escrita de auto-paisagem
-
Upload
paula-scamparini -
Category
Documents
-
view
7 -
download
0
description
Transcript of escrita de auto-paisagem
-
LEGITIMAO E MEDIAO DA ARTE PROJEES NO CONTEMPORNEO
PAULA SCAMPARINI FERREIRA
Dissertao em Artes Visuais, apresentada banca examinadora e ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Artes Visuais, sob orientaos do Prof. Dr. Carlos Alberto Murad.
Rio de Janeiro
2006
-
2
Dissertao de Mestrado:
Legitimao e mediao da arte: projees no contemporneo.
Autor: Paula Scamparini Ferreira.
Orientador: Carlos Alberto Murad
Aprovada por:
________________________________________________________________
Professor Doutor Carlos Alberto Murad Orientador/Presidente da Banca Examinadora
________________________________________________________________
Professora Doutora Maria de Ftima Morethy Couto
________________________________________________________________
Professor Doutor Paulo Venncio Filho
________________________________________________________________
Professora Doutora Sonia Leita - Suplente
Examinada em: ______/______/_______
Conceito:
-
3
SCAMPARINI FERREIRA, Paula.
Legitimao e mediao da arte: projees no contemporneo. / Paula Scamparini Ferreira. Rio de Janeiro, 2006.
Dissertao (Mestrado em Artes Visuais) Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, Faculdade de Belas Artes, 2006.
Orientador: Carlos Alberto Murad.
Salo Bahia.. 2. Arte contempornea.. 3.MAMBA. I. Murad, Carlos Alberto (Orient.). II.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ps Graduao em Artes Visuais. Faculdade de Belas Artes.. III. Legitimao e mediao da arte: projees no contemporneo.
-
4
Agradecimentos
Ao meu orientador, Professor Doutor Carlos Alberto Murad, pelo voto de
confiana ao me acolher numa transio desafiadora neste incio de ano, e por tanto
agregar a esta pesquisa.
Professora Doutora Maria Luisa Luz Tvora pela orientao durante grande
parte do perodo desta pesquisa.
Aos demais docentes da EBA-UFRJ que souberam apoiar este projeto.
A meus entrevistados do Rio de Janeiro e de So Paulo, que se dispuseram,
formal ou informalmente, a enriquecer esta pesquisa.
equipe do MAM da Bahia pela simptica acolhida, assim como aos
profissionais e artistas locais.
CAPES pela bolsa oferecida.
formao como pessoa oferecida pela Universidade Estadual de Campinas.
Ao professor Doutor Paulo Mugayar Khl por primeiro me inserir no universo
acadmico.
minha famlia, pela presena e fora essenciais.
Aos amigos novos e antigos que souberam acompanhar essa trajetria.
Ao Glaucio pela pacincia por tanto tempo.
Ao Rio de Janeiro, suas paisagens e personagens, pela acolhida desafiadora e
enriquecedora.
-
5
Resumo da Dissertao apresentada na Faculdade de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios para a obteno
do grau de mestre em Artes Visuais
A pesquisa se debrua na compreenso das configuraes atuais do meio
artstico e de seus personagens por meio de uma abordagem histrica dedicada a
momentos pontuais, que teriam indicado tais posies. Partiu-se de inseres
conceituais histricas colocadas por Charles Baudelaire (1988) e Walter Benjamin
(1985), do tratamento sociolgico conferido por Stuart Hall e Marcel Mauss, e de
anlises do meio de arte mais recentes por Pierre Bourdieu (1987), Anne Cauquelin
(2005), Thierry De Duve (2003), Arthur Danto (2006) e David Harvey (1992), entre
outros. Foi traado um caminho inicial acerca de como as presentes configuraes do
circuito artstico, compreendido atravs da anlise de discursos primrios (entrevistas)
de profissionais do meio, sobretudo de mediao, dialogam com tais conceituaes j
colocadas. A partir da, apresentaram-se movimentaes e adequaes de todo esse
meio e de seus personagens inseridos nesse contexto.
Detidos na observao do meio artstico brasileiro no perodo de 2004 a 2006, e
concentrando-se no Salo da Bahia como exemplo que possibilitou contracenar
momentos distintos na formao da Historia da Arte, buscou-se evidenciar como ocorre
a legitimao da arte atravs de novos agentes desta, como os mediadores e as
instituies, elementos essenciais ao funcionamento do circuito de arte contempornea
brasileira emergente.
-
6
Abstract of Dissertation presented to Faculdade de Belas Artes of Universidade do
Rio de Janeiro, as a partial fulfillment of the requirement for the degree of Master
in Visual Arts
This study searches for an understanding of how the current Brazilian artistic medium is
configured nowadays with the aid of a historical approach applied to specific moments
that may have built these configurations. We have started form historical conceptual
insertions posed by Charles Baudelaire (1988) and Walter Benjamin (1985), from
sociological account conferred by Stuart Hall and Marcel Mauss, and from more recent
analysis of the artistic circuit made by Pierre Bourdieu (1987), Anne Cauquelin (2005),
Thierry De Duve (2003), Arthur Danto (2006) and David Harvey (1992), among others.
It was then opened an investigative path on how current configurations of the Brazilian
artistic circuit itself understood through the analysis of interviews made with
personalities of the area dialogue with already established concepts. There have been
changes and adequacies of the entire artistic medium and its personalities to the context
of which they are part.
Committed to the observation of the Brazilian artistic medium and circuit during
the past two years (2004-2006) and focusing on the Salo da Bahia as an example that
permits the comparison between different moments of the development of a History of
Arts, we tried to clarify how the legitimization of art works, and the role of its new
agents, such as mediators and institutions, both essential to the Brazilian emergent
contemporary art circuit.
-
7
NDICE
1- INTRODUO.......................................................................................................... 9
2- CONFIGURAO DO CIRCUITO DE ARTE CONTEMPORNEA 2.1- ESTATUTOS DA CONTEMPORANEIDADE......................................................16
2.2- SOB A GIDE DO MERCADO............................................................................23
2.3- LEGITIMAO PELA COMUNICAO............................................................31
3- PERSONAGENS E PRODUTOS
3.1- ARTE ISSO..........................................................................................................41
3.2- A OBRA (E O ESPECTADOR)..............................................................................46
3.3- ARTISTA E UNIVERSIDADE..............................................................................52
3.4- MEDIAO AUTNOMA....................................................................................60
3.4.1- Curadoria Emergente.........................................................................................71
4- INSTITUIO SALO 4.1- O SALO COMO INSTITUIO.........................................................................77
4.1.1- A experincia Bahiana........................................................................................81
4.1.2- Sistematizao do Salo......................................................................................85
4.2- REPRESENTATIVIDADE VIA MAMBA.............................................................89
4.2.1- Especificidades Valorativas................................................................................91
4.2.2- Insero Poltica e Circuito Local.........................................................................97
5- CONVIVNCIA NO CAMPO AMPLIADO 5.1- LEGITIMAO E CONSAGRAO.................................................................102
5.1.1- Limitaes..........................................................................................................111
5.2- CIRCUITO AMPLIADO.......................................................................................122
-
8
5.3- NOVAS CONFIGURAES EM FORMAO.................................................131
5.3.2- Salo Sem Lugar................................................................................................134
5.4- CONVIVNCIA DE DECISES ARTSTICAS..................................................137
5.4.1- Em Malhas Privadas.........................................................................................139
5.4.2- Aes de Artistas...............................................................................................141
5.4.3- Outros Mecanismos...........................................................................................146
5.5 CRUZAMENTOS: RELAES CONTEMPORANEIZADAS............................149
6- CONSIDERAES FINAIS.................................................................................153
7- BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................157
8- ANEXOS
8.1- ANEXO I................................................................................................................163
8.2- ANEXO II..............................................................................................................190
8.3- ANEXO III.............................................................................................................191
8.4- ANEXO IV.............................................................................................................194
8.5- ANEXO V..............................................................................................................197
8.6- ANEXO VI.............................................................................................................199
8.7- ANEXO VII...........................................................................................................209
-
9
1. INTRODUO
A presente discusso pretende se aproximar de uma possvel trajetria entre
muitas - traada no universo da arte e observvel nos produtos que esta hoje nos
oferece. Dedicada forma que estabelece a construo contnua do sistema de arte e
suas conseqentes formas de legitimao, apresentam-se aqui questionamentos
desprovidos de quaisquer possibilidades de resposta conclusiva, mas cuja reflexo se
faz essencial no meio de arte brasileiro neste momento.
Esta pretensa e parcial abordagem generalizante tem como vis motor no s os
mecanismos de legitimao da arte, com nfase na mediao, como tambm a forma
como tais mecanismos se configuram ao longo da histria da arte ou aps esta (DANTO
2006). Ao intentar discutir aspectos da legitimao da arte, define-se aqui como eixo
condutor a instituio salo de arte, em especial o Salo da Bahia. Este permite,
atravs da anlise de seus mecanismos de atuao, a verificao de particularidades
irms aplicadas em eventos do mesmo cunho1, compostas de partcipes do meio de arte
no Brasil. Com alguma amplitude de olhar, nos possvel travar uma discusso
abrangente sobre o circuito de arte brasileiro e seus personagens.
A partir da tomada da contemporaneidade como realidade irrecorrvel, admite-se
que pouco se pode acertar com o mnimo distanciamento que esta nos proporciona. No
mbito das artes, sobretudo ao nos dedicarmos incipiente arte contempornea
brasileira, pode-se dizer que quaisquer exatides se mostrariam, cedo ou tarde, falhas, j
que a arte contempornea no dispe de um tempo de constituio ou formulao
suficiente e tampouco estabilizada.
1 Editais dos Sales da Bahia em ANEXO I.
-
10
O distanciamento facilitador do domnio no concedido, no estudo do ato da
contemporaneidade, ainda que seja permitido por meio de comparao ou observao.
A simultaneidade da produo artstica e da produo intelectual acerca desta exige a
aplicao de uma mescla de observao e instinto extremamente cuidadosos ao lidar
com um campo (o artstico) que permite idas, vindas e antecipaes, ainda que difusas.
