabelecer um panorama dos grandes

traços da história venezuelana entre 1810 e 1858. O ano de 1810 marca o início das guerras de

independência, e 1858, por sua vez, é também o início de uma nova guerra civil, a Guerra Federal

(1858-1864) 48, que encerra o período pós-independência. Para uma apresentação mais clara do

contexto histórico, dividiremos o período em três etapas cronológicas: a primeira, de 1810 até

1830, isto é, do começo das guerras de independência até a separação da Venezuela da Grande

Colômbia, quando o país transforma-se em uma unidade política e administrativa; a segunda de

1830 a 1848, tempo conhecido como a era da “Oligarquia Conservadora” sob o mandato do Ge-

neral José Antonio Páez49 e a terceira de 1848 a 1858, a etapa da “Oligarquia Liberal” liderada

pelo General José Tadeo Monagas50.

Os processos históricos da Venezuela do século XIX devem ser entendidos à luz dos mo-

vimentos de independência de finais do século XVIII. Tais movimentos ganharam força entre

1810 e 1811 e se prolongaram por treze anos de guerra civil. É um período marcado pela guerra e

pelos conflitos políticos, econômicos e sociais que assinalavam o fim dos tempos coloniais e o

anseio de criar uma república inspirada nos modelos liberais da Europa e dos Estados Unidos.

Em 19 de abril de 1810, um grupo de criollos cria a Junta Suprema de Gobierno Conser-

vadora de los Derechos de Fernando VII contra o afrancesado Capitão General, Vicente Empa-

ran. A Junta se conformou para agir em nome de Fernando VII e guardar os direitos da Monar-

quia contra a usurpação de José Bonaparte e, posteriormente, a criação da Regência. Mas nem

48 A Guerra Federal foi, depois da guerra de independência, o mais longo conflito civil nacional. Alguns historiado-res situam o começo da Guerra com os levantes ocorridos contra o governo de Julián Castro (1858), outros em 1859. Trata-se de uma prolongamento da Guerra de Independência no que diz respeito aos problemas sociais e políticos que não foram resolvidos depois da emancipação da Espanha e da separação da Grande Colômbia em 1830. 49 José Antonio PÁEZ (Curpa (Edo. Portuguesa) 13.6.1790 - Nova York (Estados Unidos) 6.5.1873). General em Chefe da Independência da Venezuela. Presidente da República por 3 vezes, Páez vai dominar a cena política vene-zuelana a partir da batalha de Carabobo, em 1821, até o Tratado de Coche, em 1863, quando acaba a Guerra Federal. Promoveu a separação da Venezuela da Grande Colômbia apoiado pela elite e as classes populares. 50 José Tadeo MONAGAS (Tamarindo de Amana, Maturín (Edo. Monagas) 28.10.1784 - Caracas, 18.11.1868). Caudilho militar e político. Em 1846, Monagas é eleito Presidente da República para o período 1847-1851 com o apoio de Páez. O acontecimento maior desse período será o assalto ao Congresso em Janeiro de 1848, o que determi-nou a aclamação de Monagas que submeteu o Congresso e impôs seu poder pessoal. Ao término de seu período pre-sidencial, é eleito presidente seu irmão José Gregorio Monagas (1851-1855). Para o seguinte período, José Tadeo retoma a presidência (1855 – 1859). Revoltas contra seu governo fazem com que renuncie em 1858 e parta para o exílio. Em 1864 volta para a Venezuela e dirige a chamada Revolución Azul e ocupa Caracas em junho de 1868; nesse ano convocam-se eleições, mas a pesar de ser o candidato favorito, ele morre antes de o processo acabar.

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todas as províncias se uniram a Caracas, como foi o caso de Coro, Maracaibo e Guyana. A atitu-

de da regência espanhola frente à Junta Suprema, a guerra na Espanha e as posições a favor da

independência cada vez mais radicalizadas, fizeram com que o Congresso da Venezuela procla-

masse a independência em 5 de julho de 1811. A independência das colônias hispano–americanas

quebrou o vínculo com a Península e “ao romper o vínculo com a Península Ibérica, também se

rompia o vínculo com o Rei, ou seja, com a legitimidade histórica”.51 O processo que se verificou

desde 1810 nos ex-territórios da Coroa espanhola foi o da quebra da legitimidade entre as cidades

(e suas elites) por causa da ausência de um rei legítimo. Assim, a soberania só podia residir no

povo. A crise de legitimidade converte-se em crise de autoridade, o que para alguns autores “é o

legado mais duradouro da independência em toda a América espanhola” 52.

Se em 1808, os pardos se uniram aos realistas contra o projeto de autonomia dos mantua-

nos, em 1810 foi possível vencer o governo colonial graças à ajuda das milícias pardas. Em troca,

os brancos criollos tomaram medidas favoráveis a este grupo e cederam no campo dos costumes

que segregavam os “pardos beneméritos”. O interesse dos pardos pelo projeto da Junta, manifes-

tou-se de diversas formas, sobretudo com donativos em dinheiro. Na vontade dos juntistas de

continuar aderindo o apoio dos “pardos beneméritos”, foram convocados “todos os homens li-

vres” para a eleição dos deputados do primeiro Congresso Geral de Venezuela. A condição esta-

belecida para votar não residia na “calidad” da pessoa, mas sim nas suas condições econômicas.

Era o modelo do sufrágio censitário. Só aqueles que possuíam “al menos dos mil pesos en bie-

nes” tinham direito ao voto, ficando fora os setores mais pobres e de pior “calidad” dos pardos,

que formavam a maior parte da população.53

Bolívar formava parte da aristocracia criolla que lutava pela Independência da Venezuela.

Mas o campo republicano, os brancos criollos não formavam um grupo com interesses homogê-

neos. Estavam divididos entre aqueles que procuravam obter maiores liberdades econômicas e

políticas sem para isso verem alterada a estrutura sócio-econômica da sociedade colonial (marca-

da por relações de produção baseadas no trabalho escravo) e que formavam a maioria no Con-

51 GUERRA François-Xavier. Modernidad e Independencias- Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Méxi-co: FCE-Mapfre, 1993, p. 51 52CARAVAGLIA, Juan Carlos. Os primórdios do processo de independência hispano-americano. in JANCSO, Its-van (org.). Op. Cit p. 234. 53 GÓMEZ, Alejandro E. Las revoluciones blanqueadoras: elites mulatas haitianas y "pardos beneméritos" venezola-nos, y su aspiración a la igualdad, 1789-1812, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Coloquios, 2005, [Em linha], no 19 de março de 2005. URL : http://nuevomundo.revues.org//index868.html

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gresso54 (sobre tudo os mantuanos), e aqueles que queriam uma verdadeira revolução, entre os

quais Bolívar e Miranda55. Nesses primeiros anos do processo de independência, as camadas li-

vres de cor mais pobres formavam parte ativa do movimento político. Na Sociedad Patriótica

criada por Miranda em 1810, permitia-se a entrada dos pretos livres, o que não foi bem visto pelo

setor mais conservador dos patriotas. Por outro lado, o ambiente de revolta promovido por esse

setor da população pode ser ilustrado pelas desordens públicas ocorridas no dia da inauguração

do Congresso Federal, distúrbios estes provocados por pardos que reivindicavam a igualdade

política56. No dia 5 de julho de 1811, o Congresso declarou a Independência. A população livre

de cor tinha pressionado para que a declaração fosse acompanhada por uma outra favorável à

cidadania de todos os pardos. Assim, a Constituição Federal de 1811 suprimia no seu capítulo

nove todas “…las leyes que imponían degradación civil a una parte de la población libre de Ve-

nezuela conocida hasta ahora bajo la denominación de pardos.” 57

Mas do lado realista, os argumentos da igualdade também eram utilizados para atrair os

pardos. Thibaud afirma que “de fato, a guerra de independência foi entre 1810 até o re-

estabelecimento do absolutismo em 1814, uma luta entre dois liberalismos igualitários” 58. Por

esse motivo, a maioria da população de cor permaneceu fiel ao Rei. A Constituição de Cadiz de

1812 declarava espanhóis “Todos los hombres libres nacidos y avecindados en los dominios de

las Españas, y los hijos de éstos” assim como “Los libertos desde que adquieran la libertad en las

Españas.”59 Desse modo, a constituição fazia realidade frente à antiga ambição coletiva de igual-

54 Desse grupo diz Juan Uslar Pietri: “Con el beneplácito de este grupo es que se realiza el 19 de abril, pero es tam-bién este grupo quien condena a Miranda cuando sus primeras intentonas libertadoras. Quieren independencia sin guerra, y libertad con pueblo esclavo y sumiso” USLAR PIETRI, Juan. Historia de la rebelión popular de 1814 (Contribución al estudio de la Historia de Venezuela). Madrid: Edime, 1962, p. 16. Citado por RIOS, Alicia. Op. Cit., p. 336. 55 Francisco de MIRANDA (Caracas 1750–Cadiz (Espanha) 1816) patriota venezuelano conhecido como o Precur-sor, lutou por mais de uma década pela independência das colônias espanholas da América. Chegou a chefiar o go-verno após a proclamação da independência da Venezuela, em 5 de julho de 1811. As rivalidades regionais e a leal-dade à coroa espanhola de ainda boa parte da população, associaram-se às conseqüências do terrível terremoto de 1812, quase que limitado às regiões insurgentes, que foi apresentado pelo clero como castigo divino aos rebeldes. Miranda acabou preso e deportado para Espanha, vindo a morrer em uma prisão de Cadiz. 56 GÓMEZ, Alejandro E. Las revoluciones blanqueadoras… 57 GIL FORTOUL, José. Historia Constitucional de Venezuela, I. Caracas: Ediciones Sales, 1964, p.411. Citado por GÓMEZ, Alejandro E. Idem 58 THIBAUD, Clément. Op. Cit., p. 317 59 CONSTITUCION DE CADIZ DE 1812, Capítulo II. Articulo 5. “De los españoles” Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/02438387547132507754491/index.htm

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dade no respeito ao Rei, enquanto os patriotas, mesmo outorgando a igualdade completa e o título

de cidadão, levavam à revolução.60

A Primeira República cai em julho de 1812, quando Miranda capitula ante o capitão espa-

nhol Domingo Monteverde. Dias mais tarde, ele será entregue ao exército realista por seus pró-

prios partidários, entre os quais, Bolívar. Alguns historiadores consideram essa Primeira Repúbli-

ca como uma série de oportunidades perdidas e sonhos frustrados por causa da desunião de seus

líderes, com uma política militar tão desastrosa quanto sua política econômica e com uma grande

incapacidade para conquistar a população ao seu ideário61. A vitória espanhola foi mais fraca do

que se pressupunha, e em 1813, o Oriente venezuelano cai nas mãos dos patriotas. Por sua vez,

Bolívar desde Nova Granada organiza o exército e parte para Caracas na sua Campaña Admira-

ble onde restabelece a República. Já nesses anos, os patriotas encontram-se confrontados com a

dificuldade de definir a nação. A formação administrativa colonial tinha desaparecido, dando

lugar a múltiplas cidades-estados, as municipalidades. Para alguns patriotas, entre eles Bolívar,

tratava-se politicamente de criar um povo adotando uma forma política nova. Mas para isso, era

necessário quebrar a organização municipal para formar uma Republica.62 Diferente do medo

causado pela revolta dos negros no Haiti, o exemplo haitiano vira, nesse novo processo, a refe-

rência legítima de uma revolta radical que finalmente irá se impor. Como assinala Thibaud,

depois de 1812, os patriotas acabaram com o costume de associar São Domingos à massacre dos brancos por Dessalines. A referencia haitiana deixava a esfera emocional onde os discursos catastróficos a tinham co-locado para integrar o domínio do pensamento racional. Essa metamorfo-se é devida a dois tipos de razoes: o melhor conhecimento dos aconteci-mentos na ilha e a transformação das ambições patriotas.”63

O nascimento de um novo povo que ultrapasse os pertencimentos tradicionais familiares e

locais só podia vir de um novo tipo de guerra, a guerra entre duas nações que ainda não existiam,

já que tanto os realistas quanto os patriotas eram, na sua maioria, criollos. Era importante radica-

lizar as posições, de forma a confrontar dois povos diferentes. Daí que nesse ano de 1813, Bolívar

60 THIBAUD, Idem. P. 318 61 CF.. IZARD, Miguel, Op. Cit., p. 31; LOMBARDI, John V., Decadencia y abolición de la esclavitud en Vene-zuela, 1820-1854, Caracas, 1971, Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca, 1971, pp. 27-29. 62 THIBAUD, Clément. Idem, p. 323. Seguimos a interessante analise do autor sobre a influencia da revolução haiti-ana nesse primeiro e decisivo esforço na virada da guerra e na definição duma nação. 63 THIBAUD, Clément. Idem, p. 323

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declare a “guerra a morte” aos espanhóis. No seu decreto ele faz a diferenciação aberta entre es-

ses dois povos, os espanhóis e os Americanos, declarando no final: “… Españoles y Canarios,

contad con la muerte, aun siendo indiferentes, si no obráis activamente en obsequio de la libertad

de América. Americanos, contad con la vida, aun cuando seáis culpables. 64 A adoção desse de-

creto foi o resultado dos debates do estado major de Bolívar (do qual formavam parte alguns hai-

tianos) sobre a discussão do “modelo haitiano de revolução”. A declaração final, retoma a decla-

ração de Dessalines, que no dia mesmo da Independência, ordenou a massacre dos franceses, sob

a consigna “Indépendance ou la mort... Que ces mots sacrés nous rallient, et qu'ils soient le signal

des combats et de notre réunion »65

Com o decreto da “guerra a morte”, os patriotas procuraram transformar o conflito civil

numa guerra nacional entre peninsulares e americanos. Segundo Thibaud, a adoção dessa nova

estratégia militar expressa tanto angústia quanto busca de um novo modelo. Era necessário criar

uma vítima expiatória de forma a evitar a dupla ameaça da guerra civil e da guerra das raças na

Venezuela. Esse “inimigo comum” permitiria o nascimento, por reação, de um coletivo, funda-

mento da representação política da nação moderna. A “guerra a morte” devia criar um novo povo,

não bem definido, mas além dos limites das municipalidades e indiferente às categorias construí-

das da raça e da cor66. Criava-se uma identidade nacional que não era racial nem local ou cultural,

mas política. Assim, a análise da situação do Haiti levou a uma mudança de percepção dos pro-

cessos da ilha: passou de ser vista como uma guerra racial para ser um exemplo político. Haiti

transformou-se em uma referência ao mesmo tempo ilícita e perigosa, mas decisiva na reflexão

dos patriotas sobre a adoção dos valores proclamados pela Revolução Francesa, isto é, os valores

modernos vividos numa sociedade cuja ordem sócio-racial era muito parecida com aquela da

América mestiça.67

O ano de 1814 é marcado pela queda da Segunda República. É também um ano de enfren-

tamentos especialmente cruéis entre o exército republicano e o exército realista comandado pelo

64 Decreto proclamado em Trujillo no 15 de Junho de 1813. Disponível em http://www.simon-bolivar.org/bolivar/guerra_a_muerte.html 65 Proclamação do Geral Dessalines declarando a Independência do Haiti, no 1º de Janeiro, de 1804. Disponível em http://bauges.univ-savoie.fr/ressourcesenligne/cours_sb/civi_l2/doc_civi_l2/declaration_ind_haiti.htm 66 THIBAUD, Clément. Idem, p. 324 67 THIBAUD, Clément. Op. Cit., p. 311; p. 325.

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general Boves68 que, na frente dos temidos llaneros69 e de soldados pardos e negros que tinham

composto suas filas, decreta o extermínio não só dos patriotas mais de todos os brancos. Ele con-

segue expulsar os patriotas. Com a queda da Segunda República (em Julho de 1814), o Liberta-

dor teve de se exilar novamente na Nova Granada, depois na Jamaica e finalmente no Haiti onde

consegue o apoio financeiro, militar e político do Presidente Alexandre Pétion. Isso lhe permite

desembarcar na Ilha de Margarita em maio de 1816, começando a terceira e definitiva etapa da

guerra. Desde essa época até 1819, houve uma crescente unidade entre os líderes patriotas. Bolí-

var consegue impor, não sem resistências, certa organização e, sobretudo, sua liderança. Em 1818

consegue incorporar os llaneros, agora comandados por Paez, no seu exército. Já em 1819, Bolí-

var tinha força suficiente para convocar um congresso que legitimasse o seu poder. O Congresso

de Angostura (1819), segundo congresso constituinte da Venezuela, teve como principal objetivo

elaborar a segunda Constituição da República. Igualmente fora redigida a Lei Fundamental da

República da Colômbia, que consagrou a união da Venezuela, a Nova Granada e o Equador, no-

meando Bolívar como Presidente provisional da Grande Colômbia.

Durante esses anos, entre o começo da guerra em 1812 até 1819, podemos situar os pri-

meiros intentos de criação de uma nação com a elaboração de uma rede de referências comuns

cujo objetivo era unir a população em torno de um projeto de libertação do país70. Os anos de

combate e as divisões internas levaram os chefes militares e políticos a ter consciência da hetero-

geneidade social e étnica da sociedade venezuelana. Por outro lado, a “invasão” espanhola é vista

como um ataque da metrópole a seus próprios filhos, já que a elite criolla considerava-se como

espanhola. Mas a partir de 1808, comprovam que sua qualidade de espanhóis, da qual estavam

orgulhosos, não era como pressupunham, fato este que ficou demonstrado com a reorganização

das instituições a partir da resistência à invasão napoleônica, onde eles ocuparam um lugar de

68José Tomás BOVES (Oviedo, 18 de setembro de 1782 -Urica, 5 de dezembro de 1814) foi um empresário e militar espanhol, chefe de tropas realistas que lutaram na independência. A lenda negra criada pela historiografia tradicional (Cf. neste capitulo a historiografia do século XIX) faz dele um homem conhecido por sua crueldade dentro e fora do campo de batalha. Morre no campo de Urica, em um enfrentamento com as tropas republicanas. 69 Los llaneros, habitantes da região dos Llanos, tinham fama de serem grandes e bárbaros guerreiros. É interessante a descrição que deles faz o Representante do Brasil na Venezuela na sua correspondência, reflexo da imagem da época: “(...) Partidas semelhantes a estas há poucos annos [sic] alarmaram toda a República, fazendo temer uma guerra de cores [sic]. Compõem-se geralmente de uma espécie de gaúchos que habitam os campos de Venezuela, gente mestiça, aguerrida, algum tanto feroz e propensa a pichagem (...)” Arquivo do Itamaraty, Missões Diplomáti-cas Brasileiras, Ofícios 1842-1846, Caracas, 15 de novembro de 1844. 70 HEBRARD, Véronique. La construction d'une mémoire au Venezuela : du bon usage de l'oubli (1810-1830), in Histoire et Sociétés de l'Amérique Latine, Revue d'histoire, n° 2, mai 1994, pp 41-63. Paris, Université Paris VII-Denis Diderot. Disponível em http://www.univ-paris-diderot.fr/hsal/hsal94/vh94.html

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subordinados71. Os criollos viveram a “traição” da invasão como uma ruptura entre a Espanha e a

Venezuela, esta última querendo construir uma nova sociedade livre segundo os ideais modernos,

onde são reconhecidos os direitos dos cidadãos. A igualdade política e social só poderá ser criada

pelas leis e pela constituição, únicas capazes de minimizar as desigualdades étnicas da população.

O projeto de construção da nação nesses anos é baseado na recusa do passado e da memória pré-

colombiana e colonial. “A memória pré-colombiana leva à lembrança de um homem selvagem,

sem cultura, pagão e não como no Peru, o Chile ou o México, a uma cultura prestigiosa da qual o

país poderia se apropriar. No que diz respeito à memória colonial, corresponde sobretudo a uma

ruptura de natureza política” 72

Confirmado como chefe supremo, Bolívar começou a reconquista da Venezuela desde a

Colômbia. A campanha bem sucedida o levou a derrotar na Batalha de Carabobo (24 de junho de

1821) o exército realista espanhol73. Enquanto isso, em maio do mesmo ano, o Congreso Consti-

tuyente de la Gran Colombia reunido em Cúcuta organizou as estruturas constitucionais, políti-

cas, sociais, econômicas e culturais da Grande Colômbia, consolidando a democracia representa-

tiva na República da Colômbia e a juridicidade do novo Estado Nacional. No entanto, uma das

características dos nove anos que durou o sonho da Colômbia de Bolívar foi que as relações entre

os países componentes não foram cordiais. Na Venezuela, as elites consideraram que a constitui-

ção elaborada pelo Congresso de Cúcuta era muito centralizada e não tomava conta dos interesses

venezuelanos74. Os diferentes setores das elites e seus caudilhos, mesmo reconhecendo a autori-

dade de Bolívar, tentaram impor seu poder. Na Venezuela, o general José Antonio Paez conse-

guiu substituir Bolívar como primeiro caudilho.

Os anos de 1823 a 1826 foram ocupados pela preparação e apóio do exército de Bolívar

para libertar o Perú assim como na organização e administração da Grande Colômbia. Em 1826,

Paez, que tinha consolidado seu poder durante esses anos, foi proclamado pelo Senado como

Comandante Geral do Departamento da Venezuela, o que provocou um conflito com a municipa-

lidade de Caracas por causa do recrutamento de soldados. Por essa razão, ele foi chamado para

responder às acusações em Bogotá. Mas a municipalidade de Valencia não aceitou a decisão e se

71 Cf. STRAKA, Tomás. Sobre la conciencia de los criollos. Notas para una historia de las ideas en Nuestra América in Mañongo, No. 23, Año XII, Vol. XII, Julio-Diciembre 2004, pp. 115- 116. 72 HEBRARD, Véronique. Op. Cit. 73 As tropas espanholas retiraram-se definitivamente no mês de novembro de 1823, quando a fortaleza de Puerto Cabello foi destruída por Paez, marcando o final da presença espanhola na Venezuela. 74 IZARD, Miguel. Op. Cit., p. 35.

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rebelou, apoiando Paez que retoma seu cargo, convertendo-se no Chefe de fato de Venezuela,

mesmo mantendo sua lealdade a Bolívar. Mas sua atitude rebelde tem conotações separatistas.

Para conservar a unidade, Bolívar é obrigado a se apresentar na Venezuela em 1827, onde mos-

trou seu apoio a Paez e o defendeu de seus adversários.

Diante dos problemas internos da República, a caótica situação econômica e administrati-

va e os temores de invasões externas, é convocada em Ocaña uma Gran Convención da Colômbia

em 1828. Enfrentam-se as duas posições que dividiam a Grande Colômbia: a linha centralista

com um poder executivo poderoso, liderada por Bolívar e a linha federalista liderada pelo vice-

presidente Santander75 que encontrou o apoio da elite venezuelana. A Convenção foi dissolvida

sem chegar a acordo nenhum. Para responder à situação de anarquia, nesse mesmo ano, Bolívar é

proclamado Libertador Presidente com poderes ditatoriais. De 1829 a 1830, a anarquia e a deca-

dência física de Bolívar levaram seus líderes colombianos a procurar novas formas de governo.

No final de 1829, Paez defende a forma republicana de governo e a separação da Venezuela de

Nova Granada e de Quito. Em dezembro, uma assembléia reunida em Valencia solicitou a sepa-

ração definitiva da Grande Colômbia e exigiu que Bolívar não retornasse à Venezuela. Em 1830,

é reunido um Congresso Constituinte em Bogotá, mas Paez e os dirigentes venezuelanos, por sua

vez, tinham convocado outro Congresso Constituinte unicamente venezuelano. A separação esta-

va consumada.

Retomando os comentários de Miguel Izard, podemos considerar que o fracasso da Gran-

de Colômbia deveu-se, dentre outros fatores, a ela não ter conseguido levantar uma economia

sólida por causa das constantes guerras de independência: “Como ha señalado Bushnell, la parti-

cipación de Colombia en las guerras por la independencia en Latinoamérica fue muy superior a lo

que le correspondía según sus recursos, lo que ocasionó una bancarrota permanente que hizo in-

viable tanto el liberalismo de Santander como la dictadura bolivariana” 76.

75 Francisco de Paula SANTANDER (Cúcuta 1792 -Bogotá 1840) Político colombiano. Em 1817 une-se à ofensiva definitiva de Bolívar e colabora na travessia dos Andes, que finalizou com a derrota dos realistas em Boyacá. Ele vira vice-presidente de Nova Granada. Em 1826, confirma-se a eleição de Bolívar e Santander, mas aos poucos os dois vão se distanciando por causa de diferenças ideológicas e políticas. No mês de setembro de 1828, ocorre um atentado contra Bolívar, em que Santander esteve envolvido e por causa do qual foi exilado. Depois da morte de Bolívar, Santander foi eleito Presidente da Nova Granada (1832-1836). Até sua morte, dirigiu o Congresso e a oposi-ção a Márquez, seu sucessor. 76 IZARD, Miguel. Op. Cit., p. 38

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Com a criação da Grande Colômbia, a memória venezuelana sofre uma virada em dois

pontos: aquele do esquecimento de sua experiência e obra política em favor da nova nação que

absorve as vitórias venezuelanas de antes de sua formação; e o da valorização da guerra e dos

militares por sobre a ação dos políticos. Assim, os colombianos que proclamaram uma constitui-

ção centralista, devem esquecer a constituição de 1811, federalista, porque ela não convinha ao

novo povo. Por outra parte, a nação é construída sobre idéias universais a favor das quais comba-

tem os soldados.

Sem uma identidade própria, são essas idéias que unem à comunidade.77 Estabeleceu-se

uma memória seletiva do passado, onde são lembrados os horrores da conquista e a história dos

índios assim como a história mais recente das guerras de independência, mas são esquecidos os

três séculos do passado espanhol. Isto permite legitimar a independência a partir de considerações

internas, isto é, o que motivou o processo foi a existência de um território e uma população supe-

rior e ao mesmo tempo permitiu à elite criolla apagar sua participação com o sistema “despótico”

para conseguir a confiança do povo. O esquecimento tem a ver sobre tudo com as estruturas do

Império e não com os laços de sangue, a língua e a religião que são reivindicadas.78

A partir de 1826 “a vontade de esquecimento volta-se contra a Colômbia. Com a afirma-

ção dos departamentos da Antigua Venezuela de se separar da Grande Colômbia, existe um mo-

mento de repensar a república e paralelamente uma volta às origens do movimento de emancipa-

ção. Religa-se com os pais fundadores, com o passado venezuelano” 79 Em 1830 a preparação de

uma nova constituição marca a ruptura e o retorno do político sobre o militar. Ele tem como mis-

são permitir o esquecimento dos horrores da guerra. É necessário passar um véu sobre essa longa

noite de sofrimentos anterior a novembro de 1830 e posterior a 1820. Assim, a Venezuela de

1930 baseia sua unidade sobre a memória das desgraças compartilhadas, os heróis da indepen-

dência e suas esperanças no futuro. 80

77 HEBRARD, Véronique. La construction d'une mémoire au Venezuela … Disponível em http://www.univ-paris-diderot.fr/hsal/hsal94/vh94.html 78 HEBRARD, Véronique. Idem 79 Idem 80 HEBRARD, Véronique. Op.Cit.

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Entre os historiadores venezuelanos nota-se os debates sobre o término da “Oligarquía

conservadora” 81, porque, embora não tenha governado o tempo todo, o que realmente marcou

esses dezoito anos foi a ditadura de José Antonio Paez. Mas, a falta de uma discussão mais apro-

fundada sobre o tema, faz com que o término continue sendo usado para definir o período. Para

historiadores como Pino Iturrieta, a elite que acompanhou Paez nesses anos de construção e cria-

ção do país longe do sonho bolivariano, não tinha nada de conservadora, muito pelo contrário82.

O “partido” criado por Paez com o objetivo de apoiá-lo no seu governo foi marcadamente civil,

composto de homens ricos, membros das grandes famílias, comerciantes e banqueiros. Eles eram,

por sua vez, anti-bolivarianos já que lutaram junto com Paez contra o poder de Bolívar. Eles fo-

ram se conformando gradualmente como grupo a partir de 1830.

Em 1830, o Congresso Constituinte de Valencia redige uma constituição semi-federalista

com eleições indiretas de sufrágio limitado83. Paez é eleito presidente para o período 1830-1834.

Nesses anos ele estabilizou militarmente o país, ameaçado pelos dissidentes internos, especial-

mente o caudilho José Tadeo Monagas em Oriente, que com o passar do tempo acabaria se im-

pondo. Sua segunda tarefa foi a criação de uma administração estatal e uma burocracia eficiente

da qual nasceu a oligarquia conservadora84. Eles introduziram, através da implementação de no-

vas leis, duas novidades que se demarcam das condutas e conceitos da sociedade tradicional: a

legalização da usura e o distanciamento estatal frente aos negócios privados. Essas leis vão de

encontro à orientação que se pretende dar ao Estado, isto é, a substituição do Estado pelos indiví-

81 Lombardi assinala: “Aunque el nombre “Oligarquía conservadora” tuvo su origen en los primeros años del siglo XIX, fue consagrado en la historiografía venezolana por medio de los escritos de autores como José Gil Fortoul en su Historia. Es grande el descontento con respecto a ese nombre, así como también al de “Oligarquía liberal”. Pero hasta que no aparezca un análisis bien documentado sobre el surgimiento de los partidos políticos en Venezuela, los nombres tradicionales tienen que bastar. Para un breve examen de ese problema, véase la “Presentación” del Pensa-miento político venezolano del siglo XIX, Caracas, Publicaciones de la Presidencia de la República, 1961, X, pp. 9-16” LOMBARDI, John V. Op. Cit. p, 36, nota 20 82 PINO ITURRIETA, Elías, Caballeros, clérigos y hombres de Armas: o por qué los ciudadanos no existen en Ve-nezuela. In: Ciudadanía y ser ciudadano. Primer encuentro venezolano-francés, Caracas: Coedición Instituto de Altos Estudios de América Latina, Universidad Simón Bolívar y Embajada de Francia en Venezuela, 2000, p. 47. 83 Sobre o processo de elaboração da Constituição de 1830 e os ideais de nação implícitos nela, ver HEBRARD, Véronique, Op. Cit., pp. 343-401 84 Os historiadores venezuelanos têm se interrogado acerca das origens dessa elite conservadora, mas até hoje não existe uma analise mais profunda sobre o tema. Para o caso do Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho no seu trabalho A construção da ordem, faz um estudo aprofundado da elite brasileira da época da independência e ressalta a falta de trabalhos parecidos para a América Latina: “na medida do possível, será feita comparação com outros paí-ses, particularmente com os da América Latina, embora para o último caso os estudos disponíveis sejam raros”. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 21.

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duos na condução de um novo tipo de Nação, o que quebra com o centralismo espanhol e com a

orientação mesma de Bolívar.

Os conservadores estão contra o paternalismo governamental e consideram que o Estado

deve se orientar na preparação de uma estrutura que facilite a ação dos indivíduos tendo em vista

a criação de uma sociedade produtiva e competitiva. O seu papel seria assim facilitar o caminho

dos investidores e vigiar o desenvolvimento das transações. Nesse sentido, promulgou-se a Lei de

Liberdade de contratos, mais conhecida como a Lei do 10 de abril de 1834 completada mais tar-

de pela Lei de “Espera y quita”. Segundo a primeira lei, todas as operações dependem da vontade

dos que contratam, tanto no prazo quanto nas taxas. Caso um dos contratantes não cumpra com o

contrato, os credores podem participar dos remates. A segunda favorecia aos prestamistas lhes

dando vantagens na hora de adquirir os imóveis do devedor85.

A lei teve o efeito esperado durante os anos 1830 e os fazendeiros conseguiram levantar

fazendas arruinadas pela guerra, beneficiando-se da demanda crescente do café e convertendo as

antigas fazendas de cacau ao novo cultivo. O mandato de Paez acabou com resultados aparente-

mente positivos: um país pacificado e uma república organizada com um visível crescimento e-

conômico. Nas eleições de 1834, um civil foi eleito, o Dr. José Maria Vargas86 que aceitou a pre-

sidência contra sua vontade. Seu governo foi fraco e não soube enfrentar as forças de uma rebeli-

ão militar que almejava a reforma da constituição. Foi deposto e teve de se exilar. Mas, caudilho

incontestável, Paez defendeu o governo legítimo e trouxe Vargas de volta. No entanto, sua inter-

venção reforçou seu poder, mostrando tanto para os militares quanto para a elite comercial e fi-

nanceira que ele continuava levando o jogo político e militar. Mesmo com o apoio de Paez, Var-

gas renuncia à presidência em 1836 sendo substituído pelo general Carlos Soublette87. Nesse pe-

85 PINO ITURRIETA, Elias. Op. Cit. pp. 49-50. 86 José Maria VARGAS: La Guaira (Distrito Federal) 10.3.1786 – Nova York (Estados Unidos) 13.7.1854. Médico, cientista, professor e reitor da Universidade de Caracas, político, escritor e presidente da Venezuela. Vargas partici-pou ativamente no Congresso constituinte de 1830. Foi reconhecido entre seus contemporâneos como homem de caráter firme e de grande sabedoria. Por isso, pressionado pela classe intelectual e a opinião pública, apresenta-se como candidato no segundo período presidencial (1835-1839). Foi eleito presidente em 1834. No dia 8 de julho de 1835 estourou a chamada Revolução das Reformas que o depõe , assim ele sai para o exílio. Paez assume a direção do exército constitucional e repõe Vargas como presidente onde permanecerá até abril de 1836 quando renuncia para se dedicar à educação. No mês de agosto de 1853, doente, viaja a Nova York onde morre. 87 Carlos SOUBLETTE: La Guaira (Distrito Federal) 15.12.1789-Caracas, 11.2.1870. General em Chefe do Exército durante a Guerra de Independência e os anos seguintes. Político, diplomático e Presidente da República (1843-1847). Em maio de 1820, é nomeado vice-presidente interino de Venezuela para dirigir a guerra em oriente. Em 1828, a-companha Bolívar como secretário geral em Bucaramanga (Colômbia). Em Janeiro de 1830, com a separação da Venezuela da República de Colômbia, é nomeado secretario de Guerra e Marinha da Venezuela. Em 1835 e 1836, foi

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ríodo, o país continua a crescer economicamente graças ao café, com isso a oligarquia conserva-

dora consolida sua posição.

Em 1838, Paez é eleito novamente presidente88. Mas esse segundo período foi bastante di-

ferente do primeiro: caíram os preços do café, o que levou ao endividamento dos fazendeiros. Os

credores não redimiram os créditos nem renegociaram os empréstimos, assim os fazendeiros pas-

saram a ser um grupo perseguido que encontrou apoio no recém criado Partido Liberal (1840)

formado por antigos patriotas, fazendeiros descontentes e reformistas que se uniram para reagir à

decadência econômica do país89. Em 1843, Carlos Soublette retorna à presidência, mas seu go-

verno teve de enfrentar as tentativas de rebeliões causadas pelos fazendeiros. A situação econô-

mica tornava-se mais difícil, mas mesmo assim o governo não facilitou a saída da crise dos mais

afetados. A violência aumenta e num ambiente muito tenso é o palco das eleições de 1847. Páez

apoiou a candidatura do caudilho de Oriente José Tadeo Monagas, cálculo que não deu certo para

o grupo conservador. Cedo ele mostrou suas simpatias pelos liberais e em 1848 ele dissolve o

Congresso ajudado pelas tropas federais. O Congresso enfraquecido aceitou sem resistência o seu

governo.

Monagas, imagem da oligarquia conservadora, estava disposto a dirigir o país segundo

seus interesses. Desde o começo, tenta eliminar a influência de Paez e seus seguidores, o que faz,

substituindo, nos diferentes postos, os antigos conservadores por homens liberais até então à

margem das questões públicas. A partir de 1848, ele elimina sistematicamente as leis do laisser

faire, devolvendo ao Estado a arbitragem das questões comerciais e financeiras90. Já nesse ano,

Paez declara a guerra ao governo com o objetivo de restaurar a constituição, mas o seu prestígio

militar tinha decaído muito e foi derrotado no final de 1848.

Em 1851, a elite conservadora tinha sido totalmente substituída pela elite liberal e Paez

estava no exílio. Mesmo assim, seus adversários conseguiam criar um ambiente de agitação polí-

tica. Além disso, a situação econômica era precária com a queda do café e o problema das dividas

enviado à Inglaterra e à Espanha para pedir o reconhecimento da independência da Venezuela. Em 1837, é eleito vice-presidente da Venezuela e assume a presidência depois da renúncia de Vargas até 1839. É eleito presidente para o período 1843-1847. Depois do triunfo da Federação, apartou-se da vida pública para voltar pouco tempo antes de sua morte no governo de José Ruperto Monagas (1869-1870) 88 Sir Robert Ker Porter, enviado do governo inglês na Venezuela, tem comentários muito agudos sobre a política do regime de Páez. Ver PORTER, Robert Ker. Diario de un diplomático británico en Venezuela: 1825-1842. Cara-cas: Fundación Polar, 1997. 89 LOMBARDI, John V. Op. Cit. , p. 45-46 90 PINO ITURRIETA, Elías. Op. Cit., p. 50

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dos fazendeiros, apesar da legislação, continuava o mesmo. Os próprios partidários começavam a

tomar distâncias. Nas eleições de 1852, apoiou a candidatura de seu irmão José Gregório Mona-

gas91. Durante sua gestão ele teve de enfrentar várias rebeliões dos paecistas e dos conservadores.

Distanciou-se politicamente de seu irmão. A situação econômica parecia não encontrar solução e

liberais importantes começaram a migrar para a oposição. A medida mais importante tomada pelo

seu governo foi a abolição definitiva da escravidão em março de 1854. Quando José Gregório

entregou a presidência para seu irmão José Tadeo em 1855, a Venezuela já estava fortemente

dividida. Uma rebelião liderada por um grupo de liberais e conservadores derrotou o governo de

Monagas, começando assim uma nova e desastrosa guerra civil.

