ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM...

11
ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM JOVENS E ADULTOS DE GRUPOS POPULARES EM UMA ESCOLA PÚBLICA DÉBORA MONTEIRO DO AMARAL (UFSCAR ). Resumo O presente trabalho traz um relato de parte da experiência do Projeto de Extensão “Juventude, violência e cidadania em grupos populares urbanos: intervenção coletiva e desenvolvimento social“, desenvolvido pelo Laboratório METUIA do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos – SP. Trata–se da intervenção por meio de Oficinas de leitura e escrita, calcada nos diretos e na cidadania de jovens e adultos de grupos populares urbanos. Para tanto, serão descritos os procedimentos utilizados para o planejamento, a implementação e o desenvolvimento dos encontros, que ocorreram numa escola estadual situada em bairro periférico da cidade de São Carlos. As estratégias utilizadas envolveram dinâmicas, acompanhamentos individuais e comprometimento profissional, o que implica na compreensão do cotidiano dos educandos, levando em conta seus interesses e especificidades. Os desafios e as contradições presentes na educação de jovens e adultos não impediram as superações obtidas pelos educandos e, portanto, com/em suas realidades. O referencial teórico–metodológico ligados a alfabetização de jovens e adultos está apoiado em Paulo Freire. Os resultados alcançados refletem acerca dos fatores essenciais para práticas democráticas e participativas necessárias na formação de jovens e adultos e, como, o técnico deve estar consciente de seu papel na luta pela transformação desta realidade. O Projeto Metuia vem atuando desde 1998 e trata–se de um grupo de estudos, formação e ações em terapia ocupacional pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte. Atualmente é formado por docentes, discentes e técnicos da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade de São Paulo. Palavras-chave: educação de jovens e adultos, leitura e escrita, desenvolvimento social. Introdução O Programa de Extensão "Juventude, Violência e Cidadania em Grupos Populares Urbanos: intervenção coletiva e desenvolvimento social" problematiza, a partir de uma perspectiva sócio-histórica, formas de enfrentamento à violência urbana a que estão submetidos a maior parte dos adolescentes e jovens brasileiros. Considera-se a violência como um fenômeno complexo de grande relevância para diversas instâncias sociais. A vulnerabilidade daqueles adolescentes e jovens, expressa por inúmeros índices relacionados à violência, tem alcançado patamares alarmantes no nosso país, num contexto de políticas públicas que são, em grande parte, insuficientes, fragmentadas e/ou inadequadas para, de fato, atender às demandas desse grupo a partir de uma perspectiva de direitos (LOPES et al., 2008). Esse Programa, desenvolvido pelo METUIA[2]/UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) desde 2006 na cidade de São Carlos (SP), atua a partir de três eixos: Violência Escolar, Violência Urbana e Violação de Direitos e Comunidade, trabalhando em

Transcript of ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM...

Page 1: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM JOVENS E ADULTOS DE GRUPOS POPULARES EM UMA ESCOLA PÚBLICA DÉBORA MONTEIRO DO AMARAL (UFSCAR ).

Resumo O presente trabalho traz um relato de parte da experiência do Projeto de Extensão “Juventude, violência e cidadania em grupos populares urbanos: intervenção coletiva e desenvolvimento social“, desenvolvido pelo Laboratório METUIA do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos – SP. Trata–se da intervenção por meio de Oficinas de leitura e escrita, calcada nos diretos e na cidadania de jovens e adultos de grupos populares urbanos. Para tanto, serão descritos os procedimentos utilizados para o planejamento, a implementação e o desenvolvimento dos encontros, que ocorreram numa escola estadual situada em bairro periférico da cidade de São Carlos. As estratégias utilizadas envolveram dinâmicas, acompanhamentos individuais e comprometimento profissional, o que implica na compreensão do cotidiano dos educandos, levando em conta seus interesses e especificidades. Os desafios e as contradições presentes na educação de jovens e adultos não impediram as superações obtidas pelos educandos e, portanto, com/em suas realidades. O referencial teórico–metodológico ligados a alfabetização de jovens e adultos está apoiado em Paulo Freire. Os resultados alcançados refletem acerca dos fatores essenciais para práticas democráticas e participativas necessárias na formação de jovens e adultos e, como, o técnico deve estar consciente de seu papel na luta pela transformação desta realidade. O Projeto Metuia vem atuando desde 1998 e trata–se de um grupo de estudos, formação e ações em terapia ocupacional pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte. Atualmente é formado por docentes, discentes e técnicos da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade de São Paulo. Palavras-chave: educação de jovens e adultos, leitura e escrita, desenvolvimento social.