Cauquelin (2003) resume:
em sua indeterminao essencial, a situao em que o termo ps-modernismo, leia-se aqui contemporaneidade - nos coloca tem de interessante o fato de deixar o historiador na obrigao de se voltar criticamente sua disciplina, ou seja, de se questionar a respeito no somente de seu mtodo histrico e crtico, como tambm sobre o objeto ao qual se dedica (a prpria arte), seus processos e o papel desempenhado pela histria na interpretao que se pode dar a isso tudo (CAUQUELIN, 2003:130).
Um reconhecimento decidido sobre seus parmetros e pormenores no se faz
possvel por se tratar duma arte em pleno processo de afirmao, embora seja elementar
para profissionais envolvidos com sua reflexo distingui-la, ainda que quase
intuitivamente, como contempornea. Desta forma, para abord-la preciso valer-se de
critrios acordados, cuja imposio em se lidar com o presente imediato confere a esta
pesquisa um carter processual que a faz tambm parte da contemporaneidade em que
se insere.
atravs de questionamentos deste teor que esta pesquisa procura explicitar um
caminho percorrido pela a produo de arte que, envolvendo seus personagens e
contextos, teria culminado na configurao de seu campo da maneira que hoje se
apresenta. Desta forma, o meio de arte brasileiro interpretado nesta pesquisa a partir
de olhos abrangentes, que partem de acontecimentos geradores de transformaes no
mbito mundial histrico da arte.
-
11
Atravs de atuaes de personagens em determinados contextos sociais a
produo de arte, a cada momento da histria, possibilita mudanas de definies que
envolvem o circuito e meio artsticos como um todo e em suas determinaes mais
essenciais. So transformaes essenciais que ocorrem num campo expandido, e
figuram marcadamente a cada manifestao da arte, ainda que em pequeno mbito, em
todos os lugares em que esta se apresenta. No Brasil das artes contemporneas e
emergentes2 tais definies se apresentam a cada atitude, exposio, mostra ou
discusso que contemplem a arte contempornea.
justamente num evento como o salo de arte que se instala em plena
contemporaneidade e se ala a um posto de destaque no apenas para a produo, mas
para o circuito artstico emergente, que se encontra um exemplar intermedirio entre os
diferentes e temporalmente distanciados sistemas de arte e conceitos de artstico.
Ainda que lanando mo de um modelo ultrapassado de insero, estes eventos
puderam demonstrar em seu mbito e atuao uma complexidade passvel de ser
apontada como exemplar para a visualizao configuradora da realidade do meio
brasileiro contemporneo de arte.
Neste momento, importante advertir que o intuito desta dissertao no foi
atingir todos os aspectos do meio e as discusses correntes de arte brasileira. Deixou-se
margem alguns momentos passveis de serem interpretados como cruciais, mas que,
no entendimento do todo desta pesquisa, no fariam sentido essencial.
A partir dos sales de arte possvel estabelecer relaes imediatas entre as
atividades contemporneas e as manutenes de critrios tradicionais no meio da arte.
Inserido num grupo de eventos similares ou de menor ou igual abrangncia
2 Trato como emergente a produo de arte em vias de insero no circuito de arte.
-
12
especialmente na poca estudada, foi determinado o Salo da Bahia como evento
fornecedor de pretextos que nos proporcionaram uma leitura acerca do atual meio da
arte brasileira.
Tal escolha se pautou no fato desse meio, ainda que construdo sobre pilares que
o afirmam ter carter ultrapassado, ter sabido lanar mo de poderosos agentes atuantes
no campo das artes - o mercado e a comunicao e, assim, ter atingido xito como
evento legitimador e difusor da arte e de artistas contemporneos, sobretudo
emergentes. Os agentes atuaram no sentido de conferir ao evento valor e
reconhecimento, nos moldes da contemporaneidade, tornando-o sedutor parceiro para a
produo artstica. A partir do debate entre o antigo e o novo, o tradicional e o
contemporneo, buscou-se perceber de que forma mais uma vez instala-se uma
configurao que poder finalmente ser definida, ainda que em grau diludo, como
contempornea.
Compreendendo que os sales de arte atuam no rol da legitimao artstica, ao
dedicar-nos a possveis critrios empregados nesta atividade essencial e determinante,
deparamos-nos com o universo de poucas certezas que nos oferece a atualidade.
Partindo do eixo Salo, optou-se pela aproximao a este universo atravs dos
personagens que participam destes como jri e atuam s voltas com reflexes pares a
aqui pretendida, pautando-se em sua compreenso e distanciamento esclarecedores,
alm das posies de profissionais que atuam em variados graus de intermediao entre
a produo e o consumo de arte.
Atuando ao lado dos artistas, mas com a autonomia de profissionais da arte, os
mediadores intermedirios entre produo e consumo mostraram-se fonte essencial
de troca de informaes e impresses no caminho das reflexes pretendidas. Ao carter
-
13
empirista desta pesquisa foram, portanto, adicionadas informaes provenientes de
diversas entrevistas realizadas com estes profissionais da mediao, sobretudo aqueles
partcipes constantes do evento central a ser observado como exemplo3, que serviram
como alavancas para as questes aqui pretendidas.
Ressalta-se que muitos dos agentes no exclusivamente mediadores so tratados
como tais nesta pesquisa e, portanto, podem figurar entre as fontes bsicas de
informao recolhida. Por ter sido recolhida tambm informao atravs de contato com
o circuito especfico ao evento centralizador das questes pretendidas, aponta-se neste
momento novamente quo inesgotvel se torna o assunto, quando se percebe a completa
impossibilidade de imparcialidade do olhar e do acesso a informaes que nos atingem
cotidianamente.
Dedicamos-nos anlise aprofundada, ou ao menos aproximada, do Salo da
Bahia como exemplo representativo das questes a serem tratadas, buscando, a
princpio, a presena de alguma homogeneidade explicativa deste universo, que
apontasse sua potencialidade a tornar-se um mtodo. Tal processo se aproxima da
necessidade que Marcel Mauss (1968) ensina ser inerente natureza humana, pois
busca o domnio de coisas atravs da classificao esclarecedora dos sentidos. O Salo
da Bahia torna-se um possvel provedor de material para a elaborao, ainda que ousada
ou superficial por seu carter futuro, de predies aprovisionadas acerca no somente
desta instituio, mas do circuito de arte como um todo.
Esclarecemos que especificidades geradas ou direcionadas pelo inevitvel
carter poltico que assume decises sobre o campo cultural, no foram abarcadas por se
3 Foram entrevistados para esta pesquisa os seguintes membros de comisses julgadoras do Salo da
Bahia: Heitor Reis, Fernando Cocchiarale, Marcus Lontra, Luis Camillo Osrio, Denise Mattar, Franklin Pedroso, Tadeu Chiarelli, Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos. Ver ANEXOS II e III.
-
14
tratar de um domnio no qual atuam forcas que nos fogem a apreenso e interesse, ainda
que se admita que definam toda a trajetria do sistema brasileiro das artes.
O circuito brasileiro de arte contempornea, seus personagens e agentes,
gradativamente se definem e atuam, nos moldes ou na remodelagem de frmulas em
algum momento estabelecidas pela arte mundial. Tal fato se distingue de qualquer outro
j visto, pois tem como essncia a reunio de pilares transformadores, afirmados a partir
de contextos de revoluo jamais vividos. Alm disso, tem a capacidade de apontar seu
rumo ou direo. A partir de transformaes conceituais, a arte se manifesta em regime
de liberdade e de variedade jamais vistos. Seus produtores e profissionais esto, assim,
multiplicados e voltados afirmao de sua polivalncia, no sentido de propor a
maneira como a arte deve ser tratada.
As revolues sociais envolvem os efeitos da globalizao e da insero de
tecnologias inovadoras que, unidas, alteram realidades e percepes, lidando com
critrios de espao e tempo. So distanciamentos e proximidades, tempos acelerados,
reais e ficcionais e finalmente realidades distintas que se cruzam, que, diante do
indivduo, traam uma nova paleta de relaes humanas que ainda se constroem frente a
tantas e to prximas novidades. Alguns conceitos de ps-modernidade so aplicados
nesta pesquisa por trazerem consigo pontos elementares destes aglutinamentos que
ocorrem no interior dos seres e relaes humanas e so exprimidas, sobretudo e a priori
pela arte. Assim, alm dos autores j citados, fazem-se presentes contribuies de Stuart
Hall (1997), David Harvey (1992), Thierry De Duve (2003) e Pierre Bordieu (1987),
entre outros que, alm das entrevistas j mencionadas, nos serviram de apoio, alavanca e
esclarecimento sobre o assunto pretendido, em grau expandido.
-
15
Na praticidade das relaes estabelecidas entre instncias do meio da arte, as
posies assumidas atualmente pelos envolvidos com a produo, mediao e consumo
de arte so, portanto, aqui abrangidas e discutidas em alguns de seus aspectos pontuais
especficos contemporaneidade.
Aspectos que definem caminhos j iniciados e que especulam resultados, ainda
que sem pretender defini-los, presentes nas trocas de posicionamentos que possibilitam
refletir sobre a j sabida fluidez do campo das artes, e sobre quais posies podem
denotar escolhas ou caminhos possveis desta configurao. Neste nterim, situam-se os
personagens, cada um por vez, na posio de mediadores, ainda que do prprio trabalho
artstico.
Sendo assim, julgamos, no decorrer da pesquisa, ser possvel alimentar
discusses pertinentes acerca da configurao do circuito atual da arte brasileira que se
legitima, para a elaborao dum possvel porvir. Procuramos, atravs de aspectos que
parecem se afirmar na arte contempornea, poder prever de que forma poderamos
estabelecer relaes de troca institucional ou no com esse tipo de arte.
Tais percepes aglutinantes, ainda que desobrigadas de atingir quaisquer graus
de homogeneidade, figuraro conseqentes provedoras de ferramentas para a atuao
em prol desta produo. A inteno propor formas para dar apoio e vazo produo,
que se mostra essencial e bastante profissionalizada no Brasil. Isso coloca, afinal, esta
pesquisa como um propsito e um desafio perante uma antecipao de possveis
atitudes legtimas e impulsionadoras dessa produo para a proximidade futura do
desenvolvimento do meio da arte local.