Frente ao processo de independência venezuelano, um dos diversos vivenciados na Amé-

rica Hispânica, insere-se o caso brasileiro. Ele se destaca por ser paradigmático já que conseguiu

manter sua unidade territorial, política e administrativa, evitando a fragmentação testemunhada

pelas ex-colônias espanholas. Ao mesmo tempo não apresentou caráter tão violento e devastador

conforme aqueles observados durante os anos das sucessivas guerras venezuelanas.92

O processo de independência brasileiro é alavancado a partir de 1808 com a chegada da

família real portuguesa no Brasil. Esta cronologia reforça o que os historiadores têm denominado

como “inversão brasileira” 93, pois seu caráter teria deixado o Reino de Portugal em um segundo

plano. De acordo com Carvalho, durante a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, o Bra-

sil não existia “nem política, nem econômica, nem culturalmente. Existia um arquipélago de capi-

tanias... que ignoravam com freqüência a existência umas de outras. No máximo tinha se conse-

91 José Gregorio Monagas. Aragua de Barcelona (Edo. Anzoátegui) 4.5.1795 - Maracaibo (Edo. Zulia) 15.7.1858. General da Independência; presidente da República (1851-1855). Lutou junto com seu irmão José Tadeo do lado patriota. Em 1831 os irmãos Monagas defenderam por um tempo no Oriente a causa da Grande Colômbia. Em 1835, participou da Revolución de las Reformas e lutou contra as forças constitucionais do general Páez. Em 1844, o pre-sidente Carlos Soublette nomeou José Gregorio comandante de armas de Barcelona até 1848. Com o apoio de seu irmão, foi eleito presidente em 1851. A medida de governo mais importante como presidente foi a abolição da escra-vidão na Venezuela em 1854. Em 1855, entregou a presidência ao seu irmão e retirou-se à vida privada em Barcelo-na. José Tadeo foi destituído em março de 1858. O general José Gregorio Monagas foi preso pelas novas autoridades e enviado a Maracaibo onde morreu.

92 Em linhas gerais, a historiografia brasileira sobre a independência pauta-se em duas visões: a de que a indepen-dência representou de fato uma ruptura com o cenário colonial e aquela de que tal processo teria figurado uma per-manência das estruturas coloniais. Sobre a independência na historiografia brasileira Cf. COSTA, Wilma Peres. A independência na historiografia brasileira in JANCSO, Itsvan (org.). Independência, história e historiografia. São Paulo: Ed. HUCITEC, 2005, pp. 53-118. 93 MONTEIRO, H.M. Da independência à vitória da ordem. in: LINHARES, Maria Yedda (org.). Historia geral do Brasil. 9º ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 129.

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guido uma precária integração de regiões” 94. Assim, na véspera da independência em 1822, , não

existia entre os grupos locais da população aquilo que se poderia chamar de um sentido de identi-

dade brasileira. A crise produzida em Portugal pela partida da família Real, a miséria do país, a

tutela britânica e a primazia brasileira95, unidas ao peso adquirido pelas idéias liberais estão na

origem do movimento revolucionário que conduziu à Revolução Constitucionalista do Porto de

1820. Os revolucionários pediam a convocação de uma assembléia constituinte, as Cortes, com

intuito de acabar com o poder absolutista do Rei.

Portugueses e brasileiros no Brasil, interessados em limitar o poder do rei, aceitam a

notícia com agrado. Consideravam a assembléia constituinte a melhor maneira de limitar o

absolutismo. No entanto, o fato das Cortes estarem reunidas em Lisboa nfazia com que

houvessem dois centros de poder: Lisboa “que começava a se considerar como a vontade do povo

superior ao Rei”96 e o Rio de Janeiro, onde estavam o rei e os ministros. Tal situaçao nao podia se

manter por muito tempo, assim se discutia o que seria o mais conveniente: o retorno do rei ou o

do príncipe herdeiro? Este debate, unido a um certo sentimento antimonárquico contribui ,para

que as províncias aderissem a Lisboa. Mas, aos poucos, as Cortes foram mostrando a forte

dualidade que as dominava. Por um lado a imposição do liberalismo e o desejo de acabar com o

antigo Regimen; por outro o desejo de restabelecer o estatuto subordinado do Brasil, este último

era inaceitável para a maioria dos setores politicos e econômicos articulados a partir da

implementaçao da monarquia no Rio de Janeiro, pois consideravam que a autonomia atingida

deveria ser de caráter definitivo.

Em 1821, as Cortes tomam medidas para o retorno do rei para Portugal. Em abril desse

mesmo ano, ele se vê realmente obrigado a retornar, nomeando seu filho príncipe-regente antes

do regresso. De acordo com Monteiro foram vitoriosos os interesses:

da burguesia liberal e “revolucionária” de Portugal e, de certa forma, os elementos mais avançados no Brasil, que continuavam a ver no rei um impedimento para a emancipaçao do país. Perdia a facçao portuguesa residente no Rio de Janeiro que por seu enraizamento no país nao estava

94 CARVALHO, José Murilo de. Brasil. Naciones marginadas in ANNINO, A; CASTRO LEIVA, L.; GUERRA, F.-X. De los imperios a las naciones: Iberoamérica. Forum Internacional des Sciences Humaines, Zaragoza: Ibercaja, Obra cultural, 1994. p. 401-402. 95 MONTEIRO, Op. Cit. p. 130. 96 MONTEIRO, Idem.

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disposta ou não podia , embarcar de volta ao reino e os moderados brasileiros, temerosos da República e da fragmentaçao politica do país97.

As Cortes se mostram reacionárias com relação ao Brasil e continuam, através de diferen-

tes atos legislativos, querendo suprimir sua autonomia, perante a rejeição da maior parte da popu-

lação brasileira. O movimento para reter o príncipe regente no Brasil se torna cada vez mais forte.

Portugal, por sua vez, estabelece a estratégia de negociar separadamente com as diferentes pro-

víncias de forma a evitar sua unificação num estado sob a autoridade do príncipe, o que lhe per-

mitiria reagir à política portuguesa. Entretanto, somente São Paulo, com José Bonifácio de An-

drada à frente se mostrava interessado na união com Rio de Janeiro sob o comando do príncipe

Pedro.

No final de 1821 a situação torna-se mais tensa devido à ordem de regresso do príncipe e

ao envio de tropas por parte de Portugal. Paulistas e fluminenses se articulam para conseguir a

permanência do príncipe no Brasil em contrapartida à política de Lisboa. Consideravam que uma

monarquia forte, representando a continuidade, era a mais importante garantia de ordem frente às

forças desagregadoras do Brasil, tanto aquelas das províncias, quanto as da pequena burguesia e

do povo. Já para o Príncipe, este regime fortalecido representava a autonomia frente às Cortes.

Finalmente a ação de paulistas e fluminenses culminou com a petição pública ao príncipe regente,

pelo Senado, de permanecer no Rio: a petição do “Fico”, assim conhecida pela resposta do prín-

cipe. Ele nomeia um novo Gabinete presidido por José Bonifácio, um monarquista liberal e mo-

derado. As reações militares não se fazem esperar. Mas o príncipe consegue a adesão de Minas

Gerais à união de Rio de Janeiro e São Paulo, o que garante uma sólida base de apoio para o re-

gente fornecendo homens e recursos para o novo Estado.

A formação desse forte bloco em torno do príncipe é analisada como “uma transação entre

o elemento nacional avançado, embora não radical com aquele reacionário, representado no caso

pelo forte “partido português”. Tais grupos, liberal e conservador, mantinham sua aliança em

forma conjuntural com intuito de conquistar a independência, ao mesmo tempo, evitar uma revo-

lução “98. Porém, esses grupos defendiam diferentes projetos de país, o que acabaria criando ten-

sões e oposições ao grupo dominante - liderado por José Bonifácio. É nesse contexto que o prín-

cipe viaja a São Paulo a fim de pacificar a província. Ao longo da viagem ele se decide pela au-

97 MONTEIRO, Idem. p. 131. 98 Monteiro citando a Oliveira Lima. Cf. MONTEIRO, Idem. p. 134.

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tonomia plena do Brasil, declarando em 7 de setembro de 1822 o país livre das Cortes, procla-

mando o conhecido “Independência ou Morte”. Iniciava-se assim a luta contra o Portugal pela

autonomia e contra os grupos mais radicais da independência, espalhados pelo interior do Brasil.

Nesse contexto, luta-se na Bahia por mais de três anos, o que consolida sucessivamente a posição

do regente em Alagoas, Sergipe, Ceará, Piauí, no Maranhão, e finalmente no Grão-Pará, comple-

tando-se a luta pela independência com a união em torno do Rio de Janeiro de todas as provín-

cias, apagando os movimentos autonomistas ou de opção pelo Portugal. Foi nesse clima de re-

pressão que Pedro I foi coroado o imperador em dezembro de 1822.

Como temos visto, se a idéia do Brasil não existia nos grupos locais e na população em

geral, existia, sim, nos políticos que conduziram o processo de independência, dos quais José

Bonifácio foi um grande expoente. Ele sonhava com a construção de um grande império na Amé-

rica e toda sua ação durante o processo de independência foi dirigida para atingir tal objetivo.

Como afirma José Murilo de Carvalho,

Era el mismo ideal de Bolívar que se torno viable em Brasil por la exis-tência de otros muchos políticos, procedentes de todas las províncias con la misma postura de José Bonifácio. La mayoría de ellos no compartía la preocupación de José Bonifacio por la cuestión de la esclavitud, pero apoyaba fuertemente el mantenimiento de la unidad del país. Para los in-tereses esclavistas, el mantenimiento de la unidad podía ser, a corto pla-zo, benéfico, puesto que evitaba posibles medidas abolicionistas en re-giones de pequeña población esclava y preservaba el orden social.99

Cabe ressaltar que, no caso brasileiro, esse unitarismo imperial viu-se ameaçado, sobretu-

do, depois dos anos 1830 por conta da eclosão de diversas revoltas regionais que questionavam –

em linhas gerais - duas premissas básicas: o governo monárquico e o desejo de um território uni-

ficado. Assim, observamos de Norte a Sul do Império a emergência de movimentos opositores

como: a revolta da Cabanagem (Grão-Pará, 1831-1836); a guerra dos Farrapos (Região Sul,

1835); a revolta da Balaiada (MA-PI; 1839-1841), da Sabinada (BA, 1837-1838) assim como a

Praieira (PE, 1848-1849). Sem nos determos nos pormenores de cada um desses movimentos, o

que importa é sinalizar que eles marcam a formação de uma nova cultura política ao trazerem

para o centro dos debates sobre Estado e nação sujeitos políticos ligados ás camadas populares.

Apesar desses movimentos, a decisão de manter a monarquia foi reiterada em 1831, depois da

99 CARVALHO, José Murilo de. Brasil. Naciones marginadas… p. 403

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renúncia forçada do primeiro imperador, que aclamou como substituto seu filho, Pedro II de cin-

co anos.

Um primeiro aspecto que há de se ter em conta em relação à produção historiográfica so-

bre o século XIX venezuelano é que a literatura vem dividindo claramente o século em duas eta-

pas: por um lado, o tempo glorioso da independência e os anos dourados da formação da Repú-

blica que desaparecem com a desintegração da Grande Colômbia e a morte de Bolívar em 1830; e

por outro, os anos posteriores, Como bem aponta o historiador Pino Iturrieta, para muitos histori-

adores venezuelanos de diferentes tendências100, o século XIX venezuelano depois de 1830 “é

tempo de escuridão e significou um retrocesso frente às conquistas da Independência” 101. Para

efeito de nossa análise, vamos manter esse recorte, porque além da diversa visão historiográfica

sobre as duas épocas, é interessante notar a abundante produção na América Latina toda, de obras

sobre a independência, o que conforma uma de suas características. Como aponta o historiador

francês Pierre Chaunu, é um dado significativo que entre 1950 e 1960, mais de 30% da produção

bibliográfica no continente tenha se centrado sobre esse tema102.

Na Venezuela, essa produção reflete uma perspectiva tradicional e pouco problematizada

que oferece uma visão polarizada da Independência na qual se exaltam às figuras heróicas, negli-

genciando outros setores sociais que participaram do conflito.

“A historiografia venezuelana construiu uma história monumental e antiquada e não uma história crítica do período da emancipação. Sua personagem principal, o Libertador Simón Bolívar, tem adquirido umas dimensões heróicas atempo-rais que respondem perfeitamente às necessidades de uma sociedade que não quer afrontar nem aprofundar nas contradições e problemas de seu devir histó-rico”. 103

Os primeiros estudos sobre a independência, já a partir de 1840, encontraram muitas difi-

culdades para enxergar o conflito como uma guerra civil. O caráter do conflito é uma das discus-

100 Historiadores positivistas como Pedro Manuel Arcaya, José Gil Fortoul ou Laureano Vallenilla Lanz, assim como historiadores de gerações posteriores como Augusto Mijares, Mariano Picón Salas, Vicente Lecuna, Carlos Irazábal, Salcedo Bastardo, Guillermo Morón. 101 PINO ITURRIETA, Elías. Venezuela sin el siglo XIX in ALEMÁN, Carmen Elena; FERNÁNDEZ, Fernando. (Comp.) II Simposio Venezuela: Tradición en la Modernidad. Los rostros de la identidad. Caracas, Equinoccio. Ediciones de la Universidad Simón Bolívar, 200, p. 161 102 CHAUNU, Pierre. Interprétation de l’indépendance de l’Amérique Latine in Bulletin de la Faculté de Lettres de Strasbourg, 3, 1963, p. 5. Citado por HEBRARD, Véronique. A l'écoute du conflit: historiographie d'une guerre Venezuela (1812-1823) in http://www.univ-paris-diderot.fr/hsal/hsal972/vh97-2.html 103 RIOS, Alicia. Los años de 1810 a 1830 en la historiografía venezolana… p. 316.

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sões ainda presentes na historiografia venezuelana104. A preocupação de muitos autores foi cons-

truir a idéia da guerra como mito fundador da nação; uma história de todos, por isso a importân-

cia de caracterizá-la como “revolta popular” e não como um conflito civil liderado por setores das

elites. Trata-se de uma historiografia que exaltou os heróis e enfatizou o aspecto militar deste

processo.

No começo do século XX, alguns autores marcaram certa distância dessa visão histórica,

porém ficaram estritamente limitados aos temas por eles tratados. Entre eles, destaca-se a obra de

José Gil Fortoul, Historia Constitucional de Venezuela105 que questiona a história tão somente

centrada nos aspectos militares e propõe o estudo da evolução legislativa, intelectual e econômica

da Venezuela. Ele insiste sobre o caráter civil da guerra e suas conseqüências para a restauração

das instituições venezuelanas, mas concentra-se excessivamente na história constitucional, dei-

xando de lado as interpretações históricas mais complexas. No entanto, mesmo apresentando es-

sas limitações, a Historia Constitucional de Venezuela constitui obra de referência. Laureano

Vallenilla Lanz106 foi o primeiro historiador a fazer uma leitura diferente do conflito no seu en-

saio La guerra de nuestra independencia fue una guerra civil 107. Sua tese foi uma grande revolu-

ção porque, como assinala o historiador Manuel Caballero, ela obrigou a refletir “sobre a condi-

ção mesma do venezuelano, e sua história, perturbando os velhos costumes mentais, as idéias

fossilizadas” 108. Sua concepção da história o levou a dar grande importância aos elementos geo-

gráficos e aos fatores culturais e tradicionais, fazendo da guerra da independência a conseqüência

da evolução da época colonial. Mas a originalidade de seu trabalho é o rompimento com a histo-

riografia anterior, sobretudo através da utilização de fontes. Assim, ele se distancia das práticas

tradicionais da historiografia venezuelana, isto é, aquelas de pouca utilização das fontes primá-

rias. Desde meados do século XIX, o governo e as instituições como a Academia Nacional de la

104 Cf. RIOS, Alicia. Op. Cit. e suas reflexões sobre o caráter do conflito: guerra civil ou internacional? Simples guerra ou verdadeira revolução? 105 GIL FORTOUL, José. Historia Constitucional de Venezuela. Berlin, 1909, 2 vol. (1ª edição) 106 Laureano VALLENILLA LANZ (1870-1936) sociólogo, historiador, jornalista e representante do positivismo venezuelano. Foi diplomata e fez sua carreira política durante a ditadura de Juan Vicente Gómez. Na sua obra histó-rica destaca-se Cesarismo Democrático. Estúdio sobre las bases sociológicas de la constitución efectiva de Venezu-ela (1919) famosa coletânea de ensaios do autor, a maioria dedicados à época da emancipação, e Disgregación e Integración. Ensayo sobre la formación de la nacionalidad venezolana (1930) onde examina o divórcio entre as instituições venezuelanas e a realidade, e faz um estudo sobre a estrutura social da Venezuela colonial. 107Ensaio publicado em 1919 na coletânea Cesarismo Democrático. Estudio sobre las bases sociológicas de la Cons-titución efectiva de Venezuela. Caracas: Tipografia El Cojo, 1919. 108 Manuel CABALLERO, Prólogo de Cesarismo Democrático. Estudio sobre las bases sociológicas de la Constitu-ción efectiva de Venezuela. Caracas, Monte Ávila, 1990, p. 8. Citado por HEBRARD, Véronique, Op. Cit.

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Historia tinham se dedicado a publicar fontes e essas fontes impressas eram repassadas de um

historiador para outro109.

Vallenilla Lanz faz uma teorização da guerra que o leva a legitimar o poder absoluto de

um chefe forte, o gendarme necesario110, sem o qual a nação não poderia existir. Substituindo a

desigualdade étnica pela desigualdade das culturas111, ele justifica o uso da violência do ditador

frente ao “povo bárbaro” (los llaneros de Boves e Páez) e ao povo em geral. Neste sentido, mes-

mo se distanciando da historiografia tradicional, ele valoriza a ação dos heróis e das elites, esque-

cendo outros setores sociais como agentes da história. O estudo de Vallenilla Lanz foi a expres-

são de um pensamento que surgiu de forma isolada e que não teve continuidade112, mas que re-

forçou com novos argumentos a idéia tradicional do fracasso da independência por causa da igno-

rância popular113. O historiador Germán Carrera Damas resume bem essa visão da historiografia

venezuelana:

(... ) Por causa de sua orientação bélica, heróica e bolivariana, a História Pátria tem produzido uma visão anti-popular do processo de emancipa-ção: esse processo seria obra de uma elite enfrentada à ignorância e ao caráter teimoso de um povo que, não só careceria do senso do seu pró-prio bem, mas entorpeceria a tarefa daqueles que o procuravam para ele. 114

109 HEBRARD, Véronique. Idem 110 Para Vallenilla Lanz, a historia venezuelana sempre viu surgir caudilhos responsáveis pelo controle dos excessos naturais do povo. O gendarme necesario é o único que pode controlar essas forças negativas. Com essa teoria ele justifica o poder do ditador, Juan Vicente Gómez. Cf. RIOS, Alicia. Op. Cit, p. 323. 111 Podemos situar esse “deslocamento” ideológico dentro do contexto mais amplo, na década dos vinte, de alguns pensadores críticos do “preconceito de cor” e sensíveis às denúncias do movimento pan-africanista que buscava se liberar da categoria de raça, substituindo-a pela de cultura. Casa Grande e Senzala “ foi escrito dentro desse novo espírito intelectual”. Cf. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. A recusa da “raça”: anti-racismo e cidadania no Brasil dos anos 1830... p. 298. 112 Esse traço é característico da produção histórica na Venezuela, onde as contribuições de pessoas destacadas ficam limitadas (muitas vezes a eles próprios) e sem transformações posteriores que façam avançar as pesquisas. 113Como aponta Pino Iturrieta: “Desde o inicio do século XX, a respeitabilidade de um grupo de historiadores criou um sentimento de vergonha frente aos episódios posteriores à épica bolivariana. Foi o que aconteceu com os positi-vistas. A se ocupar de analisar as raízes próximas para legitimar um regime centralizado e autoritário, eles traçaram um lúgubre panorama do passado imediato. Venezuela envolvida em guerras e sujeita a desenfreados apetites prepa-rou sua própria destruição. A sociedade guerreira se suicida aos poucos, enquanto as instituições só existem no papel. Nenhuma alternativa de progresso material, nem de atenção coletiva destaca num tempo cuja única saída é a autar-quia. Nas páginas de Pedro Manuel Arcaya, de José Gil Fortoul e de Laureano Vallenilla Lanz, cheias de críticas aos caudilhos e ao desapego às instituições encontram-se inúmeros desses depoimentos”. PINO ITURRIETA. Op. Cit. p. 160. 114 CARRERA DAMAS, Germán. La crisis de la sociedad colonial. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1971, p. XIX

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É só nos anos sessenta que Carrera Damas vai tentar uma renovação na releitura dos pro-

cessos de independência e na metodologia histórica115. Suas obras foram motivadas pela vontade

de repensar a primeira metade do século XIX venezuelano e romper com a imagem partidária e

heróica da guerra de independência, propondo outras ferramentas metodológicas e o intercruza-

mento da história com outras disciplinas como a antropologia116. Nas palavras do próprio autor,

para uma renovação historiográfica é necessário:

(...) colocar terra sob os pés de “nossos heróis”. Para quem está minima-mente familiarizado com a história da historiografia venezuelana, será uma tarefa simples compreender essa norma, que não é outra coisa que dar um conteúdo econômico, social e ideológico à história da Venezuela para dar sentido à ação do “herói” de todos os tempos, o povo venezue-lano, destruindo assim a incrível visão individualista da história que afo-ga a grande massa dos nossos estudos históricos 117.

Destaca-se neste sentido sua influente obra Boves. Aspectos económicos de la guerra de

independencia118, estudo introdutório de uma coletânea de documentos sobre a questão agrária.

Seu objetivo foi produzir uma releitura das fontes utilizadas por uma historiografia que tinha

construído uma imagem sangrenta e pouco nuançada do caudillo realista. Dessa forma, ele con-

segue quebrar com o determinismo sócio-cultural de Vallenilla Lanz inserindo o momento estu-

dado num contexto mais amplo.

A quantidade e a qualidade de obras especializadas dos anos pós-independência é consi-

derada escassa119. O período é tão subestimado e desprezado pela historiografia clássica que na

atualidade uma das tarefas pendentes é a que está se realizando desde a década dos noventa: a

revisão dessa impressão predominante que faz com que fiquem impensados e sem explicação

115 Carrera Damas é um dos historiadores que mais tem contribuído para a historiografia venezuelana. Sua coleção Historia de la historiografia venezolana (textos para su estudio). Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1961 é um bom início. Sua obra Historiografia marxista venezolana y otros temas. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1967, contém quatro ensaios sobre temas historiográficos. Três dos seus alunos do seminário avança-do sobre historiografia venezuelana trabalharam sobre as coleções de obras de três importantes historiadores: El concepto de la historia en José Gil Fortoul. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1961; El concepto de la historia en Caracciolo Parra Pérez. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1962; El concepto de la Historia en Vallenilla Lanz. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1966. Cf. LOMBARDI, John V. Decadencia y abolición de la esclavitud en Venezuela 1820-1854. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1974, p. 215. 116 HEBRARD, Véronique. Op. Cit. 117 CARRERA DAMAS, Germán. Cuestiones de historiografía venezolana. Caracas: Universidad Central de Ve-nezuela, 1964, p. 56. 118 CARRERA DAMAS, Germán. Boves. Aspectos económicos de la guerra de independencia. Caracas: Edicio-nes de la Biblioteca, Universidad Central de Venezuela, 1972 119 LOMBARDI, John V. Op. Cit. P. 215

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muitos processos e acontecimentos. Autores como Augusto Mijares120, mesmo procurando esca-

par da visão positivista, fazem uma análise que os conduz à frustração e à desesperança; outros

como Mariano Picón Salas consideram penosa a situação da atividade intelectual a partir de

1830121 e um prestigioso autor como Arturo Uslar Pietri122, considera que o caudilhismo e a po-

breza conduziram o país a uma situação desoladora. Neste sentido, Pino Iturrieta aponta justa-

mente para uma revisão desses três campos tradicionalmente mal considerados: “são numerosas

as alternativas de uma interpretação diferente, graças à qual pode se chegar à construção de uma

consciência mais coerente sobre a historia da Venezuela”. 123

Superando, pois, essa visão tradicional da historiografia venezuelana, desde finais da dé-

cada dos oitenta e nos anos noventa, a produção historiográfica tem passado por uma renovação

temática e de métodos, tanto para o período colonial quanto para a história contemporânea, inau-

gurando o que podemos chamar de “historiografia recente” em contraposição à historiografia

clássica descrita. 124 Fruto do processo da chegada de novas gerações mais do que político a pro-

dução é obra de historiadores formados no país e no estrangeiro (tanto na América Latina como

na Europa) sendo esta circulação de estudantes e historiadores um dos fatores da renovação da

historiografia clássica..

Neste sentido é interessante salientar os estudos de americanistas e mais concretamente,

venezolanistas franceses, que trabalham em conhecidos centros de pesquisa na França tais como:

o Centre de recherches d’histoire de l’Amérique latine et du monde ibérique (CRALMI). Este

primeiro é um dos centros de pesquisa do Instituto Pierre Renouvin da Universidade Paris I, insti-

tuição dedicada à pesquisa em história das relações internacionais.

O mesmo foi dirigido até novembro de 2002 pelo historiador americanista hispano-

francês François-Xavier Guerra, quem imprimiu no Centro suas visões renovadoras sobre o pro-

cesso de independência na América, o processo de construção de identidades e a formação do

120 MIJARES, Augusto. La interpretación pesimista de la sociología hispanoamericana. Madrid: Afrodisio Aguado S. A., 1952 121 PICON SALAS, Mariano. Venezuela, algunas gentes y libros in Venezuela independiente. Caracas: Fundación Mendoza, 1962. 122 USLAR PIETRI, Arturo. Materiales para la construcción de Venezuela. Caracas: Ediciones Orinoco, 1959. 123 PINO ITURRIETA, Elías. Op. Cit. p. 161-162 124 LANGUE Frédérique, Historiografía colonial de Venezuela, pautas, circunstancias y una pregunta: ¿también se fue la historiografía de la Colonia detrás del caballo de Bolívar? In Revista de Indias, 2001, vol. LXI, núm. 222, p. 250.

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espaço público moderno. Em suas obras mais importantes, Modernidad e independencias125 e Los

espacios públicos en Iberoamérica126 existe uma nova tendência historiográfica que se distancia

do estruturalismo, resgatando a história política não só como conjunto de fatos, mas também co-

mo processo movido por atores, idéias, práticas e valores. Sua visão leva a uma releitura das in-

dependências da América Hispânica dentro de uma história política renovada.

Ele manteve a tese de que a Modernidade chegou às antigas colônias espanholas não pelas

influências diretas das idéias da Revolução Francesa, mas através dos processos vividos na Espa-

nha a partir da invasão napoleônica em 1808, o que levou à dissolução da monarquia desencade-

ando o processo de dissolução do Império que, por sua vez, tomou múltiplas dimensões.

Nesta linha de análise e sob a direção de Guerra, Véronique Hebrard, especialista na Ve-

nezuela da independência e na história política da América Latina no século XIX, ele redige seu

trabalho sobre a independência venezuelana, Le Venezuela indépendant. Une nation par le dis-

cours 1808-1830127. A autora analisa as dificuldades das elites em definir uma identidade e uma

cidadania capaz de integrar toda a população (especialmente a população de cor) e de construir

uma nação moderna, se criando uma distância entre a nação como ideal e a nação que realmente

existia, isto é a nação real128. Nesta linha historiográfica de Guerra também se inscreve o histori-

ador Clément Thibaud. Sua obra Repúblicas en armas. Los ejércitos bolivarianos en Colombia y

125 GUERRA, François-Xavier, Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispánicas, Ma-drid, MAPFRE, 1992; 2ª ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1993; 3ª edición revisada, México, Fondo de Cultura Económica, 2000. 126GUERRA, François-Xavier; LEMPÉRIÈRE Annick (et al.), Los espacios públicos en Iberoamérica. Ambigüe-dades y problemas. Siglos XVIII-XIX, México, Fondo de Cultura Económica/Centro Francés de Estudios Mexica-nos y Centroamericanos, 1998. 127 HEBRARD, Véronique. Le Vénézuela indépendant. Une nation par le discours 1808-1830. Paris : Editions L’Harmattan, 1996. Outras publicações importantes de Hebrard são: Pueblos y actores municipales en la reelabora-ción de la nación venezolana (1821-1830), in Revista del Centro de Estudios Históricos, Maracaibo, Universidad del Zulia, Facultad de Humanidades y Educación, enero 1996; Ciudadanía y participación política en Venezuela (1810-1830), in Rethinking the independance of Spanish America, University of London, Institute of Latin American Studies, Londres, 19 mai 1995; Mémoire et identité nationale au Venezuela : 1810-1819, in Mémoire privée, mémoire collective dans l'Amérique pré-industrielle: études comparatives. Colloque international. Paris, Université Paris VII, 5-7 février 1992, Paris, Berg International, Coll. Frontières, 1994, pp 107-124.; La construction d'une mémoire au Venezuela : du bon usage de l'oubli (1810-1830), in Histoire et Sociétés de l'Améri-que Latine, Revue d'histoire, n° 2, mai 1994, pp 41-63. Paris, Université Paris VII-Denis Diderot ; Cités et acteurs municipaux au Venezuela, in Histoire et Sociétés de l'Amérique Latine, Revue d'histoire, n° 5, mars 1997, pp. 137-16 ; A l'écoute du conflit : historiographie d'une guerre Venezuela (1812-1823) in Histoire et Sociétés de l'Amérique Latine, Revue d'histoire, n° 6, novembre 1997, pp. 157-177 128Na atualidade, Véronique Hébrard dirige o Institut des Hautes Études de l'Amérique latine (IHEAL - Université de Paris III - Sorbonne Nouvelle).

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Venezuela129 é considerada um trabalho significativo dentro da historiografia das independências

americanas por ele integrar as façanhas de Bolívar no contexto mais amplo das revoluções da

época. Por esse viés, o autor chega a reafirmar que as independências da América Hispânica não

foram a conseqüência de processos internos isolados após terem alcançado a maturidade, mas

uma resposta à crise da monarquia espanhola à invasão de Napoleão em 1808. Por outro lado,

no Centre de recherches sur les mondes américains (CERMA) 130 historiadores como a francesa

Frédérique Langue131 ou o venezuelano Alejandro Gómez132, na trilha da corrente americanista

129 THIBAUD, Clément. Repúblicas en armas. Los ejércitos bolivarianos en Colombia y Venezuela, Barcelone-Bogota, Planeta-Institut français d'études andines, 2003; Artigos e colaboração em obras coletivas: En búsqueda de un punto fijo para la República. El cesarismo liberal (Venezuela-Colombia, 1810-1830) in Revista de Indias, vol LXII, nº 225 (2002) pp. 463-492; Formas de guerra y mutación del Ejército durante la guerra de la independencia en Colombia y Venezuela in RODRIGUEZ, Jaime (coord.) Revolución, Independencia y las nuevas naciones de América. Madrid, MAPFRE, 2005, pp. 339-364. Des républiques en armes à la République armée : guerre révolu-tionnaire, fédéralisme et centralisme au Venezuela et en Nouvelle-Grenade, 1808-1830 , Annales Historiques de la Révolution française, N° 2, 2007, p. 57-86 ; « Guerra y nación : el caso grancolombiano », Carmen McEVOY (éd.), La república peregrina: hombres de armas y de letras en América andina, 1810-1884, Lima, Instituto de Estu-dios Peruanos, Institut Français d'Etudes Andines, Sewanee University, 2007 ; Coupé têtes, brûlé cazes' : peurs et désirs d'Haïti dans l'Amérique de Bolivar , Annales HSS, n° 58-2, 2003, pp. 305-331. Em espanhol: 'Coupé têtes, brûlé cazes'. Miedos y deseos de Haití en la América de Bolívar, in Izaskun Alvarez Cuartero, Julio Sánchez Gómez (dir.), Visiones y revisiones de la independencia americana. México, Centroamérica y Haití, Salamanque, Ediciones Universidad Salamanca, 2005, pp. 120-143; La construcción del orden en el paso del Antiguo Régimen a la Repúbli-ca. Redes sociales e imaginario político en la Nueva Granada, 1750-1850 in Anuario Colombiano de Historia social y de la Cultura, n° 29, 2002, pp. 135-165 130 O Centre de recherches sur les mondes américains (Centro de Pesquisa sobre os mundos americanos) pertencente à prestigiosa École des hautes études en sciences sociales (EHESS) é uma unidade pluridisciplinar dedicada ao estu-do do mundo Ibero americano e do Mediterrâneo Ocidental, que junta enfoques históricos, sociológicos e antropoló-gicos na linha da Nova Historia. As principais linhas de reflexão do centro são:os intercâmbios entre as Américas, Espanha, Portugal, Itália e França (séculos XVI – XIX); o confronto e as conexões entre a América espanhola e a América portuguesa (séculos XVI – XIX); a produção e recomposição das identidades sob as múltiplas formas e contextos sócio-políticos (séculos XVI – XIX). 131 LANGUE, Frédérique. Les identités fractales : honneur et couleur dans la société vénézuélienne du XVIIIe siè-cle, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, BAC, 2005, Em linha no 14 de fevereiro de 2005. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index633.html; Fuentes para la historia de Venezuela. Las publicaciones electrónicas del Archivo General de la Nación in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Reseñas de libros y CD roms, 2005, En linha no 7 de fevereiro de 2005. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index415.html; La pardocratie ou l’itineraire d’une “classe dangereuse” dans le Venezuela des XVIIIe et XIXe siècles in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, BAC, 2005, En linha no 14 de fevereiro de 2005. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index643.html; Las élites en América española, actitudes y mentalidades, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, BAC, 2005, En linha no 12 de no-vembro de 2005. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index1178.html ; Las elites venezolanas y la revolu-ción de Independencia in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, BAC, 2005, En linha no 12 de novembro de 2005. Dispo-nível em http://nuevomundo.revues.org/index1181.html ; Orígenes y desarrollo de una élite regional. Aristocracia y cacao en la provincia de Caracas, siglos XVI-XVIII in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, BAC, 2005, En linha no 22 de fevereiro de 2005.. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index769.html 132 GOMEZ, Alejandro E. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, De-bates, 2006, En linha no 17 de fevereiro de 2006. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index211.html; Las revoluciones blanqueadoras: elites mulatas haitianas y "pardos beneméritos" venezolanos, y su aspiración a la igual-dad, 1789-1812 in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Coloquios, 2005, En linha no 19 de março de 2005. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index868.html; El “Estigma Africano” en los Mundos Hispano-Atlánticos, siglos XIV al XIX in Revista de História, nº 153 (2º sem. 2005), São Paulo, Universidade de São Paulo, pp. 139-180; The

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do estudo sobre as elites locais, têm publicado artigos importantes sobre a elite parda na Venezu-

ela. Eles aportam um novo olhar sobre essa elite como grupo de poder econômico, levantando

também novas questões sobre a problemática racial na Venezuela no final da colônia e nos anos

da Independência, estabelecendo conexões com outros países das Américas e da Europa a partir

da perspectiva de uma história atlântica e comparada.

A publicação da revista virtual do CERMA, Nuevo Mundo, Mundos Nuevos133, revela-se

como um meio de difusão eficaz onde colaboram autores de diferentes países e áreas do conhe-

cimento e que é constantemente atualizada. O papel das diferentes universidades venezuelanas134

também tem sido um fator de renovação e profissionalização da História na Venezuela por ter

favorecido a diversificação de origens sociais e políticas dos novos historiadores assim como por

ter criado uma formação específica interdisciplinar.

O historiador formado nessas instituições tem renovado visões e temáticas da historiogra-

fia venezuelana, sendo que ainda grande parte da produção se mantém dirigida à época colonial.

No entanto, no século XIX são trabalhados especialmente os anos do processo de independência,

abrindo novos e ricos caminhos às interpretações históricas. Neste sentido, é muito significativa a

obra de Tomás Straka La Voz de los Vencidos (Ideas del partido realista de Caracas, 1810-1821) 135, na qual o mesmo analisa “uno de los ejercicios de olvido más grandes en nuestra historiogra-

fía, el del partido realista venezolano” 136. Dessa maneira, ele resgata não só a forma de pensa-

mento, a visão do mundo, as tensões sociais e as razões que motivaram aqueles que se posiciona-

ram contra o projeto de emancipação, mas também as populações de cor (sobretudo a mais pobre)

de mais um esquecimento, já que as mesmas participaram majoritariamente do lado realista.

‘Pardo Question’ in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Materiales de seminarios, 2008, En linha no 15 de setembro de 2008. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index34503.html; La Revolución de Caracas desde abajo in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2008, En linha no 17 maio de 2008 Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index32982.html 133 Nuevo Mundo, Mundos Nuevos. Define-se como a “primera revista evolutiva en la Web americanista” e elabo-ra-se em torno dos eixos temáticos do CERMA atraves de debates e artigos inéditos. Cf. 134 A Facultad de Humanidades de la Universidad Central de Venezuela (UCV), e sua Escuela de Historia; a Univer-sidad de los Andes (ULA, Mérida), os departamentos de pós-graduação da UCV, da Universidad Católica Andrés Bello (UCAB) e seu Instituto de Investigaciones Históricas, a Universidad Santa María em Caracas. 135 STRAKA, Tomás La Voz de los Vencidos (Ideas del partido realista de Caracas, 1810-1821). Caracas: Comi-sión de Estudios de Postgrado, Facultad de Humanidades y Educación, Universidad Central de Venezuela, 2000. 136STRAKA, Tomás. Los olvidos de la historia: el caso de los realistas venezolanos in RODRÍGUEZ, José Ángel (org.) Visiones del oficio. Historiadores venezolanos en el siglo XXI. Caracas: Academia Nacional de la Historia / Comisión de Estudios de Postgrado y Fondo Editorial de la Facultad de Humanidades y Educación de la UCV, 2000, p. 475.