Introdução

O Programa de Extensão "Juventude, Violência e Cidadania em Grupos Populares Urbanos: intervenção coletiva e desenvolvimento social" problematiza, a partir de uma perspectiva sócio-histórica, formas de enfrentamento à violência urbana a que estão submetidos a maior parte dos adolescentes e jovens brasileiros. Considera-se a violência como um fenômeno complexo de grande relevância para diversas instâncias sociais. A vulnerabilidade daqueles adolescentes e jovens, expressa por inúmeros índices relacionados à violência, tem alcançado patamares alarmantes no nosso país, num contexto de políticas públicas que são, em grande parte, insuficientes, fragmentadas e/ou inadequadas para, de fato, atender às demandas desse grupo a partir de uma perspectiva de direitos (LOPES et al., 2008).

Esse Programa, desenvolvido pelo METUIA[2]/UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) desde 2006 na cidade de São Carlos (SP), atua a partir de três eixos: Violência Escolar, Violência Urbana e Violação de Direitos e Comunidade, trabalhando em

Page 2: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

parceria com organizações governamentais e não governamentais, com seus técnicos, com comunidades, famílias e com os jovens, por meio de diferentes projetos e com uma equipe composta por docentes, terapeutas ocupacionais e estudantes de graduação das áreas de Terapia Ocupacional, Imagem e Som e Pedagogia - estagiários e colaboradores -, bem como com estudantes do Ensino Médio - monitores - (LOPES et al., 2008).

A Escola Parceira

A escola onde foi desenvolvida parte das atividades do Programa é uma escola pública, estadual e da periferia urbana de São Carlos, cidade de médio porte do estado de São Paulo; atende, em média, 300 alunos/dia em período matutino, integral e noturno, oferecendo vagas da 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental e Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e da 1ª à 3ª série do Ensino Médio. Além disso, é uma das três escolas públicas estaduais da cidade a oferecer o Projeto Escola de Tempo Integral (ETI), implantado em 2006 pelo governo estadual, aos alunos regularmente matriculados no Ensino Fundamental, no período matutino.

Conta com um corpo docente de cinqüenta e quatro professores sendo, a grande maioria, em cargos efetivos. Possui, ainda, quatro inspetores de alunos, três coordenadores pedagógicos por turno, um diretor e três funcionários administrativos.

A escola em questão é vista pela sociedade local como sendo um espaço violento, por situar-se num bairro tido como violento e, além disso, como oferecendo uma educação de má qualidade. Experiências anteriores do METUIA/UFSCar em parceria com essa escola, evidenciaram demandas por ações que pudessem ampliar e fortalecer as redes desse importante equipamento social naquela comunidade, com o intuito de oferecer possíveis estratégias de intervenção que resultassem em garantias de direitos e em novas formas de participação naquela escola, construindo espaços democráticos e participativos (LOPES, SILVA e MALFITANO, 2007).

Conforme Adorno (2002), o problema não reside na pobreza, porém na criminalização dos pobres - vale dizer, no foco privilegiado conferido pelas agências de controle social contra a delinqüência cometida por cidadãos pobres. No entanto, não há como deixar de reconhecer relações entre a persistência, na sociedade brasileira, da concentração da riqueza, da concentração de precária qualidade de vida coletiva nos chamados bairros periféricos das grandes cidades e a explosão da violência.