-
16
2. CONFIGURAO DO CIRCUITO DE ARTE CONTEMPORNEA
2.1 Estatutos da contemporaneidade
A arte sempre reflete, filtrados pela subjetividade do artista, aspectos da
conjuntura onde est inserida. Assim, as preocupaes e acontecimentos poltico-
sociais, alm das questes exclusivas produo artstica, permeiam decises e figuram
no conjunto da arte. No Brasil, o conjunto das obras selecionadas por um salo, assim
como conjuntos apresentados em feiras, mostras coletivas e bienais de arte
contempornea, formam mapas das possibilidades poticas da a produo artstica.
Alm disso, a incidncia de troca entre esta produo e as mudanas contnuas no
sistema das artes contextualiza as relaes estabelecidas em seu campo. O resultado
desse processo apresenta-se nas posies em que a arte contempornea, seus
personagens e instituies assumem.
O conceito de arte contempornea aqui empregado passa a significar, portanto, a
no totalidade do que se produz, mas aquilo que est sendo produzido dentro de uma
certa estrutura de produo jamais antes vista em toda a historia da arte (DANTO
2006:12), que poderia ser chamada tpica da contemporaneidade. Neste sentido, o
mercado atua como grande indutor sobre a produo de arte, cuja continuidade depende
de redes comunicacionais tecidas por seus profissionais. Danto (2006) identifica uma
mudana histrica, j em 1980, nas condies da produo de artes visuais, ainda que,
de um ponto de vista externo, os complexos institucionais do mundo da arte (...)
parecessem relativamente estveis (DANTO, 2006:24). Uma nova descontinuidade no
-
17
mbito artstico seria definida, assim como ocorrera outrora ao emergirem os conceitos
de arte e posteriormente de artista.
Estaramos, portanto, num momento de transio da era da arte: a arte produzida
durante a era da arte, e a arte produzida aps o trmino desta. Podemos pensar na arte
contempornea como se estivssemos emergindo da era da arte para algo diferente,
cuja forma e estrutura exatas ainda precisam ser compreendidas (DANTO 2006:4). Um
complexo de prticas d lugar a um outro cujo formato fluido e no dispe do
benefcio da narrativa legitimadora (DANTO 2006:6): a grande causadora de tal
transformao. A produo atual trata, ento, de um estilo de usar estilos (DANTO
2006:13), sem que restem perodos ou narrativas para tais estilos serem completados.
Aplica-se a esse contexto o termo ps-modernidade, correntemente empregado e
discutido por diversos autores4 desde a dcada de 1970. Caractersticas da ps-
modernidade formariam um certo estilo que podemos aprender a reconhecer do mesmo
modo como aprendemos a reconhecer exemplos do barroco ou do rococ (DANTO
2006:14), embora no se oferea unidade estilstica nica que defina o ps-moderno.
David Harvey (1992) apresenta a formao da nova identidade nomeada ps-
modernidade, como um estado scio-cultural proveniente das mudanas promovidas
pelas transformaes poltico-econmicas e provocadas pela dominncia capitalista, o
que promove a reflexo sobre os aspectos de produo, consumo e reorganizao da
produo cultural. O autor oferece um panorama das transformaes culturais nas
sociedades ocidentais, voltando-se, sobretudo, s metrpoles e ao desenvolvimento
destas e destacando as formas de produo como constantes e determinantes promotoras
da ocorrncia de transformaes sociais e culturais.
4 Como exemplos cito Hal Foster, Steven OConnor, Harold Rosenberg, Rosalind Krauss.
-
18
No ambiente das grandes cidades em formao, a Segunda Guerra Mundial
causa o enfraquecimento dos posicionamentos polticos e o incio do sentimento de
niilismo e incapacidade perante a grande estrutura capitalista dominante dos sistemas
poltico, econmico e cultural. Fortalecido o individualismo, inicia-se a construo do
modelo de sociedade ps-moderna.
Segundo Harvey (1992), o prprio Modernismo ocorre a partir de uma reao s
condies de produo (industrializao e urbanizao), circulao das informaes
(transporte, comunicao, publicidade) e forma como se configurou o consumo de
bens com estas modificaes aps a Primeira Guerra Mundial. O Modernismo no foi
s um elemento gerador de transformaes, mas um conjunto de propostas
vanguardistas, que tiveram como ponto de partida tcnico e conceitual as condies
scio-tecnolgicas desenvolvidas na poca. Absorvendo as idias de vanguarda, o
Modernismo props a reflexo e a ao sobre estas.
O contexto cultural do Modernismo d lugar consolidao dos valores alados
pela contracultura e pelos movimentos antimodernistas politizados do incio da dcada
de 19705, o que causou o estabelecimento de uma esttica cultural, que institui uma
identidade social especfica emergncia do Ps-modernismo.
Segundo Hassan (1957, apud HARVEY, 1992), o momento ps-moderno
mantm muito do carter moderno. Tal continuidade histrica anunciada
conceitualmente pelas questes modernas transformadas em seus aspectos espaciais e
temporais mutveis, conferidos pela dissoluo de um cenrio adquirido do contexto,
que abrigou ou culminou nas seqenciais rupturas de vanguardas europias. As
caractersticas atribudas ou classificadas como ps-modernas no seriam, ento,
5 Entretanto, estes princpios suscitam os primeiros debates acerca do Ps-modernismo, somente na
dcada de 1980, apesar de sua origem ter sido composta ainda antes, na dcada de 1960 pelas transformaes urbanas, que promoveram um carter metropolitano s cidades.
-
19
fundamentalmente inovadoras, mas frutos de uma transformao de elementos
herdados, em vias de amoldar-se ao contexto em que se inserem.
Harvey (1992:45) destaca que as relaes de tempo e espao so estabelecidas
na produo cultural do perodo ps-moderno como uma associao no s s agitaes,
nos quadros de produo e consumo e s transformaes identitrias dos indivduos,
como tambm aos valores de deslocamento e de transmisso da informao
estabelecidos a partir desse contexto. Aos poucos, a identidade pessoal e a artstica
tornam-se, incapazes de se apresentar de forma unificada temporalmente em funo da
sua concentrao nas complexas circunstncias que derivam do colapso das relaes
significante-significado na passagem do Modernismo para o Ps-Modernismo6
(HARVEY 1992:56).
A sociedade ps-moderna e suas instituies tm como principal caracterstica a
sua constante e veloz transformao e compresses de espao e tempo - coordenadas
bsicas de todo o sistema de representao artstica, cada vez menos naturais ao ser
humano. Com processos em acelerao, distncias minimizadas e aes, que causam
impactos simultneos, em diferentes espaos, tais moldagens contnuas trabalhadas por
Weirtheim (2001) provocam efeitos profundos sobre as formas pelas quais identidades
so localizadas e representadas, tornando qualquer espcie de identidade provisria e
perturbadora.
O sujeito ps-moderno est composto por identidades simultneas e convive
com uma paisagem social em colapso, uma vez que se encontra circundado por
inquietas e constantes transformaes estruturais e institucionais. Segundo Stuart Hall
6 Apesar de concordar com o carter fragmentrio do sujeito, Harvey (1992) repreende o posicionamento
de filsofos notavelmente ps-modernos que dedicam total acolhimento s vozes da fragmentao. O autor acredita que, autenticando de imediato tais vozes, elas ficam impossibilitadas de atingir novos espectros de abrangncia, como o poltico ou o social. Isto as reduz a um aspecto ou jogo de linguagem especfico, acabando por intensificar ainda mais os guetos de poder.
-
20
(1997), este esfacelado contexto compromete o processo de identificao tradicional do
sujeito com o meio, o que leva no formao de um eu coerente, formatando uma
identidade j fracionada em sua raiz. A falta de coerncia do sujeito passa a dar vazo a
outras mltiplas e interminveis fragilidades e incertezas, que comporo uma identidade
em novos e complexos moldes, mutveis.
O artista, como exemplo-alvo destas mudanas, desempenha ento sua funo de
maneira diversa ao que se entende tradicionalmente como produo artstica. Esta
ocorre por meio do olhar, do pensamento e da percepo, o que traa uma nova
cartografia artstica que inclui a emergncia de um sujeito contemporneo que ir
contribuir de maneira decisiva para uma posterior ressemantizao da arte e dos
postulados filosficos (BOUSSO, 2005). As posies que ocupam os artistas, em
relao s demais posies definidas no sistema da produo intelectual e artstica,
tendem, segundo Harvey (1992), a se tornar um princpio unificador gerador de
identidade do sistema cultural, e esclarecedores de transformaes estruturais do
circuito, ainda que em processo de configurao na constituio da histria das artes.
Percebe-se uma perda de equilbrio (ou de certezas), ainda que precrio, da
sociedade como um todo, o que possibilita e incentiva novas formas de manifestaes
de diversas ordens. Decorrentes da forma antinatural, que constitui a relao do sujeito
com tempo e com espao contemporneos (inclusive ficcionais ou virtuais) se afirmam
conceitos negativistas tambm na arte, que tornam corriqueiras as expresses no-tempo
e no-lugares, alm dos muitos outros nos j discutidos. Podemos dizer que o meio de
arte depara-se com um momento de incerteza, que desgua transitoriamente no meio da
produo artstica contempornea.
-
21
Neste sentido, o momento Ps-moderno pode ser tratado como uma forma
particular de crise do Modernismo, o que enfatiza a face fragmentria, efmera, e
catica da formulao de Baudelaire (1988) sobre a dualidade humana e da arte, ao
mesmo tempo em que exprime um denso ceticismo diante de toda determinao
particular sobre como conceber, representar, ou exprimir o eterno e o imutvel.
