Escritos. Contos e Crônicas. - Jacinto Luigi de Morais Nogueira

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Política, vida, filosofia... Considerações de um brasileiro provavelmente real...Contos e Crônicas. Os contos compreendem uma seleção de algumas de minhas reflexões publicadas virtualmente pelo Jornal Ecos, para o qual contribuí no período que se iniciou em novembro de 2005 e findou em fevereiro de 2007.

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ESCRITOSContos e crônicas

Jacinto Luigi de Morais Nogueira

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Título: Escritos

Autor: Jacinto Luigi de Morais Nogueira

Dedicatória

Dedico à Maria Senhora da Silva.

Apresentação

Os contos compreendem uma seleção de algumas de minhas reflexões publicadas virtualmente pelo Jornal Ecos, para o qual contribuí no período que se iniciou em novembro de 2005 e findou em fevereiro de 2007.

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Índice

Resta muito 4

Novos Mundos 6

Existir é um entardecer 10

Agora não importa 13

Feliz natal 18

Um restaurante, talvez barzinho 23

Para quem trabalhamos? 25

Guerreira de alma 28

Alguns milhões de anos 30

O tempo era de chuva 31

A baleia 33

Devaneio secular 35

Elegante solidariedade 39

Extremo da vida 42

Despedida 44

Divagações 46

A revolta do pão 48

Oito de dezembro de mil trezentos e seis 52

Valdir e o pesadelo da humanidade 56

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Resta Muito

Sempre procurou se enquadrar nas regras. E conseguia com perfeição.

Era modelo e, por isso, sentia-se autorizado a julgar, e por

vezes condenar, quem não se adequasse. Então por quê? Seu tempo não foi suficiente para alcançar suas ambições. Desagrada percebê-lo. Imagino quão enorme no seu lugar. Sem tempo para mudar ou para demonstrar. Não sei descrever um sorriso simultâneo a um choro. Acredito que estava mais para um sorriso triste do que para um choro alegre. Na vida tem dessas coisas.

Em prantos lamentava os muitos momentos perdidos em sua vida. A angústia respiratória já não o permitia falar muito e sua expressão denunciava todo o seu pavor diante do avassalador efeito do tempo. Via-se preso ao incapaz que era. Incapaz de se transformar. Incapaz de reverter todas as suas ações e também omissões. Não podia mudar.

Não nos era exigido fina sensibilidade para concluirmos que o questionamento daquele homem não era mais do que um simples porquê. Tentávamos deixá-lo o mais confortável possível. Não sabíamos, no entanto, que o conforto que podíamos proporcionar-lhe já não o interessava mais. Buscava conforto existencial e isto nenhum mortal poderia oferecer-lhe. Agora não mais. Não podia mudar.

Buscava respostas e estas também não tínhamos. Tínhamos solidariedade e talvez nem soubéssemos demonstrar. Tínhamos! Nessas horas há quem duvide de que solidariedade tenha bom valor.

E sua crença? Aquela religião verde que sempre seguiu já não podia aquietar seu desespero. Sabia que seus ídolos destruir-se-iam incapazes como ele.

Solicitou com convicção um lápis e um papel, os quais não tardamos a providenciar. E, com muito esforço, reconhecemos naquelas letras tremidas algo como: não sei me perdoar.

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Imaginei, por um bom tempo de minha vida, o porquê daquelas palavras e mudei a atitude de minha luta pela sobrevivência ao compreendê-las algumas. Sei que era tarde para ele pensar aquilo, talvez nem estivesse pensando, talvez soubesse que não era mais a hora. Sei que deixou sua mensagem. Pra mim deixou aquela. Nem sei para os outros. Para mim deixou!

E há muitas perguntas. E há infinitas respostas. E muitos tempos se repetirão. E muitas vidas se assemelharão. E os mistérios de cada existir? Restam muitos. Um deles é este: por que toda humildade se trai quando doemos? Quantas dores infiéis. Quantas dores inventadas. Quantas dores corrompidas. Que traição dilacerante, agora...

E muitas humanidades existiram para sonhos inundarem.

E naquele pitoresco entardecer a humanidade mais uma vez aconteceu.

Respirou fundo, olhou calmamente para cada um de nós, sorriu um sorriso involuntário e inocente, fechou os olhos obrigatoriamente e se foi inevitavelmente.

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Novos Mundos

Já trabalhavam há incessantes quarenta minutos e o suor escorria na face de Adalberto, que, ao meu ver, era o mais entusiasmado com aquela situação. Não precisava muito esforço para transpirar, uma vez que trajavam paletós finos e caros, os melhores do país, e que apesar de serem extremamente confortáveis e elegantes, impediam o adequado resfriamento do corpo. Iniciaram as atividades daquele dia 29 por volta de duas horas da madrugada e, em três, certamente não demorariam muito tempo para concluir. Adalberto, o mais eufórico, e por isso o mais cansado, ofegante, jogou a pá por uns instantes no chão e retirou suas vestes superiores em busca de alívio momentâneo. Era uma brisa suave e o cheirinho de mato verde invadia cada lar da cidade de Novos Mundos. A maior capital do país dormia em paz.

Marcus, o mais jovem, talvez o mais comedido, comentou: - Senhores, faz-se necessário darmos cabo disto o mais

breve possível. Em meio ao clima em que se encontra Novos Mundos e aos ânimos que alguns cidadãos têm manifestado, a última coisa de que precisamos é mais um escândalo.

- É improvável tornar provável o improvável, prezado Marcus.

- Retrucou o eloquente Adalberto, com ar de sabedoria. Apreciava repetir essas palavras em pitorescos momentos, valendo-se de seu profundo conhecimento das massas. E completou: - Multidão sempre reagirá, se o fizer, como multidão. Ou seja, propagará as ideias que os mais inteligentes criarem com um mínimo de sentido exigido pelas suas sinapses.

Adalberto sempre foi exímio com as leis e logo chegara ao

auge de sua carreira de jurista. Resignado, Marcus confirmou. “Sei que são assim,”

praguejava o homem grisalho e robusto, “jamais poderão confrontar seus improváveis, uma vez que estão muito ocupados enfrentando seus semelhantes. Distraem-se com pessoas tão pobres quanto elas. Uns

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assaltam os outros e até aniquilam-se. E o melhor de tudo, humilham-se. São lentos o suficiente para se darem conta do que estão vivendo, e no que depender de mim, jamais terão tempo e saciedade para questionarem como vivem.” Esbravejava o democrata. Pensativo, considerou. “Há, porém, excelentíssimo Adalberto, inimigos, que não nos venceram e que podem usar o povo e as guardas para nos tirarem privilégios e, esses sim, são perigosos. Concordas?”