Como relata Silva (2007), a violência escolar é um fenômeno que recentemente e, gradativamente, vem sendo reconhecido como um fato de extrema importância, dada sua abrangência e os inúmeros casos que têm preocupado as sociedades de diversos países. Esse fenômeno tem suas peculiaridades e complexidades, mas apresenta-se como universal e que não se define, a priori, pela idade, classe social, gênero, etnia e/ou credo. Da mesma forma que a violência em geral, a violência escolar apresenta-se como objeto de múltiplas interpretações e não se limita à violência no interior das escolas. Torna-se clara a necessidade de se considerar a multiplicidade causal e relacional desse fenômeno no contexto escolar, ressaltando-se a importância do comprometimento deste estudo em aprofundar e contextualizar o fenômeno da violência na escola em relação às condições políticas, econômicas, culturais e sociais, inter-relacionadas na contemporaneidade.

Page 3: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

É relevante, também, atentar-se para a questão da qualidade do ensino e da escolaridade para os grupos populacionais aqui pautados, uma vez que o que se vê nas escolas hoje em dia, de maneira geral e nesta em particular, são problemas com relação à adequação idade/série, permanência e conclusão dos ciclos de acordo com os padrões mínimos estabelecidos.

Segundo Goulart, Sampaio e Nespoli (2005), o nível de escolaridade média da população de 15 anos ou mais é de apenas 6,7 anos. Isto pode ser explicado pela baixa eficiência do sistema educacional brasileiro em produzir concluintes - pois, se por um lado o acesso é quase universal, por outro ainda é baixo o percentual daqueles que concluem o Ensino Fundamental, sobretudo na idade adequada. Há, conseqüentemente, uma população de quase 20% do total de matrículas no Ensino Fundamental que já poderia cursar o Ensino Médio, mas que permanece retida no nível anterior, sem que se leve em conta aqueles que evadiram. Nesse contexto, o Ensino Médio apresenta desafios à universalização que, por sua vez, implica, além do acesso, a permanência, a progressão e a conclusão na idade adequada.

Outro aspecto importante é a expectativa dos educandos em relação à educação escolar. Antigamente, muitos encaravam a escola como uma forma de poder ter melhores condições de vida, de conseguir um trabalho; hoje, isso não é uma constante no discurso dos alunos. Muitos lá estão por uma obrigação difusa, porque os pais mandam, para não estarem nas ruas, ou porque a família precisa para receber a Bolsa Família. A escola perdeu a função social que um dia teve, como nos chama a atenção Sposito (2005), quando diz que a escolaridade já não figura mais como elemento garantidor da entrada no mundo do trabalho, especialmente se considerarmos o ingresso no mercado formal de ocupações dos estratos menos privilegiados da sociedade - exatamente aqueles que têm acesso tardio aos degraus mais elevados do sistema de ensino.

Se levarmos em consideração o que traz a Lei de Diretrizes e Bases - LDB /1996 - em relação a este tema, veremos que a educação deve preparar para o exercício da cidadania e qualificar para o trabalho:

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, e o preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Na realidade, este é o grande desafio da educação e da escola no Brasil.

As Oficinas: Sala de Leitura e Escrita

O referencial teórico esteve apoiado em Paulo Freire (1996), seguindo premissas importantes do autor, especialmente quando afirma que nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos funcionam como igual sujeito do processo ensino aprendizagem. Freire acredita que no momento em se ensina, se aprende, e, no momento em que se aprende, se ensina. Revê a idéia que o professor tudo sabe e o aluno tudo tem a aprender com seu mestre. O aprendizado exige dedicação mútua entre educadores e educandos.

Como professor não me é possível ajudar o educando a superar sua ignorância se não supero permanentemente a minha. Não posso ensinar o que não sei. Mas, este, repito, não é saber de que apenas devo falar com palavras que o vento leva. É saber, pelo

Page 4: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

contrário, que devo viver concretamente com os educandos. O melhor discurso sobre ele é o exercício de sua prática. É concretamente respeitando o direito do aluno de indagar, de duvidar, de criticar que "falo" desse direito. A minha pura fala sobre esses direitos a que não corresponde à sua concretização não tem sentido (Freire, 1996: 95).

Justifica-se, também, pela importância e reconhecimento em suas experiências na alfabetização de jovens e adultos, as quais são referências na área.

O cunho político que procuramos dar às oficinas, no aspecto de não só trabalhar a leitura e a escrita, mas, também, a interpretação do que estava sendo produzido, é uma característica da metodologia escolhida, presente, igualmente, nas proposições de Paulo Freire. Trabalhar na perspectiva do questionamento e do não estabelecimento de uma verdade foi o que trouxe um diferencial para nossas oficinas.