Na prtica das relaes derivadas da modernidade Moacyr dos Anjos7 (2005)
afirma que, na arte da ps-modernidade, o objetivo moderno de projeo e progresso
rumo a algum lugar renegociado constantemente (ANJOS, 2005) e prope para esta a
metfora do alvo mvel (...) mais como um processo de busca que ponto de chegada
(ANJOS, 2005). Desta forma, no se deve esperar da arte atual uma recolocao de
utopias, mas a ampliao da nfase no processo de busca voltado articulao e
investigao, e associados a uma viso crtico-propositiva. Em escala mundial, pode-se
dizer que o veloz processo de transmisso de informaes, a extenso das possibilidades
e facilidade de deslocamento espacial tornam a arte brasileira um conceito to
indefinido quanto arte alem ou arte americana. Panoramicamente, desde a dcada de
90 (...) o inevitvel e irreversvel processo de globalizao vem desorganizando em alta
velocidade as relaes internacionais (...) um mundo novo para o qual no estamos
minimamente preparados (...) tudo em tempo real (BOUSSO, 2005).
Com isso, gerada uma inevitvel crise de parmetros, na produo artstica
que, pela ausncia de limites de criao que prope, resulta numa larga produo de
arte, talvez em escala nunca vista, o que demonstra um aspecto de sua positividade. De
acordo com Ronaldo Brito, o gesto de liberar implica uma situao de opresso, uma
7 Diretor do MAMAM, em Recife, coordenador do projeto Visualidades Contemporneas do Instituto de
Cultura da Fundao Joaquim Nabuco. Atua tambm como curador e autor de artigos sobre arte e mercado. Entrevista concedida, em maio de 2005, no Rio de Janeiro.
-
22
situao insustentvel, que seria respectiva vivida na ps-modernidade (BRITO,
2002, apud BASBAUM, 2005:216).
Para Stuart Hall (1993), tanto o liberalismo quanto o marxismo j apontavam
que:
o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas, cosmopolitas ou internacionais (...) e o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de apego... Ao local e ao particular, tradio e s razes, aos mitos nacionais e s comunidades imaginadas (HALL, 1993:43).
Tal processo construiria, gradualmente, um domnio de identidades mais
racionais e universalistas. A sobreposio do global ao local encaminha a um
descentramento constante das relaes humano-sociais. Hall (1993) relata as crises de
identidade pelas quais o homem passou8, e coloca o atual desequilbrio das identidades
culturais como mais um destes momentos. Para o autor, a identidade somente torna-se
uma questo quando est em crise, e o Salo de Arte, por constituir uma instituio que,
por seus preceitos, seria estvel, incita a discusso ao apresentar crise em seus
resultados e processos, em embate com a realidade tambm em crise.
8 Segundo Hall (1993), as razes do descentramento conceitual do sujeito foram, cada uma a seu tempo: o
questionamento s proposies-chave da filosofia moderna, o que levou ao desequilbrio o homem enquanto ser total e nico. A descoberta do inconsciente por Freud, que arrasou o cartesianismo; o questionamento de Saussure linguagem e a negao do domnio de seus significados pelo homem; a viso de Foucault acerca do poder disciplinar, que individualiza os seres a fim de exercer poder coletivo atravs das instituies; e o impacto do feminismo como crtica terica e movimento social. Assim, o sujeito do Iluminismo foi se dissolvendo em identidades abertas, contraditrias e inacabadas, o que certamente foi instaurado tambm pela arte.
-
23
2.2- Sob a gide do mercado
Ao contrrio da idia de que existe um campo artstico, tradicional e
ideologicamente posicionado, em oposio ao sistema econmico, poltico e religioso,
legislam instncias que pretendem atuar na esfera cultural em nome de um poder ou
autoridade no propriamente cultural. Dessa forma, sociedades, sistemas de produo e
circuito artstico estaro sempre relacionados e em constante movimento. Ao tratar do
sistema de produo e circulao de arte como o sistema de relaes objetivas entre
diferentes instncias definidas pela funo que cumprem na diviso do trabalho de
produo, de reproduo e de difuso de bens simblicos, Pierre Bourdieu (1974:71)
afirma que o entendimento derivado destas relaes permite a compreenso do
funcionamento do campo, suas transformaes, estrutura das obras que produz e de sua
sucesso.
A histria da vida intelectual e artstica das sociedades (...) revela-se atravs da histria das transformaes da funo do sistema de produo de bens simblicos e da prpria estrutura destes bens, transformaes correlatas constituio progressiva de um campo intelectual e artstico, ou seja, autonomizao progressiva do sistema de relao de produo, circulao e consumo de bens simblicos (Bordieu, 1974:99).
Atuando desde os primrdios sob a tutela de instncias de legitimidades
externas, a produo artstica, na ps-modernidade, desenvolve-se no sentido de,
progressivamente, libertar-se de suas demandas ticas e estticas. Historicamente, o
primeiro momento de autonomia no campo das artes ocorre quando a burguesia
detectada como pblico consumidor em potencial para a produo de arte. Assim,
possibilitam-se modificaes, na produo artstica, ou seja, a possibilidade para o
-
24
desenvolvimento de novas tcnicas ou linguagens. A quebra da dependncia de um
consumidor especfico permite aos artistas uma autonomia formal, que apenas
condio para a sua submisso s leis do mercado de bens simblicos. Define-se um
primeiro passo em direo distribuio do poder, no mbito da arte, que, desde ento,
obedece a presses dos ndices de vendas e define um novo princpio de legitimao da
arte: a trama mltipla e complexa do mercado consumidor.
Todas estas invenes do romantismo, desde a representao da cultura como realidade superior e irredutvel s necessidades vulgares da economia, at a ideologia da criao livre e desinteressada, fundada na espontaneidade de uma inspirao inata, aparecem como revides ameaa que os mecanismos implacveis e inumanos de um mercado regido por sua dinmica prpria fazem pesar sobre a produo artstica ao substituir as demandas de uma clientela selecionada pelos veredictos imprevisveis de um pblico annimo (Bourdieu, 1973:104).
A ocorrncia de uma sucesso de autonomias no meio artstico transforma
inevitavelmente seus estatutos e seus personagens, que se descaracterizam em relao
tradio e exerce funes e posicionamentos em novos espaos. A desmistificao da
atividade artstica acompanha tais transformaes sociais, que afetaram em particular o
posicionamento do artista diante de sua produo e sua ideologia. Nesse sentido, o
artista se desvencilha de um sistema seguro e levado a uma posio marginal, devendo
submeter-se agora s flutuaes de mercado e atuar na dependncia de marchands e
crticos. ento que o espao intermedirio entre produtor e consumidor povoa-se de
uma grande quantidade de figuras do marchand ao galerista, passando pelos crticos,
especuladores e colecionadores (CAUQUELIN 2005: 56).
Aps o rompimento do moderno com o academismo e a centralizao de poder
de legitimao dos sales promovidos pelas Academias, que fomentavam a imagem do
artista como antagnico ao sistema comercial, o artista passa a se agrupar em grupos
-
25
independentes e descentralizados, passando a desenvolver outras funes, como o de
agentes. Durante o Modernismo a visibilidade de um artista dependia de seu
engajamento em uma vanguarda, o que, para Bourdieu (1987), eram grupos promovidos
pelo sistema de consumo. Aos poucos, as escolas artsticas so substitudas por grupos
de artistas, que trabalham de uma mesma maneira, apoiados por um crtico, e cujas
obras um marchand vende. Com isso, formam-se grupos de vanguarda em nome dos
quais o crtico desenvolve seu trabalho, mas cuja constituio promove uma
modificao na configurao das redes de relao do circuito de arte, possibilitando,
conseqentemente, um posicionamento mais crtico do artista e potencializando a
ocorrncia de se ter como pblico o prprio grupo.
A partir da criao e da multiplicao de instncias mediadoras, responsveis
pela legitimao das obras, os sales, autnomos, adquirem poder de legitimidade e
difuso do modelo de arte que criam. Bourdieu (2005) compreendeu o sistema erudito
ainda destacado do mercado puro e simples quando desenvolve uma profunda distino
entre indstria cultural da produo erudita a partir da afirmao. Ao contrrio do
sistema da indstria cultural, que busca consumidores em massa, o campo da produo
erudita busca criar ele mesmo suas condies de sobrevivncia, ou seja, produz
inclusive suas normas de avaliao e validao de seus produtos (BOURDIEU, 2005).
Ainda segundo o autor pode-se:
medir o grau de autonomia de um campo de produo erudita com base no poder que dispe para definir as normas de sua produo, os critrios de avaliao de seus produtos e, portanto, retraduzir e reinterpretar todas as determinaes externas de acordo com seus princpios prprios de funcionamento (BOURDIEU 1973:106).
-
26
O campo da produo erudita passa a se destinar aos prprios produtores, numa
ruptura contnua com as fraes no-intelectuais inclusive das classes economicamente
dominantes9. Ocorre uma espcie de fechamento em si mesmo, cuja hostilidade gera um
distanciamento libertador do consumidor desinteressado pela erudio e encontra, no
mbito dos prprios produtores, um pblico envolvido, que se apresenta tambm crtico
e cmplice. Voltada sobre si mesma, a arte se torna um saber erudito, e chegar ao
pblico no especializado no parece ser a inteno principal, j que a reflexo de ponta
que se pretende no acessvel a este. O pblico geral passa ento a diminuir
proporcionalmente ao aumento do poder dos intermedirios, que atuam, a princpio,
nesta mediao.
A profissionalizao dos agentes corresponde a uma especializao, mas os
papis no so individuais, pois, ainda que o profissional se intitule curador, este
tambm, alm de conservar museus, julga obras em sales, escreve textos de
apresentao ou tericos, apresenta e promove artistas. Tais modificaes de papel
fazem parte das estratgias de busca de espao artstico. Assim, o profissional das artes
transita entre as posies possveis no circuito de arte, cujas fronteiras tornam-se cada
vez mais fluidas.