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Outra perspectiva relevante desta renovação é a chamada história das mentalidades, vinda

do trabalho sobre história das idéias do historiador Elías Pino Iturrieta e sua obra precursora, La

mentalidad venezolana de la emancipación (1810-1812), publicada pela primeira vez no ano

1971137. Este livro foi e continua sendo uma obra de referência, especialmente por ter sido desen-

volvida no Colégio de México sob a orientação de José Gaos. Outros estudos de Pino Iturrieta

vão marcar as orientações deste gênero assim como a história das idéias políticas com trabalhos

como Las ideas de los primeros venezolanos138 e Ideas y mentalidades de Venezuela 139.

Contudo, continuam existindo problemas, como por exemplo, aqueles relacionados ao es-

casso investimento em publicações e na difusão editorial. Tais problemas fazem com que, apesar

da ampliação temática e metodológica na produção historiográfica, esta seja incapaz de se equi-

parar numericamente à historiografia tradicional “y de ir más allá de un fenómeno de mera curio-

sidad acerca de lo que se ha llamado con sobrada razón las «últimas ofertas» de la historiografía

americanista” 140.

137 PINO ITURRIETA Elías, La mentalidad venezolana de la emancipación (1810-1812), Caracas, U.C.V., 1971, Instituto de Estudios Hispanoamericanos, Facultad de Humanidades y Educación (reed. Caracas, Eldorado Edicio-nes, 1991); Tradición y modernidad en la justificación oficial de la Independencia venezolana in Boletín Histórico de la Fundación J. Boulton, enero de 1971, nº 25, pp. 21-32; 1750-1810: un periodo de cambios en la mentalidad venezolana, Revista Nacional de Cultura, Caracas, CONAC, 1979, nº 241, pp. 197-229; Ideas y mentalidades de Venezuela, Caracas, Academia Nacional de la Historia, 1998, 277 pp., Col. «Estudios, Monografías y Ensayos» nº 179. Cf. LANGUE Frédérique, Historiografía colonial de Venezuela…, p. 261. 138 PINO ITURRIETA, Elías. Las ideas de los primeros venezolanos. Caracas: Editorial Trópikos, 1987 (reed. Caracas, Monte Ávila Editores Latinoamericana, 1993). 139 ______. Ideas y mentalidades de Venezuela, Academia Nacional de la Historia, Caracas, 1998. 140 LANGUE Frédérique, Op. Cit, p. 265.

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CAPÍTULO II

EM TORNO DO "INFAME COMÉRCIO” 1: DEBATES E PROPOSTAS PARA A EXTINÇÃO DO TRÁFICO ATLÂNTICO

EM PERSPECTIVA COMPARADA

“El silencio es el resultado de una complicidad cultural en la que todo el mundo sale ganando…”2

Se a extinção do tráfico de africanos no Brasil é considerada um tema clássico na histori-

ografia brasileira3, o mesmo comentário não se aplica ao fim do trato na historiografia venezuela-

na. Os autores que trabalharam sobre a escravidão na Venezuela4 abordam o tráfico como parte

da engrenagem do sistema escravista. Para isso, focam-se sobretudo no período colonial (desde o

século XVI ao final do século XVIII.) com o intuito mais descritivo do que interpretativo. Bus-

cam desta forma explicar o funcionamento do tráfico tentando estabelecer o número de africanos

que entraram no país, as condições de seu transporte assim como as leis que regulavam o tráfico.

Acosta Saignes na sua obra Vida de los esclavos negros en Venezuela5, dedica os quatro

primeiros capítulos ao tráfico durante esses séculos. Ele inicia o livro apresentando o funciona-

mento do tráfico internacional. Nos capítulos seguintes, aborda o tráfico, o contrabando e o co-

mercio de escravos neste país. Para isso, lança mão de uma descrição cronológica detalhada dos

atores envolvidos no tráfico. O autor considera as demandas de escravos e as chegadas registra-

das no território venezuelano a partir das fontes dos arquivos venezuelanos e daquelas publicadas

especialmente no Boletín de la Academia Nacional de la História. É nesse sentido que reside uma

das destacadas características de seu estudo. Fundamentado em fontes, seu trabalho se configura

em uma das primeiras e mais completas apresentações históricas sobre o tráfico na Venezuela.

Por sua vez, Brito Figueroa aborda o tema do tráfico em dois de seus trabalhos mais rele-

vantes, La estructura económica de Venezuela colonial e El problema tierra y esclavos en la his-

1 RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos (1800-1850). S.l.: Editoria da UNICAMP, 2000 2 CYRULNIK, Boris. La maravilla del dolor. El sentido de la resiliencia. Buenos Aires: Granica, 2006, p. 131 3 Para uma bibliografia sobre a abolição do tráfico de escravos no Brasil ver SCANAVINI, João Eduardo. A questão da abolição do comercio inter-atlântico de escravos no Brasil: interpretações bibliográficas e fontes: Campinas, Departamento de História da UNICAMP, Textos didáticos n. 50, 2004. Pp. 14-15 4 Cf. Capítulo III, historiografia sobre a escravidão na Venezuela. 5 ACOSTA, Miguel Saignes. Vida de los esclavos negros en Venezuela. Caracas: Hesperides, 1967, p. 1-120

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tória de Venezuela6. O primeiro destes estudos históricos tornou-se uma obra de referência tam-

bém no campo econômico pela sua marcada dimensão econômica, de orientação marxista. Um

dos capítulos é dedicado à “Escravidão e o comércio de negros”.

Nele, o autor faz um percurso cronológico partindo dos fundamentos econômicos e soci-

ais do tráfico nas colônias hispano-americanas, para com isso chegar ao tráfico na Venezuela

colonial - tanto o legítimo como aquele de “composición de negros de mala entrada” (contraban-

do de escravos). Seu trabalho é uma síntese de características similares àquelas apresentadas no

livro de Acosta Saignes, acrescidas por numerosas tabelas e estatísticas sobre a importação de

escravos por séculos e regiões. Na sua obra El problema tierra y esclavos en la história de Vene-

zuela o capítulo intitulado “El comercio de negros y la mano de obra esclava en Venezuela colo-

nial” mantém as características já assinaladas na sua obra anterior.

Já destacamos anteriormente as fortes influências da Escola dos Annales e do marxismo

em ambos os autores, marcas fundamentais para o entendimento destes estudos. Neles, o tráfico

de escravos é apresentado como um dos elementos chaves para compreender a presença africana

nas Américas e o funcionamento econômico da sociedade colonial. É interessante assinalar que

estes autores se propuseram a apresentar uma nova visão da história venezuelana, não só da es-

cravidão como também do período colonial como um todo. Baseando-se em fontes, procuraram

estabelecer uma concepção histórica considerada mais científica que a de estudos anteriores, bus-

cando assim “explicaciones coherentes, en la comprensión histórica y en la interpretación teórica

con criterio de totalidad... en términos de aproximación a un tema que la nueva escuela... está en

la inexcusable obligación de revisar”.7

Esse primeiro esforço visou o afastamento de perspectivas imbuídas de uma visão orgâni-

ca de toda a história venezuelana, ou seja, apresentações gerais da história nacional sem uma aná-

lise aprofundada. Eles optaram pela elaboração de monografias sobre determinados aspectos do

processo histórico venezuelano de um dado período, o que lhes permitia uma interpretação mais

abrangente dos mesmos (a escravidão e o sistema escravista colonial) . Assim sendo, seus estudos

situam-se “dentro del grupo de las (bibliografías) que han puesto en dudas la extendida afirma-

6 BRITO FIGUEROA, Federico. La estructura económica de Venezuela colonial. Caracas: Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca, Colección Ciencias económicas y sociales, XXII, 1996. pp 83-125; ______. _________. El problema tierra y esclavos en la historia de Venezuela. Caracas: Universidad Central de Venezue-la, Ediciones de la Biblioteca, Colección História XIX, 1984. pp.153-202. Trata-se de uma re-edição do texto publi-cado em 1972. 7BRITO FIGUEROA, Federico. El problema tierra y esclavos en la historia de Venezuela. Caracas: Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la biblioteca, Colección Historia XIX, 1984, p. 5

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ción de la “gran siesta colonial”, con que muchos cultores de la historia venezolana definieron

ese complejo como rico período de la vida nacional.”8

Acosta Saignes assinalava nas suas conclusões que a tarefa de escrever sobre a escravidão

no século XIX “…Será tarea de otros días y de otros autores” 9. As referências ao tráfico de es-

cravos durante o século XIX e, de forma mais geral ao fim do tráfico, guardam uma característica

em comum com os anteriores. Isto é, formam também parte de trabalhos mais abrangentes sobre

os processos de manumissão e abolição e na maioria deles salientam-se sobretudo dois aspectos:

a proibição estabelecida pelo decreto de 1810, abraçado pela constituição de 1811 e o tratado

assinado com a Inglaterra em 1839. Sobre este último, uma das obras publicadas de maior inte-

resse para conhecer este processo a partir da dinâmica inglesa é o diário do primeiro encarregado

de negócios da Inglaterra no país, Sir Robert Ker Porter10, quem permaneceu na Venezuela entre

1825 e 1842, ano da chegada do primeiro encarregado de negócios do Brasil no país. Sir Robert

Ker Porter foi designado ministro plenipotenciário em 1837 para assinar o tratado de proibição do

tráfico, que só conseguiu ser ratificado pelo Congresso dois anos depois mediando concessões da

Inglaterra que o considerou insuficiente: “este tratado, por cierto, no es todo lo que pudiera dese-

arse, pero es un paso muy importante”.11 A primeira publicação do texto original inglês foi feita

em 196612 e a tradução para o espanhol do diário foi publicada em 1997.

No seu estudo sobre a decadência e a abolição da escravidão na Venezuela, John Lombar-

di aborda o tema do tráfico sem se deter de forma explícita nele, mas como parte do processo de

abolição e mais concretamente na análise das leis que pretendiam a extinção gradual da escravi-

dão. Reproduz assim uma perspectiva “gradualista” como assinala Rodrigues ao re-visitar a histo-

riografia brasileira. Nos comentários de Lombardi podemos encontrar uma das razoes da explica-

ção do silencio dos historiadores em torno do tráfico de escravos no século XIX, já que segundo

ele “los fundadores de Venezuela consideraron conveniente declarar terminado el tráfico de es-

clavos mediante una ley porque ya de hecho había terminado” 13. Afirmação à qual estudos como

8 BRITO FIGUEROA, Federico. La estructura económica de Venezuela colonial. Caracas: Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca, Colección Ciencias económicas y sociales, XXII, 1996. p. IX 9 ACOSTA SAIGNES. Op. Cit., p. 341 10 PORTER, Robert Ker. Diario de un diplomático británico en Venezuela: 1825-1842. Caracas: Fundación Polar, 1997. 11 Carta de Lord Palmerston a Porter citada no diário o dia 29 de agosto de 1839. PORTER. Op. Cit. p. 866 12 O texto original foi organizado por Walter Dupouy e publicado pela Fundación Otto y Magdalena Blohm 13 LOMBARDI, John V. Decadencia y abolición de la esclavitud en Venezuela, 1820-1854, Caracas, 1971, Uni-versidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca, 1971 p. 221

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o de Marisol Rodriguez sobre a manumissão e abolição na província de Maracaibo oferecem nu-

ances interpretativas.14

É interessante notar como a história regional venezuelana tem sido impulsionada nas úl-

timas décadas. Observa-se que a mesma tem se voltado para estudos menos generalizantes, preo-

cupando-se em investigar como diversos processos históricos foram vividos em diferentes regi-

ões. Esta mudança tem a ver com o próprio avanço da historiografia venezuelana e com o desen-

volvimento das elites regionais. Elas têm tomado consciência do seu papel na conformação e uni-

dade regional, financiando as pesquisas históricas regionais15. A evolução da história regional

presta atenção aos particularismos locais, às características específicas na qual está fundada a

identidade política da região. Nesse sentido, Maracaibo é na atualidade um dos marcos mais rei-

vindicativos desta história..16 Se Lombardi estuda a região de Caracas e constata que para 1830 o

mercado de escravos não tinha muita atividade nessa zona17, Rodriguez assinala as dificuldades

de controlar a entrada de escravos no porto da cidade fronteiriça de Maracaibo, apesar da pro-

mulgação de leis proibindo o tráfico. A autora considera o tráfico uma das três etapas importantes

ao abordar o processo da escravidão e sua abolição na Venezuela, junto com a promulgação da lei

do ventre livre e a abolição propriamente dita. Com base nesta ótica, ela oferece um dos trabalhos

mais aprofundados sobre o tráfico no século XIX da historiografia recente sobre escravidão na

Venezuela.

No presente capítulo, abordaremos a questão do fim do tráfico e a forma como ela foi tra-

tada na Venezuela pós-colonial. A perspectiva comparada aqui é de ordem mais historiográfica

em termos teóricos e metodológicos do que histórico. Pretendemos re-visitar o processo histórico

de abolição do tráfico na Venezuela a partir das indicações oferecidas por Rodrigues para o caso

brasileiro.18 Sem negligenciar outros fatores que marcaram esse processo, focalizaremos a influ-

14 RODRIGUEZ ARRIETA, Marisol. Manumisión y abolición en la provincia de Maracaibo (1810 – 1864), Ma-racaibo: Gobernación del Estado Zulia; Acervo Histórico del Estado Zulia, Biblioteca de temas de Historia del Zulia, 2001. 15 GOMEZ, Carmen, Notas histórico historiográficas sobre historia regional in RODRÍGUEZ, José Ángel (org.) Visiones del oficio. Historiadores venezolanos en el siglo XXI. Caracas: Academia Nacional de la Historia / Comi-sión de Estudios de Postgrado y Fondo Editorial de la Facultad de Humanidades y Educación de la UCV, 2000, p. 137 16 Um dos centros mais ativos neste sentido é o Centro de Estudios Históricos da Universidad del Zulia. Cf sobre a historia regional na historiografia venezuelana LANGUE, Frédérique, Historiografía colonial de Venezuela, pautas, circunstancias y una pregunta: ¿también se fue la historiografía de la Colonia detrás del caballo de Bolívar? In Revis-ta de Indias, 2001, vol. LXI, núm. 222, pp. 254-255 17 LOMBARDI, Op. Cit. p. 156. 18 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit.

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ência inglesa para a abolição do tráfico, dentre outros motivos, por ser um aspecto já estudado

para Brasil e Cuba, mas que recebeu pouca atenção no caso venezuelano. talvez por acreditar,

“que la diplomacia representó un papel tan pequeño en la decadencia y la abolición de la esclavi-

tud en Venezuela (...)”19 Em termos empíricos nossa reflexão se baseia na documentação de natu-

reza diplomática. A nossa aproximação será a partir do material pesquisado no Ministério de Re-

lações Exteriores da Venezuela (Casa Amarilla) e do Arquivo do Itamaraty no Brasil. Os debates

que tiveram lugar no Congresso nas diversas discussões sobre os tratados e as leis referentes ao

tráfico e à atitude do governo venezuelano frente às propostas inglesas serão abordados por in-

termédio desta documentação. Restaria ainda fazer investigações mais aprofundadas através de

fontes de outras naturezas como, por exemplo, as memórias das sessões do congresso, tarefa já

realizada para o processo brasileiro.20

Em nossa abordagem, procuramos estabelecer as conexões com os debates que tiveram

lugar no Brasil em torno da mesma problemática. Como já apontamos anteriormente, esses deba-

tes começaram na Venezuela simultaneamente ao processo de independência e ficaram refletidos

já na constituição de 1811. No que diz respeito à pressão da Inglaterra, às assinaturas dos tratados

com este país que estabeleciam a abolição do tráfico, e mesmo as leis consecutivas para dar cum-

primento aos tratados, apresentaram-se em ambos os casos com bastante proximidade cronológi-

ca. Um dos motivos para essa quase simultaneidade em algumas leis (dentre outras razões) vem

do fato que, desde 1807, a política externa inglesa referente ao fim do tráfico, marcada pela pres-

são sobre as potências européias e posteriormente sobre as novas nações americanas era uma só.

Entretanto no que diz respeito a estas últimas, um dos princípios fundamentais era “que nenhum

estado do Novo Mundo poderá ser reconhecido pela Grã Bretanha se não tiver franca e comple-

tamente abolido o comercio dos escravos”21. Assim, o tratado de Aliança e Amizade entre a In-

glaterra e Portugal de 1810 estabelecendo os princípios para uma futura abolição do tráfico é as-

sinado no mesmo ano da promulgação do decreto proibindo o tráfico na Venezuela revolucioná-

ria e um ano antes que a primeira Constituição do país independente ratificasse no seu texto a dita

proibição. Em 1815, no Congresso de Viena, Portugal assina outro tratado com a Inglaterra abo-

lindo o tráfico ao norte do paralelo do Equador, este regulamentado pela convenção adicional de

19 LOMBARDI. Op. Cit, p. 153 20 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit. 21 Carta do Ministro do exterior Canning ao duque de Wellington em 27 de setembro de 1822. Citado por RODRI-GUES, Jaime, Op. Cit., p. 99

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28 de julho de 181722. Nesse ano, a Espanha assina com a Inglaterra um tratado internacional por

meio do qual se comprometia a suprimir o tráfico e a abolir a escravidão num prazo de três anos.

Esse tratado regeu as províncias realistas venezuelanas, na época, envolvidas nas guerras de in-

dependência.

Os anos de 1820 estarão marcados pela intensificação das discussões pelo reconhecimento

dos novos países independentes por parte do governo inglês, que pedia em troca garantias seguras

da abolição do tráfico. Em 1824, era reconhecida a Grande Colômbia que ano seguinte promul-

gou a lei que declarava pirataria o tráfico de escravos. Paralelo a esse cenário, o reconhecimento

da independência do Brasil foi feito em 1825 seguido do tratado anglo-brasileiro de 1826 que

previa o fim do tráfico de escravos em três anos, mantendo os termos da convenção Adicional de

181723. A República da Venezuela de 1830 retoma a lei grande-colombiana de 1825 e vai procu-

rar, na promulgação das futuras leis de manumissão, introduzir artigos sobre o tráfico. No Brasil,

em cumprimento dos termos do tratado de 1826, vota-se no ano de 1831 a primeira lei abolindo o

tráfico, lei ineficaz que nos anos seguintes tentou-se revogar. Na Venezuela, depois de longas

discussões no Congresso, o tratado anglo-venezuelano contra o tráfico é assinado em 1839. No

mesmo ano, na Inglaterra a reorganização do abolicionismo na British and Foreign Antislavery

Society se traduz em 1840-1842 num momento de grande agressividade britânica.24

No Brasil, essa pressão culmina no fim das negociações sobre a assinatura de um novo

tratado e na promulgação unilateral do Bill Aberdeen no ano de 1845, lei que permitia à Inglater-

ra inspecionar navios brasileiros e julgá-los como piratas em qualquer lugar onde fossem captu-

rados. Na Venezuela, o cônsul inglês, durante esses anos, pressionava o governo para a reforma

da lei de manumissão de 1830. Suas recomendações foram introduzidas na nova lei de manumis-

são aprovada pelo congresso no ano de 1848. O ponto de convergência mais significativo entre o

Brasil e a Venezuela, expresso pela diplomacia inglesa, viria com a lei Eusébio Queiroz, que de-

terminou a proibição do tráfico. Assinada no Brasil em 1850, ela fora recomendada pelas autori-

dades inglesas ao governo venezuelano despertando surpresa e desconforto do mesmo, já que a

lei de 1825 continuava vigente no país25.

22 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit., p. 98 23 Idem, p.100 24 ROLDAN, Inés. La diplomacia británica y la abolición del tráfico de esclavos cubano: una nueva aportación in Quinto centenario, Nº 2, 1981. p.221 25 Ver Anexo Tratados e Leis da abolição do tráfico

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Trafico e legislação anti-tráfico na Venezuela colonial e pós-colonial

Em 1525, a Coroa espanhola concedeu licença para importar “a Tierra Firme 400 o más

negros” 26. Começara assim a introdução de africanos no que viria a ser posteriormente o territó-

rio venezuelano, para trabalhar na pescaria de pérolas, na ilha de Margarita e na busca e explora-

ção de minas de ouro. Já em meados do século XVI as cidades mais importantes pediram licença

à Coroa para importar anualmente mais de 2000 africanos. A Coroa espanhola “desprovida de

capitais, sem feitorias na África negra, lidando com um sistema de frotas inadaptado ao transpor-

te de mercadorias vivas” 27 concedia contratos (asientos) a particulares e companhias estrangeiras

para a introdução de africanos nas suas colônias. Nos asientos estabelecia-se o tempo de duração

do contrato, o número de escravos a serem introduzidos por ano; os direitos a serem pagos por

cada escravo; a distribuição geográfica, etc. Em alguns casos, colocavam-se outras condições

como o uso exclusivo de navios espanhóis para o transporte e o preço de venda de africanos para

algumas regiões específicas. Além dos asientos, a Coroa também podia conceder licenças parti-

culares. Neste período, o primeiro grande asiento concedido para a introdução de africanos foi o

monopólio dado à Companhia Mercantil Alemã dos Welser, segundo o qual deviam introduzir

4000 escravos na Gobernación de Venezuela. Os Welser, que não contavam com feitorias, nego-

ciaram com comerciantes portugueses que importaram os escravos e foram os principais trafican-

tes com a Venezuela ao longo deste século28. Mas esse asiento não impediu a concessão de licen-

ças individuais. Os negreiros portugueses vão ganhando o controle dos mercados hispano-

americanos no último quartel do século XVI29. Eles vão conseguindo segurar portos e feitorias

africanas e obtêm a quase totalidade das licencias outorgadas por Madri para aprovisionar a Amé-

rica espanhola de africanos30. Os desembarques assentistas concentravam-se obrigatoriamente em

três grandes portos: Veracruz, Cartagena e por vezes também em Buenos Aires. A partir desses

portos, fazia-se o transbordo de africanos para outros lugares bem por mar, bem por terra31. Os

navios chegavam procedentes de Cartagena para os portos das costas venezuelanas, especialmen-

26 BRITO FIGUEROA. La estructura econômica de Venezuela colonial, p. 100 27 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2000, p. 78. 28 BRITO FIGUEROA. Op. cit, p. 100 29 Para ter uma idéia de como os negreiros, armadores e grandes negociantes portugueses ganharam espaço sobre o mercado escravista hispano americano, Alencastro aponta que “num total de doze lotes de africanos carregados entre 1525 e 1574 para os você reinados de Nova Espanha e do Peru, 50% foram levados por portugueses, 25% por espan-hóis e 16% por genoveses”, ALENCATRO, Op. Cit., p. 402, nota 3. 30 ALENCATRO, Op. Cit., p. 77 31 Idem,p.79

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te La Guaira e Borburata32, com cativos importados via Portugal, Cabo Verde, Guinéa e alguns

provenientes de Santo Domingo33. Já para o final do século, as petições requisitando mão de obra

escrava visavam não só o suprimento das minas e à crescente necessidade da agricultura, mas

também os interesses de povoamento. Assim, a introdução de africanos era considerada uma con-

dição indispensável para a prosperidade dessas regiões, obrigadas por causa da pobreza a pagar

em forma de “créditos” os escravos africanos de que necessitavam. No ano de 1593, o Procurador

General da Província de Venezuela assinalava:

“ Conviene mucho al servicio de S. M. y a la conservación y aumento de la di-cha gobernación, se pueblen y labren las dichas minas con negros con los cuales no sólo se podrá sacar mucha cantidad de oro de las minas que están descubier-tas, mas continuando el beneficio de ellas se descubrirá cosa de más importan-cia (…) haciéndoles S. M. merced y teniendo consideración a que al presente están muy pobres y necesitados, ya que han de pagar a la real caja de composi-ciones de tierras y ventas de oficios mas de mil ducados (…) de fiarles por dos años lo que valieren los dichos esclavos” 34.

No final do século XVI e durante o XVII a demanda por escravos se intensifica, mas é

muito difícil estabelecer o número introduzido. Em parte, isso se deve à confusão de alguns auto-

res entre as petições feitas e as entradas reais35. Contudo, pode-se afirmar que esse incremento

liga-se, entre outros fatores, à introdução da agricultura de plantação (substituindo progressiva-

mente a exploração mineira) que demandava uma maior quantidade de mão de obra. Nesse perío-

do, os africanos traficados para o Ocidente do país chegavam aos portos de Coro e Maracaibo,

assim como através das importações que se realizavam por Cartagena. O comércio de escravos no

interior do território se intensifica, tanto para as cidades e centros urbanos como para as novas

áreas colonizadas. As entradas em Caracas eram consideradas importantes pela Coroa, uma vez

que na época, a Espanha recebia a totalidade dos impostos vindos do tráfico.

O século XVIII começa com constantes remessas, incentivadas mais ainda pelo fortaleci-

mento da agricultura de plantação e pela demanda crescente no comércio exterior dos produtos

produzidos, demanda esta que por sua vez se incrementava com a incorporação de novas regiões.

Será o século mais importante para o tráfico de escravos africanos na região venezuelana, com o 32 La Guaira é o porto mais próximo de Caracas, na zona central e Borburata é uma cidade situada no atual Estado de Carabobo, perto do porto de Puerto Cabello. Ver mapa 33 ACOSTA SAIGNES, Op. Cit., p. 25; BRITO FIGUEROA, Op. Cit., p. 101 34 Relación de las Minas de Oro y otras cosas de Nicolás Peñalosa, procurador General de la Provincia de Vene-zuela. ARELLANO MORENO (A.). Fuentes para la historia económica de Venezuela (siglo XVI): Tercera Con-ferencia Interamericana de Agricultura. Cuadernos Verdes: Caracas, 1950. p 194. Citada por ACOSTA SAIGNES. Op. Cit. , pp. 25-26. 35ACOSTA SAIGNES. Idem, pp. 26-27

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protagonismo - durante toda a primeira metade - do monopólio das companhias internacionais,

embora as licenças individuais continuassem sendo outorgadas. Até então, o monopólio do co-

mércio era detido pelos portugueses mas a situação mudou e a Coroa concedeu, ao longo do sécu-

lo XVIII, asientos à Companhia Francesa de Guinéa além do monopólio de trinta anos à Real

Companhia Inglesa Mares do Sul em 1713. Esta Companhia estabeleceu uma de suas feitorias em

Caracas. Apesar disso, verificavam-se entradas de outras companhias e do intenso contrabando

pela costa venezuelana através da Jamaica e de Curaçao.

Já na primeira metade do século, a Companhia Guipuzcoana36 intervém como agente im-

portante do tráfico. Cedo começam os conflitos com os ingleses, visto que a companhia não só

impedia a livre circulação de produtos utilizados como formas de pagamento dos escravos (taba-

co, cacau, dentre outros), como colocava vigias nas embarcações negreiras (com o intuito de evi-

tar o contrabando), o que prejudicava o comércio dos ingleses. A Coroa intermediou na solução

desses conflitos. O asiento inglês seria o último monopólio de caráter internacional. A partir de

1743, o tráfico vai se desenvolver através de asientos regionais, de licenças individuais, do con-

trabando e da liberdade de comércio que se estenderá até os primeiros anos do século XIX37. As

importações inglesas na Venezuela se encerraram em 1750. A partir desse ano, a Companhia

Guipuzcoana tem participação cada vez maior no tráfico, mesmo enfrentando a forte concorrên-

cia de pessoas interessadas em controlá-lo, especialmente os fazendeiros, que com o fim dos asi-

entos gerais conseguiram uma participação mais direta na importação da mão de obra africana a

fim de agilizar e aumentar as escassas transações nos territórios venezuelanos. Nesses anos são

constantes as petições por escravos por parte das autoridades provinciais queixosas da falta de

mão de obra. Com a criação da Intendência (1777), ocorre a intensificação do comércio de afri-

canos e uma maior regulamentação (sempre tentando limitar o comércio ilícito) que trouxe como

conseqüência a necessidade de negociações prolongadas dificultando a compra dos agricultores

das províncias. Estes solicitaram ao intendente que autorizasse aos governadores regionais con-

cederem as permissões necessárias à exportação de produtos agrícolas e à importação de ouro,

prata e escravos. Entretanto tal pedido foi negado38.

Em 1789, a Coroa declara a liberdade de comércio para a importação de africanos autori-

zando espanhóis e estrangeiros a traficar nas colônias espanholas do Caribe, Venezuela e Nova

36 Ver capítulo I, nota 7 37 BRITO FIGUEROA, Op. Cit., p. 168 38 BRITO FIGUEROA, Op. Cit., p. 168

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Granada, apesar das tentativas de alguns comerciantes de manter o monopólio39. Essa liberdade

que no começo foi limitada no tempo, acabará se impondo com algumas restrições de caráter

ideológico. A Espanha permite a importação de escravos africanos, mas não a dos negros crioulos

nascidos e criados nas colônias estrangeiras porque estes constituíam uma via de difusão das i-

déias revolucionarias da época. Com efeito, segundo afirma Brito Figueroa, as referências a esse

problema são freqüentes a partir de 1797. No dia 22 de abril de 1801, o governador e Capitão

Geral de Venezuela envia uma circular aos governadores de Cumaná, Guayana e Maracaibo e aos

comandantes de La Guaira, Puerto Cabello e Coro nos seguintes termos:

Estimo conveniente añadir a mis previsiones relativas a los emigrados de Santo Domingo, la de que por ahora no conviene permitir en estas pro-vincias la venta de esclavos criollos educados en tierras extranjeras e im-buidos de opiniones diversas adoptadas en ellas; pero sí los negros boza-les que se conozcan haber llegado de África poco tiempo ha y que en él no han podido instruirse de tales opiniones que podrían ser perjudiciales en las posesiones de S.M. 40

O comércio de escravos foi uma atividade econômica estável ao longo do século XVIII.

Nas regiões dos Vales, costas e Llanos Centrais há compra e venda de escravos nascidos e cria-

dos no país com fins comerciais. Segundo aponta Brito Figueroa, “en 1750, en las operaciones

realizadas en las ciudades, villas y pueblos de los Valles y costas centrales, el 30% corresponde a

negros bozales y el 70% a negros criollos, mulatos y zambos”41. No que diz respeito aos Llanos

e costas de leste (com a cidade de Cumaná como centro de distribuição), a situação é diferente já

que o comércio interno de mão de obra escrava era sustentado pelas importações provenientes

das colônias não espanholas do Caribe. Conferindo as operações de compra e venda registradas

na região entre 1780 até 1808, “el 38% de los esclavos estaban considerados como negros ladinos

que hablaban curazoleño, trinitario, inglés y francés; el 59% como negros bozales, luangos, man-

dingas y zapes, y el 3% como mulatos y zambos. Además los negros compuestos (contrabando)

39 Além de refletir a política de livre cambio do despotismo espanhol, existiam outros motivos para outorgar a liber-dade de comercio: o monopólio não conseguiu eliminar o contrabando de escravos; desde 1789 os ingleses impulsio-navam a política de proibição do trafico, atitude que alarmava tanto à metrópole quanto às colônias; as mudanças que se verificam nos territórios venezuelanos na exploração da mão de obra escrava, que na agricultura de plantação começa a ser substituída por relações de trabalho livre. Cfr. BRITO FIGUEROA, Op.Cit., p.183; __________, La estructura económica de Venezuela colonial. Caracas, 1996, p. 114. 40 BRITO FIGUEROA. La estructura económica de Venezuela colonial, p. 119. 41 BRITO FIGUEROA, El problema tierra y esclavos en la historia de Venezuela., pp 189 -190

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eran todos africanos o nativos de las Antillas” 42. De forma geral, desde finais do século XVII, as

referências no territorio aos escravos de origem africana diminuem, “en 1670 representan el 27%;

diez años más tarde, el 20%; hacia 1780 descienden al 15% y en 1790 llegan al 5% (con la espe-

cial significación de que esta cifra corresponde a negros bozales menores de veinte años, es decir,

de reciente exportación) y el 95% restante a negros, mulatos y zambos nacidos en el territorio

venezolano.” 43

Brito Figueroa afirma que o tráfico na Venezuela chegou até 1805 e em 1810, na hora em

que a Junta Suprema decretou a abolição do tráfico, “simplemente refrenda legalmente una situa-

ción de hecho; en realidad había desaparecido” 44. Por sua vez, Acosta Saignes assinala que o

comércio de escravos praticamente acabou nos territórios venezuelanos em 1797. No entanto, em

1801 tem-se notícia do asiento concedido a três comerciantes para introduzir 4.000 africanos bo-

çais, embora em finais de 1803 nenhum carregamento tivesse sido introduzido45. Autores como

Lombardi, retomam a tese de Figueroa afirmando que “los fundadores de Venezuela consideraron

conveniente declarar terminado el tráfico de esclavos mediante una ley porque ya de hecho había

terminado”46.

Mas, se o tráfico tinha desaparecido dos territórios venezuelanos, qual a necessidade - nos

momentos de preocupações maiores como a guerra, a construção da nova república e de tantas

mudanças políticas, econômicas e sociais - de se preocupar com um problema já resolvido? É

possível imaginar, por exemplo, o fim do tráfico ilícito durante o século XIX sem explicação ne-

nhuma? Ou que os proprietários das plantações não procurassem resolver a falta de escravos por

causa da guerra mantendo certo tipo de tráfico com sua demanda? Se o tráfico tinha sido extinto,

porque foi tema recorrente nas sucessivas leis de manumissão, desde 1822 - com a promulgação

da lei do ventre livre, assim como na lei anti-trafico de 1825 e nas sucessivas leis de manumissão

de 1830 e 1848 até o decreto de abolição da escravidão de 1854? Em 1810, a Junta Suprema de

Gobierno publica um decreto proibindo o tráfico negreiro e a comercialização de escravos. Um

ano depois a Constituição Federal de 1811 “Hecha por los representantes de Margarita, de Méri-

42REGISTRO PRINCIPAL DE CUMANÁ, s/clf. Escrituras de ventas de esclavos. Cit. por BRITO FIGUEROA, Op. Cit., p.195 43 BRITO FIGUEROA, Idem. P. 190 44 BRITO FIGUEROA, La estructura económica de Venezuela colonial, pp.120-121 45 ACOSTA SAIGNES, Op.cit., p.120 46 ACOSTA SAIGNES, Idem

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da, de Cumaná, de Barinas, de Barcelona, de Truxillo e de Caracas” 47 inclui no seu capítulo no-

vas restrições ao tráfico. Com efeito, nele ficava estabelecido que

el comercio iníquo (sic) de negros prohibido por decreto de la Junta Su-prema de Caracas en 14 de Agosto de 1810, queda solemne y constitu-cionalmente abolido en el territorio de la unión, sin que puedan de modo alguno introducirse esclavos de ninguna especie por vía de especulación mercantil. 48

O que chama a atenção sobre a promulgação de ambos os textos é que grande parte do

grupo dos fundadores dessa primeira república pertenciam à classe dos “mantuanos”, a aristocra-

cia territorial proprietária de escravos. Refletindo sobre o fracasso dessa primeira tentativa repu-

blicana, os próprios líderes perceberam a importância fundamental dos escravos aderirem ao seu

projeto, coisa que não conseguiram durante o curto período de seu governo. Os escravos, frente à

tímida atuação dos legisladores da Primeira República, tinham poucas chances de ver melhorar

sua condição porque consideravam que o poder político nas mãos de “sus señores naturales no

era sino una argolla más añadida a la cadena” 49. Então, o que levou os patriotas a proibir o tráfi-

co de escravos? Procurar respostas na mentalidade e nas influências da elite revolucionária e aris-

tocrática e nos seus interesses políticos é um possível caminho.

A minoria aristocrática que acabou se impondo aos funcionários espanhóis da colônia, vi-

nha recebendo desde finais do século XVIII as influências do pensamento político da Iluminação

e do movimento de independência norte-americano, com sua ideologia republicana, e liberal, do

qual foi a principal difusora. Tratou-se de um grupo de personalidades brilhantes e de intelectuais

com muita notoriedade50. A progressiva propaganda de um pensamento moderno foi se afirman-

do em contraposição a uma ideologia arcaica, alicerce das lógicas coloniais. Desde o início da

independência vai dar “insinuação de uma leve mudança do sistema por vias pacíficas apresen-

tando os defeitos do governo imperial até a negação absoluta do passado colonial” 51. Mas a re-

cepção e a adaptação das idéias da Modernidade no contexto venezuelano ficou longe de ser ho-

47 TEXTOS CONSTITUCIONALES 1811-1999: Caracas, Servicio Autónomo de Información Legislativa, 2003. p. 13 48 Idem, Capítulo nove, nº 202, p. 31. 49 ROJO, Zulay. Esclavos y manumisos en el contexto trujillano del Siglo XIX (1800-1820) in Agora: Trujillo, 13. Enero-Junio, 2004 ,p. 165 50 PINO ITURRIETA, Elías. La mentalidad venezolana de la emancipación (1810-1812). Caracas: Ediciones Eldorado, 1991, p. 14 51 PINO ITURRIETA, Op.Cit., p. 200

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mogênea. Recheada por contradições, ela foi assimilada de forma bastante heterogênea. Como

assinala Pino Iturrieta:

“...los intereses de la clase dirigente, y también el estado de las costum-bres, produjeron la publicación mediatizada de las ideas modernas, la presentación de la modernidad reduciendo su alcance original. Así tene-mos que, por ejemplo, en los aspectos político y social barrieron con grandes figurones de la tradición, como el rey y los nobles, y las distin-ciones clasistas que juzgaron antinaturales, pero no aceptaron el concepto de soberanía popular tal cual se presentó en las proclamas de la revolu-ción francesa, ni sus “teorías impracticables” de igualdad. En el aspecto religioso apenas esbozaron un comedido boceto de transformación. En cambio, aconteció distinto en el terreno de lo económico, pues, como la modernidad favorecía íntegramente a lo que llamaban intereses de la Pro-videncia, o sea, intereses del mantuanismo, proclamaron ruidosamente sus postulados más novedosos, en especial el libre cambio”52

Esta mudança de mentalidade permitiu acolher mais diretamente a influência da Consti-

tuição dos Estados Unidos publicada em 1787, primeira constituição escrita, que se apresentava

como modelo a seguir. Logo depois da Declaração da Independência em 1776, as antigas treze

colônias inglesas escreveram suas constituições, duas das quais, a de Pensilvânia e Virgínia, es-

critas no mesmo ano da independência e que chegaram às mãos dos mantuanos venezuelanos.