As Oficinas de Leitura e Escrita surgiram no Programa de Extensão, a partir de uma demanda da própria escola, que identificava alunos com importantes déficits de alfabetização. A proposta da direção escolar era que fossem criadas "salas de alfabetização" e com o apoio de professores e coordenadores pedagógicos a proposta foi discutida e re-elaborada pela equipe do Programa.

Em relação à metodologia, os passos seguidos foram: definição das coordenadoras da Oficina, uma estudante de último ano da área de Pedagogia e outra de Terapia Ocupacional. O ensinar e aprender com o educando esteve sempre calcado em nossas ações, já que não éramos nem professoras e nem especialistas da área de leitura e escrita.

Começou-se, então, a pensar em como os alunos seriam selecionados para participarem dessas Oficinas. Alguns professores pensaram em indicar aqueles alunos que tinham dificuldades na leitura e na escrita ou mesmo que ainda não estavam alfabetizados; a diretora da escola achava que seria necessário realizar uma avaliação pedagógica diagnóstica com toda a escola para verificar quais alunos apresentavam uma demanda diferenciadamente maior; a coordenadora pedagógica disse que poderia indicar alguns alunos; enfim, não se tinha uma proposta única para a escolha dos alunos com os quais se trabalharia.

Com o intuito de conseguir atingir esses alunos no tempo possível previsto (um semestre), decidiu-se pela indicação dos professores, pois, estes estavam mais perto dos alunos e poderiam realmente avaliar aqueles que tinham mais dificuldades. Assim foi feito.

Primeiramente, formamos as turmas, fechamos os horários e conversamos com os alunos em questão para saber se estes gostariam de participar. A maioria dos alunos concordou. No total, formamos uma Oficina com 7 alunos da Escola de Tempo Integral - ETI e 11 alunos do programa educacional de jovens e adultos - EJA, matriculados no período noturno. Com relação ao tempo/horário das oficinas, foi pensado em se trabalhar em horários simultâneos ao das aulas regulares, de forma alternada, para não comprometer as aulas de um mesmo professor, ou da mesma matéria. Os alunos da ETI participavam nas segundas e terceiras aulas e os alunos do noturno nas primeiras e segundas aulas. Os alunos indicados da ETI eram de 5ª, 6ª e 7ª séries e os do período noturno de 5ª, 8ª, 2º e 3º do EJA. Este texto se refere somente à experiência com a Oficina com jovens e adultos.

Page 5: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

Combinamos, então, com os participantes, professores e direção os horários e dias das oficinas.

Para o primeiro contato realizou-se uma atividade/dinâmica de apresentação, conhecimento do grupo e diagnóstico dos educandos quanto ao nível de alfabetização. Conversamos sobre a dinâmica de nossas oficinas e os acordos de funcionamento. Após esse primeiro momento, foi pedido para que os alunos escrevessem um breve parágrafo sobre a apresentação feita, seguido do ditado de palavras selecionadas a partir dos fatos por eles relatados e, finalmente, solicitou-se a realização de operações matemáticas simples.

Neste momento, consideramos importante dialogar mais com os educandos, criarmos uma oportunidade para que um vínculo se estabelecesse, independentemente da realização da tarefa como planejado.

Essa primeira Oficina contou com a participação de 7 alunos (todos homens). Um grupo bem diversificado, com educandos de 15 a 46 anos. Essa diversidade foi um fator bem interessante e que, ao longo das oficinas, contribuiu para sua melhor realização.

Alguns fatores devem ser pautados aqui como, por exemplo, a questão do trabalhar e estudar. Dos educandos presentes apenas um não trabalha, os demais trabalham todos os dias e um deles não tem folgas sequer nos finais de semana. Como educadores, temos que estar atentos a estas questões para não confundir dificuldades concretas com preguiça, fracasso escolar etc.