Diante do numeroso e variado corpo de artistas e consumidores, criam-se
cdigos relacionais, que transformam diretamente as normas definidoras do acesso
profisso e da participao no meio, como determinaes e imperativos tcnicos. Isto ,
forma-se uma nova distino, ou perfil, para ou artista e seu pblico. A partir de ento, o
9 A partir do ndice de diferenciao proposto por Bourdieu (2005) para a observao do grau de
autonomia do meio, seria possvel afirmar que a obra de arte ou o artista que atingem o grande pblico, que no merecedor de aceitao ou atribuio de valor pelo meio erudito, pois se estes atuam a partir de valores diversos. Uma produo de arte no seria passvel de aceitao pelos dois grupos simultaneamente, j que a interveno do grande pblico chega a ameaar a pretenso do campo ao monoplio da consagrao cultural (BOURDIEU, 2005:107)
-
27
circuito artstico passa a emprestar do mercado alguns mtodos ligados
comercializao da obra de arte. No mbito da arte, as relaes passam a girar em torno
de um novo interesse central externo, comercial e no mais erudito, contando com a
atuao dos detentores dos instrumentos de difuso, que indicam ser, a priori, no
centralizadores, mas agentes inevitveis duma Histria da Arte Contempornea em
formao.
O processo de autonomizao do meio artstico sempre gerador de um
processo de profissionalizao que vem acompanhado pelo firmamento de regras e de
deveres de cada personagem inserido neste campo, e que compe um ponto de partida
para que os envolvidos fiquem propensos a liberar sua produo de quaisquer vnculos
de dependncia, o que na arte contempornea. A posio que cada agente ocupa e
representa no campo da produo erudita distingue as relaes sociais entre artista,
mediadores (crticos, curadores, galeristas), colecionador e pblico. Este processo
define as relaes entre seus personagens e a definio da funo do artista e de sua
obra.
A produo de textos tericos passou por diversas etapas at atingir o grau de
autonomia da atualidade. O discurso terico afirma-se, cada vez mais, como
possibilitador do confronto de juzos divergentes, desde o momento em que os
princpios estilsticos tornaram-se objeto central de produo e legitimao, tanto nas
vanguardas artsticas europias - com movimentos e manifestos declarados quanto no
Brasil modernista. Assim, ao tentar decifrar a arte produzida em determinado momento,
o crtico se coloca a servio do artista e contribui para afastar pblico e no
produtores (BOURDIEU 2005:122), ou seja, vem primeiramente favorecer o artista a
tornar mais clara a essncia de sua obra para si e para seus pares, e passa glria de
-
28
interpretao da obra numa direo a desvelar ao artista novas formas de perceber sua
prpria arte.
por via da inacessibilidade da arte que agem as instncias de mediao,
reproduo e consagrao, assegurando a produo de receptores para esta mesma arte.
Museus e instituies de ensino tambm se inserem, nesta esfera de mediao, e
conseqente legitimao, pois so formadoras de pblico e de produtores.
A distncia que a arte estabelece com o pblico em geral verificvel por
constituir um campo que pretende encerrar em si mesmo seus valores e demandas, e que
progride por meio de rupturas cumulativas com os modos de expresso anteriores,
impossibilitando continuamente a recepo fora de seu campo. E a arte contempornea,
apesar de deslocar-se ao espao pblico, ainda no tem a capacidade de tornar-se
inteligvel a este, e os artistas, dedicados a pesquisas cada vez mais complicadas
parecem pretender continuar agindo em seu campo e para o pblico interno a este.
Quando o campo se fecha em regras prprias, a nica forma de agir dentro deste
concorrer ao alcance destas regras, o que empobrece em primeira instncia a obra
(BOURDIEU, 2005:115).
H, ento, o embate entre a arte verdadeira e aquela que circula por razes de
insero do produtor e, por esse motivo, talvez esta venha se dedicando a infindveis
explicaes e sistematizaes, atravs de uma espcie de retorno teoria (no somente
na arte de pesquisa do prprio campo, mas muitas vezes academia como respaldo para
a produo em arte). Distinguem-se produes voltadas no propriamente para a arte,
-
29
mas para o meio, o que suscita o questionamento sobre para quem afinal deve ser a arte
voltada, j que o pblico em massa est, ou parece estar, longe de constituir seu alvo10.
Os mediadores da arte sofrem e modificam seus posicionamentos e funes de
acordo com as transformaes sociais impostas e ocupam uma posio, que se
transforma continuamente quanto insero e poderio. A prtica de mediao pode ser
considerada uma prtica ainda em vias de consagrao. Significa que, apesar de
inseridos e bastante atuantes no campo da arte, esses profissionais ainda no tm
posio bem determinada no meio artstico. No uma situao solitria a dos
mediadores, pois se pode dizer que nenhum dos personagens envolvidos no campo das
artes, atualmente, possa colocar-se em uma posio determinada e determinante sequer
em relao a suas ideologias. No entanto, este profissional, por ter sofrido recentes
modificaes e constantes adequaes de papel no meio, est ainda desestruturado.
Diversamente de uma prtica legtima, uma prtica em vias de consagrao coloca
incessantemente aos que a ela se entregam a questo de sua prpria legitimidade
(BOURDIEU, 1974:177). E talvez seja esta legitimidade colocada prova que conduz
estes personagens a emitirem juzos muitas vezes divergentes, mas quase sempre
apaziguadores, alm da adoo de signos exteriores filosficos, graas a Kosuth
(1975), cientficos e assim por diante a fim de alcanar determinada crena
estabilizadora.
No interior do sistema, da forma como se constituiu e vem se constituindo
historicamente, as instncias que agem como entidades consagradoras ou legitimadoras
cumprem uma funo homologa da Igreja, pois funda e delimita sistematicamente a
10 Podemos aplicar os adjetivos que Pierre Bourdieu (2005) utiliza ao fazer referncia produo
artstica. So estes: puro, abstrato e esotrico, uma vez que essa produo exige do receptor no s uma disposio que esteja adequada aos seus princpios de produo, como tambm enfoques especficos produo.
-
30
doutrina a ser seguida, estabelece o que tem ou no valor sagrado e inculca f nos
leigos (BOURDIEU, 1974:120). As referidas instncias geram, alm da concorrncia
pela legitimao da produo, a concorrncia pelo poder de conced-la. Estas entidades
fsicas, jurdicas, privadas ou pblicas atuam em funo de legitimadoras atravs de
seleo e transmisso (circulao) destes bens culturais.
As relaes que os agentes de produo, de reproduo e de difuso estabelecem
entre si ou com instituies so mediadas pela estrutura do sistema das relaes entre as
instncias, com pretenses de exercer uma autoridade propriamente cultural. Segundo
Bourdieu (1973), parece irrefrevel a atual circulao de informao, que possibilita
formas de legitimao e de consagrao estranha ao conhecido primado, o que, outrora,
constitua uma espcie de barreira s demandas externas ao crculo erudito da arte, e
assegurara, na deteno e imposio de princpios de legitimidade propriamente
culturais, certa autonomia a este campo.
Vivemos, portanto num momento em que as formas de legitimao, no
necessariamente culturais, fundem-se com as instncias supostamente culturais. Por no
haver um limite ou interdio para a circulao publicitria da arte, e pelo prprio meio
no possuir mecanismos exatos para medir o grau de legitimidade de trabalhos ou
multiplicveis pesquisas artsticas, no se distingue quais produes integrantes ou
no do circuito comercial ou meio erudito - so possivelmente consagrveis.
De acordo com Bourdieu (2005), no h maneira de localizar, neste campo, sua
verdade inteira, pois no h - e essa afirmao aplica-se ao meio da arte hoje, incerto e
em transio - tomada de posio cultural que no seja passvel de uma dupla leitura na
medida em que se encontra situada ao mesmo tempo no campo propriamente cultural
-
31
(...) e em um campo que se pode chamar poltico (BOURDIEU, 2005:169). Nas
palavras do autor:
uma anlise interna de um sistema de relaes simblicas s consegue reunir fundamentos slidos se estiver subordinada a uma analise sociolgica da estrutura do sistema de relaes sociais de produo, circulao, e consumo simblico onde tais relaes so engendradas e onde se definem as funes sociais que elas cumprem objetivamente em um dado momento do tempo (BOURDIEU 1974:175).
Hoje, muitas tomadas de posio no campo das artes se mostram, sobretudo,
polticas, e que muito da responsabilidade sobre aquilo que se afirmar verdadeiramente
como arte contempornea abandonado a cargo do distanciamento que a Historia
exige para ser contada.
2.3 - Legitimao pela comunicao
Pode-se entender o artista e o campo da arte como integrantes dum sistema de
comunicao, que foram capazes de transformar a produo artstica, sua legitimao e
sua fruio junto ao pbico. Neste sentido, possvel apontar uma nova mudana de
paradigmas da arte, ocorrida, na passagem da Era Moderna para a Era Contempornea,
a partir do segundo ps-guerra (BOUSSO, 2005:5), quando foram alteradas as formas
de recepo e de produo de imagens causadas pelo consumo de massa e os valores
por este veiculados provocaram uma mudana irreversvel da percepo do sujeito. No
incio dos anos 1980 (...) com a determinao das redes informticas como parcelas
constituintes da vida cotidiana (...) finalmente o sistema da representao migra para o
sistema das imagens (BOUSSO, 2005:6). Formata-se assim uma nova realidade no
-
32
mundo das artes visuais, o que inclui a virtualidade como palpvel e institui a
artificialidade do olhar. Com isso, pode-se dizer que o desenvolvimento das linguagens
artificiais (formas virtuais de comunicao e produo de informao) e seu uso
generalizado construram novas referncias que alteraram a viso de realidade.
fato que as artes no somente absorvem as transformaes decorrentes da
configurao, que a reprodutibilidade e circulao ilimitada de informao definem,
como tambm passam a trabalhar com estas questes. A tecnologia que possibilitou tal
passagem ou transformao, segundo Cauquelin (2005), se encarrega constantemente do
andamento de dois princpios essenciais no desenvolvimento da sociedade: o progresso
e a identidade.
As transformaes decorrentes da soberania da comunicao - atuantes atravs
do princpio da repetio e da redundncia instauradas pela rede de informaes -
instauram e promovem a prevalncia da prpria rede sobre o contedo (as obras).
Conseqentemente, isso causa a re-significao da sociedade por alcanar os domnios
artstico e social em seu contedo, alm de sua estrutura de funcionamento.