Desde o ano 1784, Francisco de Miranda trabalhava no projeto de libertação do continente hispa-

no-americano, para o qual pediu ajuda de constitucionalistas norte-americanos. Sem encontrar o

apoio procurado nos Estados Unidos, ele viajou para Londres, por onde permaneceu por 20 anos,

voltando à Venezuela no ano de 1810 para trabalhar junto aos revolucionários venezuelanos no

estabelecimento de um governo inspirado pelo modelo da Constituição dos Estados Unidos53. É

interessante salientar que a constituição americana introduz nos seus artigos adicionados e emen-

das, a proibição ao tráfico (Emenda XIII). Com efeito, estabelece na secção primeira que

Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua ju-risdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado54

52 Idem, p.204 53 BLAUSTEIN, Albert P. La Constitución de Estados Unidos: la más valiosa exportación de la nación. Dispo-nível em http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0304/ijds/blaustein.htm 54 CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS Tradução disponível em http://www.embaixadaamericana.org.br/index.php?action=materia&id=643&submenu=106&itemmenu=110

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Na secção dois do mesmo artigo se assinala que o Congresso garantiria a execução do ar-

tigo legislando adequadamente sobre o mesmo55. Ainda no campo ideológico, não devemos ne-

gligenciar a influência e admiração dos patriotas pelo pensamento político e jurídico inglês. Um

dos constituintes mais influentes da época, Juan Germán Roscio56, foi um grande admirador da

Inglaterra da qual afirmava que, junto com suas colônias “gozaban de la libertad de pensar, ha-

blar, discurrir, imprimir...” e atribuía à independência das treze colônias ao fato de ter nascido

“bajo la buena constitución de Inglaterra” 57. Ele escreverá ao seu amigo Andrés Bello58, em mis-

são na Grã Bretanha de lhe trazer “aunque sea un compendio de la actual legislación inglesa y

alguna gramática y diccionario anglohispano; ítem otros libritos de importancia. Acuérdese Ud.

que Londres fue el lugar donde escribió el Padre Viscardo su Legado, y donde obtuvo la mejor

apología el contrato Social de Rousseau” 59.

55 Idem 56 ROSCIO, Juan Germán. (San José de Tiznados (Edo. Guárico) 27.5.1763- Cúcuta (Colombia) 10.3.1821) Advo-gado e político, um dos principais ideólogos do movimento da independência. Doutor em Direito Canônico em 1794, e civil em 1800. Foi a alma da revolução de 1810. Roscio manteve um trabalho constante de propaganda a favor da emancipação tanto nos seus atos de homem de estado, nos seus artigos publicados na imprensa, na sua abundante correspondência epistolar quanto nos seus discursos no Congresso Constituinte da Venezuela de 1811. Foi o princi-pal redator da Ata da Independência em 1811 e participou na elaboração da Constituição de Venezuela do mesmo ano. Em 1812, após o triunfo dos espanhóis, Roscio foi encarcerado e enviado na Espanha. Uma vez liberado, viajou para a Jamaica e os Estados Unidos. Em 1818, ao lado de Bolívar, ele participa na reconstituição da República de Venezuela e na criação da Grande Colômbia. Foi sucessivamente diretor geral de Rendas, presidente do Congresso de Angostura, vice-presidente do departamento de Venezuela e vice-presidente da Grande Colômbia. Ocupava esta última posição quando morreu, pouco tempo antes de se reunir o Congresso de Cúcuta Cfr. DHV, Caracas: Funda-ción Polar, 1989 57 Epistolario de la Primera República, Vol.II, pp. 184, 185. Cit. por PINO ITURRIETA. Op. Cit., p.171, nota 50. 58 BELLO, Andrés: (Caracas, 29.11.1781-Santiago do Chile, 15.10.1865) Humanista, poeta, legislador, filósofo, educador, crítico e filólogo; autor de um trabalho que constitui a base mais sólida da civilização Hispano-Americana. Viveu na Venezuela nos três últimos decênios da dominação espanhola e em outros lugares mais da metade do pri-meiro século de vida independente das repúblicas hispano-americanas. Os últimos anos de sua vida, no Chile, são aqueles da consolidação da existência política e cultural dos novos estados. Assim foi a época de Bello: Colônia (Caracas, 1781-1810); Guerra da independência (Londres, 1810-1829); governo e consolidação das nacionalidades Hispano-Americanas (o Chile, 1829-1865). Seu pensamento e seu trabalho são determinados por estas circunstân-cias. Em 1810 viaja da Venezuela para Londres acompanhando a Simón Bolivar e a Luis Lopez Méndez na missão diplomática nomeada pela Junta de Gobierno de Caracas perto do governo inglês. Permanecerá em Londres até 1829. Em 1828 é nomeado cônsul general de Colômbia em Paris. Em 1829 traslada-se a Santiago do Chile onde sua atividade é surpreendente, tanto no estudo quanto em seu trabalho escrito. Ali publicará a maior parte de sua obra e permanecerá até sua morte. Em 1843 é nomeado reitor da recém inaugurada Universidade de Chile; em 1847 escreve a Gramática da língua castelhana destinada ao uso dos americanos; em 1851, é designado membro honorário da Real Academia Española. A intenção fundamental de Bello pode se resumir no “projeto civilizador” a favor dos países que chegaram à independência nacional, após de uma dura luta. Isto é, tudo o seu trabalho apresenta um profundo conteúdo político e educativo. Toda sua atividade político-educativa converge num propósito só: definir a civilização Hispano-Americana para o qual ele utiliza os meios ao seu alcance: o livro, as lições, o teatro, o jornal. Por esse motivo ele é considerado o fundador da cultura hispano-americana e primeiro humanista do continente. Cfr. DHV, Caracas: Fundación Polar, 1989 59 PINO ITURRIETA, Idem.

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Mas do ponto de vista político, uma das maiores preocupações dos patriotas desde a cria-

ção da Junta de Gobierno foi o reconhecimento da jovem república, especialmente pela principal

potência naval e comercial da época, a Inglaterra. Em junho de 1810, Simon Bolívar, Luis López

Méndez60 e Andrés Bello foram enviados pela Junta de Caracas com a esperança do novo gover-

no ser reconhecido pela Grã Bretanha, assim como de receber seu apoio para manter a autonomia.

Mas nesse momento, a Grã Bretanha estava em guerra contra Napoleão e precisava da colaboraç-

ão da Espanha com quem tinha assegurado um tratado de aliança contra França. Por este motivo

o governo inglês estava impedido de receber oficialmente representantes das colônias espanholas.

No entanto, devia manter boas relações com elas já que, caso conseguissem a independência,

viriam a ser importantes mercados para o comércio inglês. Por isso, na hora das primeiras notí-

cias sobre a revolução de Caracas, a Inglaterra adotou uma política de reconciliação entre a Es-

panha e a Venezuela, mantendo a neutralidade e não reconhecendo o novo regime venezuelano.

Entretanto, Lord Wellesley, ministro britânico de Relações Exteriores, recebeu a delegaç-

ão venezuelana de forma privada na sua casa, mas a posição de Bolívar sobre a impossibilidade

de reconciliação com a Espanha se manteve firme. A missão não logrou seu objetivo, mas Bolí-

var percebeu que a política britânica de neutralidade não necessariamente significava para a Ve-

nezuela procurar apoio em algum outro lugar, mas sim aceitar que a neutralidade britânica era

melhor que o apoio inglês à Espanha nos seus esforços de apagar a rebelião colonial. Esta neutra-

lidade podia ser aproveitada pela Venezuela 61.

Mesmo sem ter atingido seus objetivos, mas com a esperança do reconhecimento tão esperado,

podemos pensar que o artigo sobre a proibição do tráfico apontava também nesse sentido, já que 60 LOPEZ MENDEZ, Luis. (Caracas, agosto 1758-Curacaví (o Chile) 1841) Líder civil da independência da Vene-zuela. Advogado e professor de filosofia. Diplomata. Representante da Venezuela e da Colômbia em Londres. Em 1810 abraçou a causa da revolução venezuelana. No mesmo ano, viajou a Londres com Simón Bolivar e Andrés Bello na comissão que representava a Junta Suprema de Caracas. O objetivo era conseguir o reconhecimento do novo sistema político venezuelano pela Inglaterra. Ele ficou em Londres para concluir as conferências com o minis-tro britânico. Em 1817 foi nomeado agente e comissionado especial da República de Venezuela em Londres. No final desse ano, come+a a preparação e a organização expedições de oficiais e de tropas britânicas e a contratação de material de guerra para a Venezuela. Em 1821, a República de Colômbia revogou seus poderes e pedi-lhe de voltar para informar sobre suas operações. Em 1822 foi nomeado agente diplomático nas cortes de Francia, os Países Bai-xos e as Cidades Hanseáticas, com a ordem de se tornar enviado especial e ministro plenipotenciário no caso elas reconhecessem a República de Colômbia. Em 1826 foi a Peru. Em janeiro de 1827, se juntou ao movimento de insu-rreição do coronel Jose Bustamante, mas ele foi traído e seus seguidores feitos prisioneiros. Lopez Méndez foi leva-do a Bogotá. De Colômbia ele passou para o Chile, onde morou até o fim de sua existência. Cfr. DHV, Caracas: Fundación Polar, 1989. CD-ROM 61 WADDELL, D.A.G. Bolívar y la Gran Bretaña in Bolivarium, II, Caracas, 1992, p. 321. A neutralidade britânica não foi uma contribuição menor às independências americanas já que a Espanha esperava que a Inglaterra, como aliada, lhe ajudasse a reprimir aos insurgidos. Mas a Grã Bretanha não só não interveio como persuadiu às outras potencias européias a não ajudar militarmente à Espanha.

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significava aceitar uma das principais prioridades da política externa inglesa. Assim, a introdução

do dito artigo correspondia, ao mesmo tempo, a uma ruptura significativa com o período colonial

“antigo”, porém, apesar dos seus aspectos revolucionários, não afetava os proprietários de escra-

vos porque mantinha o regime escravista, se alimentando de escravos com o mercado interno e o

contrabando. Avançava-se desse modo na modernidade resguardando os interesses econômicos e

políticos da elite e respondendo às expectativas inglesas.

No entanto, se bem os argumentos avançados tentam dar conta das razões dos patriotas

para a abolição do tráfico de escravos africanos a partir do inicio do processo de emancipação,

elas não explicam o silêncio dos historiadores com respeito ao tráfico durante o século XIX. Con-

sideramos que uma das razões de peso para esse silêncio pode ser procurada no desejo, a partir de

1830 e, sobretudo nas últimas décadas do século XIX, de definir uma identidade nacional na qual

o “estigma africano” fosse banido por completo. Já junto com o decreto de abolição da escravid-

ão em 1854, o presidente Monagas decretou a proibição das distinções raciais nos censos da po-

pulação. Isso foi visto por alguns historiadores como o desejo das elites de esquecer um passado

com a marca da escravidão62. Mas, não podemos esquecer a dinâmica da organização social em

castas, herdada da Colônia, excludente segundo critérios de cor e que atingia de forma mais radi-

cal aos negros. A elite parda quis aproveitar o processo de independência, não para favorecer os

escravos africanos ou seus descendentes libertos, mas sim para se igualar jurídica e politicamente

aos brancos crioulos no âmbito da nova cidadania, pois economicamente já os igualavam, porém

mantendo a estrutura social da colônia e o sistema escravista63. Com a independência, os pardos

conseguiram a igualdade64 e mais tarde os negros a liberdade, todos sob o conceito de cidadania,

sendo que como afirma Gómez, o sistema de castas vigente durante três séculos foi deslocado por

um novo sistema sócio-político onde o estigma africano não desapareceu mas se adaptou, pas-

sando a se transformar em preconceito racial. O preconceito, porém, desenvolveu a mesma funç-

ão excludente que no passado, mas a partir um ponto de vista de classes e associado à cor real da

62 LANGUE, Frédérique. La pardocratie ou l’itineraire d’une “classe dangereuse” dans le Venezuela des XVIIIe et XIXe siècles in Caravelle, n°67, 1997, pp. 57-72.

63 GOMEZ, Alejandro E. Las revoluciones blanqueadoras: elites mulatas haitianas y "pardos beneméritos" venezola-nos, y su aspiración a la igualdad, 1789-1812 in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Coloquios, 2005, En linha no 19 de março de 2005. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index868.html 64 Constituição de 1811

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pele (e não mais legal). Essa cor denotava a “mancha” africana, e na Venezuela tentou-se apagá-

la da memória coletiva, sublinhando a identidade miscigenada.65

Com efeito, desde os últimos anos do século XIX, a posição oficial da elite venezuelana

era a da afirmação da inexistência de preconceito ou discriminação raciais no país. No entanto,

ela deu forma a um tipo de racismo com atitudes anti-negras66. Na linha das teorias raciais euro-

péias e norte-americanas, elas procuraram branquear a população para “melhorar a raça” e atrair a

imigração européia. Nessa perspectiva, “elas interpretaram a formação de sua sociedade de ma-

neira a convencerem a si mesmas de que os negros não constituiriam uma parcela significativa da

população” 67. Com a imigração européia e a miscigenação das gerações futuras, os últimos tra-

ços de ascendência negra seriam eliminados.

Os autores positivistas foram os principais responsáveis em dar forma a esse pensamento.

Vamos nos deter num deles, José Gil Fortoul68, por ter um papel destacado, não só no desenvol-

vimento do pensamento racial, mas também na escrita da história nacional, refletindo nela a idéia

de nação das elites e formatando na sociedade certa visão de si mesma. Não existindo uma obra

que abrangesse a evolução constitucional da Venezuela e sendo considerada como “uno de los

medios más eficaces para generalizar y ampliar el conocimiento del superior destino y de las ne-

cesidades de los pueblos” 69 foi lhe encarregada em 1898, por decreto presidencial, uma obra his-

tórica que devia recopilar os logros do Estado liberal venezuelano durante o século XIX; uma

“Historia Constitucional de Venezuela, desde 1811 hasta nuestros días con una amplia introduc-

ción acerca del movimiento etnológico y sociológico de la Conquista y Colonia” 70. O objetivo

principal da obra era explicar a origem etnográfica do país, suas lutas pela Independência e mos-

trar os progressos institucionais da nação como República independente até o fim do século.

Gil Fortoul se tornou o principal expoente do pensamento racial venezuelano do século

XIX e o primeiro dos grandes intelectuais a tratar amplamente da questão racial no país.71 Ele

65 GÓMEZ, Alejandro E. El ‘Estigma Africano’ en los Mundos Hispano-Atlánticos, siglos XIV al XIX, in Revista de História, No.153 (2nd. Semester 2005), São Paulo, Universidade de São Paulo (Brazil), pp.179. 66Basearemos esta parte do trabalho no artigo de WRIGHT, Winthrop R. Imagens negras num mundo branco: aspec-tos sociopolíticos do racismo no século XX na Venezuela in Estudos Afro-Asiáticos (28): Outubro 1995, p. 156. 67 Idem. 68 FORTOUL, José Gil. 69 PRESIDENCIA DE LA REPUBLICA, Gaceta Oficial, nº 7.468, Caracas, 3 de diciembre de 1898. citado por PLAZA, Elena. La idea de Nación en la historiografía política venezolana del siglo XIX: el caso del resumen de la Historia de Venezuela de Rafael María Baralt in Bolivarium , Año V, 1996, p. 243. 70 Idem, pp. 243-244. 71 WRIGHT, Winthrop R. Imagens negras num mundo branco... p. 157.

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forma parte do grupo de intelectuais venezuelanos que transformaram raça em um conceito cultu-

ral e social e não biológico. Dessa forma, discutia raça em termos de aculturação e assimilação de

características européias prevendo o gradual desaparecimento dos negros através de sua absorção

numa raça hispânica cada vez mais branca. Como outros autores que trataram os negros como

segmentos anacrônicos da sociedade, ele não os tomou em conta como parte da futura sociedade

venezuelana. Fortoul declarava que na Venezuela a miscigenação envolvia principalmente bran-

cos e índios, mistura que ele considerava aceitável.

Seus artigos sobre mistura racial ajudaram as elites a aceitar o status de café con leche da

sociedade72. Isso marcou uma diferença em relação a outros intelectuais latino-americanos con-

temporâneos que consideravam a mistura racial como um obstáculo ao progresso. Para ele, ao

contrário, a mistura racial levava a um tipo racial mais forte e a mistura com os imigrantes bran-

cos ia fortalecer os mestizos venezuelanos. Essa imigração ia garantir uma mudança da desordem

e a instabilidade política para uma era de ordem e progresso73.

Quanto ao negro venezuelano, ele reconhecia sua contribuição à sociedade colonial vene-

zuelana, mas se referia a eles como personagens de um passado distante, ignorando sua presencia

como grupo na sua época. Como afirma Wright,

Não fez esforço algum para encorajar os venezuelanos de qualquer raça a ter orgulho de suas raízes africanas ou mantê-las vivas, nem sequer alu-diu à riqueza dessa herança africana. Em vez disso, tratava os negros ve-nezuelanos em termos abstratos, não como uma coleção de indivíduos diversos pertencentes a uma importante minoria racial.74

72 Essa expressão que define a miscigenação na Venezuela é devida ao poeta Andrés Eloy Blanco. Em 1944 ele es-creve no jornal El País uma coluna onde ele compara a composição racial na Venezuela com o café con leche. Ele fez o artigo em resposta a um amigo brasileiro que tinha lhe falado que o governo brasileiro tentava resolver o “pro-blema negro” oferecendo estipêndios aos brancos que casaram com negros. O poeta achou a idéia ofensiva e irrealis-ta. Os venezuelanos já tinham chegado num equilíbrio racial após séculos de miscigenação. Para ilustrar sua idéia, ele contou uma conversa que manteve com um professor norte-americano onde comparou as relações raciais entre a Venezuela e nos Estados Unidos com a preparação do café nos dois paises. Ele lhe disse: “Isso é o que acontece com a questão dos seus pretos. Na minha humilde opinião, vocês nunca souberam como tratar nem o café nem os Negros. O primeiro vocês deixam muito fraco, o segundo muito preto”. Ele concluiu: “Então, se América deve ser branca, eu prefiro nosso método de tostar o café. E nosso jeito de preparar café con leche. Está provado que é mais lento, mas é melhor” Cf. WRIGHT, Winthrop R. Café con leche. Race, Class and National Image in Venezuela. Austin: Uni-versity of Texas Press, 1996, p. 1. 73 WRIGHT, Winthrop R. Imagens negras num mundo branco... p. 157 74 WRIGHT, Idem,p. 158.

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Sua presença no presente, na maioria dos casos vivendo em situação de pobreza similar

com aquela de seus ancestrais escravos, só servia para lembrar de sua inerente inferioridade. Ele

esperava que eles fossem desaparecer em poucas gerações:

Com respeito aos negros de raça pura, trazidos para as Américas pelos espanhóis depois da quase destruição dos índios, não se os encontra em grande número exceto nas cidades do litoral, e estes vêm em sua maioria, das Antilhas. Provavelmente, logo desaparecerão como raça através da mistura com o resto da população75.

As gerações posteriores aceitaram sua avaliação sobre a composição racial venezuelana,

relegando os negros no âmbito da história. Assim, o silêncio sobre o tráfico de escravos no século

XIX e a insistência na afirmação do seu final no século XVIII pode ser inscrita nessa ideologia

racial e afirmar com o silencio e o esquecimento que a entrada dos últimos africanos no país foi

no século XVIII, não sendo introduzido mais nenhum num passado relativamente próximo. Dessa

forma, os ancestrais negros ficavam longe no tempo, fortalecendo a crença do seu desapareci-

mento gradual na miscigenação com os brancos.

Durante a guerra de independência, a política tanto realista quanto patriota de oferecer a

liberdade aos escravos que lutassem nos seus respectivos exércitos foi acolhida com muitas re-

servas pelos partidários de ambas facções. As razões eram praticamente as mesmas: o medo dos

libertos, convertidos assim em mais um grupo rebelde dentro da população livre, e sobretudo a

decadência da agricultura por causa da falta de mão de obra. Ambas razões intervinham nas po-

sições no que diz respeito ao tráfico. O território dividido pela guerra tinha uma política própria

realista e patriota com relação à proibição do tráfico. Enquanto os patriotas tinham proibido o

tráfico na constituição de 1811, os realistas estavam sob a autoridade da política e da legislação

espanhola. Em 1815, os responsáveis da defesa dos direitos de Espanha em Caracas recomenda-

vam ao Rei acabar com o tráfico porque a introdução de novos escravos aumentaria a já grande

população de cor. Na sua lógica, era necessário modificar o equilíbrio das cores na província para

assegurar a paz: “los blancos estaban muertos, los pardos inquietos y los esclavos eran peligro-

sos” 76. Um indício de que o comércio de escravos continuava na Venezuela apesar da guerra. Em

1814, uma campanha dos abolicionistas ingleses está por trás da pressão diplomática da Inglate-

75 Idem, p.159 76 LOMBARDI. Op. Cit. , p. 69

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rra sobre a Espanha que conduz à assinatura em 181777 do tratado internacional anglo-espanhol

por meio do qual Espanha comprometia-se à supressão do trafico e à abolição da escravidão num

prazo de três anos. O tratado envolvia as províncias realistas americanas como parte do Império

espanhol, e que foram informadas do tratado pelo seu Governador e Capitão geral, mas o acordo,

sem provisões específicas, permaneceu somente como retórica diplomática.

Na medida em que os patriotas iam se consolidando frente aos espanhóis e o perigo da

guerra ia passando, os proprietários de escravos, fazendo valer seu direito de propriedade, torna-

vam-se menos tolerantes ao recrutamento de escravos. Sua posição manteria-se até 1819 “cuando

el Congreso de Angostura empezó la reconstrucción del sistema de esclavitud en Venezuela” 78.

Como vimos no primeiro capitulo, o Congresso recusou a política abolicionista de Bolívar. Os

delegados mantiveram a proibição do tráfico como uma das medidas da extinção gradual da es-

cravidão, e estabeleceram uma multa de 1000 pesos por cada africano introduzido no território,

apesar de não retomarem no texto da constituição de 1819 o artigo da constituição de 1811 que

proibia o tráfico. Nenhuma das constituições posteriores (a da Grande Colômbia de 1821 e a da

Republica de Venezuela de 1830) introduziria no seu texto artigo semelhante. Mas as leis do

congresso de Angostura não tiveram força legal, já que os debates do Congresso foram a prepa-

ração para os debates mais importantes e abrangentes do Congresso de Cúcuta, estabelecido dois

anos depois, em 1821 marco do nascimento da Grande Colômbia.

A Lei de escravos de Cúcuta de 1821, conhecida como do “ventre livre”, determinava a

liberdade para filhos de escravos nascidos a partir da data de sua promulgação (21 de julho de

1821). Seus artigos 5, 6 e 7 determinavam que os escravos não poderiam ser vendidos fora da

província onde se encontravam com o intuito de não separar pais e filhos, proibição que só era

vigente até os filhos chegarem à puberdade. Ficava proibida a venda de escravos fora do território

de Colômbia e, caso isso ocorresse, o traficante seria obrigado a devolver os escravos que passa-

riam a ser livres. Caso os escravos não fossem devolvidos estabelecia-se uma multa de 500 pesos

(a metade da multa estabelecida na lei de Angostura). Por último, proibia-se a introdução de es-

cravos no território permitindo só a entrada de um empregado doméstico impedido de ser vendi-

do no país. Os escravos introduzidos a revelia da proibição prescrita em lei eram declarados liv-

77 ROLDAN, Inés. La diplomacia británica y la abolición del tráfico de esclavos cubano… p. 220-221; HOCHS-CHILD, Adam. Enterrad las cadenas. Profetas y rebeldes en la lucha por la liberación de los esclavos de un imperio. Barcelona: Ediciones Península, 2006, pp.324-326. 78 LOMBARDI. Op. Cit., p.74

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79

res. A dita lei só estabelecia penas contra os traficantes, mas não contra os senhores de escravos

que compravam os africanos ilegalmente importados.

Duas razões poderiam explicar o fato da lei de Cúcuta mitigar as penas para os traficantes

de escravos. Segundo Rondon Márquez, na Nova Granada o número de escravos era superior ao

número de escravos na Venezuela e os proprietários neo-granadinos formavam um grupo mais

poderoso. Além disso, a campanha de Carabobo ainda não tinha acontecido e as províncias vene-

zuelanas com mais escravos permaneciam sob domínio espanhol sendo que poucos proprietários

representantes venezuelanos participaram no Congresso, pelo que os representantes colombianos

eram maioria79. No entanto, o descontento dos proprietários venezuelanos permitiria pensar num

acordo com os colombianos no que diz respeito à legislação sobre manumissão e à proibição do

tráfico de escravos. Seria necessário o recurso aos debates da lei no congresso para estabelecer as

divergências e a concordância de posições entre os representantes dos dois territórios.

A lei fracassou, e paralelamente a ela, os esforços pela extinção do tráfico, por causa da

falta de controle das autoridades nos assuntos administrativos80. O legislador Mosquera na sua

exposição ao congresso em 1825 sobre a necessidade de reformar a lei de manumissão denuncia-

va a atitude dos governos que não interferiam na compra ilegal de escravos, mas bem ao contrário

autorizavam e permitiam-na: “Aquí se trata de esclavos comprados bajo la sanción de las leyes.

Los gobiernos no solamente cierran los ojos sobre este tráfico, sino que la autoriza y permite al

plantador que compre y venda negros, según su voluntad, y sus necesidades” 81. Com efeito, co-

mo assinala Rodríguez para o caso da província de Maracaibo, apesar das disposições das autori-

dades, “durante toda la puesta en práctica del proceso de manumisión se continuó introduciendo

esclavos en la provincia. Esto lo demuestra la documentación localizada en el Archivo Histórico

del Zulia” 82. Na primeira metade dos anos 1820, no plano internacional, a principal preocupação

tanto do recém independente Brasil quanto da recém criada Grande Colômbia era o reconheci-

mento internacional, especialmente da Inglaterra. E como já assinalamos anteriormente, a Grã

Bretanha não reconheceria nenhum estado se o comércio de escravos não fosse abolido. Em feve- 79 RONDON MARQUEZ. La esclavitud en Venezuela. El proceso de su abolición y las personalidades de sus decisivos propulsores: José Gregorio Monagas y Simón Planas. Caracas: Publicación conmemorativa del Cente-nario de la Ley abolicionista (24 de marzo de 1854). C.A. Tip. Garrido, 1954.p. 42 80 Lombardi no seu estudo sobre a abolição da uma mostra do fracasso da política de manumissão. Cf. pp. 79-80, notas 63 e 64. 81Memoria para reformar la ley de manumisión presentada al Congreso de 1825 por Joaquín Mosquera in Materiales para el estudio de la cuestión agraria en Venezuela (1810-1865). Mano de obra: Legislación y administración, Vol. I, t. 4, p. 58. Citado por RODRIGUEZ, Marisol. Op. Cit., p. 53 82 RODRIGUEZ, Marisol. Idem

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reiro de 1823, o governo inglês reafirmava em Verona os princípios condenatórios ao comércio

de escravos, os quais eram propostos de serem adotados nas negociações para as novas nações.

Canning, o ministro das relações estrangeiras inglês, deu instruções ao representante inglês no

Rio de Janeiro de que se evitasse um ar ameaçador nas conversações. Ao contrário disso, deveria-

se “simplesmente exprimir o desejo do governo britânico de que um gesto assim necessário fosse

proposto por um ato voluntário do governo brasileiro, em antecipação ao desejo da Grã-Bretanha,

antes de obter o resultado por outros meios” 83.

No começo, as negociações entre o Brasil e a Inglaterra foram amigáveis, mesmo que os

mais favoráveis à proibição do tráfico achassem a abolição imediata precipitada. José Bonifácio,

Ministro dos Negócios do Império e Estrangeiros propunha uma suspensão gradativa, em dois ou

três anos, com vistas a deixar tempo para substituir a mão de obra escrava africana pela dos imi-

grantes europeus, brancos e livres. O Brasil foi reconhecido em 1825 e, em novembro de 1826,

assinava-se o tratado anglo-brasileiro que previa o fim do tráfico em três anos e cujas repercuss-

ões marcariam profundamente as relações entre o governo brasileiro e aquele inglês. O tráfico

poderia continuar legalmente até 183084.

Quanto ao reconhecimento da Grande Colômbia, as exigências anti-tráfico eram as mes-

mas, mas podemos pensar que as negociações nesse sentido encontraram menos dificuldades que

as negociações brasileiras devido ao peso econômico, político e social do tráfico e da escravidão

no Brasil. Nesse sentido, é sintomática, por exemplo, a rapidez com que a lei abolindo o tráfico

foi promulgada na Colômbia - dois meses depois de ser reconhecida pela Inglaterra85. Neste caso,

as pretensões inglesas vinculavam-se aos interesses de ordem econômica e ao jogo de poder eu-

ropeu. Já no caso colombiano, suas motivações conectavam-se especialmente aos interesses da

guerra. Com efeito, foram precisos dois anos de esforços de Canning para superar a resistência do

rei e do governo da Grã Bretanha, incluindo a ameaça de demissão, para reconhecer a Colômbia

em dezembro de 1824. O fator mais preponderante nessa decisão foi a possibilidade da França e

dos outros poderes reacionários da Santa Aliança aproveitarem-se da ocupação francesa da Es-

panha para tentar restabelecer a autoridade espanhola na América e assim mudar o balanço do

poder na Europa. Canning explicaria dois anos depois na Câmara dos Comuns: “Procurei meios

83 RODRIGUES, Jaime. Op. cit., p. 99 84 Idem, p. 100 85 O governo inglês reconheceu a Colômbia em dezembro de 1824 e a lei foi aprovada dois meses depois em feverei-ro de 1825

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para encontrar o equilíbrio em um outro hemisfério... Decidi que se a França tinha a Espanha, não

devia ser a Espanha com as Índias. Acordei o Novo Mundo à sua existência para restabelecer o

equilíbrio no Velho...” 86.

Quanto às guerras de independência, durante a época de maior intensidade no confronto

armado (1817-1822) foi a Grã Bretanha quem proporcionou a maior parte do equipamento militar

e naval, apesar da proibição assinada com a Espanha de não fornecer armas. Também durante

esses anos foram recrutados mais de 5000 soldados britânicos para lutar no exército de Bolívar.

Além disso, os agentes financeiros ingleses davam crédito aos revolucionários, com a esperança

de que a vitória acabaria com o monopólio comercial da Espanha e abriria novos portos ao co-

mércio britânico87. A lei de 18 de fevereiro de 1825 declarava pirataria o tráfico de escravos e

estabelecia a pena de morte para os traficantes. Ela começa com a constatação da ineficácia das

leis precedentes sobre proibição do tráfico, especialmente a de 1821, por isso:

Para hacer más eficaces las disposiciones de la Ley de 21 de Julio del año 11º, que con el designio de abolir gradualmente la esclavitud, prohí-be la introducción de esclavos en Colombia, es necesario designar penas proporcionadas contra los que infringen esta Ley y contra los que hollan-do los derechos de la libertad natural y los principios eternos de la razón, y de una sana política, se emplean en el tráfico de esclavos de África”88.

Como bem explicaria, anos mais tarde, o Secretario de Relações Exteriores venezuelano

ao Encarregado de Negócios britânico na Venezuela:

“La ley colombiana de 28 de febrero de 1825 que lo es también de Vene-zuela, declara piratas a los ciudadanos que como reos principales o cóm-plices se encuentren llevando, conduciendo o transportando una o más personas extraídas de África como esclavos y les impone la pena de mu-erte lo mismo que a los comandantes pilotos y marineros de buques na-cionales que ejecuten los propios actos dentro de la jurisdicción del país o alta mar; también considera y juzga piratas y los castiga con pena de muerte a los comandantes o maestres, pilotos y marineros y demás per-sonas de cualquier nación, siempre que se hallen llevando, transportando, comprando o vendiendo africanos como esclavos en los puertos situados dentro de sus aguas; impone la pena de confiscación a los buques halla-dos dentro de ellas con esclavos, inclusive el cargamento, siempre que no sean criados particulares ya procedan de las Antillas, ya de cualquier otro

86 TEMPERLEY (H.), The Foreign Policy of Canning, 1822-27. Londres, 1966, p. 584. Citado por WADDELL. Op. Cit., p. 326 87 WADDELL, D. A. G. Op. cit., pp 327-328. 88 Ley de 18 de febrero de 1825. Archivo General de la Nación – Colombia, Sección República, Fondo: Libros Ma-nuscritos y Leyes originales de la República, Libro nº 50

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lugar que no sea el África, condena a presidio de diez años al comandan-te, dueño, sobrecargo de tales embarcaciones; y contiene en fin otras dis-posiciones que se encaminan al mismo objeto de abolir el bárbaro co-mercio de hombres.” 89

O Tribunal da Marinha era o encarregado dos julgamentos e o responsável pelo processo

até a condenação e execução das sentenças, nos mesmos termos daqueles contra os piratas. Mes-

mo sendo uma legislação mais dura e completa comparada à lei de 1821, continuava isentando de

qualquer punição os compradores de africanos ilegalmente importados, o que aconteceria tam-

bém com a lei brasileira de 1850. Na segunda metade da década de 1820, no Brasil, a discussão

sobre o tráfico foi central e o tratado com a Inglaterra perduraria como tema recorrente. O debate

ficou marcado pela pressão inglesa para sua extinção, questão colocada como de soberania frente

às ingerências externas90. Apesar do debate na Venezuela sobre a assinatura de um tratado com a

Inglaterra proibindo o tráfico ter ocorrido uma década mais tarde (as negociações começaram em

1837 e o tratado foi finalmente assinado e ratificado em 1839), as razões e argumentos contra o

tratado coincidiam em vários pontos fundamentais.

Tanto no Brasil como na Venezuela, parlamentares e um setor da opinião pública nega-

vam que a intenção inglesa fosse determinada pela filantropia. Para ambos ficava claro que os

interesses econômicos da Grã Bretanha eram o principal motivo da supressão do tráfico tran-

satlântico. Para os brasileiros, os ingleses, com sua pretensão de conquista da África queriam

eliminar a influência comercial brasileira naquele continente91, enquanto para os venezuelanos

era evidente que quanto menos os países da América do Sul produzissem mais aumentaria a pro-

dução nas colônias orientais inglesas, especialmente na Índia, que poderia prover de açúcar, café,

algodão e outros produtos os mercados europeus. Por outro lado, as questões de soberania nacio-

nal emergiram com nuances diferentes.

Para o Brasil, os interesses comerciais do tráfico eram muito importantes e a previsão de

sua extinção em três anos indignava os parlamentares, daí suas propostas de projetos que prolon-

gassem a data da extinção. Tal como assinala Rodrigues, “se a questão do tráfico serviu muitas

vezes como argumento para reafirmar o principio da soberania, o contrário também é verdadeiro.

89 ACMRE. Volume 29. Ministério de Relaciones Exteriores. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática, fólio 174. Carta do Secretario de Relações Exteriores venezuelano, Pedro Carlos Gellineau ao Encarregado de Negócios britâ-nico Sr. Belford Hinton Wilson. Caracas 3 de Maio de 1851 90 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit., p. 101 91 Ibidem

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Sob argumento da garantia da soberania também se esconderam os interesses ligados ao comércio

de escravos” 92. Mas a ameaça da ingerência inglesa à soberania brasileira não só se manifestava

através da determinação na lei de um tempo para o fim do tráfico como também pelo fato de pre-

ver penas para os brasileiros que a descumprissem, atribuição legisladora prerrogativa da assem-

bléia. Os navios contrabandistas apresados seriam julgados por comissões mistas, isto é, por tri-

bunais estrangeiros sendo que esta era uma função que caberia às autoridades brasileiras. Por

outro lado, as conseqüências para a economia brasileira eram graves visto que limitar seu comér-

cio significava renunciar ao imposto gerado pelo tráfico. Além disso, a assinatura do tratado tinha

criado uma grande tensão entre o Executivo e a Câmara porque o Executivo tinha assinado o a-

cordo sem o conhecimento da Câmara.

No caso da Venezuela, mesmo gerando um debate com pontos convergentes aos argumen-

tos brasileiros, partia-se de uma situação diferente. O próprio tratado no seu artigo 3 reconhecia

que a promulgação da lei de 1825 “ha producido el efecto deseado, supuesto que hasta ahora no

ha sido infringida por ningún venezolano” 93. Isto é, os venezuelanos não participavam direta-

mente do tráfico e portanto o comércio transatlântico de escravos africanos não era significativo

na economia venezuelana como acontecia no caso brasileiro. Desde 1821, as leis tinham restrin-

gido a entrada de escravos a um criado por família e mesmo sendo infringida, a entrada de africa-

nos não parecia ser, durante esses anos, muito significativa como veremos.