Alex Berlouro estava cada vez mais impaciente com aquele

diálogo infrutífero e que escutava repetidas vezes em reuniões particulares. Era comerciante por natureza e descobrira, ao ganhar muito dinheiro, a melhor maneira de manter sua fortuna. Tornou-se deputado. Era exímio em criar leis que protegessem seu patrimônio e descobriu que quase todos os seus colegas e os grandes empreendedores, não mais que vinte por cento da população, gostavam de suas ideias. De repente ele grita:

- Parem já com esta discussão desnecessária, até parece que

estão defendendo seu pão de cada dia. Trabalhemos com afinco agora, que só assim estaremos em nossos lares antes do amanhecer, antes que nossos filhos e mulheres despertem e sintam nossa falta.

Zaíro acordava cedo para caminhar diariamente, durante

quatro horas, até o seu local de trabalho. Inevitavelmente escutou, ao caminhar pela vereda, sons de pás retirando terra e jogando-a por sobre um morro que já crescia por mais de metro. Em silêncio e buscando abrigo, aproximou-se o mais perto possível daquele palco de companheirismo e intenso labor. Como a única iluminação de que dispunha era a lanterna em posse do grupo, ficou difícil de identificar de pronto as três pessoas. Desconfiava apenas de que já escutara suas vozes. Não conseguia, no entanto, ligá-las a uma imagem em sua mente. Selecionava imagens, inconscientemente, que pudessem estar naquele local, naquele momento, trabalhando daquela forma. Conceberia alguém tão pobre e ignorante, como ele, que necessitasse se submeter àquilo. Era sua lógica. Neste momento, conseguiu perceber que eram homens, que um deles encontrava-se despido da cintura para cima e que havia uma caminhoneta a uns quinze metros de onde cavavam.

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Berlouro já estava desfrutando de sua sétima década de

vida, quinto mandato no legislativo, possuidor da terceira fortuna do país, tinha indústrias, ações na bolsa, faculdades particulares e postos de gasolina, era um grande investidor e usava meios culturalmente normais para permanecer em ascensão. Como sendo o mais velho e mais vivido dos presentes, desferiu as palavras finais:

- A cultura foi um grande presente dado a nós e de onde

poucos sábios podem tirar proveito. Ela já faz a grande parte do trabalho e é gratuita. Sem precisarmos usar uma arma sequer ou mesmo grades de ferro. Ela é a própria algema. E mais, basta que escolhamos as pessoas certas para nos protegerem. Precisamos apenas fazê-los acreditar que têm algum poder. Pegue-se, por exemplo, alguns pobres e carentes. Damos-lhe o título de serviço de proteção e irão trabalhar eternamente ao nosso favor contra pessoas que sofrem como eles. E basta que escolhamos alguns cidadãos com autoestima inferior e lhes atribuamos patentes. Isso os torna arrogantes o suficiente para pisarem a cabeça de muitos que, iguais, não tiveram a chance de serem escolhidos. E aqueles humilhados, um dia, assim que sejam escolhidos, agirão com a mesma precisão e previsão dos que os submeteram. Isso é a maravilha da cultura. Pessoas humilhadas e com autoestima massacrada são os melhores serviçais de que dispomos, por isso ainda as mantemos aos montes.

Durante as palavras, deu-se conta de que tinha vindo de um

berço frágil e de penúria. Logo sua personalidade egoísta o trouxe à realidade. Concluiu que era um vencedor e que merecia a posição que conquistara. Era um homem diferenciado.

E, após tênue pausa, continuou. “Ilustríssimos amigos,

pessoas nos escolhem pelo que somos, e o melhor que devemos fazer é oferecer-lhes o que vai satisfazê-las, mantendo-as na condição em que estão. Gente assim se contenta com muito pouco e é isso que sempre iremos oferecer. E mais: alguns pobres e humilhados também humilham e enganam. E alguns são covardes e desonestos. Sei que há milionários envolvidos em causas sociais. Lutando pela decência de uma vida digna. Há políticos humanos. Existem pessoas, em qualquer lugar

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dispostas a perdoar, ajudar, amar e ensinar. O mundo não é para quem se preocupa com os outros, essa é a melhor mensagem de nossa cultura. Nascemos vendo e ouvindo isso a cada momento. Por que lutar contra um mundo como este, compelido por instintos ensinados sutilmente, e por isso profundamente arraigados e sólidos? Deixo para a humanidade essa tarefa de modificar sua essência. Obviamente, no que depender de mim, ajudá-la-ei nessa caminhada sempre que puder.” Sorriu.

E, cansado de falar, acreditando ter encerrado aquele

assunto inapropriado para o dia, orgulhoso por seu tão atual discurso, continuou cavando os dois metros de chão a que se propuseram na semana anterior.

O miserável homem, surpreso, não conseguia compreender o

que faziam juntos seus ídolos naquele escuro e distante local. Muito menos podia intuir para que cavavam tamanho buraco. Se quisessem poderiam pagar pelo serviço e nem mesmo estariam presentes. Sua perspicácia limitava-se a avaliar a capacidade de polidos homens poderem estar se submetendo a tão desprestigiado serviço. Escutava mal de onde estava e alegrava-se pelas palavras bonitas do nobre deputado.

Então, ao findar o trabalho, os poderosos foram até a

caminhoneta e de lá retiraram um homem encapuzado que se debatia e gritava desesperadamente por socorro. Arrastaram-me até o abismo. Empurraram-me e, ainda vivo, enterraram-me. Sufocaram-me juntamente com tudo que eu representava.

O sol surgia. E neste esplendoroso dia, milhares de crianças

nasceram com inocência, adultos acordaram sem rancor, mulheres despertaram com esperança, adolescentes adormeceram alimentados com seus sonhos.

Zaíro foi preso como louco, torturado e acabou confessando

o homicídio. Morreu apedrejado pela população.

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Existir é um entardecer

Respirar, acordar, repetir e se acomodar, dentre outras ações inconscientes, caracterizavam o seu estilo de vida, por décadas a fio. Considerava-se privilegiada por sobreviver em uma sociedade que fervia por momentos de placidez. Afinal de contas, é mais fácil inventarmos o que somos. Leva menos impacto às pessoas que convivem com a gente, e assim teremos menos problemas para sermos aceitos. A necessidade de ser aceito é humana e natural, pois conviver é mudar e evoluir. E a maravilha da vida é a mudança, é crescer, e é impor metamorfoses.

Vida é força. Viver para chover. Existir é um entardecer.

Comover. Jamais questionaria a inconsistência dos seus hábitos, se a

vida, cedo ou tarde, não a submetesse à tão necessária crise que nos remete ao interior do que realmente somos. Civilizações desapareceram por optarem pelo caminho mais fácil. É preciso desconfiar sempre de tudo que é muito fácil. Vidas passam a não ter sentido, conquistas passam a ser obscuras; sucessos passam a ter ares de mediocridade; quaisquer esforços tornam-se ridículos.

Rachelzinha fora uma criança curiosa como todo pequenino

sabe ser. Engatinhava os caminhos que, um dia, conduzi-la-iam ao cotidiano de uma vida familiar. Sabia escutar o sabiá que sussurrava bom-dia e as cores levavam satisfação aos seus olhos. Sintonia. Harmonia de existir.