Os educandos que participavam das oficinas, trabalhavam durante o dia; tínhamos que elaborar uma oficina que fizesse sentido para eles, que estivesse de acordo com a realidade e com suas necessidades. Não podíamos estar ali somente para ensiná-los a formar palavras e frases sem significado concreto, mas, sim, tentar apresentar opções para que eles conseguissem entender a função social da leitura e da escrita. Decidiu-se, então, trabalhar com temas/palavras geradoras[3], como propõe Freire (1979):

Isto faz com que o papel do educador seja fundamentalmente dialogar com o analfabeto sobre situações concretas, oferecendo-lhe simplesmente os meios com que os quais possam se alfabetizar (p.41).

Podemos ressaltar, assim, que as atividades pensadas por nós sempre envolviam temas que poderiam ser significativos para os estudantes. Dessa maneira, por muitas vezes, nós os vimos motivados a participar e, o que é mais importante, perceberam a necessidade da leitura e da escrita e, por isso, deram mais valor para ler e escrever corretamente.

Ao analisarmos caso por caso, foi possível perceber que a maioria não era composta por analfabetos, conforme eram descritos pelos técnicos da escola; apresentavam dificuldades de leitura e escrita, erros ortográficos e trocas fonéticas; cometiam erros de grafia e tinham, também, dificuldade para escrever, advinda de certa falta de coordenação motora fina.

Constatou-se que os alunos estavam no nível alfabéticos[4], exceto um, que tinha muita dificuldade e que demandaria atividades diferenciadas dentro das oficinas.

Page 6: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

Para fazer a análise da escrita/nível de alfabetização dos alunos foi utilizado o método de níveis estruturais a linguagem escrita proposta por Emília Ferreiro (1986): Nível Pré-Silábico, Nível Silábico e Nível Alfabético.

Buscamos, igualmente, descobrir o que eles sabiam de matemática. Percebemos carências também nessa área e eles afirmaram os ajudaria muito se pudéssemos trabalhar esse aspecto. O tempo previsto para todas as tarefas nos preocupou.

Tivemos dois casos específicos que marcaram bastante nossas oficinas. Um aluno participou da primeira Oficina e depois disse que não iria mais participar, a princípio por ser um aluno com dificuldades educacionais importantes. A iniciativa foi entender o porquê dele não querer mais participar das oficinas. Juntamente com uma professora da escola, conversamos com o aluno que dizia ter vergonha dos outros educandos que estavam na oficina. Conversamos sobre as razões dessa vergonha, da importância de se estar juntos para vencer as dificuldades comuns e, ainda, sobre o fato dele ser um dos mais novos do grupo e, portanto, com mais energia para o esforço coletivo. O aluno voltou a freqüentar as oficinas e uma das monitoras passou a acompanhar suas atividades e seu desenvolvimento mais individualmente.

Durante as oficinas o aluno foi se soltando, perdendo a vergonha e deixando que o vínculo entre nós se estreitasse cada vez mais. Percebemos uma evolução, apesar de pequena, durante o processo. Isto pelo fato do tempo de trabalho ter sido pequeno. Mas, apesar de termos tido somente 8 oficinas com o seu grupo (noturno) e deste aluno ter participado de apenas 5, pôde-se despertar neste educando a vontade de aprender a ler e escrever; ele se viu motivado e percebeu a importância da leitura e da escrita na sua vida e, mesmo não tendo sido possível capacitá-lo com todos os códigos da língua portuguesa, foi possível motivá-lo para essa busca.

Um outro caso foi o de um educando muito inquieto; um fato que o caracteriza bastante é que sempre está ouvindo som no seu mp3 e já tínhamos ouvido muitas reclamações por parte das professoras: prestava pouca atenção nas aulas.

Esse aluno relatou que não gostava de ficar dentro da sala assistindo à aula. Mas veio às oficinas onde foi acompanhado mais de perto. A atividade que o motivou bastante foi a elaboração de uma carta a um amigo que não via há muito tempo, pois estava preso.

Começamos a trabalhar com os educandos o que denominamos de "Projeto Carta". Explicamos a atividade, fizemos a leitura de um texto que contava a história de um homem que aprendeu a ler e a escrever depois de adulto e que logo que conseguiu isso escreveu uma carta para sua mãe que morava longe, para contar esse fato. Perguntamos àquele aluno se ele tinha alguém que estava longe e com quem quisesse comunicar-se, ele disse que sim. Começou, então, a escrever sua carta - com o mp3 desligado.