No que diz respeito às questões de soberania nacional, dois eram especialmente os argu-

mentos desenvolvidos. Por um lado, não se entendia por que era necessário que uma nação es-

trangeira tivesse direito de visita aos navios venezuelanos tendo como justificativa impedir um

tráfico que já estava proibido no país desde 1825. Esse foi sempre um argumento recorrente: o

tráfico já estava proibido na Venezuela pelas leis. Diferente do tratado anglo-brasileiro, a questão

legislativa e de julgamento dos navios não se colocava nas discussões porque o tratado anglo-

venezuelano estipulava que cada um dos países julgaria os seus próprios navios. A Venezuela

ditaria as leis necessárias para impedir o tráfico, “procurando entonces que esté en armonía con

las que, sobre el mismo objetivo, hubiere dictado la Gran Bretaña” 94. Essa fórmula de concessão

92 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit. p. 102. 93 Artigo 3 do tratado anglo-venezuelano proibindo o tráfico de escravos em TRATADOS PÚBLICOS Y ACUER-DOS INTERNACIONALES DE VENEZUELA (INCLUYÉNDOSE LOS DE LA ANTIGUA COLOMBIA) , Volu-men I (1820-1900). Edición conmemorativa del primer centenario de la Batalla de Ayacucho, Caracas, Ministerio de Relaciones Exteriores, 1924, pp. 122. 94 Artigo 3 do tratado anglo-venezuelano...

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para ambas as nações, podia ser aceita pela Venezuela porque não a comprometia formalmente e

além disso era, ao mesmo tempo, uma forma dos ingleses manterem certo controle sobre as leis

venezuelanas do tráfico.

O segundo argumento dizia respeito às indenizações aos navios que no caso da Venezuela

não estavam previstas, contrariamente aos tratados assinados com outros países como Espanha e

Portugal. Depois de dois anos de longas negociações, o tratado foi assinado com sérias modifi-

cações introduzidas pela Inglaterra, como reconheceria o encarregado de negócios, sendo que a

imprensa venezuelana considerou que a soberania nacional tinha se salvaguardado já que o tráfi-

co interno de escravos permanecia, sendo tal permanência também objeto de discussões. Segundo

a imprensa, tratava-se de um tratado “todo americano y debe adoptarse” 95. Embora o enfrenta-

mento entre o congresso e o Executivo não fora tão aberto como no caso do Brasil, o diário do

encarregado inglês na Venezuela assinala as divergências entre ambos os poderes e o desacordo

do General Paez com as decisões do Congresso, já que o Presidente desejava ver aceito o tratado.

Concordamos com Rodrigues quando este afirma que não se deve negligenciar o fato da luta pela

manutenção do statu quo nascer da dependência que a sociedade brasileira (e também a venezue-

lana) criara em relação à escravidão, tendo seus valores enraizados nela, embora fosse reconheci-

do publicamente que a condição dos escravos era oposta ao bem do gênero humano. No Brasil, os

interesses comerciais do tráfico e as divergências em torno do seu final, fizeram com que a lei de

1831 abolindo o tráfico não se cumprisse, apesar das penas que impunha. O debate parlamentar

sobre o tema continuou até meados da década de 1850. O tráfico era considerado necessário para

o bom funcionamento da agricultura, mas ao mesmo tempo, representava um problema de relaç-

ões exteriores, especialmente com a Inglaterra, daí a apresentação esporádica nesses anos de pro-

jetos para sua extinção96. Quando a República da Venezuela se separa da Grande Colômbia, a

primeira lei promulgada pelo Congresso de Valencia foi a de 2 de outubro de 1830 reformando a

lei de manumissão de 1821. No que diz respeito ao tráfico de escravos, retoma os seus artigos 7,

8 e 9 praticamente com a mesma formulação daquela dos artigos sobre o tráfico da lei de 1821, só

permitindo a entrada de um escravo para o serviço doméstico que não poderia ser vendido no

país. A única modificação nesse sentido está no artigo 8 que reduz a multa que penalizava aos

traficantes de 500 a 300 pesos por cada escravo introduzido e vendido no país.

95 Correo de Caracas, Caracas,16 de abril de 1839, nº 15 in Materiales para el estudio de la cuestión agraria en Venezuela (1810-1865). Mano de obra: Opinión, T. 5. vol. II p. 154. Cit. por RODRIGUEZ, Marisol, Op. Cit., p. 77 96 RODRIGUES, Jaime, Op. Cit., p.108

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Sobre o funcionamento do tráfico durante esses anos em algumas províncias venezuelanas,

o estudo de Marisol Rodriguez sobre Maracaibo (situada na parte ocidental do país, região de

fronteira com a Nova Granada e as Antilhas) é revelador. Segundo afirma a autora, os efeitos das

leis proibindo o tráfico tinham conseguido controlá-lo moderadamente, de modo que “durante

estos años no llegaron barcos europeos con esclavos para ser distribuidos en las provincias” 97. A

lei, para ser aplicada, devia ser regulamentada pelas administrações provinciais em forma de re-

soluções, decretos e códigos de polícias locais que complementavam as disposições legislativas.

É difícil conhecer a situação real em Maracaibo logo depois da promulgação da lei em virtude da

instabilidade política, econômica e social, assim pode ser que não tenha sido possível estabelecer

os mecanismos necessários previstos pela lei para seu cumprimento. Apesar da proibição de en-

trar com mais de um escravo como criado doméstico, nos registros de chegada de estrangeiros98

entre 1833 e 1834 encontram-se vários casos que demonstram que foi freqüente a chegada de

famílias ao porto de Maracaibo acompanhadas por mais de um criado. Essa violação da lei se

realizou “durante los años en que era imposible que el gobierno marabino tomara posición para

hacer cumplir los decretos, situación comprobable a través de algunos testimonios”.99 Maracaibo

regulamentou a lei a partir de 1833 (complementando ela em 1835 com o intuito de controlar o

tráfico entre os municípios da província) através de disposições que só conseguiram ser efetivas a

longo prazo.

A maioria das famílias que entraram entre 1836 e 1842 só introduziram um escravo. No

entanto, foram freqüentes as consultas dos governadores ao governo central sobre a aplicação da

lei, o que demonstra quanto a mesma ficou confusa. O próprio artigo 9 não esclarecia se era pos-

sível deixar entrar a família com um escravo como criado ou não100. O problema só foi resolvido

através de uma resolução publicada em 1844 que estabelecia claramente que todo aquele que

introduzisse um escravo como criado deveria reexportá-lo ou deixá-lo livre101.

97 RODRIGUEZ, Marisol, Op. Cit., p. 68 98 Após a chegada de um navio passava-se ao “Registro de passaportes” dos passageiros do estrangeiro. Esses regis-tros, documentos oficiais do governo da província, indicavam o nome, a idade, natureza e profissão dos membros da família mais o número de criados que acompanhavam eles. Cfr. RODRIGUEZ, Marisol. Op. Cit. pp. 68-69 99 RODRIGUEZ, Marisol, Op. Cit. p. 68 100 O artigo 9 estipulava: “Se prohíbe la introducción de esclavos de cualquiera manera que se haga: prohibiéndose asimismo que ninguno pueda traer como sirviente doméstico más de uno, el cual no podrá ser enajenado en el país y a su arribo a los puertos de Venezuela, se hará entender al introductor la obligación de reexportarlo en que queda constituido, dando para ello las seguridades convenientes. Si el introductor se domiciliase en el país deberá reembar-carlo o darlo libre. Los esclavos introducidos en fraude o contra la prohibición de esta ley, serán por el mismo hecho libres” Cf. Ley de 2 de octubre de 1830 101 RODRIGUEZ, Marisol, Op. Cit., pp. 72-73

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Em 1839, Venezuela e Inglaterra assinam um tratado no qual declaram abolido o tráfico

de escravos. Ao mesmo tempo, ambas se concediam o direito mútuo de buscar e apreender navios

seus que praticassem o tráfico negreiro e libertar os escravos. Este tratado adotava a lei colombi-

ana de 1825, condenando igualmente o tráfico de escravos. Por esse motivo, o governo venezue-

lano não considerou necessário promulgar uma nova lei. Em 1837 Sir Robert Ker Porter102, en-

carregado de negócios britânicos na Venezuela, recebe poderes para “negociar un tratado desti-

nado a promover la abolición de la Trata, sobre la misma base entre Venezuela y la Gran Bretaña

que se ha concertado entre Inglaterra y otras potencias”103. O ministro de Finanças e de Relações

Exteriores, Sr. Santos Michelena104 foi o encarregado das negociações por parte da Venezuela.

102 SIR ROBERT KER PORTER (Durham (Inglaterra) 26.4.1777-Saint Petersburg (Rússia) 4.5.1842) Diplomata. Cônsul e encarregado de negócios da Grã Bretanha em La Guaira e Caracas. Autor de um diário pessoal. Pintor. Viveu durante sua infância em Edimburgo. Seguiu cursos na Real Academia de Pintura de Londres Em setembro de 1805, chegou na Rússia convidado pelo czar Alexander I para pintar alguns murais. A vitória de Napoleón em Fried-land (1807) e a aliança entre a Rússia e a Francia, o forçaram a retornar na Inglaterra. Em 1811 retornou a Rússia e permaneceu lá por dois anos. Na sua volta na Inglaterra em 1913, foi feito cavalheiro pelo príncipe Regente por seu desempenho na corte imperial Russa onde acrescentou o prestigio britânico; desde então, foi chamado Sir Robert Ker Porter. Em 1825 foi nomeado cônsul de Grã Bretanha em Caracas. Permaneceu em Caracas por 15 anos. Durante sua estada na Venezuela, começou seu Diário pessoal que escreveu até o final de sua vida. Embora suas funções fossem fundamentalmente consulares, o secretário de Relações Exteriores Canning, pediu-lhe que informasse dos eventos políticos. Quando Bolívar chega em Caracas, em janeiro de 1827, faz amizade com ele e pinta seu retrato. Após a saída de Bolívar, trata freqüentemente com o geral Jose Antonio Páez, de quem também pintou um retrato. Concluiu em 1834 o Tratado de Amizade e Comércio entre Venezuela e Grã Bretanha, pelo qual foi nomeado em 1835 enca-rregado de negócios de seu governo na Venezuela. Em 1838 concluiu com o governo de Venezuela o Tratado que proibia o comércio de escravos. Tanto no seu diário quanto na sua correspondência, ele reflete uma parte importante dos acontecimentos venezuelanos durante sua estada. Embarcou em La Guaira em 1841 para a Inglaterra. No mês de outubro desse mesmo ano viajou a São Petersburgo onde morreu logo após, em maio de 1842. Cfr. DHV, Caracas: Fundación Polar, 1989 103PORTER, Robert Ker. Diario de un diplomático británico en Venezuela: 1825-1842. Caracas: Fundación Polar, 1997. p. 792. 104 MICHELENA, Santos. (Maracay (Edo. Aragua) 1.11.1797-Caracas, 12.3.1848) Político reconhecido pelo seu trabalho na organização das Relações Exteriores da Venezuela e da Fazenda Pública nacional. Residiu em Filadelfia (Estados Unidos) entre 1813 e 1819, onde completou sua formação em direito, economia e comércio. Depois morou na Havana (Cuba). Em 1821, retornou na Venezuela. Em 1824, foi eleito representante pela província de Caracas ante o Congresso da Grande Colômbia e morou em Bogotá até 1826; foi nomeado cônsul e agente fiscal da Grande Colômbia em Londres. Em 1828 retornou a Caracas onde foi designado oficial de Fazenda e de Relações Exteriores. Em 1830, foi selecionado para integrar o primeiro gabinete ministerial de Jose Antonio Páez, como Secretário de Estado da Fazenda e das Relações Exteriores, reorganizando a nova Fazenda Pública Nacional. Em 1833, Páez o designou como enviado especial e ministro plenipotenciário ante os governos da Nova Granada e do Equador para resolver os assuntos relativos ao pagamento da dívida pública exterior dos antigos estados da Grande Colômbia e negociar com a Nova Granada um Tratado de Amizade, Aliança, Comércio, Navegação e Limites. Em 1836, aceitou ser ministro plenipotenciário de Venezuela para concluir com os Estados Unidos o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação subscrito com esse país. Em 1837, foi encarregado de ajustar os Tratados de Amizade, Comércio e Nave-gação de Venezuela com a Grã Bretanha e as Cidades Hanseáticas. No mesmo ano, foi nomeado enviado especial e ministro plenipotenciário de Venezuela na Nova Granada, até 1840 quando retornou ao país como aspirante a vice-presidente da República. Esse ano foi eleito conselheiro de Estado, função que combinou com a de vice-presidente da República e outras funções públicas até 1844. Foi presidente encarregado do Executivo em 6 oportunidades. De-dicou-se a seus interesses privados até 1848, quando foi eleito representante da província de Caracas no Congresso

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Estas não pareciam -segundo as próprias impressões do diplomático inglês - apresentar proble-

mas. Suas relações de amizade com o general Paez, presidente da República e o seu alto conceito

de Santos Michelena105 com quem mantinha relações muito cordiais fizeram-no entrar confiante

nas negociações. Os ministros plenipotenciários realizaram duas conferências antes da assinatura

do tratado. A primeira no dia 2 de maio, quando Sir Robert entregou a Santos Michelena o proje-

to a ser discutido e que ele já tinha apresentado ao Executivo. A segunda teve lugar dez dias de-

pois. Nela foi revisado todo o tratado, ajustando certas partes à legislação venezuelana e deixando

“fuera enteramente el anexo B, que contiene las instrucciones sobre el trato de los esclavos captu-

rados cuando se les instala en los lugares destinados a su futura residencia” 106.

Segundo rezava a Constituição, todos os tratados com o Executivo deveriam ser aprova-

dos pelo Congresso107 antes de qualquer intercâmbio entre os países signatários. Por tal motivo

foi decidido um prazo de dez meses depois da ratificação para o dito intercâmbio uma vez que o

congresso só poderia sancioná-lo em 1838. Finalmente, o Tratado foi assinado no dia 19 de maio,

mas para efeito formal ficou a data da última conferência mantida, qual seja o dia 10 de maio de

1837. Foi o próprio Porter quem resumiu no seu diário o conteúdo do tratado:

Viernes 19 de mayo de 1837. (...) Escribiendo todo el día. Firme el Tra-tado de abolición de la esclavitud concertado entre esta República y la Gran Bretaña. El señor Santos Michelena, ministro de finanzas y relacio-nes exteriores, fue mi colega plenipotenciario. Los capítulos y condicio-nes fueron los siguientes: Declarar la trata finalmente abolida en todas partes del mundo. Tomar medidas efectivas para impedir que los ciuda-danos de la República se dediquen a ello (la trata) bajo una ley penal que inflija el más severo castigo a las personas que se descubran dedicándose a este tráfico. Que la ley de piratería será aplicable al dicho tráfico por la legislación de los países respectivos, dentro de los dos meses siguientes

Nacional. Foi ferido no assalto ao congresso em janeiro de 1848. Morreu dois meses depois, vitima das lesões inter-nas sofridas. Cf. DHV, Caracas: Fundación Polar, 1989. 105 Varias vezes no seu diário, Porter elogia abertamente Santos Michelena e expressa o beneficio que significaria ele ser o negociador por parte da Venezuela do Tratado. Cfr. Diário, pp. 794, 797 y 799. 106 PORTER, Robert Ker. Op. Cit., p.798 107 A Constituição de 1830, assinada pelas províncias de Cumaná, Barcelona, Margarita, Caracas, Carabobo, Coro, Mérida, Barinas, Apure e Guayana, estabelecia que o congresso bicameral, com uma câmara de representantes com-posta por um representante por província cada 20.000 habitantes, acrescentando mais um por faixas suplementarias de 12.000 habitantes, o que fazia com que as províncias mais povoadas tivessem maior peso de decisão. No que diz respeito à câmara de senadores, ela estava composta por dois senadores por províncias, somando um total de 20. O tratado para ser ratificado devia contar com a aprovação da maioria nas duas câmaras. Por sua vez, o executivo esta-va representado pelo presidente da república quem contava com um Conselho de Governo. Este estava composto pelo vice-presidente, cinco conselheiros (um dos quais era membro da Corte suprema de justiça) e secretários de despacho de três secretarias: Interior e Justiça; Fazenda e Guerra e Marinha. A qualquer uma delas podia se unir o despacho de Relações Externas. Cfr. Constituição de 1830 in TEXTOS CONSTITUCIONALES 1811-1999: Cara-cas, Servicio Autónomo de Información Legislativa, 2003. Constituiçao de 1830, pp. 73-94

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al intercambio del Tratado. Que los cruceros de una u otra potencia po-drán visitar los navíos de las dos naciones, que sean sospechosos, sobre bases razonables, de estar dedicados a la trata, podrán detenerlos o alejar-los, a fin de que se les sentencie, etc., etc., y que se acuerde mutuamente cierto acto o instrumento sobre la base del Tratado propuesto, relativo a las instrucciones para los navíos de ambas naciones destinadas a evitar la trata, cosa que se hizo debidamente en el anexo letra A. habiéndose fir-mado debidamente el Tratado, el período de intercambio se fijó en 10 meses después de la fecha de la firma, o sea el 10 de mayo de 1837, en Caracas, fecha de nuestra última conferencia108.

Entretanto, em finais de 1837, setores da imprensa da capital se posicionavam contra o

tratado, expressando o sentir de algumas áreas políticas, econômicas e sociais. O periódico de

Caracas La Bandera Nacional em 5 de dezembro de 1837 publicou um artigo expressando quais

eram os verdadeiros objetivos que a Inglaterra perseguia com a assinatura do tratado, no qual só

defendia seus interesses:

“La Inglaterra está altamente interesada en la abolición del tráfico in-humano de África, y en ello se interesa la supremacía que pretende para los frutos ecuatoriales que produce la India. Es evidente que mientras menos produzcan las colonias occidentales y aún los países de América del Sur, más se aumentaría el producto de la Colonias Orientales, y 100 millones de habitantes en el Indostaní pueden surtir a toda la Europa de azúcar, café, algodón etc. Además este tráfico sostiene su Marina mer-cante, que le asegura la supremacía de los mares en la de guerra cuando llegue el caso. No es solamente un sentimiento de filantropía el que esti-mula a la Inglaterra, sino su bien conocido interés”109.

O Senado nomeou uma comissão de três senadores para analisar o tratado e elaborar um

relatório que eles enviariam ao Senado para ser deliberado. Em 12 de fevereiro de 1838, a comis-

são enviou o relatório onde elogiava o espírito humanitário da Inglaterra, mas considerava que a

Venezuela não podia assinar um tratado que não estava em condições de cumprir. O Senado con-

cordou unanimemente com a comissão, recusando finalmente o tratado porque “Inglaterra exige

de la República lo que ella misma no puede cumplir” 110. Além disso, assinala que a constituição

108 PORTER, Robert Ker. Op. Cit., p 799 109 La Bandera Nacional: Caracas 5 de diciembre de 1837, nº 19 en Materiales para el Estudio de la cuestión agra-ria en Venezuela (1822-1860).Mano de Obra: Opinión, T. 5, Vol. II, p. 96. Citado por RODRIGUEZ, Marisol, Op. Cit. p. 75. 110 PORTER, Op. Cit. p. 822

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já proibia o tráfico de escravos e estabelecia o fim gradual da escravidão. Assim sendo, ele man-

dou para a Câmara de representantes o projeto de decreto para ser analisado e votado.

A câmara, por sua vez, estabeleceu uma comissão de três representantes utilizando o

mesmo procedimento do senado. Mas o fim do prazo para a ratificação e o intercâmbio do tratado

já estava se aproximando (19 de março de 1838) e Porter tentava acelerar a decisão das câmaras,

mas sem muita esperança de ver ratificado o tratado nessas sessões do congresso, tendo de espe-

rar as sessões do ano seguinte. Ele protesta contra o que considerava o “retraso, irrespeto e indife-

rencia hacia la causa de la humanidad” enviando uma enérgica correspondência ao ministro de

relações exteriores111. Mas Porter constatou que o governo “ya fuera por temor al Congreso o por

no sentir mucho interés por el asunto” só transmitiu as comunicações no Congresso onde ficou

letra morta.

No entanto, parece que a atitude do encarregado inglês teve algum efeito, pois o ministro lhe co-

municou pessoalmente que a decisão da câmara de representantes tinha sido oposta àquela do

senado e tinha enviado seu relatório à câmara alta pedindo que reconsiderasse sua recusa da rati-

ficação. Enviou também o relatório para o Executivo recomendado a discussão sobre o tratado

nas próximas sessões do congresso em 1839 e a extensão por mais um ano do prazo para ser rati-

ficado, isto é, até o 1º de maio de 1839. A imprensa fez eco à decisão do Congresso de não apro-

var o tratado apelando a argumentos de soberania nacional e ao fato da Venezuela ter sido tratada

de forma diferente daquela como foram tratadas as potências européias na hora das indenizações:

No quiere ocuparse por varias razones todas de gran peso, de importancia tal, que han debido decidir y lo desidieron (sic) en efecto a la negativa. Venezuela no hace el tráfico inhumano de África: sus ciudadanos no se ocupan de él, ninguno ha violado abiertamente las leyes de la humani-dad… ¿Para qué pues ligarnos a una nación extranjera para prohibir lo que está prohibido, lo que no existe en nuestro país? ¿Para qué darle in-útilmente el derecho de visita sobre nuestros buques? Para qué autorizar su captura porque lleve más o menos pipa de aguada, porque esté cons-truido de éste o aquel modo, porque su escotilla sea más o menos abier-ta… Se ha hecho con Venezuela un tratado al mismo efecto que el que se hizo con la España, que el que se hizo con Portugal: a esas potencias se les indemnizó con cerca de 7.300.000 pesos por los perjuicios que sufrie-ron, con nosotros no se ha estipulado nada de esto112

111 Depois da renuncia de Santos Michelena logo após a assinatura do tratado, o novo ministro de relações exteriores e finanças foi o Coronel Smith. 112 La bandera Nacional: Caracas, 13 de mayo de 1838, en Materiales para el estudio de la cuestión agraria en Venezuela (1822-1860). Mano de obra: Opinión T.5,Vol II, p. 96. Citado por RODRIGUEZ, Marisol, Op. Cit. p. 75

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Porter não hesitou em anotar no diário sua opinião sobre o Congresso venezuelano que

considerava composto pelo “material” mais ignorante e imprudente. Por isso, apesar do atraso por

mais um ano para a sua ratificação, considerou que era mais prudente deixar as coisas como elas

estavam, pois na próxima sessão seria renovada a metade dos membros do congresso e, sobretu-

do, Paez, amigo pessoal, retomaria a Presidência. Bem seja por causa das relações com a Inglater-

ra ou por ser sua posição pessoal, parece que Paez concordava com o Tratado e tinha desaprova-

do a decisão do Congresso. Em agosto desse ano, Porter descreve seu encontro com o General

onde pediu para ele a aprovação do Tratado pelo Congresso como um dos primeiros atos de seu

“novo reinado”. Paez teria lhe respondido que assim seria feito “y que se sentía avergonzado de

la ingratitud e imbecilidad del de 1838 [o congresso] al no haberlo aprobado unánimemente” 113.

Até meados de 1839, a atividade do encarregado inglês para conseguir a aprovação do tra-

tado é intensa, mas ao longo de meses ele não teve a certeza do sucesso. Quando o acordo final-

mente foi assinado e apesar do sucesso que o dito ato representou para Sir Porter, o governo in-

glês recebeu a notícia mornamente, alegando que o tratado “no es todo lo que pudiera desearse,

pero es un paso muy importante” 114.. No começo do ano, Porter escreve, visita, convida e fala

com ministros e políticos que estes podiam melhorar as possibilidades do Congresso aprovar o

Tratado. Em fevereiro, o tratado é recusado pela câmara de representantes. Poucos dias depois,

Paez visita o encarregado inglês. Falam longamente sobre a recusa do tratado e Porter o exorta

para utilizar sua poderosa influência no Congresso. Como sinal de sua vontade de facilitar a espe-

rada aprovação, o presidente lhe pergunta com quem ele gostaria de prosseguir as negociações e

Porter designa ao Sr. José Santiago Rodriguez115. Ele recebe de Paez a promessa da nomeá-lo

como plenipotenciário, o que acabou cumprindo. Em 12 de fevereiro, o congresso decreta em

artigo único sua decisão de não consentir nem aprovar o tratado, alegando:

Primero: que Venezuela por sus leyes ha cooperado y cooperará eficaz-mente en la abolición de la trata dentro de los limites de su poder; Se-gundo, que por falta de recursos sería imposible cumplir algunas de las estipulaciones del Tratado, por lo cual las instituciones del país dificultan

113PORTER, Op. Cit. p. 835 114 De la carta que Lord Palmerston escreve para Porter acusando recibo da aprovação do tratado. PORTER, Op. Cit., p 866 115 O Licenciado José Santiago Rodríguez era Ministro Fiscal da Corte Suprema de Justiça e foi nomeado como plenipotenciário especial “para iniciar nuevas conferencias, ajustar y firmar el nuevo tratado de abolición del tráfi-co de esclavos “de acuerdo con sus instrucciones”, como resultado de que el congreso ha desaprobado el Tratado firmado en marzo de 1837” PORTER, Op. Cit. p. 850

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que la representación nacional pueda comprometerse a cumplir alguna de las demás 116.

A imprensa por sua vez, continuava refletindo o mesmo sentimento de oposição que o

Congresso. É interessante ver no diário de Porter sua preocupação com a influência da imprensa e

seu temor dela ser capaz de impedir a aprovação do tratado nas câmaras. Ele destaca as posições

dos jornais El Liberal e El Correo “violentos así como vanos e infantiles” 117. Era tão cristalino

esse temor que, em meio às negociações, ele não se esquivou de encontrar com o redator de El

Liberal para:

Hablar de las objeciones hechas por su cámara y por él mismo al tratado antiesclavitud. Hablamos un par de horas, pero creo que, a la postre, todo se aclaró entre nosotros. Lo peor de él es la pluma con que escribe, por-que, como persona, es suave y caballeroso en su modo de ser y de discu-tir118.

Pouco depois da publicação do decreto do congresso, começam extra oficialmente as no-

vas negociações entre Porter e o plenipotenciário Rodriguez. Essa segunda tentativa é marcada

pelo descontentamento das câmaras. Ao que parece, o clima das negociações era de boa vontade.

O encarregado inglês apontava no seu diário o caráter de Rodrigues que “demuestra ser el propio

espíritu de la amistad y la confianza” 119, mas ao mesmo tempo queixa-se da lentidão e da falta de

autonomia do negociador que consultava o Executivo a cada nova reforma feita no tratado. Se-

gundo seu depoimento, as sessões foram tediosas e a redação dos artigos objetados pelo congres-

so muito difícil. Ele chega a se “envergonhar” ao reconhecer que o tratado estava sendo sua prin-

cipal atividade, ocupando todo seu tempo120.

Em março iniciaram-se as intensas negociações oficiais. Porter não duvidará em qualificá-

las de “atormentadoras y complicadas” 121. O Sr. Rodriguez apresentou o projeto venezuelano

onde estavam incluídas as objeções dos membros do congresso e do Executivo. Frente às obje-

ções apresentadas, Porter não confiava nas possibilidades de adoção do tratado, pois considerava

impossível sacrificar os poucos pontos que refletiam o espírito e objetivos propostos. Deconfiava

que “por el desagrado que le tienen los tontos del Congreso (quiero decir prejuicio ignorante) a

116 Idem, pp. 849-850 117 Idem, p. 850 118 Idem, p. 851 119 Idem, p. 850 120 “Me avergüenza decir que he estado ocupado todo el día, excepto una hora para un poco de Biblia y un sermón, con el Tratado” Domingo 10 de marzo. PORTER, Op. Cit. p. 852 121 Idem, p.852

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hacer un tratado cualquiera, es casi seguro que el mío, aún modificado como estará, volverá a ser

rechazado” 122.

Nas discussões, os artigos com mais problemas para serem aprovados foram os números

10 e 11 do tratado, correspondentes ao direito de visita dos barcos venezuelanos pelos britânicos

e vice-versa e às indenizações. O artigo 10 estipulava o direito de deter os barcos mercantes ve-

nezuelanos ou britânicos onde se encontrassem objetos próprios do comércio de escravos e levá-

los à Justiça diante do tribunal correspondente, segundo a potência à qual pertencessem. O artigo

11, amplamente discutido no Congresso, estabelecia que o dono ou mestre do barco apresado não

teria direito a reclamar danos e prejuízos, mesmo tendo sido absolvido pelo tribunal que o julgas-

se. Caso ficasse provado que os objetos encontrados no barco realmente não serviam para o trafi-

co, o apresador (e em seu defeito o governo dele) deveria responder por esses danos e prejuí-

zos123.

Porter não aceita as mudanças propostas pelo governo e o Congresso “porque diez de las

más poderosas potencias de Europa los han aceptado, y si llegase a cambiar una sola palabra, ya

del espíritu, ya del gran objetivo del Tratado, se convertiría en nulo”124. Finalmente, o protocolo

do tratado foi assinado em 15 de março com o intuito de ser ratificado nos doze meses seguintes

ou antes deles. Cinco dias depois, o tratado era enviado para o senado com a recomendação ur-

gente do Executivo de não perder tempo nas discussões e de enviá-lo para a Câmara de represen-

tantes o mais rápido possível. Duas semanas depois, faltando 20 dias para as sessões do Congres-

so, finalizarem o tratado ainda estava no senado. Porter continuava em comunicação com o Vice-

presidente, o Dr. Vargas, a quem mantinha informado sobre as discussões. Ele solicita do encar-

regado inglês, para esclarecer as dúvidas do senado, “que le envíe los tratados concluidos con

Francia, Toscana, Cerdeña, Bélgica y las Ciudades Hanseáticas, y así mismo el discurso de la

cámara de los comunes a Su Majestad, hecho en mayo de 1838, para declarar “piratería” el co-

mercio de esclavos “125. No senado, três leituras do tratado deveriam ser feitas, apesar de ter en-

contrado algumas objeções, sendo enviado para a câmara baixa muito perto do final das sessões

do Congresso.

122 Idem p. 851. Durante esses meses, paralelamente ao tratado inglês, as câmaras estavam discutindo um tratado de comercio, amizade e navegação com a França o qual encontrava-se com parecidas dificuldades de aprovação. Ao longo desses meses de negociações, Porter fará repetidas referências à sorte do tratado francês que finalmente será recusado. 123 TRATADOS PÚBLICOS Y ACUERDOS INTERNACIONALES DE VENEZUELA… pp. 125-126. 124 PORTER, Op. Cit. p. 852 125 Idem. p. 854

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Porter não deixa de assinalar sua preocupação de ter que esperar as sessões de 1840 para o

tratado ser ratificado. Para sua surpresa, o relatório da Câmara foi favorável e passou a ser deba-

tido pela segunda vez. O Presidente, por sua vez, exigiu do congresso uma prorrogação para que

as câmaras concluíssem constitucionalmente os tratados com a França e com a Inglaterra, caso

contrário iria convocar uma sessão extraordinária. Finalmente, na sessão de 3 de maio o tratado é

aprovado com dois votos contra. Porter assinalou que iria “publicar los nombres de los no aboli-

cionistas en La Bandera Nacional.” 126 Poucos dias depois receberia os parabéns do Presidente

através de oficio do ministro de relações exteriores “por el resultado favorable de una negocia-

ción que comenzó hace dos años con la esperanza de una pronta conclusión, pero que lamenta-

blemente se ha visto retrasada por una combinación de imprevistas e inevitables circunstancias.“ 127 Ele reconhecia o trabalho de Porter “el constante anhelo y asidua ansiedad con los cuales V. S.

ha promovido y activado el asunto” 128 e finalizou solicitando que fossem tomadas em breve as

providências necessárias para o intercâmbio de ratificações com o governo britânico.

Tudo foi concluído sete meses depois, em 12 de dezembro de 1839, após períodos de ten-

sões entre o ministério de relações exteriores e o encarregado inglês em função do atraso no in-

tercâmbio considerado negligência do ministro. Davam-se por terminadas as negociações que

Porter considerava que “si no hubiera sido por mi influencia personal como allegado a los dife-

rentes miembros principales de ambas cámaras, y el gran respeto y estima que me profesan los

ciudadanos venezolanos y caraqueños, nunca lo hubiera aprobado el Congreso aun remodelado

como estaba”129. O tratado foi recebido positivamente pela imprensa que avaliou que

No puede ser tachada bajo ningún aspecto: está sin embargo robustecida por lo que respecto a nosotros con la tercera disposición del artículo que declara que no debería entenderse por tráfico de esclavos el transporte que nuestras leyes permiten hacer hoy por mar a los esclavos que aún ti-ene Venezuela. El artículo tal cual es y lo hemos explicado obvia una de la gran parte de las dificultades que hicieron rechazar el primer tratado, es todo americano y debe adoptarse130.

126 Idem, p. 857 127 Idem 128 Idem, pp. 857-858 129 Idem, p. 866 130 Correo de Caracas, Caracas, 16 de abril de 1839, nº 15 in Materiales para el Estudio de la Cuestión Agraria en Venezuela (1822-1860), Mano de obra: Opinión T.5, vol. II, pp. 153-154. Citado por RODRIGUEZ, Marisol. Op. Cit. p. 77

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A reorganização em 1839 do abolicionismo na British and Foreign Antislavery Society se

traduz em 1840-1842 num momento de grande agressividade britânica. Foram os anos de maior

pressão inglesa, que fica refletida nos debates e propostas de abolição do tráfico no Brasil131. Na

década de 1840132, a lei anti-tráfico brasileira de 1831 tinha se mostrado ineficiente, assim como

os responsáveis em fazé-la cumprir. Os eventos políticos da época fizeram com que a câmara

fosse dissolvida em 1842 e só voltasse a se reunir em 1844, sob o Ministério dos liberais. A prio-

ridade era a discussão de um novo tratado anglo-brasileiro porque o anterior já expirava..

As negociações entre ambos os governos foram problemáticas. Inglaterra queria manter os

termos do antigo tratado proibindo o tráfico e, no Brasil, a pressão era para a revogação da lei de

1831 e a modificação dos termos do tratado. Os ingleses, no controle da repressão do tráfico a-

presavam navios, violando o território brasileiro, ação considerada uma ameaça à soberania.

Nesse novo contexto, o tráfico garantia a manutenção da soberania ou a ameaçava? O governo

imperial tinha de avaliar com urgência a questão.

Em 1845, a recusa do governo brasileiro de assinar um novo tratado com a Inglaterra, le-

vou ao governo britânico a promulgar unilateralmente o Bill Aberdeen que “autorizava o governo

inglês a julgar os navios brasileiros como piratas, em tribunais ingleses, quaisquer que fossem os

locais onde ocorressem as capturas. A lei foi promulgada ignorando os protestos da legação brasi-

leira em Londres” 133. A Câmara retomou as discussões sobre a nova lei em 1848, mas só no iní-

cio de 1850, sob intensos debates e a indignação com os apresamentos ingleses, Eusébio de Quei-

rós apresentaria um projeto que seria aprovado em setembro. A lei equiparava o tráfico à pirataria

e previa que.

os traficantes foram colocados sob a jurisdição de um tribunal especial – a Auditoria da Marinha-, ficando sujeitos a penas a penas de prisão e pa-gamento das despesas de reexportação dos africanos eventualmente em-barcados de volta à áfrica.os senhores de escravos que comprassem afri-canos,entretanto, passariam a ser julgados em outra categoria penal: fica-riam na alçada da justiça comum,certamente mais branda,escapando da Auditoria da Marinha. Os homens que coadjuvassem os negócios negrei-ros, apesar de reconhecidas suas culpas,não eram mais incluídos na cate-goria de “donos do negocio” (...) Ele excluía da relação dos culpados a-queles que compravam os africanos ilegalmente importados134

131 ROLDAN, Inés. Op. Cit, p.221 132 Sobre esses anos no Brasil ver RODRIGUES, Op. Cit. pp. 112-119. 133 Idem, p. 115. 134 Idem, pp. 117-118.

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Foi esse último um dos elementos que explica a eficácia dessa lei se comparada com a-

quela de 1831. Durante este período na Venezuela a questão do tráfico parecia resolvida com a

assinatura do tratado anglo-venezuelano que retomava explicitamente a lei de 1825. Em maio de

1851, três anos depois de reformada a lei de manumissão, Mr. Wilson escrevia ao Ministro de

Relações Exteriores para lhe enviar a lei e os regulamentos promulgados no Brasil em setembro e

outubro de 1850 que declaravam pirataria o tráfico de escravos. Ao enviar esses documentos, o

encarregado inglês instava o governo venezuelano a promulgar leis parecidas que declarassem

piratas àqueles venezuelanos que participassem no tráfico de escravos e chamava especialmente a

atenção sobre os regulamentos estabelecidos para facilitar a aplicação da lei, solicitando ao go-

verno venezuelano “consider wether any part of these regulations could be adopted with advanta-

ge in Venezuela” 135.

Ele lembrava que leis parecidas tinham sido promulgadas tempo atrás pela Grã Bretanha e

pelos Estados Unidos com grande eficácia, não pelo temor inspirado por elas, mas pelos efeitos

morais que produzia nos homens:

by the fact that the law stigmatizes by its true and proper character the disgraceful and infamous crime of stealing and selling and buying men, women and children for the purpose of consigning them to the miseries of slavery136.

Segundo o encarregado de negócios inglês, foi o exemplo dessas leis, e o desejo de dar ao

mundo a mesma manifestação de seus sentimentos contra um crime tão atroz, que levou ao go-

verno brasileiro à promulgação de leis parecidas, se referindo à Lei Eusébio Queiroz e seu regu-

lamento. O governo inglês instava o governo venezuelano nessa via, não por acreditar que alguns

de seus cidadãos estivessem envolvidos nessas “praticas abomináveis” mas guiado pelo desejo

de aderir o governo venezuelano à força da opinião pública do mundo civilizado “wich has been

bought to bear upon the Perpetration of one of the greatest iniquities wich have ever been com-

mitted by the human race” 137.

Segundo o encarregado, o governo da Venezuela não deveria encontrar dificuldades maio-

res em aceitar essa proposta pois o tratado anglo venezuelano de 1839 previa no seu artigo 2 con-

servar a lei anti-tráfico de 1825 (que declarava pirataria o tráfico). Além disso, o seu artigo 3

135 ACMRE. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 167. Carta de 1º de maio de 1851. 136 Idem, fólio 168 137 Ibidem.