O tempo, no entanto, testemunhou mudanças diárias e sutis

na vida da garotinha descontraída. Conseguia, com maestria, adequar-se a tudo que exigiam. As crianças encontram-se, não nego, submetidas a exigências cada vez mais destituídas de bom-senso, do que é humano. Exigem-se, delas, características destrutivas aos olhos de qualquer pessoa lúcida. E exige-se com altivez e autoridade. Para ser aceita enquadrou-se nas medidas a ela impostas. Tornou-se uma mulher que falava rápido e muitas vezes era obrigada a atender aos apelos dos seus interlocutores para repetir o raciocínio. Fora treinada

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para os negócios e raciocinava com exatidão e rapidez admiráveis. Rachel não escapara das exigências de sua sociedade.

E o olhar aflito ocorreu. Acordava nalgumas noites banhada

em lágrimas. Sua essência, aquela mesma que determinara a ir pelo caminho mais fácil, sufocava. Sentia-se despovoada.

Certa manhã, ao acordar, teve a sensação de que algo estava

diferente, que durou o tempo suficiente para pensar em chuva e toda aquela harmonia trazida com sua purificação. E algo despertou sua atenção por um instante. E logo sua rotina arrastou-a para a vida com que estava acostumada. Trabalhou o dia inteiro com a entrega incondicional daqueles que são obstinados pelo intenso; e seu dia consumiu sua atenção e toda a dança de cada molécula de seu corpo. Naquele dia, no entanto, em algumas vezes, aquela sensação a invadia e logo se ia. Experimentava palpitações. Era verão e o calor agitava tudo que estivesse em movimento. No final da tarde, ao chegar perto de casa, sentiu soprar um vento frio que logo trouxe nuvens escuras e carregadas, que transformaram aquele final de tarde em um aconchegante e particular palco da natureza. E como que inevitavelmente, o som da chuva caiu. E ela simplesmente saiu de casa determinada, caminhou para a bela praça a sua frente, repleta de árvores frondosas de um singular pleno de graça, abriu seus braços ao erguê-los em saudação à vida num ato resignado de ousadia. Sentia uma ligação do seu ser com tudo que a cercava e parecia que seu corpo se confundia com o caos perfeito que vivia naquele lugar. De súbito, experimentou uma paz reconfortante em seu coração que a remeteu a um relaxamento onisciente, como o universo trazendo o calor de sua energia renovadora de cada amanhecer, depois de séculos de inquietações. Irradiava vida. Sentiu-se como se estivesse sob os primeiros raios de sol que se derramam por sobre o corpo e que, quando pequenina, envolviam-na. E, talvez como aqueles que estamos acostumados a ver, inúmeros raios se lançaram em sua direção de todos os cantos e se encontraram poucos centímetros acima dela, de onde se derramava sobre sua face uma luz que fluía por todo o seu corpo até o chão. O seu lindo sorriso confundiu-se com a força da bela mulher que é.

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O amor na vida da pequena Rachel prevaleceu. Viveu e prosperou. Viu netos e bisnetos engatinharem. Existiu.

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Agora não importa

De repente, numa quarta-feira, durante a exibição do antepenúltimo capítulo, surge aquela música com clima de notícia importante, e o apresentador do jornal se pronuncia. “Lamentamos informar que o último Capítulo da novela Mundo Azul desapareceu das dependências de nossa emissora de televisão; as autoridades foram informadas e iniciaram as investigações... Disponibilizamos um número 0800, mostrado na parte de baixo da sua tela, para quem puder dar alguma informação; outras notícias no jornal das...”.

Arnaldo, que estava confortavelmente deitado no sofá, pensou: “seria trágico se não fosse crônico”. Era a sua consideração preferida quando via notícias de escândalo na televisão. Novidade era o sequestro de um simples Capítulo. Ouvia frequentemente sobre crimes brutais, homicídios, fratricídios, estupros, CPI, incêndios e derrubadas de florestas inteiras, poluição de rios, nepotismo, sequestro relâmpago, mensalões, tsunamis, pistolagem, chantagem, aumento de impostos... Testemunhara, certa vez, até a violência seguida de morte de uma cadelinha de rua. Agora nada disso causava estranheza, exceto quando com alguém próximo. Sequestro do Capítulo, por ridículo que fosse, era a primeira vez que via. Levantou-se, e com ar pensativo foi à calçada contemplar o alvoroço. O murmúrio, constatava, era algo que se dissipava com o passar dos dias e, se mais três ou quatro casos como aquele ocorressem, já não seria comovente. “Seria trágico se não fosse crônico”, pensou novamente.

Arnaldo era reflexivo sobre o ambiente em que vivia, mas jamais se rebaixaria a ponto de falar alguma coisa. Nunca falava. Excelente observador. Escutava conspirações ocorrendo a quilômetros. Observava e esmiuçava todas as linhas de raciocínio de uma situação. Silenciar era sua postura. No máximo, uma respiração ofegante.

Na sala da TV, lugar onde a família tradicionalmente se reunia, encontravam-se um homem, figura longilínea, têmporas grisalhas, olhos encovados e atitude pacata; uma mulher de aspecto

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doméstico e ideias brilhantes; e os filhos, os gêmeos que brincavam com caixas de fósforos vazias, como carrinhos, obesos e felizes.

O homem levantou-se, informou aos filhos que era hora de dormir, delegando à mulher essa tarefa, e foi ao encontro do sábio Arnaldo. O exímio observador aproveitava para se certificar se choveria, como anunciado na previsão do tempo, procurando estrelas no céu. Arnaldo vê os tais pontos brilhantes e o vento sopra frio em sua face, o que o leva a intuir: “em princípio não choverá esta noite”. Entreolharam-se e como a cidade já aquietava, deixou o homem sozinho e entrou, em silêncio. Naquele dia, tomou uma decisão. Procurou todos que amava. Fez o possível para estar perto dos amigos e irmãos, com a família. Para ele cada segundo de convivência seria infinito. Faria o mesmo pelos próximos dois dias.

Vivia angustiado há oito meses e vinte dias.

- Quem diria que alguém, algum dia, pensaria em fazer tal coisa. - Comentou o homem, ao deitar, já com dificuldade para começar a rezar e adormecer.

- Não faço ideia, querido. O fato, contudo, vai levar reboliço ao lar de muita gente... Oh Deus, estava tão boa essa novela. - E a mulher cansada pedia, nas preces, saúde, paz, dinheirinho para quitar a energia, e, evidentemente, que encontrassem o criminoso!

A quinta-feira acorda bela, inquieta e ensolarada.

Cedo, na rádio, a pesquisa de opinião era sobre o pobre Capítulo. “Por quê?” E as respostas eram infinitas. Tinha gente comovida. “Ligue e dê sua opinião sobre... Concorra a um ferro de passar e...”.