O antigo sistema de vanguarda se torna contemporneo pela diversificao e
procura novas denominaes, que estaro em novos artistas e atitudes na produo da
arte. Tal movimento de renovao tem como deflagratria a presena de artistas cada
vez mais jovens no circuito, consagrados precocemente pelo sistema excessivo de
reproduo de marcas destinadas ao mercado.
Cauquelin (2005) detecta que diferentemente das vanguardas da arte moderna,
que se organizavam contra o mercado oficial pra preservar a autonomia da arte, no caso
da arte contempornea pretende-se uma absoro da autonomia pela comunicao
(CAUQUELIN, 2005:79), de forma que a exposio, no as obras, carregue a
-
33
significao isso arte. Para Danto (2006), na contemporaneidade ps-histrica, a
prpria obra suscita a pergunta: por que sou uma obra de arte? Pergunta que pode ser
aplicada s obras atualmente legitimadas pelo circuito, mercado e rede. A pretenso
condio de arte torna-se inclusive limitadora: essa condio impossibilita a definio
de obras de arte com base em certas propriedades visuais que elas possam ter
(DANTO, 2006:19).
Desta forma organizado, o artista que entra no mercado das artes precisa aceitar
as regras impostas para prosperar no mercado. Isto requer um individualizar-se
permanente que resulta numa certa redundncia da obra, reproduzida e exibida
incansavelmente, como algo necessrio para a fixao do artista numa memria coletiva
(de um grupo) numa situao em que estes esto tomados pelo excesso de informao
dirio. H para a produo contempornea a necessidade de que a obra circule pelo
campo ampliado, e que se torne reconhecvel como uma marca, atuando neste sentido
mediadores e agentes das redes.
Um agente emblemtico que participou diretamente da construo de artistas
reconhecidos foi Leo Castelli. Cauquelin (2005), o aponta como um dos pilares, alm de
Duchamp e Warhol, da organizao do meio de arte contemporneo: manter-se
informado , por um lado, ver os artistas, mas tambm se documentar e documentar
todo comprador eventual: os catlogos, os press-kits so largamente distribudos aos
jornalistas (...) os catlogos se tornam cada vez mais luxuosos (Warhol, 1968, apud
CAUQUELIN, 2005:59).
Uma caracterstica essencial, mas perigosa do poder da rede o fato de ela
deslocar o poder de valorao para a rede, de forma que uma instituio, ainda que
localizada e centralizada, s adquira poder, na medida em que seja capaz de estar
-
34
presente dentro da rede. Pode-se dizer que a contemporaneidade constitui uma espcie
de realidade em segundo grau, uma simulao sendo construda, onde os valores
(palpveis ou atribuveis) tornam-se extremamente rarefeitos e consequentemente muito
frgeis. A noo de sujeito ou unidade comunicante apaga-se, em favor de um sistema
de informaes sobre o qual dominam as regras de circularidade, cujo principio a
reversibilidade de informaes.
Passam ento a dominar as tomadas de deciso de relaes pessoais, que
asseguram proximidade e referncia. Isto , as tomadas de deciso oferecem uma
espcie de segurana que as relaes, constitudas a partir do colossal meio de troca de
informaes ilimitado, no pode oferecer.
O sistema de tornar visveis as obras, pertence ao prprio principio da
comunicao que, segundo Cauquelin (2005) significa:
tudo dizer tudo tornar pblico. Pois a palavra de ordem da comunicao a transparncia; no se omitem furtivamente as informaes, nenhum produtor consegue trabalhar s escondidas. A informao no manipulada, como ainda se acredita, pois a manipulao tpica do antigo sistema, aquele em que o produtor (artista) era diferente do intermedirio (crtico, marchand, galerista), o qual era distinto do consumidor (o diletante, o pblico). Aqui tudo se passa a cu aberto, no h segredo, somente a velocidade da transmisso pode desempenhar um papel discriminador entre os grandes produtores e seus seguidores. (Cauquelin 2005:75)
possvel comparar este sistema ao que rege a publicidade, ou seja, a
espetacularizao da amostragem, com o maior e mais qualitativo alcance possvel, que
possa atrair pblico e consumidores atravs duma poltica quantitativa do produto.
Concepo primeiramente apontada por Andy Warhol, autodenominado business-artist
que, colocando o objeto corriqueiro ordinrio em posio de obra de arte, afirmou o
-
35
mercado como instituio dotada de valor, apesar de, primeira vista, deixar parecer
que seria o museu a instituio a promover valor s obras.
Pode-se dizer que Warhol pertena arte contempornea, alm da histria da
arte pop dos anos de 1960, pela forma como articula a arte no circuito e, em particular,
na sociedade e nos negcios. Partindo de Duchamp e do Dadasmo, Warhol introduziu a
imagem serial na arte e a utilizao dos meios eletrnicos de impresso e reproduo.
Imagens contaminadas pela cultura de massas que, para Cauquelin (2005), nada mais
eram que um prenncio de afirmao do advento das redes. O artista, atravs da
reproduo banalizante, mas tambm espetacularizante, de rostos e produtos de
consumo, numa repetio incessante de tais imagens at a saturao, ocupou
inteiramente o circuito e perpassou os limites da arte, construindo uma poderosa rede de
autopromoo atravs da circulao de seu nome-marca. O nome Warhol tornou-se uma
obra, e, talvez, a ltima ao do artista poderia ter sido a venda de seu nome para um
colecionador qualquer.
A partir de ento, Cauquelin (2005) coloca que obra e artistas passam a ser
tratados pelas redes de comunicao simultaneamente como elemento constitutivo (sem
eles a rede no tem razo de ser), mas tambm como um produto da rede (sem a rede
nem a obra nem o artista tem existncia visvel). estabelecido um princpio de
circularidade bastante promscuo, pois, atravs de publicaes sobre a visibilidade dos
artistas, cria-se uma cadeia muito prxima da publicidade, em que os destinatrios so
tambm os gestores da rede. Ou seja, o sistema da arte contempornea organiza-se de
forma que os produtores profissionais da circulao das obras (...) e os artistas-objetos
pretextos dessa transmisso (CAUQUELIN 2005:78) a destinem a si mesmos, e a
consumam aps hav-la fabricado, como numa regurgitao.
-
36
Segundo Cauquelin (2005) Warhol teria sido tambm o promotor de um esboo
de um desnudamento da rede formada pelos profissionais da arte (CAUQUELIN,
2005: 87), pois atuou como um porta-voz satrico da sociedade de consumo, cuja obra
se situa no sistema mercantil e simultaneamente exibe-o crtica e notoriamente. A este
respeito, a autora afirma: a definio da arte como negcio e do artista como homem
de negcios (...) portadora de uma desmistificao fundamental na qual residem
justamente os encantos da arte contempornea, orientada segundo os princpios da
comunicao (CAUQUELIN, 2005: 93).
Estaramos num momento em que a liberdade deflagratria do sistema reflete
sobre este, mas no o acusa, trabalhando com as possibilidades que este oferece e
demonstrando a capacidade de adequao e reflexo do artista para com sua realidade,
liberto de quaisquer fardos tradicionalistas. A exigncia de pureza artstica de insero,
na tradio em seus valores, atua na recusa do comrcio de arte e da posio do artista
como homem de negcios11 desapareceram ao final das vanguardas e seu aspecto
anticomercial e, segundo Cauquelin (2005), cederam lugar aos artistas absolutamente
determinados a se tornar ricos e clebres e a fazer uso, para isso, de todos os trunfos
mundanos. Se um deles no alcana, como Warhol, seu objetivo determinado, talvez
por no possuir o domnio do processo. (CAUQUELIN 2005:117). Pode-se afirmar
que a arte contempornea tem sua imagem inserida numa realidade de segundo grau,
que substitui o real e objetivo por uma vivncia de projees, possibilidades e meios
possibilitadores. A obra deixa de ser o principal na arte.
11 Refiro-me polmica declarao de Warhol: comecei minha carreira como artista comercial e quero
termina-la como business-artist (...) Eu queria ser um homem de negcios da arte ou um artista-homem de negcios (...) Ganhar dinheiro uma arte, trabalhar uma arte e fazer bons negcios a melhor das Artes Warhol, Andy in The Philosophy of Andy Warhol: (From A to B and Back Again) (Paperback) Harcourt , 1977)
-
37
Os inmeros desdobramentos da arte nesse perodo trouxeram importantes
contribuies para a transformao do sistema de representao em sistema de imagens,
que invadiram, desde os anos de 1960, a vida cotidiana da sociedade. Os artistas da pop
art tinham como referncia a linguagem da publicidade que, depois de introduzida no
meio das artes, nunca mais deixou de ser dominante. A arte assume a influncia da
publicidade e de suas imagens da mdia - efmeras e instantneas tomadas como
mercadorias e que visam produo de signos finalmente mercantis -, que se colocam
como agentes dominantes na constituio da visualidade contempornea.
A construo destas imagens ocorre a partir do sistema dominado pela
circulao de capital, e sugere a organizao de uma indstria de produo especfica a
estas, que tem como agentes de poder os chamados criadores diretos ou produtores
culturais. promovida uma espcie de criao ressemantizada mercadologicamente das
formas estticas em circulao dedicadas s massas (ou ao cliente), o que causa em
efeito ampliado no contexto da vida cultural: a redefinio da visualidade que se cria
cotidianamente nas grandes cidades.
Por sua vez, a atuao do produtor cultural ps-moderno, que utiliza meios de
comunicao como ferramentas estratgicas na divulgao de suas idias artsticas,
influi diretamente no delineamento do perfil do artista contemporneo.
A partir de seu primeiro momento de autonomia, quando houve a constituio da
burguesia transforma o estatuto da obra aos poucos em produto, o meio da arte vem
elegendo, ainda que mudanas e autonomias tenham ocorrido, um novo mandatrio para
suas aes, o que vem a ser o mercado. Isto representa um retorno s tutelas, que jamais
abandonaram a razo econmico-social, interesses base de instncias de poder
financeiro e comercial. Hoje, aliada ao mercado atuante sobre todas as formas de
-
38
produo de bens e de elevao de poder, a rede de comunicao cumpre o papel de dar
visibilidade (poder social) atravs da concesso ou no da circulao da mercadoria, ou
seja, do produto-obra ou do personagem-artista veiculado. Pode-se dizer que a rede de
informaes seja o prprio circuito12 a servio do mercado: universos sutilmente
distintos, porm dificilmente dissociveis.