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completava que a Venezuela ditaria as disposições legislativas oportunas para a extinção do tráfi-

co, em harmonia com as leis inglesas sobre o tema. Na despedida, ele sinalizava que uma carta

como aquela “has been made to each and all of the Maritime States of Christondom wich have

not yet made slave trade piracy” 138. O ministro de Relações Exteriores encaminhou a lei e os

regulamentos brasileiros para o Senado justificando que o Executivo recomendava à dita Câmara

o estabelecimento dessa lei no intuito de “corresponder al noble objeto que se propone el Gobier-

no Británico en obsequio de la humanidad, cuando escita (sic) a Venezuela a dar un paso que

asegurará con mayor eficacia la abolición de aquel bárbaro comercio” 139. Mas ao mesmo tempo,

em carta datada de 3 de maio de 1851, respondia ao encarregado inglês em tom de surpresa devi-

do ao fato que a lei de 1825 já declarava pirataria o tráfico de escravos e estabelecia a pena de

morte como castigo daqueles que a infringissem. O Ministro, no entanto, explica ao Sr.Wilson

que:

A pesar, pues, de que no falta en Venezuela ley cual la recomendada por su Señoría y que existe la extractada hace más de veinte años, el Poder Ejecutivo, deseando corresponder a las elevadas y humanitarias miras del gobierno de S. M ha deferido a su exitación y comunicado a la Legislatu-ra la ley y reglamentos especiales, espedidos en el Brasil140.

Mas como as sessões das Câmaras Legislativas iam terminar nesses dias não seria decidi-

do nada sobre o tema esse ano. No entanto “el Señor Ministro Británico verá sin duda con placer

la prontitud con que el Gobierno ha elevado y encarecido este asunto al cuerpo que tiene la prin-

cipal parte en la formación de las leyes”141. Entre maio e junho de 1851, a Legação Britânica no

país passou a ser Consulado geral e Mr.Wilson foi transferido da Venezuela sendo nomeado côn-

sul interino Mr. J. Riddel, que continuou as negociações sobre a adoção da lei anti-tráfico brasi-

leira. Na correspondência endereçada pelo novo cônsul ao Ministro de Relações Exteriores, Rid-

del assinalava que Mr Wilson não tinha informado ao visconde Palmerston que a lei de 1825 era

ainda vigente na Venezuela:

that the attention of his Lordship had not, at the time of addressing to Mr Belford Wilson the Despatch containing the instructions above referred to, been drawn to the fact that on the 18th of February 1825 the Republic

138 Ibidem. 139 ACMRE. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 173. Carta de 2 de maio de 1851. 140 ACMRE. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólios 174-175. Carta de 3 de maio de 1851. 141 Idem, fólio 175.

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of Colombia enacted a Law wich Is still in force in Venezuela by wich slave trading is declared to be Piracy and slaves traders to be punishable by death, and that his Lordship consequently in his Dispatch omitted to advert to that Fact as he would otherwise have done142.

Mesmo assim, o governo inglês continuou a convidar o governo venezuelano para consi-

derar quais as partes do regulamento da lei brasileira que ele poderia adotar para acabar com o

tráfico de escravos no país. A resposta do ministro de Relações Exteriores foi direta e se limitou a

lembrar como tinha sido a negociação com o Sr.Wilson. Ele explicava que sendo o congresso o

responsável por decidir sobre a questão, os documentos foram enviados para o senado, mas ele

não teve tempo de levar o assunto em consideração nesse ano porque as sessões estavam termi-

nando. Em tom que parecia pôr fim à questão, acaba dizendo que “en cuanto al objeto principal

de la recomendación, ya se comunicó a la Legación Británica la existencia de la citada ley co-

lombiana” 143 Faltando dois anos para a abolição oficial da escravidão, não se tem notícia de que

alguma lei anti-tráfico fora sido discutida no congresso nesses anos. É certo que depois da assina-

tura do tratado com a Inglaterra que previa a celebração adicional de uma convenção entre os

dois países onde seria detalhado o que seriam considerados atos de pirataria e a promulgação de

novas leis, nada foi feito nesse sentido na Venezuela.

O tráfico não era um tema prioritário, não só porque tradicionalmente os venezuelanos

não tinham participado nele, mas também porque se considerava que as leis existentes já davam

conta dele. Além disso, acreditava-se que a escravidão ia se extinguir em pouco tempo como efei-

to das leis de manumissão vigentes no país e portanto era oposta a tratar os escravos da mesma

forma como eram tratados os grandes criminais. É interessante, por exemplo, constatar que uma

das dificuldades do encarregado brasileiro em 1852, nas negociações sobre um tratado de extra-

dição de escravos com a Venezuela, foi justamente essa crença refletida na Memória do Ministro

do Interior em 1845 e que ficou consignada claramente nas atas das negociações do dito tratado:

Cuando se leyó el artículo 13 que establece la mutua devolución de los esclavos prófugos el Plenipotenciario venezolano dijo que Venezuela no podía admitirlo porque el espíritu de la época, hostil a toda idea de servi-dumbre, se encamina a hacerla desaparecer enteramente como ya ha su-cedido en varios países, y se opone por consecuencia a que se traten los esclavos como los grandes criminales. Que además, por efecto de la ley

142 ACMRE. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólios 176. Carta de 27 de junho de 1851. 143 ACMRE. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólios 179. Carta de 2 de julho de 1851

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de manumisión establecida en Venezuela hacen veintiún años, muy pron-to dejará de existir la esclavitud en Venezuela lo que destruirá el objeto y la reciprocidad del artículo. Que siendo este punto muy delicado, estaba cierto de que si se diese cabida al artículo que se discute, no sería ratifi-cado el tratado por el congreso. Y finalmente que la práctica en otros paí-ses, aún cuando en ellos existiese la esclavitud, había sido negarse a la extradición de esclavos prófugos144.

No entanto, chama a atenção o desconhecimento por parte do encarregado inglês da vi-

gência da lei de 1825, o que pode servir como testemunho da pouca necessidade de aplicação da

referida lei e de como a política exterior inglesa era implementada sem ter muito conhecimento e

sem levar totalmente em conta a realidade do país.

144 AHI. Missões especiais do Brasil no estrangeiro. Venezuela. Barão de Japurá 1852-1854. Miguel Maria Lisboa. Protocolos das conferencias celebradas pelo chefe da Missão com o plenipotenciário venezuelano D. Joaquin Herre-ra. 20 de novembro de 1852

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CAPÍTULO III

ABOLIÇÃO NA VENEZUELA:

LUTAS, CENÁRIOS E EXPECTATIVAS

Ao adentrarmos na historiografia sobre escravidão e abolição na Venezuela, é impor-

tante não perder de vista o contexto mais amplo do panorama historiográfico sobre os proces-

sos do século XIX na sua dupla vertente de uma historiografia tradicional e uma historiografia

mais recente. Também é importante lembrar de dois aspectos da historiografia tradicional na

hora de refletir acerca do processo de abolição: sua visão negativa sobre o século XIX, espe-

cialmente após 1830 e a ideologia do branqueamento “café com leche” e sua tentativa de apa-

gar, ou pelo menos minimizar, qualquer vestígio africano na história venezuelana. Desde essa

perspectiva, a historiografia venezuelana sobre escravidão e abolição apresenta escolhas e

eixos interpretativos próprios. Ao analisar a produção brasileira referente a essas temáticas,

Schwartz assinala que a publicação de Casa grande e senzala de Gilberto Freyre pode ser

considerada como um marco. Segundo ele, desde sua publicação em 1933, os pesquisadores

“vêm dedicando atenção considerável à natureza da escravidão brasileira e a sua repercussão

na sociedade, na economia e na cultura do Brasil”. 1 Para além desse apontamento, seu ensaio

mapeia as contribuições historiográficas e reflexões críticas e sistemáticas dos principais auto-

res que se debruçaram sobre essas questões. 2 Este percurso bibliográfico de Schwartz e de

outros autores é ainda raro na Venezuela.3

Como já assinalamos anteriormente, parte da historiografia venezuelana ainda reflete

antigas formas de se pensar a história, muitas das quais não considerando a dinâmica de múl-

tiplos sujeitos e contextos históricos. Segundo o apontamento de Alejandro Gómez, os traba-

lhos da historiografia mais tradicional sobre os processos do século XIX venezuelano têm

mantido o silêncio ou manipulado os dados acerca das populações de cor e sua participação

neles:

1 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001, p. 23 2 Um outro mapeamento historiográfico se encontra em SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 3 Destacamos o percurso bibliográfico sobre escravidão na Venezuela feito por RAMOS GUEDES no capítulo V do seu livro Contribución a la historia de las culturas negras en Venezuela colonial. Nesse capítulo intitula-do “Balance crítico de las fuentes y proyecciones de las supervivencias de origen africano em la mentalidad de la sociedad venezolana” (pp. 233-366) o autor faz uma apresentação exaustiva dos autores e da produção sobre escravidão e o negro na Venezuela.

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los trabajos que se inscriben dentro de la historiografía nacional ve-nezolana que han abordado ese proceso, han mantenido silencio e in-cluso manipulado la participación de los sectores de color en la mis-ma. Desde los historiadores tradicionales o tradicionalistas, que lo han estudiado generalmente desde un punto de vista evenemencial (es decir, siguiendo exclusivamente los hechos bélicos y políticos), hasta los sociales contemporáneos a través de estudios sobre nuevas formas de sociabilidad que se dieran a partir de entonces o del impacto de las ideas políticas de la modernidad, todos coinciden en resaltar la pers-pectiva de los “verdaderos” actores de dicha revolución: los “próce-res”, “precursores” y “héroes” blancos criollos, mientras que es poco o nada lo que se dice acerca de la participación de los sectores subal-ternos de color.4

Os estudos afro-venezuelanos mais sistemáticos se iniciam na década de 1940 com a

publicação do livro de Juan Pablo Sojo5, Temas y apuntes afrovenezolanos6. Durante estes

anos, há uma forte tendência de enquadramento dos estudos das populações negras dentro do

campo das investigações folclóricas, o que denota uma visão do negro como “poseedor de

valores populares y de manifestaciones tradicionalistas y costumbristas”7, isto é, á margem

de qualquer protagonismo. Para situar tal perspectiva, alguns estudiosos venezuelanos falam

da influência de Gilberto Freyre, especialmente na concepção da família venezuelana e na sua

contribuição para construção de uma visão harmônica das relações entre senhores e escravos

na Venezuela. 8

Nos anos 1960, sob a influencia da perspectiva e da metodologia histórica de l’ Ecole

des Annales9 que ambos conheceram durante seus anos de exílio e estudo no México10, dois

4GÓMEZ Alejandro E., La Revolución de Caracas desde abajo , Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2008, Em linha no 17 de maio de 2008. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/index32982.html. 5Juan Pablo SOJO. (Curiepe, 1907-Caracas, 1948) Folclorista, escritor e jornalista. Boticário em Caracas, Higue-rote e Curiepe, de onde ele enviava artigos ao jornal “El Universal” e contos ao “Fantoches”. Publicou vários artigos no caderno “Tierras del estado Miranda” em 1938. Influenciado pelo etnólogo cubano Fernando Ortiz, ele se orientou para o estudo do aporte cultural africano. Em 1943 publicou seu romance Nochebuena negra, assim que Temas y apuntes afrovenezolanos e anunciou a publicação de suas obras inéditas Los abuelos de color (ensaio), Cantos negros (poesia) y Zambo (contos). Também escreveu peças de teatro. Foi responsável pela seção de Folclore Literario del Servicio de Investigaciones Folklóricas Nacionales, dependência do Ministé-rio de Educação, criada em 1946. Pesquisou sobre aspectos africanos da cultura popular das regiões de Carabo-bo, Yaracuy e Miranda. Depois de sua morte, os manuscritos de sua obra inédita desapareceram. 6 RAMOS GUEDEZ, J. M. El negro en Venezuela: aporte bibliográfico. Caracas: Instituto Autónomo Biblio-teca Nacional , 1985. p.25 7 RAMOS GUEDEZ, Idem. p.28 8 Juan Almécija, no seu interessante trabalho sobre a família venezuelana do século XVIII explica como alguns pesquisadores venezuelanos parafraseando a teoria de Freyre, têm passado uma imagem distorcida e não com-provada da família colonial para explicar a presença do concubinato e do matriarcado na Venezuela atual. Cf. ALMECIJA, Juan. La família en la província de Venezuela 1745-1798. Madrid: Ed. Mapfre, 1992, pp.198-199. 9 A influencia da Ecole des Annales chegou na Venezuela através da difusão literária com a tradução para o espanhol do livro de Marc Bloch Apologie pour l’histoire publicada no México em 1952; e por meio das aulas

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autores marcaram novos rumos na literatura “folclorista” que se produzia: Miguel Acosta

Saignes11, antropólogo e historiador, e Federico Brito Figueroa12, historiador marxista. Dentro

das fronteiras intelectuais transnacionais, poderíamos ir mais além e pensar na filiação destes

autores às marcantes interpretações da Escola Sociológica Paulista. 13 De um lado, temos

Acosta Saignes com a publicação em 1967 de Vida de los escravos negros en Venezuela14

preocupado em denunciar a escravidão como sistema econômico cruel; de outro, Brito Figue-

roa que com suas obras, Historia económica y social de Venezuela (1966), La estructura eco-

nómica de Venezuela colonial (1963) e El problema tierra y esclavos en la historia de Vene-

zuela (1973), inaugura uma nova etapa ao analisar a escravidão através das categorias de um

marxismo com viés economicista. Um outro aporte importante foi a publicação em 1969 do

estudo de Ermila Troconis de Veracoechea15 Documentos para el estudio de los esclavos ne-

do professor Luis Beltrán Guerrero na sua Cátedra de Teoria de la Historia em finais dos anos 50. O professor Brito Figueroa foi um dos grandes divulgadores dos Annales especialmente após a criação dos estudos de pós-graduação em Historia da UCV nos anos 70 e da Universidade Santa Maria nos anos 80. Cf. La Investigación Histórica in Venezuela. Mérida: Memoria del I Encuentro de Institutos y Centros de Investigación Históri-ca en Venezuela, Mérida, 3-4 de diciembre de 1990. Centro de Estudios Históricos “Carlos Emilio Muñoz Or-áa”, ULA. 1992. p. 32. Citado por ROJAS, Reinaldo. Federico Brito Figueroa, los Annales y la Historia econômica y social de Venezuela in http://www.elmallvenezuela.com/reinaldorojas.html 10 As gerações das ditaduras venezuelanas do século XX, isto é de Gómez (na década dos anos20 até no final dos anos 30) ou de Pérez Jiménez (na década dos anos 50) foram gerações que viveram o exílio e se formaram junto com outros exilados de diferentes paises, especialmente no México. 11 Miguel ACOSTA SAIGNES (San Casimiro, 1908 - Caracas, 1989) Antropólogo e jornalista fundador dos estudos antropológicos na Venezuela e da Escola de Jornalismo da Universidad Central de Venezuela (UCV). Etnólogo, político e educador. Em 1928 começou estudos em Medicina, mas por causa de sua atividade política é encarcerado até finais de 1929. Em 1930 inicia sua carreira como professor que exercerá por 40 anos e seu trabalho como jornalista. Em 1935 organiza sindicatos no interior do país e é um dos membros fundadores do Partido Republicano Progresista (PRP). Em 1937 é exilado e vai para o México onde permanecerá por 10 anos. No México da inicio a uma intensa atividade intelectual: escreve nos jornais, estuda antropologia e historia e publica seus primeiros livros. Em 1945 se forma como etnólogo e mestre em antropologia. Em 1946 retorna para Venezuela onde é professor, pesquisador e diretivo da UCV. No seu trabalho conseguiu unir o compromisso político e social a uma grande atividade cientifica. 12 Federico BRITO FIGUEROA (La Victoria, 1921 - Caracas, 2000) Reconhecido historiador e antropólogo marxista venezuelano. Foi membro do Partido Democrático Nacional desde 1936, e uns anos depois da divisão de esquerda do Partido Comunista da Venezuela (PCV). Em 1946 entra no Instituto Pedagógico Nacional onde se forma como professor de historia e geografia em 1949. Em 1952 é exilado no México onde estuda na Escuela Nacional de Antropología e Historia com Wenceslao Roces e François Chavalier, discípulo de Marc Bloch. Ele se forma como etnólogo e mestre em antropologia. Em 1959 volta na Venezuela, após a queda do ditador Mar-cos Pérez Giménez, e estuda na Universidad Central de Venezuela onde se forma como licenciado em Historia e doutor em Antropologia. Sua tese doutoral é seu conhecido estudo La estructura económica de Venezuela colo-nial, escrita em 1963 e publicada em 1978. 13 Alguns dos autores e obras mais significativos dessa matriz de pensamento encontram-se em: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966; FER-NANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus / EDUSP, 1965. 14 ACOSTA SAIGNES, Miguel. Vida de los esclavos negros en Venezuela. Caracas: Ed. Hespérides, 1967 15 Ermila TROCONIS DE VERACOECHEA. (Laussana, Suiza, 1929). Doutora em Historia pela Universidad Central de Venezuela (UCV) em 1975 é na atualidade Diretora da Academia Nacional de la Historia (2003-2005. 2005-2007) sendo a primeira mulher membro dessa instituição (1978). Professora titular da UCV, foi Subdireto-ra do Archivo General de la Nación entre os anos 1971-75 e professora da Universidad Católica Andrés Bello,

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gros en Venezuela, que também contribuiu para a renovação metodológica e interpretativa do

tema da escravidão colonial.

La vida de los escravos negros en Venezuela, tese doutoral do autor publicada em

1967, é até hoje grande referência por ser uma das pesquisas mais completas sobre os africa-

nos no contexto da Venezuela colonial. Representa um dos estudos mais significativos da

historiografia pós-positivista sobre escravidão na Venezuela, baseado em fontes documentais

inéditas que o autor trabalha sob uma ótica interdisciplinar combinando a historia social com

a antropologia crítica e a sociologia.16 Parece-nos bastante indicativo que a sua introdução

tenha sido escrita por Roger Bastide, sociólogo com filiações próximas a da já mencionada

Escola Sociológica Paulista 17 Nas suas palavras, uma das originalidades da obra de Saignes

foi a de unir história e a antropologia: “ ... Libro que abre caminos... ya que enseña al mismo

tiempo todo el beneficio que puede lograr la Historia de un acercamiento con la antropología

y todo lo que gana también la antropología al acercarse a la historia...”18.

Por sua vez, a obra historiográfica de Brito Figueroa é caracterizada pela influencia de

duas grandes tendências. A primeira, o marxismo, ao qual ele aderiu desde sua incorporação à

luta social camponesa nos anos 40 e por cuja causa sofreu o exílio nos anos 50, e a influencia

de Marc Bloch e l’ Ecole des Annales que vem de sua formação no Mexico (1952-1958) na

área da antropologia e historia. Desses anos ele próprio afirma:

“Mi gran maestro se llamó José Miranda; fui alumno de Wenceslao Roses, traductor de “El Capital”. Me dio Teoría Económica y es ahí donde comienzo a aproximarme a la Escuela Francesa, la Escuela de los Annales, a Marc Bloch. Concurso y me gano una beca, mi Maes-tría en Ciencias Antropológicas. Presento una tesis. Ahí es donde me hago como (sic) historiador… Posteriormente pero en esos mismos años, mis contactos con Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Albert Soboul y Witold Kula completaron el cuadro de mi formación profesional,

(1967-78). Antiga diretora da Escuela de Historia e do Instituto de Estudios Hispanoamericanos da UCV. (1987-89). Bibliotecária e responsável pelo Arquivo da Academia Nacional de la Historia de 1991 a 1999. Entre seus estudos sobre a época colonial na Venezuela destacam-se: Documentos para el estudio de los esclavos negros en Venezuela (1969); Las Obras Pías en la iglesia colonial venezolana (1971); La tenencia de la tierra en el litoral central de Venezuela (1979); Indias, mantuanas y primeras damas (1989); Gobernadoras, cimarro-nas, conspiradoras y barraganas (2001) 16 ROJAS, Reynaldo. Miguel Acosta Saignes: Ciencia y política en la Venezuela del siglo XX in http://www.elmallvenezuela.com/reinaldorojas.html 17 É interessante destacar aqui a observação do Prof. Ciro FLAMARION CARDOSO sobre a Escola Sociológica Paulista na sua crítica do “paroquialismo” da historiografia brasileira. Ele assinala que “A historia específica do surgimento da “escola sociológica de são Paulo” mostra serem as posições centrais da mesma comuns a uma tendência historiográfica pancontinental de fins da década de 1950 e da década seguinte, que seria extrema-damente difícil atribuir ao ideário dos políticos imigratistas de São Paulo!” CARDOSO, Ciro. Escravidão e abolição no Brasil. Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 101 (griffo nosso) 18 ACOSTA SAIGNES, Miguel. Op. cit. Prólogo.

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porque a través de ellos me llegó la luz de L’École des Annales, fun-dada en los años 30 por Marc Bloch y Lucien Febvre.” 19

Sua concepção da historia, a fundamentação teórica e a abordagem metodológica pre-

sente nos seus trabalhos, são expressões de ambas duas influencias. Assim, seus estudos sobre

escravidão na Venezuela20 implicam numa renovação no tema sob todos esses aspectos e per-

manecem como importantes referências por incluir na sua base de dados análises demográfi-

cas e econômicas da escravidão constantemente consultadas e citadas.

É importante destacar que na década de 1970, os antropólogos vêm realizando traba-

lhos de maior repercussão em comparação aos historiadores na Venezuela. 21 Nesse sentido,

têm influenciado as abordagens interpretativas, sendo uma das mais significativas aquelas

voltadas para os estudos de identidade étnica. A influência de autores como Richard Price e

Sidney Mintz, que propõem uma releitura das vivências e experiências das populações afro-

americanas no Novo Mundo, fez com que outros pesquisadores considerassem em suas refle-

xões a insuficiência do contexto social e das tradições africanas quando observadas isolada-

mente para explicar os códigos sociais afro-venezuelanos. Segundo essa abordagem, eles são

menos heranças imutáveis do que o produto final de mudanças culturais onde os descendentes

de africanos não foram sujeitos passivos e inconscientes, mas agentes ativos22 empreendedo-

res de transformações no seu contexto histórico23. Retomando o paralelismo com a historio-

grafia brasileira, a produção destes autores procura

resgatar as vivencias escravas e, portanto, os cativos como agentes transformadores das sociedades escravistas. O que esses estudos mais recentes apontaram em termos gerais, foi que os cativos recriaram es-tratégias originais de sobrevivência, agenciamentos e enfrentamentos

19ROJAS, Reinaldo. Federico Brito Figueroa, los Annales y la Historia econômica y social de Venezuela in http://www.elmallvenezuela.com/reinaldorojas.html 20 Os títulos mais representativas do autor sobre escravidão são La liberación de los esclavos en Venezuela (1949); Las insurrecciones de los esclavos negros en la sociedad colonial (1961); El comercio de negros y la mano de obra esclava en la economía colonial venezolana (1964); Los esclavos de Chuao en el siglo XIX (1975); El problema tierra y esclavos en la historia de Venezuela (1984) 21 Os trabalhos de antropólogos como Angelina Pollak-Eltz, Michaelle Ascencio, Alfredo Chacón, Berta Pérez. 22 A percepção de homens e mulheres como agentes históricos diz respeito à perspectiva teórica de se considerar a história para além das estruturas, como um processo social dinâmico movimentado a partir da atuação dos múltiplos sujeitos sociais. De acordo com Thompson, as relações sociais devem ser pensadas a partir do conceito de “agency”. Assim sendo, esta “agência” representa a capacidade humana de movimentar processos históricos complexos e de produzir experiências diferenciadas de acordo com os sujeitos e contextos históricos inerentes a cada época. Parte dessa discussão teórica está em THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. 23 Franklin Guerra Cedeño, Eduardo Bermúdez, Michaelle Ascencio...

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às políticas de dominação senhoriais, forjando uma comunidade es-crava que possuía suas próprias lógicas. 24

As temáticas trabalhadas são várias, sendo que a grande maioria dos estudos abordam

a epoca colonial. Destacam-se as rebeliões escravas, as tradições religiosas afro-venezuelanas,

os quilombos e os estudos regionais de populações escravas.

No que diz respeito à literatura venezuelana sobre o processo de abolição25, ela tem es-

tudado o tema sob diferentes óticas26 Destaca-se a obra do norte-americano John V. Lombar-

di, Decadencia y abolición de la esclavitud en Venezuela 1820-1854, cuja tradução foi publi-

cada em 1974 e que virou referência sobre o tema. Lombardi pertence à geração de historia-

dores americanos que nos anos 1960-1970 mostrou um enorme interesse nos estudos da es-

cravidão comparativa. Esse interesse respondia às preocupações com o presente

principalmente com o debate renovado sobre as questões raciais que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial e nas décadas do pós-guerra e se agudizou pelos direitos civis nas décadas do pós-guerra. O livro de Tannenbaum, assim como Slavery, de Stanley Elkins (1959), e vários outros, usou a comparação para marcar posição sobre os Es-tados Unidos da época: que o pais excluía os descendentes de escra-vos de dimensões importantes da cidadania de modo especialmente severo e violento em conseqüência de seu sistema escravista (...) Esta comparação trouxe alternativas: talvez a reforma institucional e um repensar dos valores permitissem aos Estados Unidos superar final-mente a herança de sua escravidão e encontrar maneiras de estender aos americanos de origem africana uma cidadania mais ampla.27

O autor analisa as condições econômicas e políticas nas quais viviam os escravos du-

rante o processo da abolição. O seu interesse pela Venezuela responde ao desejo de aprofun-

dar as possibilidades de definição da escravidão na América Latina, o que o autor não consi-

dera possível se não se realizam estudos de caso em países onde a escravidão foi menos im-

portante que em Cuba e no Brasil. Ele não pretende pesquisar os aspectos comparativos da

24 GOMES, Flavio. Experiências atlânticas. Ensaios e pesquisas sobre a escravidão e a pós-emancipação no Brasil, Passo fundo: UPF, 2003, p.16 25 As obras sobre abolição são escassas. Estas são: LANDAETA ROSALES, Manuel. La libertad de los escla-vos en Venezuela. Caracas: Imprenta Bolívar, 1895; LOMBARDI, John V. Decadencia y abolición de la es-clavitud en Venezuela 1820-1854. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1974; PARRA MÁRQUEZ, Héctor. Centenario de la abolición de la esclavitud en Venezuela. San Juan de los Morros, Tipografía de la Caja de Trabajo Penitenciario, 1954; RODRÍGUEZ, José Santiago. Acerca de la abolición de la esclavitud en Venezuela. Buenos Aires: Casa de Jacobo Peuser, 1937; RONDÓN MÁRQUEZ, Rafael Angel. La esclavitud en Venezuela: el proceso de su abolición y las personalidades de su decisivos propulsores, José Gregorio Monagas y Simón Planas. Caracas: Tipografía Garrido, 1954. 26 Nas grandes linhas, basearemos nosso analise da historiografia da abolição no estudo feito por Marisol Rodri-guez Arrieta no seu estudo sobre escravidão, manumissão e abolição. 27 COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Além da escravidão. Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipaçao. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 40.

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escravidão na Venezuela com respeito a outros sistemas escravistas nas Américas, mas forne-

cer um estudo de caso que possibilite futuras comparações. É interessante assinalar que o

autor na introdução do livro adverte ao leitor sobre o caráter provisório de suas explicações

justamente por causa da falta de estudos monográficos: “... A maioria das interpretações que

damos aqui devem ser consideradas como puramente tentativas porque as bases monográficas

para estabelecer uma síntese adequada ainda não têm sido assentadas”. 28

Inscrita na nova geração de profissionais da história e no marco da história regional,

um dos estudos mais recentes e abrangentes sobre manumissão e abolição da escravidão é o

trabalho de Marisol Rodriguez Arrieta, Manumisión y abolición en la província de Maracaibo

1810-186529. Pela sua dupla perspectiva, regional ao mesmo tempo que abarca os processos

de escravidão, manumissão e abolição na longa duração, o trabalho se apresenta como novo e

original, considerando os escravos insertos no contexto de suas relações sociais e participando

dos processos da história venezuelana. Está baseado na documentação dos arquivos da antiga

Província de Maracaibo.

Quanto à situação atual dos estudos sobre escravidão, dois aspectos merecem desta-

que. Por um lado, a unanimidade das queixas dos pesquisadores sociais -especialmente histo-

riadores e antropólogos- por causa da ausência de estudos históricos baseados nas fontes, so-

bretudo aqueles ligados ao século XIX. Embora a história colonial venezuelana conte com

uma bibliografia importante, dá-se um salto do final da colonização para o início do século

XX. Ficam assim um vazio e um silêncio significativos sobre o século XIX e por conseqüên-

cia sobre os processos referentes ao término da escravidão, os impactos da Independência

sobre a população escrava, o papel dos negros libertos e dos pardos na formação da nova re-

pública. Deixamos as populações de cor escravas ou não entre finais do século XVIII e come-

ços do século XIX, para encontrá-las “invisibilizadas” no século XX sem saber o que ocorreu

com elas, e sem ter aprofundado o processo de transição da condição escrava para a de cida-

dão. 30 A queixa metodológica de Lombardi continua atualizada, apesar dos recentes estudos

sobre os pardos no processo de independência:

28 LOMBARDI, John V. Op. Cit. p. 24 29 RODRIGUEZ ARRIETA, Marisol. Manumisión y abolición en la provincia de Maracaibo (1810 – 1864), Maracaibo: Gobernación del Estado Zulia; Acervo Histórico del Estado Zulia, Biblioteca de temas de historia del Zulia, 2001. 30 ASCENCIO, Michaelle. Entre Santa Bárbara y Changó. La herencia de la plantación. Caracas: Fondo Editorial Tropykos, Facultad de Ciencias Económicas y Sociales, 2001.

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Igualmente desilusionante es la falta de investigaciones especializa-das de las fases más elementales de la historia social. ¿Qué les pasó a los pardos después de la independencia? ¿Cuáles fueron los efectos de las guerras de independencia en la situación racial de Venezuela? Y ¿qué tipo de relaciones se estableció en el campo entre los peones y los hacendados? Estas preguntas básicas no han sido todavía contes-tadas31

Outro aspecto importante para entender o tipo de produção historiográfica sobre a escravidão

na Venezuela é o fato de poucas instituições se dedicarem ao estudo da questão afro-

venezuelana. Conforme mencionado, destacados historiadores e antropólogos nos deixaram

importantes contribuições como membros ativos das instituições acadêmicas e fundadores de

equipes e linhas de pesquisa ligadas à escravidão. Infelizmente, o afastamento destes estudio-

sos de seus postos representou a não continuidade e o enfraquecimento desta temática.

Na Venezuela, a abolição e a independência foram dois processos que caminharam

juntos, já que entre os vários conflitos sociais que suscitaram os movimentos revolucionários

de finais do século XVIII precursores do projeto de independência, destacava-se a questão da

escravidão 32. Embora boa parte da historiografia venezuelana considere que “la emancipaci-

ón de los esclavos fue un proceso lento, continuo y pacífico”, 33 a documentação da época

evidencia que o término da escravidão não foi uma benesse concedida pelas elites. Assim co-

mo no Brasil, ocorreram revoltas populares das quais participaram escravos, livres e libertos e

a imprensa teve papel destacado34. Além desses fatores, a ingerência da Inglaterra foi relevan-

te como aponta a fala do enviado do Império do Brasil à Venezuela, o Barão de Japurá:

...Seja porem como for –com apoio do governo de Londres ou sem el-le- com a ingerência da Legação britânica em Caracas ou sem ella- é certo que o espíritu [sic] do abolicionismo está em ação nesta Repú-blica, como há estado freqüentemente em Cuba e nas Antilhas fran-cezas [sic]; o que julguei do meu dever levar ao conhecimento de

31 LOMBARDI, John V. Decadencia y abolición de la esclavitud en Venezuela, 1820-1854, Caracas, 1971, Universidad Central de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca, 1971, p. 218. 32 As transformações sociais ocorridas no Brasil do final do século XIX tais como: abolição da escravatura, re-formas urbanas, imigração européia, industrialização, difusão dos transportes, etc. também suscitaram preocupa-ções das elites em torno de diferentes projetos republicanos. Ver CARVALHO, José Murilo de. Os bestializa-dos. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Top-books, 1996 dentre outros. 33 POLLAK-ELTZ, Angelina. La esclavitud en Venezuela in Influencias africanas en las culturas tradicionales de los paises andinos .in Memorias del II Encuentro para la promoción y difusión del patrimonio folclórico de los países andinos. Santa Ana de Coro, 2001, p. 33. 34 MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.

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VEx [sic] pelos perigos que uma tam insidiosa e subtil política pode engendrar ao Brasil... a mesma insignificância do numero de escravos em Venezuela (apenas 22.000) pode ter induzido as sociedades aboli-cionistas de Inglaterra a preferir este país para um ensaio, como a-quelle [sic] onde com menos sacrificios conseguirá seus fins. 35

Insistindo vários meses depois, “E do meu precioso dever continuar a comunicar a

VEx esclarecimentos e provas da ação que neste país está exercendo o espíritu [sic] das socie-

dades abolicionistas da Inglaterra”36 O mesmo argumento e preocupação encontra-se na cor-

respondência dos enviados espanhóis na Venezuela após o reconhecimento da independência

da Venezuela por parte da Espanha em 184537. A correspondência entre o representante do

governo britânico e o Ministro de Relações exteriores venezuelano, especialmente relativa ao

fim do tráfico de escravos confirma esse fato. No entanto, para situar e melhor compreender

este processo histórico, é preciso destacar alguns eventos e suas características políticas, jurí-

dicas e ideológicas.

Em 1810, apesar da Junta Suprema de Gobierno ter proibido o tráfico negreiro e a

comercialização de escravos, ela menciona nada a respeito da abolição da escravidão. No ano

seguinte, a Constituição Federal de 1811 inclui as restrições ao tráfico no seu texto, mas tam-

bém mantém a escravidão. Durante as primeiras campanhas da Independência (1811-1812), a

manumissão foi oferecida aos escravos pelas duas forças em combate (republicanas (patrio-

tas) e monarquistas (realistas)) em troca de sua participação nos combates por um determina-

do número de anos. Em 1812, Miranda decidiu adotar esta política que os realistas estavam

aplicando com grande sucesso militar, sendo que nesses anos, os republicanos não consegui-

ram unir à sua causa os homens de cor que acrescentavam as filas do exército realista nos

diferentes pontos da geografia venezuelana. Do lado realista, não existia unanimidade sobre a

adoção da dita política por duas razões: a decadência da agricultura e o perigo que representa-

va acrescentar a população livre de cor com mais um grupo insubordinado38. No entanto, aca-

baria se impondo, já que segundo informes de um conselheiro realista, os escravos viriam a

ser bons soldados pela sua posição na sociedade venezuelana, já que eram disciplinados, cora-

josos e adaptavam-se facilmente às mudanças de clima e aos trabalhos duros. Podiam ser le-

vados longe de suas fazendas de origem às quais não gostariam de voltar o que evitaria o te-

mor de muitos às revoltas segundo o modelo do “fantasma” de Haiti. Por outra parte, o alis- 35 AHI. Missões diplomáticas brasileiras, Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846. Caracas 20 de fevereiro de 1845. 36 AHI, Idem. Caracas, 8 de abril de 1845. 37 Cf. CAL, Consuelo. Venezuela, República negra en los informes de España in Jahrbuck für Geschichte Lateinamerikas (38): 207-231, Colonia, 2001 38 LOMBARDI. La decadencia... p.68

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tamento de escravos não ultrapassaria as cifras entre 6% e o 8% da força de trabalho das fa-

zendas e os fazendeiros seriam compensados.39

A desconfiança da maior parte da população escrava da aristocracia de Caracas fez

com que essa iniciativa fracassasse do lado republicano. Os patriotas representavam os gran-

des proprietários dos quais os escravos fugiam procurando a liberdade que os realistas lhes

ofereciam.40 No ano de 1812, Miranda capitula ante o avance das forças realistas “y la amena-

za de que los esclavos y pardos del interior marchasen sobre Caracas”41. Com efeito, ele pensava

que era melhor fazer as pazes com a Espanha do que entregar o país aos homens de cor. No

seu temor, vemos refletido também o temor de se ver repetir na Venezuela os acontecimentos

de São Domingos:

… Le confieso que tanto como deseo la libertad y la independencia del Nuevo Mundo, otro tanto temo la anarquía y el sistema revolu-cionario. No quiera Dios que estos hermosos países tengan la [mis-ma] suerte de Saint-Domingue, teatro de sangre y de crímenes, so pretexto de establecer la libertad; antes valiera que se quedaran un si-glo más bajo la opresión bárbara e imbécil de España42

É possível refletir sobre o fracasso dos patriotas para atrair os escravos nesses primei-

ros anos de luta a partir do pensamento de um dos seus representantes mais importantes, Si-

món Bolívar, pertencente à aristocracia criolla. Ao longo do conflito da independência, ele

vai percebendo a importância dessa adesão para assegurar a vitória. A Primeira República,

pois, cai em julho de 1812 e Bolívar se refugia na Nova Granada onde ele organiza o exército

para restabelecer a República um ano depois (Agosto de 1813). Em setembro do mesmo ano,

envia uma proclamação “às nações do mundo” explicando as razões da queda da Primeira

República. Comentaria sobre a situação dos negros, fazendo referência à revolta de Barloven-

to, apresentada como uma “revolución de negros, libres y esclavos”:

Esa gente inhumana y atroz, cebándose en la sangre y bienes de los patriotas de que se les dio una lista en Curiepe y Caucagua, marchan-do contra el vecindario de Caracas, cometieron en aquellos valles, y

39 LOMBARDI. Idem, p. 70-71 40 No Brasil, os escravos que combateram na guerra do Paraguai (1864-1870) também poderiam adquirir a sua liberdade. Cf. SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Escravidão e cidadania na formação do exército, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1990; SILVA, Eduardo. Dom Oba II d’África, o príncipe do povo. Vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 41 GÓMEZ, Alejandro E. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Número 5 - 2005, Em linha no 17 fevereiro de 2006. Disponível em : http://nuevomundo.revues.org/document211.html 42 Francisco de Miranda, Carta a Turnbull, 1798. Citado por GÓMEZ, Alejandro E. Idem.