A mulher liga a TV e se depara com uma entrevista com o chefe de polícia.

- O nosso esquadrão antissequestro está empenhado em desvendar... Mobilizamos inclusive o grupo de táticas... Por enquanto é o que podemos informar...

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- As estatísticas mostram que a insegurança é uma realidade e que os crimes têm aumentado em níveis surpreendentes, o que o senhor tem a dizer para a população sobre isso?

- Na verdade, temos um efetivo que vem combatendo a criminalidade; o que tem acontecido é pontual. Nossa equipe é exaustivamente treinada para situações como esta e age com discrição e educação. São casos únicos e certamente o combate ao crime está cada vez mais eficiente. Estamos controlando o tráfico e a corrupção. A segurança no país é equivalente a cidades de primeiro mundo, assim como os números de homicídios e assaltos; a população não precisa ficar alarmada com mais esse caso, que será resolvido e os sequestradores capturados...

Arnaldo, que já conhecia essa fala de cor, ressonava. Seus neurônios transcendiam: “por que a imutabilidade permanece? Por que tudo que há de ruim e vergonhoso ainda existe em escala crescente? O que faz a doença crônica?”. E sua própria genialidade considerava: “não há dúvida de que alguém se beneficie com tudo isso. Quem?”; ou “se isso é considerado um problema sério, e se ninguém tira proveito disso, seria uma tarefa sobre-humana resolver tal problema!”; “talvez uma civilização que viva com estatísticas não saiba o valor de uma vida...”. Devaneava.

E a cidade se agitou; os estados entraram em ebulição e o País parou. E, se o país pára, a estatística assusta. Se a estatística assusta, a economia torna-se pavorosa. Se o pavor surge, a bolsa cai. Se a bolsa cai, alguém se machuca.

- Interrompemos nossa programação para informar que a nação está mobilizada. Pessoas se uniram pela causa do Capítulo. Em todos os cantos do País ouvem-se gritos de apelo pela sua salvação. Hospitais funcionam lentamente para casos que não configuram emergência, filas quilométricas se formam; motoristas trancaram as principais vias de acesso aos portos, causando congestionamento entre as cidades; donos de carros decidiram locomover-se de bicicleta; agricultores e pecuaristas estão trabalhando no limiar inferior de

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suas capacidades; fiscais da alfândega se revezam em ritmo tartaruga, e a economia está estagnada...

Arnaldo, de sobressalto, com um frenesi invadindo suas entranhas, aproxima-se para ver o caos. Jamais vira reação semelhante no seu querido país em desenvolvimento. Vira em países pensantes como França e Inglaterra, mas nunca em países sonolentos e embriagados. Na sua nação, quando motoristas estavam insatisfeitos e se mobilizavam, o restante da população jamais despertaria para ajudar. Ao contrário, sempre atrapalhavam, inconformados e inflamados pelo noticiário, que buscava ajuda da massa para combater um possível abalo nos lucros dos grandes exportadores; agora a causa era nacional e o propósito comum. Assistir ao último Capítulo era questão de vida ou morte. Cataclismo.

Neste dia, sucederam pronunciamentos e especulações. A causa já atravessava as fronteiras nacionais; ajudas humanitárias eram cogitadas e até a disponibilidade de investigadores foi anunciada. Em suma, tudo transcorreu com ansiedade coletiva e até a passagem da meia-noite não se tinham pistas do verdadeiro autor da façanha. Hipóteses havia. Só.

Poder-se-ia perguntar qual o motivo de não haver uma cópia do trabalho. Indagar-se-ia, inclusive, por que não se filmavam outras cenas a tempo de exibi-las, na sexta-feira. Onde estaria a segurança do prédio quando da infração? E as filmagens dos corredores? O registro das entradas na portaria? Muito se podia questionar. As respostas, todavia, já existiam! Em verdade, as respostas já existiam antes mesmo das perguntas! Quem para mudá-las?

De repente, numa sexta-feira, durante o horário em que deveria estar sendo apresentado o último Capítulo da novela, surge clima de música importante. Ou seria aquela notícia com música de clima importante? Agora não importa! Apresentador do jornal visivelmente transtornado:

- Há noventa e sete dias, autoridades estão reunidas para decidir sobre o Asteróide 2018 10.0001 Zeta... Perdoem-nos... Todos já sentem o frio, inclusive eu... 240 quilômetros de diâmetro... 55

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minutos... Inversão do eixo da terra... Derretimento das calotas polares... Reservas naturais destruídas pelo homem... Evolução genética do homem insuficiente para seleção... Extinção?... Baratas e escorpiões?... Assistam agora ao último Capítulo da... Fiquem com Deus.

E o venerável Arnaldo, desinteressadamente, vira-se, balança a cauda de soslaio, lambe o pêlo farto e bem cuidado, grunhe baixinho e volta a dormir. Há muito sabia do porvir.

- Seria trágico se não fosse...

E o mundo gritou um grito surdo. O planeta tremeu. Quem viveu, viveu...

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Feliz natal

Madrugada. Nasce a belíssima e pequena Wangari; cabrito amarrado num canto da casa; chão de terra batida; mãe HIV positivo. Espreguiçando e chorosa, a garotinha dá boas-vindas na República do Quênia. E suga com determinação o colostro, nutritivo...

Três segundos depois, no distrito de Cachoeira do Boi, sertão do nordeste do Brasil, Maria Euvira, 43 anos, diabetes mellitus descontrolado, dá à luz o Francisco. Casa de taipa; chão também de terra batida; galinha chocando ovos, num dos cantos da casa; estábulo, parede com parede; fubá de milho na lata para o mingau. Doze irmãos dividem o arroz. Euvira, de pronto, colore o coto umbilical do filho com borra de café para cicatrizar e chamar a boa sorte...

Neste exato momento, no Afeganistão, vem ao mundo o garotinho Amir. Vigoroso e observador, curioso e desconcertado. Desconhecedor profundo da política e da guerra. Pais carinhosos celebram o seu nascimento. O pequenino respira o ar dos inocentes.

Mais quatro segundos e nasce Yasunari, na cidade de Yokohama, na ilha de Honshu, Japão. Choro vigoroso, tônus muscular excelente, frequência cardíaca de uma vencedora...

Algo mais que dois segundos, no Reino Unido, Anne, quinze anos, tabagista, trinta cigarros por dia, dá à luz, por cesárea, o jovem David, com olhos esbugalhados, aparência de rã, apático, com a pele recobrindo o que deveria ser a calota craniana. Os raios chegam aos seus olhos, mas não são levados ao cérebro. Os bracinhos acenam sua existência...

Simultaneamente à Anne, depois de adquirir, com sensível facilidade, a pílula do aborto, Sarah, 16 anos, na Califórnia, em meio a cólicas uterinas insuportáveis e sangramento vaginal profuso, expele, no caminho para o hospital, dentro do carro, com dezenove semanas de gestação, o derrotado Leopold. Vermelho e questionador, lança respiração suspirosa; olhar vago...