Instala-se gravemente um problema de ordem de escala, que torna monstruoso o
poder do mercado, e se alia ao poder de circulao de imagens. Por sua vez, tais
imagens interferem no s na resultante da produo artstica, como tambm no prprio
imaginrio, ou na formao visual de uma gerao. Como conseqncia de um sistema
regido pelo mercado, os produtores so consagrados de forma irregular, ou seja, a
consagrao perpetrada por instncias desigualmente legtimas (pblico estranho ao
corpo de produtores) que instituem relaes objetivas entre produtores e instncias
capazes de exercer as etapas de consagrao seja pela legitimao simblica ou pelo
princpio de cooptao. Atualmente, dividida entre instituies diferentes, as funes de
reproduo e legitimao da arte, tornam-se adaptveis s regras do sistema, que busca
cooptar iniciativas, muitas vezes com sucesso.
Sendo assim, ao fazer referncia realidade contempornea Cauquelin (2005),
afirma que as instituies - museus e centros culturais - teriam por funo designar para
o pblico o que arte contempornea, ou seja, agrupar informaes e atuar como
legitimadoras conscientes. Para tanto, os conservadores e diretores de instituies tm a
vantagem de promover obras sem precisar lidar, a princpio, com meandros do mercado.
Desta forma, no mais caberia crtica de arte figura influente desde o modernismo -
assegurar a articulao entre obra e pblico, j que se v acompanhada nesta funo por
12 Trato o circuito de arte como o pequeno universo no qual esto inseridos artistas, mediadores e
consumidores de arte, e dentro do qual circulam reflexes, decises e as prprias obras como produto.
-
39
uma profuso de profissionais da arte, alm daqueles a servio da comunicao e da
publicidade, o que se torna apenas uma pea entre outras no mecanismo de apresentao
de obras e artistas.
A universidade, por sua vez, retomada funo primordial de instituio
formadora, assume-se como instituio de legitimao. No Brasil, isto se d atravs dos
cursos de ps-graduao que promovem, alm da reflexo, a produo artstica dentro
da universidade e a apresentao de obras e artistas ao mercado. Segundo Lontra
(2005)13, o que hoje salva a arte contempornea, ou o que d a ela seu passaporte de
existncia (...) a capacidade de engendrar idias (...) de provocar situaes, de
reorganizar, reclassificar e compreender o mundo (LONTRA, 2005). Neste mbito,
discusses acadmicas tericas se mostram bastante enriquecedoras, produo de arte,
o que ser discutido adiante
Para Cauquelin (2005), o sistema da arte se apresenta em um chamado estado
contemporneo, que se caracteriza por ser produto de uma alterao de estrutura de tal
ordem que no se podem mais julgar nem as obras nem a produo de acordo com o
antigo sistema (CAUQUELIN, 2005:27). Sobre os conceitos fundamentalmente
tradicionais da arte, afirma:
essa constelao de opinies feita de elementos heterclitos, herdada em parte das teorias do sculo XVIII (Kant, Hegel e o Romantismo) em parte do sculo XX (a crtica social e a arte para todos), esta solidamente enraizada e forma uma tela, uma mscara atravs da qual tentamos apreender em vo a contemporaneidade (CAUQUELIN, 2005: 28).
13 Crtico de arte e curador, esteve frente da Escola Parque Laje no RJ, foi jri do SNAP, implantou o
MAM de Braslia, foi curador do MAM-Rio e implantou e curou o MAMAM. Entrevista concedida em dezembro de 2005 no Rio de Janeiro.
-
40
E completa: avaliar a arte segundo critrios em atividade h somente duas
dcadas no compreender mais nada do que esta acontecendo (CAUQUELIN,
1992:41).
-
41
3. PERSONAGENS E PRODUTOS
3.1 - Arte isso
histrico o fato da produo artstica se direcionar ao salo. Isto ocasionou
momentos cruciais para o desenvolvimento das artes ocorressem no mbito destes
eventos. Para Thierry De Duve (2000) o museu, os sales do sculo 19 e o Palais de
Beux Arts em Bruxelas so [foram] somente templos de poder artstico... (DE DUVE,
2000:42) e, iniciativa de Manet ao submeter Cristo Morto ao Salo de Paris, em
1864, atesta que este j percebia que um dia os museus se transformariam naquilo que
os sales eram: um espao aberto a todos, absorvido pela indstria de lazer, um
divertimento especializado em espiritualidade (DE DUVE, 2000:42).
Pode-se confirmar tal expectativa ao observar a atual insero das Bienais e
grandes mostras, como a Documenta de Kassel, substitutas reais dos sales num terceiro
momento de mercado do espetculo. Porm, os sales, no formato tradicional,
judicativo e no espetacular contraditoriamente fazem ainda parte do universo da arte no
Brasil.
De Duve (2000:19) relata como o ltimo Salo da Academie des Beaux-Arts, em
1880, j representava o fiasco total da instituio salo14. Com o salo extinto, criou-
se a Sociedade dos Artistas Franceses, que demonstrava o descontentamento dos artistas
perante a arbitrariedade de uma nica instituio autorizada a delegar patentes de
14 Neste, o jri foi desafiado pela maior parte dos artistas envolvidos e, deparando-se com a grita,
absolveu-se de suas responsabilidades e aceitou cerca de 7.289 inscritos. O diretor em gesto completa tal ao alocando os piores artistas nos melhores lugares, e ridiculariza novamente o jri como instituio de poder legitimador. O efeito desta crtica descontrolada e do descontentamento pblico, alm de uma perda de quase 120 mil dlares, fez com que, em 1881, Jules Ferri decidisse que o governo francs no mais estaria envolvido com os Sales.
-
42
legitimidade aos que aspirassem ao ttulo de artista profissional. Cria-se tambm neste
momento o Salo dos Independentes. Motes contra o poderio manipulado pelos sales e
seus representantes possibilitaram importantes passos na Histria da Arte. Tais
iniciativas trazem consigo inevitveis reorganizaes e recolocaes de funes dos
personagens atuantes no campo das artes.
A impossibilidade de recusa diante do urinol Fonte de Marcel Duchamp sob o
nome de Richard Mutt, fez com que se apresentasse ao pblico, em Nova Iorque, em
1912, um objeto de arte que viria a transformar o conceito de arte representacional
para arte presentativa. De Duve (2000) atribui a estratgia de Duchamp, ao submeter
sua obra ao Salo dos Independentes, antecipada percepo pelo artista de uma
espcie de academizao tambm destes sales15, seja na cooptao de tal iniciativa
pelo sistema, ou em sua sistematizao.
Duchamp instaura uma nova atitude frente arte a partir da maneira com que
posiciona seu trabalho em relao ao regime da arte da poca, j que sua produo e
ao culminam no apagamento da obra como entidade e no realce de seu contedo, de
forma que este se baste afirmao de legitimidade do objeto apresentado como arte.
Colocando as problemticas qualquer coisa pode ser arte, qualquer um pode ser
artista e, devolvendo a arte a todos, Duchamp retira conceitualmente - por apresentar
tal novidade impassvel no momento de manipulao ou catalogao - qualquer valor do
monoplio dos jris de seleo, e desde ento a todos cabe a afirmativa: isto arte ou
isto no arte16.
Segundo Venncio Filho (1986), instaura-se, a partir da, a suspeita na arte, que
prospera na contemporaneidade, ainda que com alguns ajustes, dos quais trataremos
15 Duchamp havia sido rejeitado, no salo dos Independentes, em Paris, em 1912, com seu quarto cubista.
16 O que, segundo De Duve (2003), Mallarm j havia, em 1874, percebido, quando escreve em defesa de
Manet no momento em que o Salo rejeitou duas de suas telas.
-
43
adiante. O autor coloca o ready-made em posio de limite da arte, mais tarde
exaustivamente explorado pelos artistas contemporneos: alm do ready-made ou tudo
se transforma em arte ou a arte desaparece (FILHO, 1986:71).
A questo do que vem ou no a ser arte constante na contemporaneidade,
frente a uma produo que se apresenta de infinitas maneiras e que permite o
julgamento do pblico. Desta forma, a arte requer uma mediao que a apresente mais
inteligivelmente. De Duve (2000) aponta Alfred Stieglitz como o primeiro grande
presenter, quando publica Fonte, de Duchamp, numa edio de The Blind Man. De
outra maneira, talvez a obra no causasse tamanha gravidade na arte e em sua histria17.
A representao do objeto de arte legitimou-se em primeira instncia e consagrou-o
levando-o posteridade.
A partir da muitas vezes o artista assumiu a posio de presenter e, neste
sentido, como cone-exemplo de posicionamento do artista contemporneo, De Duve
elege Marcel Broodtraers, que atestou que seu sucesso como artista dependeria de seu
sucesso comercial. Broodthaers define a forma como a arte passa nomeadamente a
estratgia, recheada de insinceridade.
Desde que o sucesso de Duchamp mostrou que qualquer coisa e tudo poderia ser arte desde que fosse reconhecido como tal por uma instituio artstica, que fique proclamado que os artistas que venham depois de Duchamp agora no precisam ser mestres de arte alguma que no a da estratgia, habilitando-os a penetrar a referida instituio. (Broodthaers, DATA, apud, DE DUVE, 2000:30).
Desta maneira, a cooptao do artista pelo mundo da arte passa a participar do
processo de produo artstica, e a dialogar com este, que opta irrevogavelmente pela
17 Duchamp j sabia da necessidade de um presenter para qualquer destes presentational devices ou
obras-, j que a autoridade urgia pelo carter sui generis mesmo para um trabalho auto-suficiente. Stieglitz tinha autoridade perante o circuito de arte - como galerista e fotgrafo - para avaliar, ou dar o aval obra como tal.
-
44
concesso ao mundo institucionalizado que dita de forma cnica e impensada que
arte aquilo que est no museu.