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especialmente en el pueblo de Guatire los más horrendos asesinatos, robos, violencias y devastaciones. Los rendidos, los pacíficos labra-dores, los hombres más honrados, los inocentes, morían a pistoletazos y sablazos, o eran azotados bárbaramente aún después de haberse pu-blicado el armisticio. Por todas partes corría la sangre, los cadáveres eran el ornato de las calles y plazas de Guatire, Calabozo, San Juan de los Morros, y otros pueblos habitados por gente labradora y pacífi-ca, que lejos de haber tomado las armas, huían al acercarse las tropas a los montes, de donde les conducían atados para quitarles la vida sin más formalidad, audiencia o juicio, que hacerlos hincar de rodillas. Cualquier oficial o soldado estaba autorizado para dar impunemente muerte al que juzgaba patriota…43

O ano de 1814 é marcado pela queda da Segunda República. É também um ano de en-

frentamentos entre os exércitos republicano e realista comandado pelo general Boves. Em

junho desse ano, quando a situação parece crítica para os republicanos, Bolívar escreve uma

carta ao ministro britânico de Relações Exteriores onde acusa os escravos negros como prin-

cipais inimigos da República, mesmo que eles sejam instrumentos dos espanhóis. Ao mesmo

tempo, ele avisa aos ingleses de um possível perigo no Caribe:

...nuestros enemigos no han perdonado medio alguno por infame que sea para llevar a cabo su empresa favorita. Han dado la libertad a nuestros pacíficos esclavos y puesto en fermentación las clases menos cultas de nuestros pueblos para que asesinen individualmente a nues-tras mujeres y a nuestros hijos, al anciano respetable y al niño que aún no sabe hablar. Estas desgracias que afligen a la humanidad en estos países deben llamar por su propia conveniencia la atención del gobierno de S.M.B. El ejemplo fatal de los esclavos y el odio del hombre de color contra el blanco, promovido y fomentado por nues-tros enemigos, van a contagiar a todas las colonias inglesas, si con el tiempo no toman la parte que corresponde para atacar semejantes desórdenes44.

Bolívar destaca o medo generalizado que os brancos (republicanos e monarquistas) ti-

nham dos negros. Medo produzido, por uma parte, pela autorização velada que Boves dava

aos seus soldados de pilhar, matar, roubar os criollos, além de espanhóis nunca poupados.

Outra fonte de temores era o medo do “mal haitiano” 45, ou seja, de levantes escravos inspi-

43 LECUNA, Vicente (Org.). Proclamas y discursos del Libertador, 1811-1830. Los Teques: Biblioteca de Autores y Temas Mirandinos, 1983. “Simón Bolívar, Brigadier de la Unión y Jefe del Ejército del Norte, Liber-tador de Venezuela, etc. Etc. A las naciones del Mundo” 44BELROSE, Maurice. Bolívar et la question de l’esclavage des noirs. Págs. 91-92. Ele cita USLAR PIETRI, Juan. Historia de la rebelión popular de 1814. Caracas - Madrid, 1812. Edime, Pág. 138 45 No final de 1803, o fracasso das tropas francesas no Haiti muda a apreciação das autoridades de Caracas sobre os acontecimentos de São Domingos. Até então, a expressão “mal francés” usava-se como referencia às influen-cias das idéias da Ilustração e os perigosos valores de igualdade e liberdade da Revolução Francesa. A partir da independência haitiana em 1804, o “mal francés” foi substituído pelo “mal haitiano”, refletindo a angustia das

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rados na revolução de São Domingos de 1791 que finalizou com a proclamação da Indepen-

dência do Haiti em 1804 em conjunto com o massacre dos brancos da ilha, tornando-se assim

a primeira república negra das Américas. No contexto social da Capitania Geral de Venezue-

la, onde a mestiçagem era forte, a independência do Haiti foi condenada pelas elites criollas.

Os acontecimentos da ilha representavam “a tripla ameaça da Revolução Francesa considera-

da ímpia: de um governo de negros visto como escandalosa inversão das hierarquias legíti-

mas; da guerra civil e da massacre dos brancos”46 Devido à proximidade com aquela antiga

colônia francesa, muitos colonos franceses se refugiaram em Caracas, aumentando o pânico

dos criollos. A partir de 1813, os aspectos mais cruéis da guerra da independência levavam à

referência da revolta haitiana.

Mas as circunstâncias da guerra fazem com que Bolívar acabe se exilando no Haiti en-

tre 1814 e 1816. Com efeito, Cartagena que tinha sido a principal cidade de acolhida dos pa-

triotas exilados e seu centro de operações no continente, cai sob as tropas realistas em 1815 e

os patriotas têm de emigrar nas Antilhas. Primeiro procuraram refúgio nas ilhas inglesas, es-

pecialmente a Jamaica, de onde foram expulsos já que a Inglaterra era aliada de Espanha e,

além disso, desconfiava das simpatias dos patriotas pelos franceses. Assim, o sul do Haiti era

um dos poucos portos neutrais do Caribe, onde foram acolhidos47.

Durante o exílio de Bolívar no Haiti (1814-1816), opera-se uma mudança no seu pen-

samento. Começa, então, a segunda fase da sua posição política sobre a escravidão, coincidin-

do com uma fase importante na carreira militar impulsionada graças ao apoio de Pétion. Este

período de exílio serviu para planejar seu retorno à Venezuela, refletindo sobre os fracassos

da República e a importância da questão da escravidão. Uma outra mudança importante que

se operou na raiz do seu exílio no Haiti foi que a ilha se transformou num lugar estratégico

para os patriotas na luta pela independência, o que teve numerosas conseqüências sobre a

guerra e a construção das futuras repúblicas.

A partir destes anos, o melhor conhecimento da situação da ilha acaba com o precon-

ceito da barbárie dos seus governantes e a ajuda de Pétion aos patriotas faz a república negra

se transformar na imagem de “uma república irmã”.48 Com a cumplicidade de Pétion (apesar

revoltas de escravos e do estabelecimento de uma “República de Negros” no continente. Cf. GÓMEZ, Alejandro E. La Revolución Haitiana… 46 THIBAUD, Clément. “Coupé têtes, brûlé cazes”: Peurs et désirs d’Haiti dans l’Amérique de Bolivar in Anna-les Histoire, Sciences Sociales, 58e année, nº 2 mars-avril, 2003, p. 313 47 GÓMEZ, Alejandro E. Op.Cit. 48 THIBAUD, Clément. Op. Cit. p. 326

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de sua neutralidade oficial), organizam-se expedições com financiamento privado norte-

americano que partem das costas haitianas para liberar México e estabelecer um porto no Ca-

ribe. Das quatro expedições que saíram entre 1816 e 1817 para o México e a costa de Caracas

só a segunda e a última para Caracas, liderada por Bolívar tiveram sucesso, conseguindo as-

sim reiniciar as campanhas no continente. Uma das causas deste sucesso foi a mudança na

situação no interior da Capitania Geral, já que os realistas não contavam mais com a maioria

do apoio dos homens de cor. 49

Em 1816, devido ao impacto da guerra de independência e às mudanças legislativas, o

regime escravista sofre uma série de alterações institucionais. Bolívar iniciou, então, uma

campanha abolicionista. Tinha ele diferentes motivos e interesses para decretar a abolição.

Uma das razões foi a promessa feita a Pétion de libertar os escravos em troca da ajuda recebi-

da. Madiou, em sua Historia de Haiti, resume o encontro e o acordo entre Bolívar e Pétion:

Bolívar, qui s’était transporté auprès de Pétion, en reçu un accueil des plus nobles. Le président lui promit des armes, des munitions de guerre et de bouche, pour le mettre à même de reprendre sa lutte contre les Es-pagnols et de proclamer l’indépendance de son pays. La seule condition qu’il mit à ses secours, ce fût que Bolivar proclama l’émancipation des esclaves au Venezuela et dans toutes les autres contrées de l’Amérique du Sud qui se rallieraient à la cause de l’indépendance. Bolivar lui en fut la promesse et partit pour les Cayes. 50

Alguns autores afirmam que a verdadeira motivação de Bolívar para libertar os escra-

vos era a urgência de dar homens ao exército51. De volta na Terra Firme, no mesmo ano de

1816, promulgou dois decretos a favor da abolição respectivamente em 2 de junho e em 6 de

julho. A primeira proclamação começa de forma geral:

Considerando que la justicia, la política y la Patria reclaman imperio-samente los derechos imprescriptibles de la naturaleza, he venido en

49 GÓMEZ, Alejandro E. Op.Cit. 50 Pétion provê Bolívar de material militar e o autoriza para recrutar aqueles soldados e marinhos que aceitassem lutar com ele. Mas como o Haiti era uma republica neutra no conflito entre a Espanha e suas antigas colônias, ele pediu aos responsáveis das transações de guardar todas as precauções necessárias para que passassem desperce-bidas. Bolívar agradeceu Pétion do apoio e quis, no intuito de “testemunhar os sentimentos de meu coração para com Vossa Excelência e deixar para a posteridade um monumento irrecusável de vossa filantropia” saber se na sua proclamação pela libertação dos escravos e nos decretos correspondentes “eu não deveria vos nomear como o autor de nossa liberdade”50. Pétion recusa o pedido de Bolívar, argumentando sua delicada posição com rela-ção à Espanha, “uma nação que ainda não se pronunciou em contra da Republica de uma forma ofensiva”. Por esse motivo, ele pede de “não proclamar em toda a extensão da República [de Venezuela] nem dizer meu nome em nenhuma de vossas atas”. MADIOU, p. 354 51 “ Sejam quais foram os sentimentos pessoais de Bolívar sobre a instituição (da escravidão,) ele planejou seus decretos ordenando levas de escravos para dar homens aos exércitos, não para dar a liberdade aos escravos” LOMBARDI, John V. Los esclavos negros en las guerras venezolanas de la independencia in Cultura Universi-taria, Caracas, XCIII (oct.-dic., 1966) 656-678. Citado por IZARD, Miguel. Op. Cit., p. 60

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decretar, como decreto, la libertad absoluta de los esclavos que han gemido bajo el yugo español en los tres siglos pasados52

Mas o decreto abolicionista somente beneficiava os escravos que tivessem se incorpo-

rado ao serviço militar, obrigando os cativos entre 14 e 60 anos a entrar no exército. É interes-

sante notar na sua narrativa a idéia de que a escravidão tinha sido obra dos espanhóis e não

propriamente dos criollos.53 Na proclamação de julho (que anulava o decreto anterior), ende-

reçada aos habitantes da província de Caracas, Bolívar lembra aos negros sobre a abolição da

escravidão anunciando que “la odiosa diferencia de clases y de colores queda abolida para

siempre”. 54 Mas a condição para a liberdade continuava sendo a incorporação ao exército.

Posteriormente, em 1819, no seu discurso no Congreso de Angostura, Bolívar, então chefe

supremo da República, pede que se decrete a abolição nas leis da República:

La otra e impía esclavitud cubría con su negro manto la tierra de Ve-nezuela, y nuestro cielo se hallaba recargado de tempestuosas nubes, que amenazaban un diluvio de fuego. Yo imploré la protección del Dios de la humanidad, y luego la Redención disipó las tempestades. La esclavitud rompió sus grillos, y Venezuela se ha visto rodeada de nuevos hijos, de hijos agradecidos que han convertido los instrumen-tos de su cautiverio en armas de libertad: los que antes eran enemigos de una Madrastra, ya son defensores de una Patria. Encareceros la justicia, la necesidad y la beneficencia de esta medida, es superfluo cuando vosotros sabéis la historia de los Hilotas, Espartaco y Haití: cuando vosotros sabéis que no se puede ser libre y esclavo a la vez, sino violando a la vez las Leyes naturales, la Leyes políticas y las Le-yes civiles. Yo abandono a vuestra soberana decisión la reforma o la renovación de todos mis Estatutos y Decretos; pero yo imploro la confirmación de la libertad absoluta a los esclavos, como imploraría mi vida y la vida de la República55

Mas não obtém o apoio majoritário dos representantes e senadores sendo a abolição

recusada. Para melhor compreender as expectativas da política antiescravista de Bolívar, é

fundamental destacar que ele falava na condição de estadista e chefe militar que compreendeu

a importância de ter a população negra ao seu lado. Em carta escrita em 1820 a Santander,

explicou:

Las razones militares que he tenido para ordenar la leva de esclavos son obvias. Necesitamos de hombres robustos y fuertes acostumbra-dos a la inclemencia y a las fatigas, de hombres que abracen la causa

52 LECUNA, Vicente (Org.). Op. Cit. “Simón Bolívar, Jefe Supremo y capitán General de los Ejércitos de Ve-nezuela y Nueva Granada, etc. etc. a los habitantes de Río Caribe, Carúpano y Cariaco” 53 BELROSE, Maurice. Op. Cit. Págs. 93. 54 LECUNA, Vicente (Org.). Idem 55 LECUNA, Vicente (Org.). Op. Cit, pp. 202 - 235

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y la carrera con entusiasmo, de hombres que vean identificada su cau-sa con la causa pública y en quienes el valor de muerte sea poco me-nos que el de su vida. Las razones políticas son aún más poderosas. Se ha decretado la libertad de esclavos de derecho y aún de hecho… Todo gobierno libre que comete el absurdo de mantener la esclavitud es castigado por la rebelión y algunas veces por el exterminio como en Haití…. 56

Bolívar finaliza sua argumentação comentando sobre a injustiça que significava só

homens livres morrendo pela emancipação. Além disso, considera a guerra como uma forma

justa de reduzir o número de escravos:

¿Será justo que mueran solamente los libres por emancipar a los es-clavos? ¿No será útil que éstos adquieran sus derechos en el campo de batalla y que se disminuya su peligroso número por un medio po-deroso y legítimo? Hemos visto en Venezuela morir la población li-bre y quedar la cautiva: no se si esto es política, pero sé que si en Cundinamarca no empleamos los esclavos sucederá otro tanto57

Imediatamente depois da Batalha de Carabobo, Bolívar na condição de chefe do exér-

cito vencedor, solicitou a aprovação da abolição ao Congresso de Cúcuta. No dia 21 de julho

de 1822, foi aprovada uma lei de manumissão que previa a extinção gradual do trabalho es-

cravo. Foi estabelecida a lei do “ventre livre” que concedia a liberdade às crianças filhas de

mães escravas. Porém estas crianças permaneceriam sob o jugo senhorial até completarem 18

anos. Por outro lado, se estabelecia um imposto sobre heranças, a ser pago pelos herdeiros a

um fundo especial administrado em cada província pela Junta de Manumissão. Ao fim de ca-

da ano, estes órgãos libertavam escravos com os fundos arrecadados. Bolívar não concorda

totalmente com a lei votada. Não compreende por que os filhos de escravos não nascem livres

no território da República: “... pero pudo haber extendido el imperio de su beneficencia sobre

los futuros colombianos que, recibidos en una cuna cruel y salvaje, llegan a la vida para some-

ter su cerviz al yugo”58

Solicita ao congresso tal medida como recompensa pela vitória de Carabobo, vencida

pelo “ejército liberador” pela liberdade de todos. Mas o Congresso não presta atenção a sua

demanda e Bolívar continua com a luta anti-escravista. Como afirma Lombardi:

La ley de esclavos de Cúcuta de 1821 fue la primera y la más impor-tante de las legislaciones republicanas con respecto a la reconstruc-

56 LECUNA, Vicente. Cartas del Libertador, t. 2, p. 150 57 Idem 58LECUNA, Vicente (Org.). Proclamas y discursos del Libertador, 1811-1830... pág. 264

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ción del sistema de esclavitud. Después de ella, todas las legislacio-nes siguientes fueron modificaciones de dicha ley o legislaciones ba-sadas en ella… (porque) resultó ser una componenda tan satisfactoria y flexible que constituyó la base de todas las legislaciones subsecuen-tes con respecto a la esclavitud…”59

Seu preâmbulo trazia expressa a motivação dos legisladores a quem foi recomendado

pelo Congresso venezuelano o destino dos escravos do território da república. Assim, como

não pode existir um governo republicano:

verdaderamente justo y filantrópico, si no trata de aliviar em todas las clases a la humanidad degradada y afligida... Un objeto de tan grande trascendencia para la República se debe realizar extinguiendo gradualmente la esclavitud; de modo que sin comprometer la tranqui-lidad pública, ni vulnerar los derechos que verdaderamente tengan los propietarios, se consiga el que dentro de un corto número de años se-an libres los habitantes de Colombia60.

Um temor explícito e uma contradição profunda impedem, pois, a abolição imediata

da escravidão: liberar os escravos negros “que se hallan tan connaturalizados con la vida

salvaje y ociosa” 61 constituía um perigo não recomendável para a sociedade (daí a necessida-

de de melhorar progressivamente sua educação civil e moral antes de libertá-los) e devia se

preservar o direito à propriedade apesar do direito sagrado de todo individuo à liberdade. Am-

bos os aspectos se refletem na lei e também dão conta das disposições contra o tráfico.

No ano de 1830, Bolívar morre e é dissolvida a Grande Colômbia. A Constituinte de

Valencia promulgou em 2 de outubro de 1830 uma nova Lei de Manumissão que modificava

aquela de 1821. Apesar de a nova lei ter significado um retrocesso por estender a maioridade

do liberto para os 21 anos e diminuir as quantias destinadas ao fundo de manumissão, o encar-

regado de negócios brasileiro considera a lei a “mais liberal e extendida [sic] que pode se

combinar com o direito de propiedade [sic]...” 62 remetendo junto com sua correspondência

um exemplar da dita lei. A legislação do ventre livre é mantida, porém com alterações. O tra-

balho infantil passa a ser avaliado pela metade do valor que teria na condição de escravo. Em

1839, Venezuela e Inglaterra assinam um tratado no qual declaram abolido o tráfico de escra-

59 Idem, p. 76 y 79 60 Ley de 21 de Julio de 1821, considerandos 2 y 3 61 “Memoria para reformar la ley de manumisión presentada al Congreso de 1825 por Joaquín Mosquera” en Materiales para el estudio de la cuestión agraria en Venezuela (1810-1865). Mano de obra: Legislación y administración, Vol. I, t. 4, p. 61. Citado por RODRIGUEZ, Marisol. Op. Cit., p. 51 62 “Para dar a VEx [sic] uma idea [sic] precisa da naturesa [sic] destas instituições, remetto [sic] incluso um exemplar la lei fundamental de manumissão, seguramente a mais liberal e extendida [sic] que se pode combinar com o direito de propiedade [sic]...” Caracas, 15 de Novembro de 1844. Arquivo Histórico de Itamaraty, Mis-sões diplomáticas brasileiras. Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846.

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vos. As duas nações se concedem o direito mútuo de buscar e apreender navios seus que pra-

ticassem o tráfico negreiro e de libertar os escravos63.

No entanto, a julgar pelas observações do representante da Legação Imperial do Brasil

na Venezuela, Miguel Maria Lisboa64, a pressão inglesa para abolir a escravidão se deixava

sentir num país em crise. Recém chegado em Caracas, assim descreveria a situação:

Sobre o estado deste paiz... Apresenta demais esta crise um resultado de anomalia; isto é, um pais immenso e despovoado, com uma classe trabalhadora inquieta por falta de trabalho. Pois a escassez de capital para ocorrer aos gastos de costeio das fazendas, e a falta de crédito para suppril-o, teem obrigado muitos proprietários a deixar de benefi-ciar e mesmo de colher uma grande parte de seus produtos65.

Nessas circunstâncias, assinalava o modo como os ingleses, de forma explícita coloca-

vam a questão da abolição como condição de seus intercâmbios comerciais. Lisboa conside-

rava seu dever informar tais fatos por considerá-los importantes para o Império:

Chegou a épocha de começar suas operações a lei britânica sobre importação de açucares, e algumas explicações tiveram logar entre os governos britânico e venezolano sobre o modo porque seria considerada esta Republica na applica-ção da dita lei, que julgo do meu dever levar ao conhecimento de V.Ex° porque envolvem questões de alta importância para o Império. Lord Aberdeen decla-rou a Fortique66 que os açucares de Venezuela seriam favorecidos em sua ad-missão no Reino Unido, em virtude de tratado de commercio67 que collocava a

63 Sobre a situação dos escravos comercializados após a extinção do tráfico no Brasil ver GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. 64 LISBOA, Miguel Maria, Barão de Japurá, chegou na Venezuela em agosto de 1843 e permaneceu até agosto de 1847. Nasceu no Rio de Janeiro no ano 1809. Começou a carreira como addido em Londres, em 1828, pro-movido a secretário de legação em 1831. Serviu como encarregado de negócios no Chile, em 1838 e na Venezu-ela em 1842. Foi depois enviado como ministro residente em missão especial a Nova Granada e ao Equador em 1852. Ficando em disponibilidade, em 1854, foi no ano seguinte designado para o Peru, como Plenipotenciário. Seus últimos postos foram nos Estados Unidos (1859), na Bélgica (1865) e no Portugal (1868), onde faleceu treze anos depois. Destacou-se pelas questões de limites que negociou com os paises da extinta Grã-Colombia e o Peru. Em Caracas assinou três tratados sobre Limites, Extradição e navegação fluvial que não chegaram a vigorar por falta de ratificação. Em 1864, negociou o casamento da princesa Leopoldina, filha de Pedro II com o duque de Saxe. Morreu no rio de janeiro em 1881. Ver GUIMARÃES, Argeu. Diccionario Bio-bibliografico Brasileiro de diplomacia, política externa e direito internacional. Rio de Janeiro: Edição do autor. 1938, pp. 235-237. 65 AHÍ. Missões diplomáticas brasileiras. Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846, Caracas, 26 de agosto de 1843. 66 Fortique foi Ministro plenipotenciário da Venezuela na Grã Bretanha de 1839 até 1845. 67 A Grã Bretanha tinha assinado um tratado de amizade, comercio e navegação com a Grande Colômbia em abril de 1825. Em 24 de outubro de 1834 (ratificado no mês de abril de 1835), na cidade de Londres, foi assinada uma convenção pela qual a Grã Bretanha e a Venezuela adotavam o dito tratado “tan eficazmente como si se hubieran insertado palabra por palabra en esta convención, los diferentes artículos y provisiones del antedicho tratado concluído entre su dicha Majestad y el Estado de Colombia...” Tratados públicos y acuerdos internacio-nales de Venezuela (incluyéndose los de la Antigua Colombia), Volumen I (1820-1900). Edición conmemorativa del primer centenario de la Batalla de Ayacucho, Caracas, Ministerio de Relaciones Exteriores, 1924, pp. 80.

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Republica no “qué” da nação mais favorecida; mas não em virtude de suas ins-tituições de manumissão [sublinhado no texto]68

O Barão enviou em anexo ao oficio a Colección completa de las leyes, decretos y re-

soluciones vigentes sobre manumisión da lei de 1830 para dar uma idéia da natureza dessas

instituições que provenientes de uma lei que considerava:

Seguramente a mais liberal e extendida que se pode combinar com o direito de propriedade. Acrescente-se que esta lei foi originalmente expedida em 1821, quando a Inglaterra conservava ainda a escravidão em suas colônias; e “resaltará” que é demassiada a exigência de uma abolição mais repentina.69

O oficio estava datado de novembro de 1844. Em fevereiro de 1845, o Secretário de

Estado do Ministério de Interior e Justiça, na sua Memória apresentada ao Congresso na aber-

tura das sessões de 1845 fazia uma exposição sobre a necessidade de reformar a lei de manu-

missão de 1830 que tinha se mostrado ineficaz, sendo que poucos escravos receberam a liber-

dade desde sua promulgação70. O encarregado inglês assinalava que a recomendação visava a

proibição definitiva do tráfico no país e tinha sido dada:

como la más eficaz medida para impedir la entrada fraudulenta de es-clavos estrangeros, bajo el velo de las leyes existentes que permiten su introducción en calidad de sirvientes domésticos teniendo la obli-gación de reexportarlos o hacerlos libres dentro de cierto tiempo, con el objeto de que se expida un decreto legislativo prohibiendo entera-mente en lo sucesivo la entrada de esclavos bajo cualquier pretexto y mandando que ipso facto sean libres todos los que pisen el territorio de Venezuela71.

Lisboa, embora sem conseguir demonstrar a ingerência inglesa nesses processos pre-

venia o governo brasileiro sobre o ambiente abolicionista na Venezuela, o mesmo que se res-

pirava em outros lugares da América:

Seja porem como for –com apoio do governo de Londres ou sem elle- com a ingerência da Legação britânica em Caracas ou sem ella- é cer-to que o espíritu do abolicionismo está em ação nesta República, co-

68 AHI. Missões diplomáticas brasileiras. Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846, Caracas em 15 de novembro de 1844. 69AHI. Missões diplomáticas brasileiras. Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846. Idem 70 A exposição está em anexo ao oficio de 20 de fevereiro de 1845 enviado pelo encarregado de negócios brasi-leiro. Arquivo Histórico de Itamaraty, Missões diplomáticas brasileiras. Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846. O encarregado inglês também faz referencia numa carta endereçada ao Ministro de Relações Exteriores venezuela-no, Sr.Miguel Herrera, datada em Caracas, em 24 de abril de 1847. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores (ACMRE). Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólios 108-114. Sobre a ineficácia da lei ver LOMBARDI, Op. Cit. Capítulos 2, 3 e 4. 71 ACMRE. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 113.

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mo há estado freqüentemente em Cuba e nas Antilhas francezas; o que julguei do meu dever levar ao conhecimento de V.Ex° pelos pe-rigos que uma tam insidiosa e subtil política pode engendrar ao Bra-sil72.

E considerava ainda que se as sociedades abolicionistas inglesas tinham escolhido a

Venezuela como lugar para exercer suas influencias podia ser porque “a mesma insignificân-

cia do numero de escravos em Venezuela (apenas 22.000) pode ter induzido as sociedades

abolicionistas de Inglaterra a preferir este país para um ensaio, como aquelle onde com menos

sacrifícios conseguirá seus fins”.73 No que diz respeito ao número de escravos ao qual fazia

referência, alguns anos depois, no seu relato sobre a viagem que realizou na Venezuela em

1853, Lisboa transcreveu o relatório do Ministério do Interior de 1845 onde falava do número

de habitantes e assinalava a diminuição da população escrava, prevendo sua extinção total

num período de dez anos:

Segundo o relatório do Ministério do Interior de 1845 a totalidade da população da Republica era então de 1.218.716 indivíduos, sendo es-cravos 21.628 e manumisos, isto é, filhos de escravas nascidos depois do ano de 1821, 23.514... O citado relatório diz o seguinte: “Noticias officiais ainda que não de todo exatas, demonstram que o numero de escravos existentes na República era no anno de 1834 de 36.000. Pe-las ultimas listas vê-se que este numero está reduzido a 21.623 con-forme a tabella de população annexa ao presente relatório. Da compa-ração de uma com outra somma resulta que a escravidão soffreu na republica uma diminuição de mais de 14.000 indivíduos em dez anos, sendo de esperar-se que no fim do outro decennio estará quase extinta de todo”. Só faltam três annos para o decennio de que fallava o mi-nistro do Interior74.

Porém, o Congresso de 1846 não levou em consideração a recomendação feita pelo

Ministério do Interior de reformar a lei de manumissão. O Encarregado de negócios inglês,

Belford Hinton Wilson, acompanhava o processo e mantinha informado ao governo inglês, de

quem ele tinha recebido instruções de manifestar:

al Ministro de Venezuela el placer con que el Gobierno de S. M. hab-ía sabido que el de Venezuela había propuesto una medida que tanto le honra; y más aún, que su realización en calidad de ley tendería en

72 AHI. Missões diplomáticas brasileiras. Venezuela-Brasil, Ofícios 1842-1846. Caracas em 20 de fevereiro de 1845. 73 Ibidem. 74 LISBOA, Miguel Maria. Relação de uma viagem a Venezuela, Nova Granada e Equador. Bruxelas: A. La-croix, Voerboeckoren e C.,1866, p. 67.

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gran manera a aumentar y vigorizar los amistosos sentimientos que profesa la nación inglesa a la República de Venezuela75.

Wilson entrevistou-se com o Gral. Soublette, então Presidente da República e com

dois Secretários de Estado expressando os desejos ingleses, mas eles deixaram suas funções

sem submeter a proposta inglesa ao Congresso, nas sessões que começaram em janeiro de

1847. No entanto, ele reconhecia que:

no han carecido enteramente de efecto sus anteriores recomendacio-nes, pues habiéndose llamado la atención de la Legislatura a los in-convenientes prácticos que resulta a Venezuela del actual estado de la ley, algunos diputados movidos como es justo suponer, por senti-mientos de humanidad como también por exactos y esclarecidos prin-cipios de Policía Nacional (sic) han formado y sometido a la conside-ración de las Cámaras un Proyecto de Ley prohibiendo del todo la importación a Venezuela de esclavos estrangeros, declarando ipso facto libre a cualquiera que venga de afuera76.

O projeto tinha sido aprovado pela Câmara de Representantes e encontrava-se no Se-

nado. Não se esperava que no Senado surgissmm objeções, pelo que Wilson instava ao Exe-

cutivo a manifestar seu desejo de que o projeto chegasse a ser Lei da República nas sessões do

Congresso que estavam tendo lugar e, se o governo assim fizer, com certeza o projeto seria

aceito e a lei promulgada.

La desinteresada conducta y política seguida por la Gran Bretaña en contribuir con su ejemplo y amistosos consejos a concluir con el trá-fico de esclavos, está persuadido el infraescrito que satisfará suficien-temente al Gobierno de Venezuela de que al desear que la presente medida se convierta en ley con el objeto de que el tráfico de esclavos estrangeros en Venezuela sea abolido enteramente bajo cualquiera forma que sea, el Gobierno de S.M. está animado de la más sincera amistad y buen deseo hacia la República de Venezuela, así como del anhelo de ver enteramente adoptado por el común consentimiento de las naciones ese gran principio de la filantropía cristiana que Vene-zuela, en su honor sea dicho, fue entre las primeras naciones del glo-bo a proclamar y observar con la presente restricción77

75 Caracas, 24 de abril de 1847. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sec-ción archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 113. As instruções foram recebidas em uma carta que o Visconde de Palmerston enviou ao encarregado de negócios em 13 de agosto de 1846. 76 Idem, folio 114 77 Ibidem

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A resposta do então Ministro interino de Relações Exteriores em nome do Executivo

deixou claro ao encarregado de negócios que o governo venezuelano sempre iria agir:

del modo que estime más conveniente y eficaz para llegar al objeto que desea sinó en las actuales sesiones del Congreso por estar ya muy cerca del término y ocupada la atención de este cuerpo en asuntos de mayor interés para el país, en las sesiones próximas que comenzarán en el mes de Enero78.

E que estaria sempre disposto a apoiar “toda medida que en la debida contemplación al

derecho de propiedad pueda conducir a favorecer la extinción de la esclavitud dentro y fuera

de la República y participando sinceramente de los sentimientos filantrópicos que animan al

gobierno de S.M.B”79. Assim, a questão da reforma da lei para proibir definitivamente o tráfi-

co de escravos sob qualquer forma, não era um assunto prioritário para o país e por cima de

considerações filantrópicas o governo preservaria o direito de propriedade. Em agosto, Wilson

informou da satisfação do Visconde de Palmerston ao saber que o Congresso tomaria as me-

didas necessárias para sancionar a lei e aproveitou para esclarecer que:

dicha ley no intervendrá con los derechos de propiedad particulares sino que tenderá tan solamente a impedir el que hombres avaros, sin principios ni conciencia, violen aquellos derechos naturales e in-herentes que confirió la Providencia a todo individuo de la raza humana, y que no pueden ser hollados por los hombres sin una segura retribución, aunque ésta se difiera por algún tiempo80.

Durante as legislaturas de 1846 e 1847 o Ministro do Interior apresentou recomenda-

ções para a reforma da lei nas suas Memórias ao Congresso, sem resultados. Desde 1847, a lei

se encontrava no Senado para ser aprovada. Provavelmente os ingleses continuaram exercen-

do pressões para reformá-la no sentido da proibição absoluta do tráfico já que em fevereiro de

1848, o Ministro de Relações Exteriores em nome do Executivo, endereçou uma carta ao Se-

cretario da Câmara do Senado recomendando de novo a reforma da lei nos artigos sobre a

abolição do tráfico. O Ministro apresentava nela a contradição da lei que “prohibe la introduc-

ción de esclavos de cualquier manera que se haga y en seguida se rebaja y hasta cierto punto

se destruye el filantrópico efecto de esta disposición, permitiéndose la entrada de esclavos en

78 Carta de 14 de maio de 1847. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sec-ción archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 115. 79 Ibidem 80 Carta de 31 de agosto de 1847. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sec-ción archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 119.

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calidad de sirvientes domésticos, con la sola condición de reexportarlos dentro de un tiempo

indeterminado”81. Ele expõe os motivos pelos quais é necessária a reforma. Muitas foram as

consultas e observações que o governo recebera das autoridades competentes por causa da

facilidade com que a lei era evadida, já que a proibição de introduzir escravos ficava na hora

invalidada pela licença concedida de introduzir escravos como criados domésticos sem que a

reexportação fosse obrigatória enquanto o proprietário estrangeiro não residisse no país.

As consultas resultaram em uma série de resoluções do Executivo tendentes a tornar

efetiva a proibição, “mas penetrado de la necesidad de remediar el mal en su origen, creyó

conveniente dirigirse a la legislatura nacional, pidiendo la reforma de aquel artículo.”82 Logo,

o governo soube que a Câmara de representantes aprovara o projeto de lei que proibia total-

mente a introdução de escravos estrangeiros declarando livres àqueles que sob qualquer pre-

texto fossem trazidos ao território venezuelano, sendo que o projeto estava esperando para ser

aprovado pelo Senado. Fazendo alusão às diligências feitas pelo encarregado inglês para que a

lei fosse definitivamente aprovada pelo Congresso, o Ministro explicou o compromisso ado-

tado frente ao Sr.Wilson pelo Executivo de solicitar ao senado a aprovação da lei:

“dispuesto siempre el Poder Ejecutivo a prestar su apoyo a toda me-dida que tienda a realizar los principios liberales que proclamó Vene-zuela desde su emancipación a favor de la igualdad que por naturale-za deben gozar todos los hombres y a propender por los medios posi-bles a la extinción de un comercio que condena la justicia y rechaza la civilización”83.

O ministro enviou cópia da carta ao encarregado inglês desejando que:

los sentimientos que animan al gobierno de Venezuela en favor de la abolición de la esclavitud y que han sido tan bien interpretados por el de SMB según lo manifiestó el Sr. Wilson en su nota de 24 de abril de 1847, serán sin duda un nuevo vínculo de unión entre dos naciones que sostienen los mismos principios en esta gran cuestión social84

A nova lei de manumissão foi aprovada no 28 de abril de 1848 com o artigo 9 refor-

mado, declarando proibida “la introducción de esclavos de cualquier manera que se haga, aún

en clase de sirviente doméstico y se declara que los esclavos introducidos contra esta prohibi-

81 Carta de 14 de fevereiro de 1848. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 120. 82 Ibidem 83 Ibidem 84 Carta de 14 de fevereiro de 1848 do Ministro de Relações Exteriores ao Encarregado de Negócios inglês. Ar-chivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sección archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 122.

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ción serán por el mismo hecho inmediatamente libres”85. Poucas reformas sofreriam a lei de

1830 além desse artigo. Seus efeitos foram quase imediatos visto que no começo de 1850 não

se registrou a entrada de nenhum escravo 86. Assim, como escrevia o Ministro de Relações

Exteriores ao Sr.Wilson:

Con essa disposición ha igualado en esse punto Venezuela su legisla-ción a … filantrópica nación británica y ha dado una prueba más de que la República marcha por la senda de los principios humanitarios que son el distintivo del S. XIX. Cumpliendo al mismo tiempo con lo que … ofreció al encargado de Negocios de SMB y haría en el parti-cular y dándole mi más solemne demostración del interés y buena fe del Gobierno de Venezuela en el cultivo de las relaciones amistosas que tan felizmente existen entre las dos naciones87.

Por sua vez, o encarregado inglês felicitou ao governo venezuelano e informou ao Mi-

nistro que para ele será satisfatório:

participar a su Gobierno que el último vestigio del tráfico de escla-vos en Venezuela con el exterior, de esta suerte ha quedado borrado; y él se atreve a asegurar al Ministro de Relaciones Exteriores que el gobierno británico sabrá apreciar el hecho, que tanto recomienda a la Nación venezolana que mientras ella estaba empeñada en una lucha por sus propias libertades, ha adoptado medidas para que el suelo de Venezuela no fuese contaminado por la presencia de esclavos del ex-terior88.