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O sétimo bebê nasce dois minutos após Wangari. Rio de Janeiro, capital, Brasil. Cabelinhos negros, moreninha, vivedora. Forte e possuidora de bom peso. Tamanho bom para média nacional; expectativa de vida de setenta anos. Sonhadora...

Manhã. É preciso ser mãe e ter sensibilidade divina para compreender a alegria de ter um filho. O amor transborda e a renúncia de tudo que poderia torná-la egoísta surge como um poder renovador. A natureza se harmoniza com a energia do nascimento e o universo adquire proporções caoticamente maiores. Boa parte das mulheres que geram e oferecem uma nova vida ao mundo se confundem com as estrelas, misturam-se com as galáxias, transbordam o ser. Felicidade.

Sarah, ao ver o filho inviável, angustia-se. Arrepende-se.

Adoraria voltar algumas horas antes do abortamento. Pensaria melhor. Não seria tão egoísta. Seria mais corajosa e redefiniria seus conceitos. Quem sabe até enfrentaria o mundo pela vida de Leopold. As confusões de sentimentos e reações orgânicas transformam aquela garota indecisa em uma mãe incompleta. Transformam aquela mãe incompleta em um ser vazio. Transformam o ser vazio em um universo humilhado. Um mundo repleto de culpa. Dor...

Cristina, em algum lugar do mundo, está extremamente cansada, exausta. Preocupada com a roupa que os meninos vão usar hoje, na ceia. A família inteira se reúne e faz aquela bagunça. Colocam os presentes embaixo da árvore de natal e perto da meia-noite, tradicionalmente, distribuem-nos. Cristina assumiu a responsabilidade, este ano, por levar o peru e dedicou muitas horas de seu dia aos segredos da boa culinária natalina. É uma verdadeira luta para levar Saulinho para o banho, enquanto Carininha brinca de esconde para não se pentear...

Início da tarde. O sétimo bebê, em fase de restituição das

energias, dormindo um sono reparador; experimentando sensações únicas, é acordado pelo pai. O pai, embriagado, irritado com o choro da moreninha, desempregado, violentado, discriminado, esbofeteia, bate,

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espanca, joga, agride com pauladas até a mocinha sonhadora parar de respirar. A mãe, apesar de gritos, apelos e desespero, não consegue evitar. Desamor.

Final da tarde. Wangari, após sensação de conforto pós-

mamada, ressona e é deixada em decúbito dorsal para dormir... Mãe não consegue acordá-la. Atonia. Apneia. Morte súbita. Gritos vindos do fundo da garganta. Cabrito se agita. Desolação. Sofrer.

Noite. Febre; mãos e boca arroxeados. Vômitos e desânimo

para mamar. Francisco já não quer parar de chorar. Olhar entreaberto. Não há consolo. A pele fica fria. A respiração mais rápida. Chiquinho fecha os olhos. Euvira sente o solavanco na espinha. Já não adianta mais correr. Pavor.

Sete graus na escala Richter; Yokohama; escombros; homenagem aos soterrados. O corpo de Yasunari desiste...

Cristina e peru prontos. A comida, maravilha. Crianças

banhadas e arrumadas. Roupa do marido passada. Saulo e Carininha esperam, impacientes, o pai. Sonham com os presentes que serão levados pelo Papai Noel...

Quase meia-noite. David, anencéfalo, percebe que não tem

neurônios suficientes para manter uma vida extra útero e resolve se despedir da mãe adolescente da maneira mais terna que existe: fecha os olhos e, tranquilamente, dorme um sono infinito.

No Afeganistão a vida de Amir é sumariamente trocada pelo território onde passará um oleoduto. Aquele garotinho, que nada aterrorizava, é vaporizado por um míssil chamado terror. Onde havia um lar, agora é ruína. Agora é vapor...

A bela família de Cristina se aconchega na grande sala, em

volta da formosa árvore para iniciar a cerimônia. Todos famintos, porém descontraídos. Cada um atento ao que vai dizer em breve. Raciocínio em busca de frases marcantes. Intuição para adivinhar o que cada primo vai ganhar... Sorriso. Alegria. Fraternidade.

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E, neste momento, surge, de súbito, diante de todos, um homem moreno, barba e olhos castanhos, relativamente alto e magro, cabelos no ombro, sorriso verdadeiro e cheio de graça. Coberto em manta branca e como que aguardando silêncio, o Homem sente o coração de cada um dos presentes na sala, como se fosse seu. Percebe-os individualmente. Estende suas mãos num gesto confiante, e todos os adultos, já atônitos e paralisados, veem cicatrizes, como que ferida pérfuro-contusa, em cada um de seus punhos. Aquele Homem, ainda ligado com todos, faz surgir, aos sentidos daquela família o nascimento de Wangari e de Amir; o vir ao mundo de Francisco, Yasunari e Leopold; o sonho do sétimo bebê e o aceno de David. Mostra, de uma maneira jamais vista, o sorriso da mãe de cada um daqueles viventes. Expõe, de ângulo nunca antes imaginado, a festa na mente de cada uma daquelas mães. A experiência é de uma intensidade tal que cada uma das testemunhas vivencia, como se fosse a própria consciência, o regozijo do existir. E tudo isso dura o tempo suficiente para que aquelas pessoas, sentadas na montanha, se deem conta de que o amor sempre existiu. Em relances a vida de cada uma daquelas mães é mesclada ao respirar da bela família. E todos sorriem, e muitos choram. E o Aniversariante, que também é o Filho do Homem semeia a semente do amor.

E a tempestade de pensamentos produz uma Cristina que provém de tudo, e que dá origem a tudo:

- Ninguém é capaz de sentir a satisfação ou a dor que aquelas mulheres sentiram. É magnífico e assustador. Morre um filho, e nem mesmo a mais sensível das pessoas seria capaz de perceber o mínimo que fosse a dor da Anne ou a de Maria Euvira. Mundos diferentes, dores semelhantes, alegrias comparadas, prisões em corpos egoístas e limitados. Nem mesmo mulheres que foram submetidas a dores semelhantes; aquelas mães que presenciam a morte dos seus filhos. Nem a própria Sarah seria capaz de se solidarizar com o sofrimento tão humano de sua semelhante? Destruiu-se a rede global da sensibilidade humana? Não! Ainda há a força da vida. É a natureza em clamor pela percepção da energia do nascimento e da morte, com todas as emoções a eles vinculadas,

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intrínsecas. Agora é possível vislumbrar. É necessário sentir. É passado o momento de transcender.

E no dia vinte e cinco de dezembro de dois mil e cinco, no mesmo instante, quatro bilhões de lares conheceram os sete anjinhos. Sonharam seus sonhos e dobraram-se aos seus temores. Suspiraram suas esperanças e cantaram seus amores. Choraram seus horrores e purificaram seus valores.