Anexo 1

Page 7: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

O educando se empenhou muito para escrever a carta ao amigo, corrigi-la e tomar a decisão de enviá-la. Ele conseguiu o endereço do presídio e pediu para que nós a enviássemos, mas queria que fizéssemos outra carta com a nossa letra, pois disse que a letra dele era muita feia. Essa vergonha pode estar presente em outros momentos, o que torna difícil o investimento na sua escrita. Trabalhamos para que ele a enviasse como tinha feito salientando o quanto isso poderia ter um significado, também, para o seu amigo. Sua relutância foi grande, entretanto, conseguimos que concordasse em enviar a carta escrita por ele.

Com o educando que tinha mais dificuldade com a leitura e escrita, tentamos trabalhar desde sua motivação até o realce do que ele já sabia. Trabalhamos com letras de músicas que ele sabia cantar e sabia a letra toda e, com isso, ele passou a se interessar mais em aprender a ler o que estava escrito na letra. Foi pedido para que encontrasse algumas letras, depois palavras na letra que ele escolheu (uma composição dos Racionais Mc's). Discutíamos sobre o conteúdo das letras, eram sempre músicas de Rap e com conteúdos, em sua maioria, bem fortes. Era importante conversar sobre necessidade dele entender o que a letra dizia. Buscávamos uma leitura crítica do mundo e das coisas.

Trabalhamos com os educandos utilizando diferentes materiais para despertar a curiosidade e a vontade de produzir textos - o uso de jornais e revistas onde selecionavam uma figura e escreviam um pequeno texto justificando a escolha. Desta forma, escolhiam assuntos de seu interesse e, a partir disso, puderam relatar o que para ele era significativo.

Page 8: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

Anexo 2

Para a última oficina, foi planejado fazer uma pesquisa na rede mundial de computadores para podermos explorar mais um meio de comunicação onde a leitura e a escrita é muito importante e que, talvez, fosse para os educandos uma oficina motivadora.

Como a nossa última oficina foi um dia depois do Dia da Consciência Negra, propusemos uma conversa sobre o tema e que, depois, realizassem a pesquisa. Esta Oficina foi muito interessante, pois os educandos pesquisaram sobre um fato (feriado) que influencia diretamente seu cotidiano e, ao mesmo tempo, trabalharam com a leitura em um outro contexto, o virtual.

Era fundamental o diálogo sobre o porquê aprender o que se está aprendendo. Nossa tentativa com relação às atividades era elaborá-las de maneira que fossem significativas para os estudantes, construindo a compreensão acerca da função social que a leitura e a escrita têm.

Escrevi esta figura porque eu

adoro a natureza, para mim

é muito importante para todos,

a natureza é importante

por que a gente depende de

todos nóis.

Piscina é muito legal.

Eu adoro nadar em piscina

e em rios porque é muito

empolgante para todos nóis

Brasileiro.

Page 9: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

"Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo." (Freire, 1978).

Gostaríamos de relatar que foi feito um portifólio dos educandos contando um pouco sobre a evolução de cada um; esse material foi encaminhado à direção escolar. Temos que dizer, igualmente, que, por conta do tempo, não conseguimos trabalhar com a demanda relacionada à matemática.

Considerações Finais

Durante todo o processo das oficinas refletimos sobre as diferenças das oficinas realizadas com os alunos do período integral e com os alunos do noturno. Os alunos do noturno davam muito mais valor para aquele momento; percebíamos que, por conta da idade, do tempo que já tinha se passado, das suas condições de vida, eles viam com mais preocupação e seriedade a questão do saber ler e escrever de forma correta.

O diálogo era uma busca constante, de maneira que cada um pudesse se perceber como sujeito da aprendizagem. Sempre pedíamos que eles nos indicassem os caminhos.

A desistência de alguns se deu pelo fato de não poderem sair da sala de aula no momento de nossas oficinas, pois, segundo eles, não teriam outro horário para recuperar a matéria perdida.