Entre 1830 e 1854, com a situação econômica e política do país muito crítica, centenas

de escravos abandonaram as plantações já que para diversos fazendeiros não era conveniente

manter os escravos em terras ociosas. Em dezembro de 1852, a Diputación Provincial de Ca-

racas se dirigiu ao Congresso Nacional solicitando uma lei que abolisse a escravidão por

completo. Em fevereiro de 1854, foi nomeada uma comissão especial para elaboração da

mesma. Seu relatório suscitou polarização em torno de projetos abolicionistas que divergiam

quanto à necessidade ou não de indenização aos senhores. O presidente da República, José

Gregorio Monagas dirigiu uma mensagem especial ao Congresso defendendo a abolição des-

de que esta preservasse os direitos senhoriais. Em 23 de março, a lei é aprovada e no dia se-

85 Recopilación de leyes y decretos de Venezuela; 1890, t. I, p. 597 86 RODRIGUEZ, Marisol. Op. Cit. p. 78 87 Carta de 15 de maio de 1848. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sec-ción archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 123. 88 Carta de 16 de maio de 1848. Archivo Central del Ministerio de Relaciones Exteriores. Inventario de la sec-ción archivo antiguo. Gran Bretaña. Correspondencia diplomática. Volumen 29, fólio 126

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guinte referendada pelo presidente Monagas. Alguns historiadores89 afirmam que o decreto

foi adotado para neutralizar a propaganda dos conservadores que afirmavam que se Paez tri-

unfasse, ele decretaria a abolição. O boato tinha acentuado a inquietação escrava. O número

de escravos libertados pela lei de 24 de março de 1854 foi calculado em 12.093, nessa mesma

data, os manumissos contabilizavam um total de 11.285. As 23.378 pessoas (manumissos e

escravos) que alcançaram a liberdade representavam aproximadamente 2% da população to-

tal, estimada em 1.350.000 habitantes90.

89 GONZALEZ GUINAN, Francisco. Historia Contemporánea de Venezuela. Caracas: Ediciones de la Presi-dencia de la República de Venezuela, 1954, 15 vol. A parte II de seu estudo explica a declaração da abolição feita pelo governo de Monagas. Citado por LOMBARDI, John V. Op. Cit. p. 51 90 “Decreto de abolición de la esclavitud” in DICCIONARIO DE HISTORIA DE VENEZUELA, Caracas, 1989, Fundación Polar.

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EPÍLOGO:

COMPARANDO CONEXÕES E DIÁLOGOS

Uma pesquisa é uma viagem da qual apenas imaginamos a rota. É embarcar numa a-

ventura onde outras pessoas nos precederam de alguma forma, para trilhar novos caminhos

cujo percurso conta com nossa intuição, algum conhecimento, um método... Guiam-nos nos-

sos questionamentos, as perguntas formuladas, (re)formuladas, aquelas que nunca pensamos

colocar e que acabam se impondo, e pessoas que nos orientam de uma ou outra forma. Sur-

preendem-nos as respostas que vamos encontrando ao longo do caminho, que nos mostram

muitas vezes de forma insuspeita, aquela porção de verdade que estamos procurando ou que

talvez não quiséssemos encontrar...

Este estudo não foi diferente. Partindo, como assinalamos na introdução, do espanto

produzido com o encontro com uma parte do mundo africano que fez me sentir em casa e o-

lhar de forma diferente a história da Venezuela, o silêncio foi a primeira resposta que encon-

trei para explicar tal espanto. Um silêncio que ingenuamente acreditei ser produto de outras

prioridades da história nacional. Esse meu olhar também foi significativo, pois nunca cheguei

a pensar que escravidão, cor e cidadania tivessem atuado de forma tão marcante e decisiva

nos processos que estruturaram nossa contemporaneidade. A comparação dessa situação com

uma análoga no Brasil aumentou meus questionamentos. Por que no Brasil questões e proces-

sos relacionados à escravidão no século XIX recebem tanta atenção historiográfica e o mesmo

não se repete na Venezuela, dono de problemáticas econômicas e sociais tão próximas? Por

que os estudos sobre a vida dos escravos nas diferentes regiões brasileiras, suas revoltas, os

processos abolicionistas assim como a proibição do tráfico (debate central neste trabalho), têm

uma relevância que não se repete na historiografia venezuelana? Como era possível que a

visão sobre o escravo, sua participação na história como sujeito e não como objeto estático,

transformado em parte de uma certa idéia de “folclore”, não chegou na maioria dos trabalhos

mais recentes sobre escravidão na Venezuela? Aos poucos fui chegando à conclusão de que o

silêncio na história não é uma questão ingênua, mero produto das circunstâncias, mas sim

“resultado de uma cumplicidade cultural na qual todo o mundo sai ganhando”1 do mesmo

modo que o esquecimento. Mas qual era a natureza da “cumplicidade” que alimentava o si-

lêncio sobre a escravidão na Venezuela, especialmente em torno do século XIX?

O retorno à pesquisa histórica “abriu-me os olhos”, apresentando-me caminhos de ex-

plicação incisivos relacionados aos questionamentos colocados no começo da pesquisa. Des-

1 CYRULNIK, Boris. La maravilla del dolor. El sentido de la resiliencia. Buenos Aires: Granica, 2006, p. 131 Con formato: Justificado

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cobri que para escrita da história o conceito de esquecimento é tão importante e operativo

quanto a lembrança ,para escrever a historia, pois “a história é um problema ético - o impera-

tivo da lembrança, da “boa lembrança” - e o esquecimento é o centro de sua reflexão”2.

A historiografia venezuelana tem utilizado o silêncio como eficaz estratégia de esque-

cimento em função de interesses sociais concretos. O estudo de Véronique Hébrard sobre o

“bom uso do esquecimento” para a construção da memória nacional é muito ilustrativo deste

aspecto.3 As reflexões de Straka sobre o ofício do historiador me ajudaram a compreender

melhor meu próprio percurso. Assim, vislumbrei o quanto escrever história é um ato que nos

leva a um compromisso social forte no qual estamos mais implicados do que muitas vezes

pressupomos, apesar da autonomia acadêmica que a Historia proclama como ciência. A per-

gunta, “o que acontece quando os documentos, depoimentos, os nossos matérias de trabalho

mostram que os acontecimentos foram diferentes do que gostaríamos que tivessem sido?” se

apresenta como pertinente para descobrir quais os critérios e valores nos guiam nas nossas

pesquisas. Porque, como avança Straka, se esse valor é a verdade, normalmente nada aconte-

ceria. Nas suas palavras:

Simplemente se han de tomar en serio estas cosas, porque con ellas, si se logran demostrar, se derrumban mitos, se combaten injusticias, se entiende que el futuro no será indefectiblemente de cierta forma prometida, que hay glorias que son falsas, que hay condenas injustas; o por lo menos se tratará todo eso (…)4

A alternativa apresentada é esquecer tudo aquilo que é dissonante da nossa ideologia,

metodologia, crenças, tornando esse esquecimento “un discurso tanto o más contundente que

el que estructura [nuestro] recuerdo”.

Quis començar com esse preâmbulo “ego-histórico” porque considero importante o es-

forço de renovação historiográfica que está acontecendo na Venezuela, ao qual acredito que

meu trabalho também possa contribuir.,Vejo como oportuna e urgente a crítica do sociólogo

venezuelano Samuel Hurtado que pede aos historiadores que reconheçam sua parte de respon-

sabilidade ao tirar do mundo acadêmico a produção do novo conhecimento histórico, a nova

visão e socializa-la:

2 STRAKA, Tomás. Los olvidos de la historia: el caso de los realistas venezolanos in RODRÍGUEZ, José Ángel (org.) Visiones del oficio. Historiadores venezolanos en el siglo XXI . Caracas: Academia Nacional de la His-toria / Comisión de Estudios de Postgrado y Fondo Editorial de la Facultad de Humanidades y Educación de la UCV, 2000. p. 475 3 HÉBRARD, Véronique. La construction d'une mémoire au Venezuela : du bon usage de l'oubli (1810-1830).", in Histoire et Sociétés de l'Amérique Latine, Revue d'histoire, n° 2, mai 1994, pp 41-63. Paris, Université Paris VII -Denis Diderot. 4 STRAKA, Tomás. Los olvidos de la historia… p. 478 Con formato: Justificado

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Por último, es necesario comprender, que si queremos buscar respon-sables de la manipulación de la Historia Nacional, concebida hoy por más de 20 millones de venezolanos hay que tener claro que esto no es producto u obra del Presidente Hugo Rafael Chávez Frías como se pretende divulgar en la palestra pública, ni menos aún, de los presi-dentes anteriores, ni tampoco de aquellos hombres que se encargaron de elaborar las primeras obras historiográficas de Venezuela. La res-ponsabilidad recae en la sociedad de historiadores, de todos aquellos hombres egresados de las dos escuelas de historia que funcionan hoy en nuestro país. Porque, ellos «conscientes» de que la historia patria que se enseña en las escuelas es una historia manipulada y mal con-cebida, no se han preocupado en hacer una «reconstrucción» de la Historia Nacional en los manuales de educación primaria y secunda-ria, para que el venezolano comprenda su «verdadera» historia y co-nozca sus «verdaderos» orígenes. Es obligación de todo historiador presentar la «verdad histórica», pero que esta verdad no se quede en las cuatro paredes del salón de clases, esa «verdad» debe pasar al hombre de la calle, al pueblo, porque ellos son la esencia de una na-ción y una nación que no comprenda su verdadera historia está pre-destinada a naufragar en el mar de los fracasos.5

Dessa forma gostaria colaborar com a tarefa de romper o silêncio, construir uma me-

mória, na medida do possível, que parte das inquietações postas pelo presente e pelo futuro.

Gostaria de romper a cumplicidade com a denegação histórica que percorreu parte da histori-

ografia, especialmente no que diz respeito às populações de cor e mais concretamente àqueles

que estão marcados pelo “estigma africano” e assim aportar elementos históricos que se so-

mem aos esforços de construção de uma nova “memória coletiva” nacional que repare esse

silêncio ensurdecedor. Tudo isso porque a negação da realidade que incomoda, isto é, o uso

intencional do esquecimento, é o único que pode fazer do racismo um sentimento de felicida-

de:

El racismo sólo puede ser un sentimiento de dicha gracias a la dene-gación. Esta ceguera selectiva impide que ciertas informaciones lle-guen a la consciencia y alteren la representación pura, de la cual todo racismo necesita para sentirse feliz gracias al desprecio de los demás (…) La amnesia colectiva es la regla y el negacionismo es muy ventajoso ya que da una consciencia clara, una conducta a seguir, y un delicioso sentimiento de pertenencia que permite no ponerse en el lugar de la víctima (…) La receta negacionista es tan eficaz que se la emplea pe-riódicamente, en cada movimiento de la Historia (…) 6

5 Trabalho apresentado no mês de Abril de 2003 na Cátedra: Historia de Venezuela II, da graduação em Historia, na Universidad de Los Andes-Mérida, Venezuela, coordenada pelo professor Ysaac López. Disponível em http://hurtadosamuel.googlepages.com 6 CYRULNIK, Boris. La maravilla del dolor… p. 134 - 135

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O nosso estudo, no qual tentamos estabelecer conexões entre os processos de indepen-

dência, formação da Nação, fim do trafico e abolição entre o Brasil e a Venezuela, nos levou a

uma primeira conclusão: ambos os países, ao longo desses processos, construíram uma nação

sem contar com o povo real e prescindindo da realidade mestiça que caracterizava suas socie-

dades.7 Assinalo esse fato como mais um elemento para compreensão do silêncio venezuelano

sobre a maior parte de sua população, já que:

Para que la teoría sea coherente hay que amordazar las informaciones que obligan a cambiar la teoría. El orden reina en la representación. Lo real está en otra parte (…) (…) Para que la representación sea clara y convincente, para que pro-duzca el efecto de una prueba, es necesario impedir el testimonio o-puesto. Todo debate atenuaría la imagen, y, al matizarla, disminuiría la convicción. La duda altera el regocijo. Los demócratas son destruc-tores del encanto. Al revelarnos que los negros no son estúpidos bai-larines, que los negros pueden, como nosotros, hablar de arte o de fi-losofía, los demócratas hacen tartamudear nuestra retórica sentimen-tal, la que nos hace creer que pertenecemos a una esencia superior, la que dice que basta haber nacido en el buen lugar y con el buen color para estar dispensados de dar la prueba de nuestra valía. Basta con ser para ser superior. Este “aristocratismo calamitoso” nos dispensa de la prueba. Si por desgracia descubrimos que los demás también tienen un valor, nuestra alegría será menos feroz, puesto que debemos tener en cuenta sus opiniones diferentes. Un sentimiento de pertenencia es mucho menos exultante cuando la culpabilidad nos impide burlarnos del otro, aplastarlo o eliminarlo.8

Neste estudo insistimos no termo conexão no lugar de comparação porque ao longo da

pesquisa, as questões colocadas para o Brasil nos levaram a aprofundar e, em certa medida

conhecer, os processos tratados. Nesse sentido, o trabalho que foi feito não se caracteriza em

comparação propriamente dita. A pesquisa representou o estabelecimento de bases a partir

das quais a comparação pôde ser realizada, sobretudo através da incorporação de novas fontes

e materiais, como por exemplo, a imprensa.

Como temos visto através dos processos de independência da Venezuela e do Brasil,

assim como no conjunto das independências hispano-americanas, pode-se afirmar que o Bra-

sil ocupa espaço singular, pois manteve um domínio político unitário que gerou um processo

histórico marcado por diversas tensões e desafios. O fenômeno é complexo e as causas varia-

7 Cf. CARVALHO, José Murilo de. Brasil. Naciones marginadas in ANNINO, A; CASTRO LEIVA, L.; GUE-RRA, F.-X. De los imperios a las naciones: Iberoamérica. Forum Internacional des Sciences Humaines, Zara-goza: Ibercaja, Obra cultural, 1994. p. 401-423; HEBRARD, Véronique. Le Vénézuela indépendant. Une na-tion par le discours 1808-1830. Paris : Editions L’Harmattan, 1996 8 CYRULNIK, Op. Cit, pp. 131-133

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das, sem que uma delas por si só possa dar conta da explicação do processo. No entanto, al-

gumas causas têm ganhado maior relevância na historiografia recente - tanto na brasileira

quanto naquela latino-americana. Ambas aportam novas perspectivas ao lançarem olhares

outros a duas das explicações clássicas: a continuidade do sistema monárquico no Brasil

(mesmo se adaptando ao novo contexto) e a atuação de suas elites na decisão de manter unida

a ex-colônia.

Inicialmente vamos nos deter nos aspectos de ordem administrativa.9 Dentro de uma

proposta dialógica, tomemos como uma das referências a administração hispânica. Como já

vimos tal estrutura esteve marcada pela divisão em numerosas províncias quase independentes

e sem laços claros de subordinação às autoridades, o que levou os Bourbon a estabelecerem a

grande reforma no século XVIII com intuito de reforçar a centralização e conseguir um me-

lhor controle político, administrativo e econômico. Entretanto, a longa tradição de autonomia

dessas províncias e o artificial processo de unificação política e administrativa de territórios

até então dispersos, não teve tempo de se consolidar, provocando tensões e rivalidades inter-

regionais e a aspiração das elites locais por conservar suas autonomias. Esse tipo de adminis-

tração seria muito diferente daquele observado naquela portuguesa, marcada por uma maior

centralização.

Cabe ressaltar que alguns autores enfatizam o caráter aparente desta centralização e

ressaltam ainda que esta fosse uma explicação insuficiente para justificar a diferença entre os

processos.10 No que tange à ordem econômica e social, avançam na hipótese de que o ciclo de

ouro no Brasil criou novas relações econômicas entre as diferentes capitanias, desenvolvendo

assim um forte comércio interno. Na contrapartida, as colônias espanholas - com o declínio da

mineração e o retorno à agricultura - isolavam seus centros coloniais. Mas essa volta à agri-

cultura também pode ser notada nas últimas décadas do Brasil setecentista. Desse mesmo mo-

do, as tentativas para manter unidas certas regiões das ex-colônias espanholas, também se

basearam nas relações econômicas e comerciais. Enfatizamos que, tanto para o Brasil como

para as colônias hispânicas, os argumentos econômicos demonstram-se insuficientes para jus-

tificar as causas da integridade territorial porque podem explicar ao mesmo tempo a união ou

a fragmentação. Assim, para uma análise mais completa, é necessário recorrer às teses políti-

9Ressaltamos que nossa análise leva em conta que aspectos políticos, econômicos, administrativos e culturais não são compartimentos isolados mas parte de um todo, componentes de um mesmo processo histórico. 10 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 13-22.

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cas (manutenção da monarquia no caso do Brasil, dentre outras) como caminho para se alcan-

çar uma explicação mais conclusiva.

A escravidão, junto com a monarquia e a atuação das elites, é um dos fatores mais im-

portantes na hora de explicar o porquê da unidade brasileira. Trata-se de um elemento de con-

tinuidade da ordem econômica colonial.11 Em trabalhos clássicos são apresentados dois moti-

vos principais para a manutenção da escravidão como condição de unidade. Por um lado, os

interesses econômicos das elites (especialmente os fazendeiros e comerciantes do Rio de Ja-

neiro, São Paulo e Minas Gerais) que precisavam do trabalho escravo e temiam a instauração

de um governo mais radical que pusesse fim a tal sistema, o que consequentemente alteraria

toda a estrutura fundiária. Aliado a isso, esse receio se estendia nas capitanias como Pernam-

buco, Bahia e Maranhão, onde os grupos dominantes temiam a haitinização, levando à cena

política negros, libertos e mestiços.12 Diante dessas e outras nuances, a fragmentação era in-

terpretada como uma ameaça à ordem social, assim como a unidade representava um meio

poderoso de preservar tal ordem. Do mesmo modo que os fatores anteriores, o argumento da

escravidão também encontra críticas. Por uma parte, se a escravidão preservava a unidade,

esta unidade também preservava a escravidão, pois mantinha a homogeneidade do modo de

produção evitando assim uma possível justaposição de países escravistas e não-escravistas.

Por outra, o medo não era da fragmentação em si, mas da guerra civil. Por último, a aspiração

de manter unida a ex-colônia para se construir no Brasil um poderoso império antecedia à

preocupação com a preservação da escravidão.13

Em relação às causas de ordem política, a chegada da Corte portuguesa no Brasil em

1808, alguns anos antes da independência, possibilitou uma continuidade monárquica que

favoreceu a unidade do país. Fato importante sem precedentes nas colônias hispânicas. Mas

indo além do fato em si, alguns autores procuram a explicação da integridade pós-

independência no Brasil e a fragmentação das colônias espanholas nas diferenças de funda-

mentos das respectivas monarquias; o que explicaria a quebra de legitimidade que trouxe nas

ex-colônias hispânicas o vazio real após o confinamento de Fernando VII e sua família em

Bayonne.

11 Dentro da discussão historiográfica sobre o tema (independência e formação da nação) a escravidão ocupa lugar central. Cfr. COSTA, Wilma Peres. A independência na historiografia brasileira in JANCSO, Itsvan (org.). Independência, história e historiografia... pp. 53-118. 12 Cf. MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Da independência à vitória da ordem. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). Historia geral do Brasil. 9º ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 134. 13 CARVALHO, José Murillo de, Op. Cit. p. 18

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No caso luso-brasileiro, o fato de D. Pedro ser filho do rei de Portugal, faz com que,

apesar da separação do Brasil do reino de Portugal, a legitimidade se preserve. Mas, chegado

a esse ponto, consideramos pertinentes as críticas feitas ao argumento monárquico: a quebra

ou não da legitimidade do rei nas colônias e sua presença no caso brasileiro não explicam por

si só as diferenças entre os processos. As diferentes formas políticas que acompanharam as

independências resultaram de opções políticas entre diversas alternativas. A afirmação tanto

vale para o Brasil quanto para as ex-colônias espanholas; onde a possibilidade monárquica

não só foi pensada como também tentada, assim como nos casos mexicano e haitiano.14

Mais um dos fatores que tentam explicar as diferenças entre a América portuguesa e a

América hispânica é o das as elites, especialmente a elite política. Embora este seja um fator

sempre abordado na historiografia sobre o tema, o estudo de José Murilo de Carvalho sinali-

zou uma nova visão. Segundo o mesmo “a adoção de uma solução monárquica no Brasil, a

manutenção da unidade da ex-colônia e a construção de um governo civil estável foram em

boa parte conseqüência do tipo de elite política existente na época da Independência, gerado

pela política colonial portuguesa. Essa elite se caracterizava, sobretudo pela homogeneidade

ideológica e de treinamento”.15

É justamente a homogeneidade a característica que vai distinguir a elite brasileira da

hispano-americana, homogeneidade esta conseguida, além do pertencimento social, através da

educação, da ocupação e da carreira política. Esta homogeneidade da elite na formação do

Estado é fundamental porque, ao ter um projeto comum e uma atuação conjunta, ela tem uma

maior capacidade de ação política. No caso das elites hispano-americanas, a falta de entendi-

mento entre as mesmas levou ao fracasso de um projeto unitário, tanto nos primórdios da in-

dependência (em cada uma das regiões), como em projetos integracionistas pós-

independência, tal como o caso da Grande Colômbia. Na América espanhola, a ruptura foi

dupla conforme indica Caravaglia: uma ruptura horizontal, isto é, entre as elites das diferentes

cidades e uma ruptura vertical, ou seja, no interior das próprias elites que lutam pela preemi-

nência buscando controlar o processo que se desenrola.16 Esse desentendimento entre as elites

foi fonte de conflitos políticos permanentes, fato este que levou a uma instabilidade crônica,

tornando quase impossível o estabelecimento de governos civis estáveis. 14 Seguindo o argumento da legitimidade, Guerra afirma que as tentativas monárquicas na América espanhola independente não conseguiram se impor “justamente porque: que legitimidade podia ter um rei que não fosse o “senhor natural” do reino? O problema não tinha solução, fosse q,al fosse o tradicionalismo da sociedade e o caso do Brasil, com Império que perdura até 1889, oferece perfeito exemplo contrario do que ocorre na América espanhola”. GUERRA, Op. Cit. p. 51 15 CARVALHO, José Murillo de. Idem. p. 21 16 CARAVAGLIA, Juan Carlos. Op. Cit. p 234

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A elite brasileira da independência era ideologicamente homogênea “devido a sua for-

mação jurídica em Portugal, a seu treinamento no funcionalismo público e ao isolamento ide-

ológico em relação a doutrinas revolucionárias”.17 Essas condições foram reproduzidas após a

independência já que a elite continuou se formando em duas escolas de Direito, especialmente

Coimbra, e passavam pela magistratura, em vários cargos políticos e por várias províncias. No

caso das elites hispânicas, elas eram formadas nas universidades criadas pela Espanha nas

diversas cidades coloniais, o que resultou na criação de elites locais bem diferenciadas. Por

sua vez, os nascidos nas colônias não podiam atingir aos cargos públicos, concentrados nas

mãos dos peninsulares, o que impediu a continuidade entre a administração colonial e a inde-

pendente.

Brasil e Venezuela compartilharam o mesmo temor pela hatinização, isto é, as revoltas

escravas. No entanto, o temor manifestou-se com diferente intensidade, em diferentes épocas

e em torno de debates distintos, tendo em ambos os países características próprias. No Brasil

o temor às revoltas escravas foi recorrente entre as décadas de 1830 e 1850 e focou-se, princi-

palmente, em torno do tráfico de escravos. As duas maiores cidades pós-coloniais, Salvador e

Rio de Janeiro, se debatiam entre a necessidade de mão-de-obra escrava e a segurança urbana

e nas áreas rurais, onde a partir da revolta dos Malês (1835) “a maior rebelião urbana de es-

cravos na história das Américas, foi um fantasma que assombrou senhores de escravos e fun-

cionários do governo durante as duas décadas subseqüentes”18. Preocupava a afluência massi-

va de africanos renovada pelo tráfico, enquanto no interior das províncias e do país, se adota-

vam leis de repressão e de controle de escravos e libertos africanos. Por isso, a questão preo-

cupante foi o tráfico e não o sistema escravista em si tampouco a abolição dos escravos, deba-

tes estes que teriam lugar posteriormente.

A Venezuela foi sensível às revoltas no Caribe desde o começo das mesmas no século

XVIII, e não só da revolta haitiana, como também dos acontecimentos nas colônias francesas

da Martinica e Guadalupe19. No começo das mesmas, no final do século XVIII e início do

XIX, a cercania geográfica e o movimento dos revolucionários e exilados no interior do Cari-

be por causa das revoluções favoreceram a chegada de muitos haitianos e franceses das Anti- 17CARVALHO, José Murilo de. Idem. p. 39 18 GRADEN, Dale T. “Uma lei... até de segurança pública” : resistência escrava, tensões socias e o fim do tráfico internacional de escravos para o Brasil (1835-1856) in Estudos Afro-Asiáticos (30): 113-149, dezembro de 1996. p. 118. 19 GÓMEZ, Alejandro E. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana in Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Número 5 - 2005, Em linha no 17 fevereiro de 2006. Disponível em : http://nuevomundo.revues.org/document211.html

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lhas nas costas de Tierra Firme. Eles criaram um duplo sentimento e dinâmica. Por um lado,

o temor das elites brancas por considerar as revoltas de negros nas colônias vizinhas como

“uma forma moderna de barbárie” 20, que poderia se instaurar no país, não tanto provocada

pelos escravos que dentro da população e dada sua dispersão em diferentes áreas, não repre-

sentavam uma ameaça tão importante quanto no Brasil, mas sim pelo poder da pardocracia,

que, como vimos, era numerosa e tinha conseguido um poder econômico e privilégios impor-

tantes dentro da sociedade colonial. Além disso, era uma classe inquieta que aspirava se igua-

lar aos brancos. Por outro lado, a participação ativa dos haitianos na revolução venezuelana,

formando parte do exército e mesmo do seu estado major, fez com que a revolução fosse vista

de diferente maneira.

Um segundo tempo dentro do impacto da influência haitiana no processo de indepen-

dência foi marcado pelo exílio dos patriotas no Haiti a partir da queda de Cartagena nas mãos

dos realistas em 1815. Os patriotas são acolhidos (apesar da neutralidade haitiana) por Pétion

e ajudados através da ilha a financiar e conseguir homens e recursos para recomeçar a luta

contra os realistas, dessa vez de forma definitiva. Desta vez, o fato de conhecer de perto a

revolução haitiana e seus líderes não só mudou a antiga visão de “barbárie”, mas fez com que

virasse um modelo do qual os venezuelanos e neo-granadinos podiam se inspirar e tirar gran-

des lições. Com efeito, o Haiti passou a ser uma referência política. Seguindo uma linha dife-

rente ao que certa historiografia afirma quando apresenta a revolução haitiana como uma sim-

ples modalidade da Revolução Francesa, se a revolução haitiana foi importante na Tierra Fir-

me, não foi por causa do caráter universal de sua revolução.

mas de sua experiência singular da modernidade num marco sócio-racial próximo da América mestiça. Nesse sentido, ela foi o espelho das interrogações patriotas sobre a singularidade de sua independên-cia. É por isso que o imaginário crioulo de l’ilha tem um grande espe-tro: a independência haitiana foi para a América do Caribe muito mais que uma revolução negra, um espantalho ou um sucedâneo da Revolução francesa21

Na verdade, ela foi ao mesmo tempo um exemplo de como radicalizar a revolução

com o intuito de fundar uma nova nação (o decreto de “guerra a muerte”) e de como estabili-

zar ela criando um regime com um presidente vitalício à imagem de Alexander Pétion, o qual

foi adotado por Simón Bolívar para acalmar o estado de “insurreição permanente”. Assim, a 20 THIBAUD, Clément. “Coupé têtes, brûlé cazes”: Peurs et désirs d’Haiti dans l’Amérique de Bolivar in Anna-les Histoire, Sciences Sociales, 58e année, nº 2 mars-avril, 2003, pp. 319-323. 21 THIBAUD, Clément. Op. Cit. p. 311 Con formato: Justificado

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influencia de Haiti na revolução venezuelana tem diversas inteligibilidades, além da questão

da cor. Como bem conclui Thibaud:

A percepção complexa de São Domingos vem das dificuldades iden-titárias criadas pela abolição da sociedade de castas no Caribe sul-americano... Os sentimentos de medo e os conceitos políticos positi-vos se misturam sem se anular chegando a uma identificação doloro-sa... Para os criollos Haiti encarnava ao mesmo tempo a luta de raças e sua conjuração, fundando a nação sobre um sacrifício originário... O temor da pardocracia haitiana não representava tanto a reprodução racial do outro como um discurso sobre si que condenava a irresistí-vel queda das sociedades criollas par a anarquia e a guerra civil (...) Mas a força da referencia a Haiti mostra uma renovação profunda na forma de se pensar a sociedade mestiça. São Domingos era o contra-rio do caso virtuoso dos Estados Unidos de América. Haiti era o ideal tipo de uma nação pensada em termos de conflito. A América de Nor-te simbolizava o sonho de uma ordem antiga de majestade, garantida por Deis. São domingos mostrava uma nova forma de compreender a sociedade a partir da evidencia de uma guerra permanente, aberta ou larvada, entre castas, raças ou classes (...) O medo de Haiti não ex-pressava a angustia de uma possível revolta de pardos ou de escravos: ela era a encarnação das preocupações ligadas aos desafios políticos que os patriotas tinham de enfrentar... Também foi, simplesmente, uma revolução, isto é, uma ruptura política cujo desenvolvimento, no interior de uma sociedade dividida em castas podia virara fonte de aprendizados... A ilha foi um espantalho, com certeza, mas também um modelo de radicalização revolucionária, depois um exemplo ter-midoriano. Essas imagens contratadas iam se desenhando segundo as situações enfrentadas pela política patriota.”22

No medo do Haiti, pois, vemos que se encontrava a profunda angústia identitária do

criollo frente à sociedade que a revolução estava criando: uma sociedade sem fronteiras entre

as castas, um mundo de “iguais” sem referências à cor e nem ao status. A ascensão dos pardos

e das castas foi de encontro com a desclassificação dos brancos. A eliminação das castas con-

denava os criollos a uma “promiscuidade simbólica”23 com aqueles que eles consideraram até

então inferiores. Assim, colocava-se a questão da definição da nova identidade frente à per-

plexidade de um branco que, como escreve Bolívar na sua “Carta a de Jamaica” achava-se em

uma situação “intermediaria”:

no somos indios, ni europeos, sino una especie media entre los legí-timos propietarios del país, y los usurpadores españoles... ; en suma, siendo nosotros americanos por nacimiento, y nuestros derechos los

22 THIBAUD, Clément. Op. Cit. pp. 330-331 23 THIBAUD, Clément.idem, p. 320

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de Europa, tenemos que disputar estos a los del país, y que mantener-nos en él contra la invasión de los invasores; así nos hallamos en el caso más extraordinario y complicado.24

A nova constituição declarava os venezuelanos cidadãos, mas essa noção, em extremo,

nova e abstrata, tinha que ser dotada de sentido. O criollo elimina toda referência à Espanha

para definir sua nova identidade. Esse fato criou nele e na população em geral um grande sen-

timento de angústia porque representou a crise da consciência monárquica e da consciência

católica pois “significaba el desobedecer al Rey sin desacatar a Dios”25 o que foi um problema

jurídico-teológico de difícil solução. A elite tentou encontrar critérios de definição dentro do

mundo ocidental ao qual se sentia pertencente por sua negada filiação espanhola. Seus crité-

rios vieram de sua consciência eurocêntrica, marcada pelas categorias e valores da nação, da

república, da democracia. E como europeus consideraram aos seus “compatriotas” pertencen-

tes a povos não europeus, os seus subordinados na antiga ordem, como outros. Negros, mesti-

ços e índios não foram vistos como iguais, mas como outros povos aos quais tinham de domi-

nar da forma que conheciam, sob o modelo da dominação colonial. Na hora de definir a cida-

dania nas diversas constituições a partir da independência, existiu uma tensão entre os princí-

pios de soberania popular (expressadas no sufrágio) e os sistemas de representação e a vonta-

de prática de se separar do povo real e evitar na medida do possível sua participação na políti-

ca. Daí o estabelecimento do voto censitário e indireto e, dentre outras, da definição de classes

“úteis” pela sua moralidade, riqueza, educação restringindo ao povo o direito de voto, reunião

e expressão.26

Mas as guerras demonstraram que todos constituíam uma única sociedade, e a elite viu

a necessidade de integrar esse povo na sua nova ordem, tentando sempre mantê-lo subordina-

do. Para os vencedores das lutas de independência, “enfrentados como estaban a la dislocaci-

ón profunda de la estructura interna del poder colonial y urgidos de restablecerla. La insubor-

dinación de los mestizos, alentada por su participación en la lucha armada; la descomposición

del régimen esclavista y la dudosa lealtad de los “indios” a la república” 27 os levaram a con-

cebir a “mudanza de povo” com uma nova imigração que alentasse a chegada para o país de

norte-americanos e europeus brancos, como tradução política da ideologia racial venezuelana.

24 Bolívar, Carta de Jamaica. Kingston, 6 de septiembre de 1815. Disponible em http://www.simon-bolivar.org/bolivar/cartadejamaica.html 25 Carrera Damas citado por STRAKA, Tomás. Sobre la conciencia de los criollos. Notas para una historia de las ideas en Nuestra América in Mañongo, [Valencia], No. 23, Año XII, Vol. XII, Julio-Diciembre 2004, p. 118. 26 Cf. HEBRARD, Véronique. Le Vénézuela indépendant. Une nation par le discours 1808-1830. Paris : Editions L’Harmattan, 1996 27STRAKA, Tomás, Op. Cit., pp.121-122

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Desta forma, o criollo “refugió su eurocentrismo en esas doctrinas e hizo recaer sobre mesti-

zos, negros e ‘indios’ toda la responsabilidad del que lucía como insuperable fracaso de la

experiencia republicana”28

Em última análise, podemos dizer psico-histórica, cara a alguns intelectuais venezue-

lanos, poderíamos sintetizar a busca de definição da identidade à qual obrigou na América

Latina a extinção do mundo colonial e suas referências sócio-políticas e culturais européias de

Antigo Regime, dizendo que.

la versión criolla de la historia logró tres cosas fundamentales: el ma-tricidio, entendido con la muerte de lo hispánico; lo que, estirando un poco el término, pudiéramos llamar el fratricidio, con la muerte (mo-ral, por la vía de la descalificación) de los que no eran europeos, los otros identificados con la antípoda de la europeidad: la barbarie ene-miga de la civilización. El enemigo a domeñar. Y, por último, el im-perativo moral, el deber ser, la imitación, al presentar los modelos a seguir, Europa, Estados Unidos. Es un discurso ético-político, como se ve. El eurocentrismo es el gran valor de la Historia Patria. Quienes encarnan ese valor son virtuosos (es la palabra que siempre se em-pleará) y, por ello, mejores que los otros: tal es la diferencia que tra-zan entre los ciudadanos de plenos derechos y los que no los tienen, los subordinados de siempre.29

Chegando ao final deste estudo, gostaríamos de apontar algumas linhas para futuras

investigações. De um lado, avaliamos que fica aberta a possibilidade de comparação entre o

Brasil e a Venezuela nas áreas estudadas, especialmente no que diz respeito à nova organiza-

ção social das sociedades pós-coloniais e o lugar ocupado pelos “povos subordinados” em

ambas as sociedades assim como suas respectivas políticas de “branqueamento” baseadas nas

diversas ideologias raciais e experiências históricas. Por outro, consideramos que para um

estudo mais aprofundado tanto dos processos de abolição da escravidão como do fim do tráfi-

co, é necessário o desenvolvimento historiográfico venezuelano. Como assinala Marisol Ro-

driguez para o caso da abolição da escravidão na Venezuela “huérfano está el estudio de la

aplicación de la ley em los distintos gobiernos provinciales y sus efectos em los grupos socia-

les implicados em este proceso” 30 Isso implica o estudo de uma nova documentação nos di-

versos arquivos regionais.

28 STRAKA, Tomás. Sobre la conciencia de los criollos…, p. 121 29 STRAKA, Tomás, Op. Cit., pp. 121-122. 30 RODRIGUEZ ARRIETA, Marisol. Manumisión y abolición en la provincia de Maracaibo (1810 – 1864), Maracaibo: Gobernación del Estado Zulia; Acervo Histórico del Estado Zulia, Biblioteca de temas de historia del Zulia, 2001, p. 129.

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Resta ainda uma investigação detalhada a ser feita sobre o processo do fim do tráfico

na Venezuela no século XVIII. É certo que existiu tráfico de escravos africanos durante o

século XIX neste país, embora sem a importância dos séculos anteriores e menos expressivo

demograficamente do que o tráfico no Brasil ou em Cuba. Porem, não podemos continuar

afirmando a sua inexistência. A multiplicação de estudos como aquele de Marisol Rodrigues,

consultando as entradas de escravos nos diferentes portos do país e sua posterior distribuição

ajudaria a esclarecer muitas interrogações.assim como observar qual foi o impacto das dife-

rentes leis nessas regiões. Do mesmo modo, a analise critica dos debates no Congresso em

torno da discussão sobre o tratado anglo-venezuelano, proibindo o tráfico e sua repercussão

na imprensa nos levaria a uma melhor compreensão da forma como era vista e pensada a

questão da soberania nacional frente à ingerência da Inglaterra, entre outros temas. Completar

essa documentação com aquela do Foreign Office na Inglaterra e com uma consulta mais e-

xaustiva e aprofundada da documentação diplomática na Venezuela e no Brasil seria certa-

mente muito enriquecedor.

Consideramos no começo deste estudo as múltiplas possibilidades que as perspectivas

comparadas entre o Brasil e a Venezuela, abririam para a compreensão acerca dos processos

de independência, formação da nação, fim do tráfico e abolição pensados através do prisma da

escravidão, da cor e da cidadania. Avançamos alguns caminhos.

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REFERENCIAS

Fontes primárias

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1. Cartas de Gabinete 1824-1852 2. Correspondência com os ministros de negócios estrangeiros (ou das relações exte-

riores) de diversos governos. 1847-1856 Correspondência especial Instruções Livros de registro: 1831-1856; 1834; 1843-1858 Minutas: 1826-1874 ARCHIVO CENTRAL DEL MINISTERIO DE RELACIONES EXTERI ORES, Caracas

Inventario de expedientes de la sección Archivo Antiguo Brasil Gran Bretaña

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