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Um restaurante, talvez barzinho...

Fazia muito tempo que não via toda aquela alegria. Gargalhadas enchiam o ambiente com um gostinho de emoção compartilhada e o prazer ecoava nas paredes e mobílias daquele lugarzinho aconchegante que ela encontrara por acaso, quando estava passando por aquela rua descontraída, apressada, para chegar ao seu novo emprego. Encontrávamo-nos todos desprovidos daquelas armas sociais que constrangem e deixam alguém constrangido. Éramos, naqueles instantes, pessoas livres que podiam extravasar todas as suas individualidades. Sei que nos fazia bem, muito bem.

Pairava no ar um cheirinho de confiança e pior que ainda hoje não sei confiança em quê. Também não sei dizer o que nos remetia àquela confiança. E precisava saber? Sei que nos entregávamos ao simples entregar. Parece até que havia um pacto de não preocupação quando estávamos lá. Asseguro que estávamos, sim, completa, simples, honesta, humana e intensamente compartilhando experiências, sentados àquela mesinha rústica, de cadeiras rústicas, também confortáveis, no restaurante talvez barzinho daquela rua que, em um belo dia, ela descobrira e nos apresentara.

Passou a ser o nosso abraço nas horas em que mais precisávamos de um. Passou a ser nossa fonte de esperança quando estávamos sem rumo. Passou a ser nossa música quando tudo que chegava a nós eram ruídos. Passou a ser nosso silêncio quando tudo que precisávamos era de um olhar. Há lugares assim. Onde a energia positiva conforta tudo que é necessário confortar. Onde algo divino diz que tudo é bobagem diante de tudo que a gente pode acreditar sério. E, às vezes, o que acreditamos sério toma nossa vontade, nossos pensamentos, nosso humor, nossa emoção, nossa fé, espreme tudo e coloca num lugarzinho escondido da alma. E parece que quanto mais tempo decorre para nos darmos conta disto e passamos a procurar esse lugarzinho, num afã da vida, mais o mapa para este caminho tem suas trilhas apagadas. 23

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Chegou o dia em que já não sabíamos se era mesmo o lugar ou se era um desejo incontrolável de mudança. Repito, não queríamos saber o porquê. Sabíamos o que sentíamos e isso era tudo.

E então aconteceu. O universo usou um barzinho talvez restaurante para nos mostrar que éramos capazes. E nos mostrou que tudo que éramos estava dentro de nós. E que éramos energia livre para assumirmos o caminho positivo ou negativo.

Continuo sem saber o que chamou a atenção dela, naquele dia, naquela rua, para aquele lugarzinho. Sei que fazia muito tempo que não via toda aquela alegria. Gargalhadas enchiam o ambiente com um gostinho de emoção compartilhada e uma animação, talvez confiança, palpitava no coração de cada um de nós, com toda a entrega do gostinho de viver.

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Para quem trabalhamos?

Em recentes diálogos com pessoas relativamente esclarecidas surgiu, por várias vezes, o assunto: impostos no Brasil. Talvez por estarmos diante de mais uma fase de obrigatoriedade de declarar o IR, este assunto venha à tona mais frequentemente; ou talvez por ainda estarmos finalizando o segundo mês, dos quatro, em que nosso salário inteiro define a mais-valia; ou ainda, início de ano é a época onde estamos, juntamente com muitos impostos, aumentando nossas dívidas com escola particular, faculdade particular, saúde particular, seguros particulares, e muitos outros particulares para onde o que nos é tomado em tributos não retorna em forma de saúde digna, educação eficaz, segurança real, estradas sem pedágio... E deveria?

O assunto parece ser tão envolvente, positiva e

negativamente, que, por vezes, alguns exaltam os ânimos, tornam-se agressivos, gritam. Outros tecem explicações, consideram soluções e refutam hipóteses contrárias. Há ainda quem defenda a necessidade de todas essas taxas para o progresso do Brasil. Houve um que disse: “A sociedade brasileira é corrupta, sempre foi e sempre será”. Há aqueles que não se manifestam verbalmente, mas se percebe a expressão de indignação, e limitam-se a guardar decepções. Há muitos. Em comum a angústia. No fim, tudo termina em conformismo e os dias continuam como que nunca um brasileiro tenha se dado conta do regime de escravidão a que está submetido.

Tenho visto e participado de algumas dessas discussões ao

longo dos tempos. Até constato o fato de que existem pessoas, não poucas, conscientes e indignadas com o caminho do nosso Brasil. Vejo, porém, o assunto ser esquecido, e voltar a ser lembrado ano após ano, os argumentos se repetirem e não passarem de oratória, as indignações se diluírem nos dias de exaustivo labor, e nada muda. Por quê?

Surpreendi-me com uma das explicações para o meu questionamento: Covardia. Alguém pensou um pouco quando perguntei por que o País continua do mesmo jeito, ou até piora, apesar de mais e

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mais pessoas estarem se libertando do poço profundo de analfabetismo e ignorância, e a resposta foi simples. “Somos uns covardes”. E continuou. “Somos covardes quando apesar de mensalões, fraudes, assaltos, roubos, estupros, torturas, humilhações, continuamos trabalhando como se nada estivesse acontecendo. Somos covardes pois quando alguém de nós, tão explorado como nós, é injustiçado, ficamos calados com medo de que possamos ser também injustiçado ao ajudá-lo e por isso nunca ajudamos. Somos medrosos pois nunca tivemos coragem para nos unir e conseguir melhorias. Somos mais covardes ainda pois quando alguém que já não suporta mais sua condição e resolve mudar, limitamo-nos a ridicularizá-lo e fechar o círculo, excluindo-o!!”. Concluiu.

Faz-nos pensar. Érico acorda na segunda-feira e considera

toda a semana. Café rápido. Ônibus lotado. Trabalho. Dívidas. Perigo nas ruas. Colega trabalha sobrecarregado. Almoço rápido. Criança com problema na escola. Quer o melhor para seus filhos. Não pode. Ônibus lotado. Impostos a pagar. Janta. Terça-feira. E o brasileiro suporta esta vida animal por anos e anos. Érico decide mudar. A comunidade, covarde, que ainda suporta penúria, chama-o de louco. Ele persiste e convence os vizinhos e alguns colegas do trabalho. Agora são trinta. Trinta pessoas lutam por melhoria. Não exigem nada mais que melhor salário, segurança verdadeira nas ruas, escola de qualidade, saúde digna. E agora os caminhoneiros resolvem apoiar. Pronto. O problema agora é com o transporte de mercadorias: alimento, combustíveis, produtos de higiene e limpeza... A televisão passa a notícia de que a economia do país vai parar. O que você pensaria diante desta situação?