De Duve (2003) refere-se a uma concepo da arte e seu meio como ps-
duchampianos, e lembra que a inscrio Isso no um charuto (Ceci nest pas une
pipe), de Ren Magritte, em 1928, j declarara a obra de arte nomeadamente uma
representao que no faz parte do real e sustenta a discusso de arte como idia,
reduzindo a representao apresentao e sancionando ao objeto o ttulo Isso
Arte18.
Da combinao do mundo da arte ps-duchampiano (DE DUVE, 2000:36) e
da anti-autoridade proposta por Magritte, afirmou-se para a maioria das faces avant-
gardistas de 1970 o significado que o trabalho de arte no mais teria relao com
emoo esttica ou qualidade, mas com reflexo. De Duve (2000) entende tais
modificaes sociais e no afetivas em relao aos trabalhos artsticos, de forma que da
assero este quadro bom passa-se afirmao ou negao: isto (no) arte.
Quem sentencia oficialmente tal sano o presenter, o mediador das artes, que se
mune de autoridade institucional para tanto.
Nada verdadeiramente fundamental mudou entre os Sales na poca de Manet e os sales contemporneos que emergiram nos tempos dos popstars, das Documentas, de Veneza e das outras Bienais, e das feiras de arte (...) com exceo de que (...) aps Duchamp, a frase Isso arte tomou uma fora to intimidadora que tornou-se virtualmente indelvel19 (De DUVE, 2000:33).
18 Broodthaers trabalhou com inscries do tipo Isso no uma obra de arte.
19 Nothing truly fundamental has changed between the Salon in the days of Manet and the contemporary
salons which emerged in the popstar years, the Documentas, the Venice and others Biennales, and the art fairs here, there and everywhere this whole spectacular absorption of art into the leisure industry and the marketing of spirituality. Nothings changed except that along came Duchamp, and that after Duchamp, the sentence This is art took on such intimidating force that its become virtually indelible. Traduo da autora.
-
45
Ronaldo Brito considera razovel para a arte hoje a questo Arte isto?, ao
invs do lugar-comum Isto arte? (BRITO, 1992, apud BASBAUM, 2001:207). Esta
proposta expande ainda mais horizontes conceituais ao re-posicionar na atualidade a
arte frente a olhos e mentes, que j secretamente lanam a questo, j h algum tempo
se posicionam com olhos, braos e ouvidos atentos a re-alocar tambm os conceitos e
certezas calcificados pela arte moderna.
Para De Duve (2000), Broodthaers fora o nico de sua gerao de artistas que
entendeu o sentido, trgico para o verdadeiro artista, de arte como estratgia. O autor
define o fazer artstico como algo que se tornara uma espcie de jogo de guerra, jogado
exclusivamente entre os artistas, donos de galerias e curadores de arte contempornea,
com o pblico margem (DE DUVE, 2000:34). Desta reao emerge, no meio das
artes dos anos de 1960, a figura que se mantm na contemporaneidade: um pouco
organizador, um pouco artista, vezes dono de galeria e comerciante, sempre um
promotor de novas tendncias.
O domnio das decises, quanto ao estatuto do objeto de arte e do artista, ento
compartilhado entre curadores de exposies, diretores de museus e artistas. Todos estes
na condio de presenters e toda a distribuio de papis dentro dos domnios da arte
precisou ser reconsiderada, o que passa inevitavelmente pelos papis das instituies,
mercado e mdia (ento museu, galeria e salo). Com o abandono dos movimentos de
vanguarda e do romantismo da figura do artista, produtores, intermedirios, e
consumidores no necessariamente se distinguem, podendo-se desempenhar papis
simultneos. Os curadores passam a assumir o lugar dos jris de salo do sculo 19,
diretores de museus agem maneira de Duchamp como artista, e o artista atua como o
leigo outrora colocado no jri por Duchamp (De Duve, 2000).
-
46
3.2 - A obra (e o espectador)
A crise da arte, instalada desde que a arte moderna veio questionando e
desconstruindo os conceitos tradicionais da arte, resultou em processos de
transformao que a desfiguraram ininterruptamente, negando seus preceitos
tradicionais, durante um longo perodo, desde o final do sculo XIX, fechado com a
produo de Duchamp. A partir do momento em que o valor da obra deserta o objeto
pra estar no lugar e no tempo apresentando a ps-modernidade arte e antecipando
questes da arte contempornea -, os aspectos da arte apresentam alteraes profundas
em seu carter. A ampla alterao do carter da arte institudo pelo uso de novos
meios, que oferecem novos aparatos e ferramentais, constitui-se sobretudo em fontes
de desafios para os artistas, que vm refletir acerca de seus significados e
especificidades. Algumas possibilidades cruciais so colocadas para a arte a partir
destes, como a de descobrir-se numa obra nveis diferentes de significado que se
adequem ao espectador.
A relao de proposio atravs da obra inaugurada por Duchamp com os ready-
mades, coloca a arte e seus valores em questo, propondo ao observador algo que est
alm daquele objeto, do que ele representa, trabalhando com o que ele pode significar.
A potncia de existncia, caracterstica-germe20 da contemporaneidade, se revela nas
obras que propem ao observador uma reflexo. So nada mais que uma potncia a ser
completada pelo que observa, de maneiras mltiplas, mas que atestam sua existncia e
relevncia pelo lugar que ocupam.
20 Acredito que o estatuto de potncia, mais que o virtual, esteja se sobrepondo vivncia ou realidade
na sociedade contempornea.
-
47
Na contemporaneidade, aps mais de um sculo de buscas avant-gardes, resta a
dvida como antdoto para a falta de f (DE DUVE, 2000:74), que chama questo
certezas artsticas relacionadas a estilo, tecnologia, conveno, e ao direito da arte
existncia aps ter resistido em luta pela sobrevivncia da tradio por meio de sua
destruio (DE DUVE, 2000: 26). Porm, aps ter-se negado seus preceitos, resta a
certeza de que se pode fazer arte de qualquer coisa, e assim se instaura a suspeita: a
dvida tem to eficientemente se resguardado frente perda da f que tornou-se uma
nova crena. (DE DUVE, 2000:49) Pode-se afirmar que tal crena na dvida tenha se
tornado inevitvel uma vez que quando vemos a obra dita arte contempornea,
estamos vendo na verdadeira arte contempornea em seu conjunto. Ela mesma se
apresenta em seu processo de produo (CAUQUELIN, 2005: 72).
O objeto artstico contemporneo resulta de uma pesquisa especializada para
interrogar a prpria natureza da arte, e a obra de arte aquilo que reconhecido como
manifestao de um saber, para o observador um desafio imprevisvel com regras sendo
inventadas a todo o momento, e deixando deriva quaisquer possibilidades de se
estabelecer definies certas.
Como todo trabalho cultural, a obra de arte requer um mnimo de compromisso
com uma determinada forma ou sistema de saber e torna baldia a anlise debruada na
incerteza de uma definio de arte, j que a arte contempornea prope mais problemas
do que solues. Recusando a contemplao passiva, esta provoca e causa a relao de
desconfiana e tenso de que fala De Duve (2000), o que leva produtores e profissionais
a uma busca racional pela explicao deste cincia em outras cincias.
No entanto, Danto (2000) afirma que, recentemente, comeou-se a sentir que os
ltimos 25 anos de enorme produtividade experimental, sem direo narrativa no campo
-
48
das artes visuais, estabilizaram-se como norma, a partir do momento em que o
invlucro [da filosofia na arte iniciada por Kosuth] fora rompido (DANTO 2000:18).
A criao, liberta de peso histrico, filsofico, de maneira esttica ou finalidade, passa a
ser a marca da arte contempornea (...) no existe essa coisa de estilo contemporneo
(DANTO 2000:16). Isso possvel porque a arte contempornea manifesta uma
conscincia de uma histria da arte, mas no a leva adiante (HANS BELTING, 1994,
apud DANTO, 2000:6), mas utiliza a arte do passado como ferramenta e o museu como
espao, possveis a quaisquer usos que o artista queira dar.
A reproduo e a circulao das obras de arte j contextualizadas causam
inevitveis transformaes no carter da obra e em sua valorao. O prenncio de
Benjamin (1985) a respeito da perda de aspectos tradicionalmente inerentes obra de
arte21, tambm antecipa a recente substituio do termo obra de arte nos meios de
discusso artstica. Refere-se a um objeto que, com o avanar dos anos e a mudana de
referenciais, abandona e substitui valores. Assim, modificam-se tambm os termos
aplicados produo artstica, de forma que, na contemporaneidade, no h significados
fechados que possam ser codificados pela designao de um nome e, portanto, a fixao
de conceitos passa a ser uma impossibilidade.
A reprodutibilidade e a circulao, em grande escala, atuam diretamente na
superao dos valores aurticos da obra de arte. A valorao do objeto de arte no mais
conta com a unicidade da obra, e o termo obra de arte, desfeita esta aura, que rodeou
os objetos artsticos por sculos, acaba por cair em desuso e ser substitudo por
trabalho artstico22.
21 Aura, unicidade, valor absoluto, critrios estticos, autonomia, criatividade, genialidade, valor eterno e
o secreto. 22
Tambm influenciaram esta mudana de configurao, no meio artstico, que ocorreram e ocorrem, como a profissionalizao do artista e do meio (mediadores).
-
49
Chega-se a questionar terica, crtica, ou praticamente, atravs da produo de
obras ou trabalhos artsticos - se existiria hoje o chamado fazer artstico. Segundo
Tadeu Chiarelli (2005)23, o artista contemporneo (...) no parte de pressupostos, ele
vai e exerce sua ao no mundo (...) e o espectador, o curador e o crtico tambm so
indivduos que esto dentro desse mesmo universo. O que vai existir a tentativa de
uma ponte entre esses vrios agentes (CHIARELLI, 2005). Tal colocao explicita
como o processo na contemporaneidade torna-se parte integrante da obra, negando
qualquer valor de obra pronta e compartilhando o processo numa extenso deste
mediao e recepo da arte.
No que tange legitimao, o valor de exposio afasta, em todos os aspectos, o
valor de culto da obra. A exposio passa a ser a marca moderna de autenticidade das
obras