Acreditamos que seria muito importante para os alunos que têm dificuldades de leitura e escrita, aulas regulares de reforço oferecidas pela escola. Apesar de termos acompanhado a evolução dos alunos, foram poucas oficinas, não conseguimos contemplar todo o conteúdo necessário, nem todas as pessoas que precisavam. Conseguimos, contudo, ver claramente a evolução de cada educando e, acima de tudo, pudemos ter um espaço para dialogar com eles sobre a importância não só de saber o que está escrito, mas de poder interpretar e fazer uso das informações conforme seus interesses.

Em particular, a educação básica para todos deveria: responder às necessidades educativas fundamentais que dizem respeito tanto às ferramentas essenciais de aprendizagem - leitura, escrita, expressão oral, aritmética e resolução de problemas - quanto aos conteúdos educativos fundamentais - conhecimentos, aptidões, valores e atitudes - de que o ser humano tem necessidade para sobreviver, desenvolver todas as suas faculdades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente no desenvolvimento, melhorar a qualidade de sua existência, tomar decisões bem refletidas e continuar a aprender (UNESCO, 2001, p. 28).

Referências Bibliográficas

ADORNO, S. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias, Porto Alegre, Ano 4, n°. 8, 2002, p.84-135.

BARROS D. D.; LOPES, R. E.; GALHEIGO, S. M. Projeto Metuia - terapia ocupacional no campo social. O Mundo da Saúde, Vol. 26, n.3, p. 365-369, 2002.

Page 10: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

BRASIL. Lei n° 9.394, de 20 de dez. 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União. Brasília, 1996.

FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. 2. ed. São Paulo. Cortez, 1986.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30ª ed. São Paulo. Paz e Terra. 1996. 148p.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

FREIRE, P. Educação e mudança. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1979.

GOULART, O.M.T.; SAMPAIO C.E.M. E NESPOLI, V. O desafio da universalização do ensino médio. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2005.

LOPES, R. E. et al. Juventude pobre, violência e cidadania. Saúde e Sociedade, v. 17, p. 63-76, 2008.

LOPES, R. E., SILVA, C. R., MALFITANO A. P. Recriando caminhos e construindo perspectivas: enfrentamento das violências urbanas entre adolescentes e jovens de classes populares. Relatório. São Carlos: Laboratório METUIA - UFSCar, 2007, 58p.

SILVA, C. R. Políticas públicas, educação, juventude e violência da escola: quais as dinâmicas entre os diversos atores envolvidos? Dissertação de Mestrado - Educação. São Carlos: UFSCar, 2007. 184 p.

SPOSITO, M. P. Indagações sobre as relações entre juventude e a escola no Brasil: institucionalização tradicional e novos significados, JOVENes, Revista de Estudios sobre juventud. Edição: ano 9, n. 22, México, jan-jun, 2005, p. 201-227.

UNESCO, Aprender a viver juntos: será que fracassamos? Síntese das reflexões e das contribuições extraídas da 46ª Conferência Internacional da Educação da UNESCO. Genebra, 5-8 de Setembro de 2001.

[1] Este trabalho, de autoria de Débora Monteiro do Amaral, Carla Regina Silva e Roseli Esquerdo Lopes, teve o apoio da SESu/MEC, da ProEx/UFSCar e do CNPq.

[2] Grupo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte, foi criado em 1998 por docentes da área de terapia ocupacional de três universidades paulistas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Universidade Federal de São Carlos e Universidade de São Paulo (Barros, Lopes e Galheigo, 2002).

[3] Palavras geradoras - São aquelas que, decompostas em seus elementos silábicos, proporcionam, pela combinação desses elementos, o nascimento de novas palavras.

[4] Compreensão de que a cada um dos caracteres da escrita correspondem valores menores que a sílaba e que uma palavra, com duas sílabas, exige, portanto, dois

Page 11: ESCREVE VOCÊ: OFICINAS DE LEITURA E ESCRITA COM …alb.org.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/... · os procedimentos ... (SP), atua a partir de três eixos

movimentos para ser pronunciada, necessitando de mais do que duas letras para ser escrita e a existência de uma regra produtiva que lhes permite, a partir desses elementos simples, formarem a representação de inúmeras sílabas, mesmo aquelas sobre as quais não se tenham exercitado.