Covardia. Muitos de nós recriminaríamos os caminhoneiros e

boicotariam sua luta. Mesmo sendo cidadãos como cada um de nós. Apenas foram corajosos para enfrentar as consequências. Não estariam se submetendo àquilo se os filhos fossem respeitados, se a saúde fosse oferecida com qualidade, se seus impostos pagos fossem revertidos em obras verdadeiras, se não estivessem no fundo do poço. Mas somos covardes. Não temos a coragem para nos unir. Nem falo covardia por não apoiar a luta de um homem que sofre. Covardia, por que, além de nunca apoiar, combatemos. Cobramos atitudes violentas das autoridades. Criticamos negativamente o povo unido. Desprezamos

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seus anseios. A união é mais fraca que a União. O grupo é humilhado mais uma vez. A greve é sufocada. E o Brasil continua do mesmo jeito. Mensalão continua. Fraudes continuam. Nepotismo continua. Justiça tendenciosa, educação vergonhosa, saúde inferior...

A questão não são a força e a determinação para lutar e

conquistar posições. A questão não é sobre sair de uma condição precária, estudar, trabalhar e melhorar de vida. Disso muitos são capazes de fazer. E fazem. Cada um tem suas características de garra e de luta. O Brasileiro é um verdadeiro trabalhador. A dúvida é: para onde nosso trabalho e nosso dinheiro, em impostos, estão indo.

Não há necessidade de violência. Nem de ir às ruas. Basta

que 160 milhões parem nas suas casas por cinco dias. Movimento pacífico pela paz. Pela vida.

Imagine todos os brasileiros unidos. União pela vida. A vida é

a prioridade. A dignidade é o caminho. Solidariedade é uma consciência. Pessoas ajudando pessoas. Humanidade unindo semelhantes. Assim, com 160 milhões unidos, impostos nos ajudariam. Trabalharemos para nossos filhos.

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Guerreira de alma

Recordo com alegria a voz dela, a me dizer que não estava disposta a viver por viver. Ela dizia sempre que queria viver comigo e nunca achei necessário perguntar por quê. Sentia apenas algo estranho. Qual seria a diferença entre viver por viver com outra pessoa e viver por viver comigo? E hoje sei que há sinais, a cada momento, em cada lugar tentando nos guiar para o bem. O nosso bem! São sinais discretos que não todos que passam por eles percebem-nos.

Ela era possuidora de uma sensibilidade fina. Uma daquelas pessoas que preenchem o ambiente com uma daquelas energias que nos remetem a uma daquelas pazes plenas. A alegria era seu olhar e quando olhava, olhava alguém por dentro. Olhava-me poderosa e eu limitava-me a ser o insensível que aprendera a ser.

E ela lutou com todas as suas forças para ficar comigo, não queria viver por viver. E eu nunca entendi por que ela dizia que lutar por alguém como lutava por mim era sua maneira de seguir seus sinais. E eu nunca entendi como podem sinais indicar algo por que se tenha que lutar para chegar a uma realização. E ela desejou-me e viveu-me. E eu nunca a vivi. E eu fui o traidor de seu universo e de seu sorriso. Mas mesmo assim ela continuou e se machucou. Não desistiu.

Guerreira de alma. Ela gostava de dizer que era uma guerreira de alma e que sua força estava onde seu coração estava. Era simples demais para alguém complicado como eu sentir e aceitar. Determinada em tudo que decidia caminhou por caminhos que a fizeram doer e sangrar. Jamais duvidou da perfeição deste caminhar. Engraçado é que a vi e a tive como uma guerreira e deixava-me ser o insensato de sempre. Amou resignadamente o imperfeito que eu era e nunca cobrou um pouquinho que fosse. Era amiga, o suficiente para aceitar as pessoas como eram e sabia o momento exato de deixar a sementinha da reflexão e do conflito existencial aos cuidados das pessoas que amava. E funcionava. Por onde passava deixava alegria, crescimento e saudade. Oh Deus, quanta saudade grita em mim.

Sou um cego que ainda hoje sente sua falta, e esta saudade, entalada em minha garganta, tem sido a semente que está crescendo e 28

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mostrando-me que a luta é o caminho dos guerreiros. E a luta traz a realização e a realização plenifica a alma de quem acredita. Acreditar em algo belo não tira o prazer da busca. E a busca pela vida jamais me fará fugir. E a dor está bem aqui em minha garganta. E é uma dor tão doída que acabo por morrer um pouco cada vez que a sinto. Talvez eu nem tivesse vivido. Algo em mim grita quando penso que não soube vivê-la. Estou feliz por ela. Ela vive, viveu-me e caminha com aquele jeito engraçado mas decidido em busca do amor, da vida verdadeira, da felicidade de quem ama ou apenas de nutrir com esperança alguém que já não a tem.

Hoje seria o dia em que ela estaria comemorando mais uma infinita curva de um caminho que eu caminhava alguns muitos passos atrás dela. Amo-a com tudo que realmente sou, da parte mais íntima do meu ser e a quero aqui comigo. Quero mostrá-la que pode ser amada. Quero que se sinta amada, protegida, cuidada. Quero que saiba que também posso esquecer de minha vida e do resto do mundo quando a vir feliz. Quero que saiba que sou capaz de dar minha vida por ela. Quero é que saiba que sem ela não há vida. Volta, minha guerreira. Volta que agora sei abrir meus braços com a tua determinação de acalentar quem dói. Volta. Eu te imploro com lágrimas no coração. Diz que tua partida foi um sonho e que teu sono acaba ao amanhecer.

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Alguns milhões de anos

As comemorações marcavam, para alguns olhares, o final da estação do semear, para outros, o início do desafio de cultivar e a possibilidade de colher novas sementes. Cada expectativa era única, e, no máximo, assemelhavam-se. Mas, em meio a tantas diferenças, havia uma vibração que nos igualava a tudo que é alegre e reunia a força de todos numa fascinante manifestação de vida.

As chuvas cairiam em breve com a precisão do existir e a

natureza sempre se encarregava de oferecer outras fontes para nossa sobrevivência. Apenas uma discreta alteração no som, que tão bem conhecíamos, deixou alguns de nós atentos e ansiosos. A melodia continuava bela. Bela, porém, até então, inexplicavelmente modificada. No princípio apenas os mais sensíveis perceberam e, mesmo nós, não sabíamos compreender o que estava diferente. Talvez o fato de que confiávamos na harmonia do todo nos oferecesse aquela ilusão como possibilidade. E o som poderia nunca ter existido.

Estávamos no paraíso. E parece que quando há paraíso, há a

possibilidade de ser exilado. Mas o bom causa dependência. E aquela possibilidade produz o medo. E o homem possuído pelo medo de tudo é capaz. Seu conceito de vida se confunde com as possibilidades de ilusão. Não importa quem as pinta. No início das estações, quando a vida era a vida e a estrada transformava, para não perdermos a paisagem, perdemo-nos em essência.

E a dor olha para o ego. Seja dor, seja incolor. Começou-se a

guardar, para garantir um esplendor de um futuro incerto. Futuro nunca antes cogitado, amanhã, manipulado pela sede de ter a cor.

Conduzidos pela ganância, enganamos e dominamos.

Controlados pelo egoísmo, controlamos e humilhamos. Mascarados de melodia, construímos nossos humanos.

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O tempo era de chuva

O sono já não era o mesmo e os dias se modificavam como as variações de densidade do espaço. Jacobson vivia atrelado àquele bairro que desde há duzentos anos já se comportava como pouco diferente de hoje. Nunca mudou. E, cedo ou tarde, pessoas conseguiriam torná-lo pior do que já fora um dia.

Jacobson Filho usava cabelos grandes e negros e gostava de

mantê-los despenteados, passando, assim, a impressão de descuido que buscava transmitir. Barba por fazer completava uma face fina e comprida. O queixo pontiagudo, que mais parecia uma continuação da sua cabeça, mostrava o quanto Filho era pensativo. Por vezes estava agitado e queria conversar com todo o mundo. Nestes momentos queria que qualquer ser, presente no mesmo ambiente que ele, percebesse sua presença. Precisava de que o notassem. Havia, porém, situações em que Jacobson usava de toda a sua inteligência para não ser visto. Se pudesse, nem sairia de casa. Sequer iria ao trabalho. Costumava se descrever como um homem vivido por sentimentos. Os sentimentos o viviam e, nele, personificavam a mais sublime manifestação da loucura. Assim eram as ondas que governavam cada dia, por vezes, cada minuto, da vida, do tímido bravo Jacobson Filho.

Era um tempo de certezas superficiais, e isto bastava para

que todos no seu bairro o rotulassem de Jacobson, o louco. De certa forma, cada um usava esse termo como uma maneira de se referir a ele. Nem sempre, contudo, era usado de forma pejorativa. Evidente que, via de regra, “o louco ” era a mais fácil definição para alguém de comportamento imprevisível e diferente do que manda a boa etiqueta de comportamentos aceitáveis. Existiam aqueles que o odiavam e estes, além de louco, referiam-se a ele com inúmeras outras formas de exclusão criadas na época. Devo esclarecer-lhes alguns pormenores. Faz-se necessário, neste ponto, relatar um fato ocorrido, há bons dezessete anos.

O tempo era de chuva e Jacobson estava reunido com poucos

amigos, na praça Luiza Helena. Escurecia. Os quatro riam, demonstravam descontração, era momento de celebração pois o filho

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de Santo havia nascido àquela manhã. De soslaio, com pretensões que beiram ao diabólico, sem motivo, Arnaldo, que por ódio, talvez inveja, passou e disse que o filho celebrado era de Jacobson, que frequentemente, visitava a casa do amigo, quando aquele se ausentava. “ Traidor ”. Grita Arnaldo. “ Louco, covarde e desumano ”. Insiste, acusando, seu inimigo. A reação de Filho era quase que uma constante. Ele discutia e xingava, tentava se defender, e em poucos minutos se calava, baixava a cabeça e desistia do confronto. Todos que, contra o Louco, iniciassem uma discussão, terminavam em infindáveis monólogos e a impressão de derrota dominava o semblante de Jacobson. As ofensas continuavam sem que ele retrucasse um argumento sequer e assim seus algozes declaravam-se vencedores e desistiam de lutar contra o fraco. Desta vez não foi diferente. Humilharam-no, deslocaram-no, destituíram-no de tudo que é digno. Recolheu-se e, em silêncio, desapareceu.

O paradeiro de Jacobson Filho passou a ser incerto. Se havia

cinquenta por cento de probabilidade de ele estar vivo, havia outros tantos que provavam o contrário. E um ano foi suficiente para que todos esquecessem da sua existência. Bastou não mais do que um ano para que encontrassem outra forma, pessoas algumas, para descarregar inveja, ódio e rancor. Apenas oito meses para que os que o amavam já não lembrassem mais do que seriam capazes para ajudá-lo. Foram dezessete anos de passos sem rumo, buscas inconsistentes, desencontros, erros e acertos, tropeços e crescimento. Dez anos de solidão.

Hoje chamam Jacobson de amigo. A grande maioria de seus

inimigos já está morta. O amigos se mudaram. A comunidade é nova e repleta de miséria. Jacobson Filho trata todos de irmãos. Agora já não há mais ingratidão. O egoísmo, a que, um dia, denominaram inveja, transformou os filhos das pessoas que agora compreendem como devem viver o curto espaço de tempo disponível na terra. E eles roubam, e eles matam, e todos riem, e eles mentem, e eles fraudam, e todos acobertam, e ninguém se modifica. E o chão iguala a miséria do espírito. E nosso caro Jacobson olha tudo isso de dentro de todos. Vê tudo e ninguém o percebe. Escuta o que cantam e lamenta a certeza do amanhã. ÍNDICE

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A baleia

A baleia havia sido levada por uma corrente marítima para as águas rasas de uma praia em Colônia. Encalhara. João vinha, há cinco incansáveis dias, ajudando um grupo de pescadores no trabalho de desencalhe da jubarte, que já mostrava sinais angustiados de exaustão. Alguns, em momentos de desespero gritavam em direção aos céus e faziam preces para alcançarem, pelo menos, o alívio da dor de um animal com olhar de solidão. Criavam e tentavam todas as possibilidades para salvá-la e aos primeiros raios de sol, lá, já estavam reunidos para, como por instinto paterno, torná-la livre de tamanho sofrer. Já tinham desenvolvido um sentimento íntimo de carinho, e doía o coração ver aqueles ferimentos, a cada dia em maior número, nas estruturas que pareciam se deformar. Desejavam com energia ver aquele corpo imenso nadando rumo ao krill e em harmonia com seu destino de vida. E a baleia, ali impotente, permitia-se a companhia de seres desengonçados mas não por isso acomodados e escutava cada palavra de estímulo como uma mão em que apertar quando nos encontramos em situação vulnerável. Houve vezes em que, ao subir a maré, tinham a ingênua esperança do sucesso da empreitada. Decepção logo surgia; ao se debater, o cetáceo só conseguia mais ferimentos em sua matéria já disforme. E, no entardecer do sétimo dia, em meio a tantas demonstrações de solidariedade, o ser que se confundia com naquele corpo gigante, desistiu de lutar e se foi; deixando frustração, lágrima e uma carcaça inerte brilhando o pôr-do-sol do último dia, na sombra da memória de cada um, que esbravejou dias a fio nas águas quentes de um dezembro inesquecível.

E a tempestade de pensamentos levou João a um

recolhimento profundo. Ocorreram, lembrava, no segundo dia das tentativas de salvamento, quando todos ainda apresentavam completo vigor muscular, inclusive a jubarte, segundos de intenso movimento que se repetiam como as ondas incessantes de uma energia que, apesar de tudo, quer continuar vivendo e a baleia se debatia freneticamente enquanto todos tentavam acalmá-la. Foi então que João sofreu um impacto na face, nem pôde ver de onde vinha, e, tonto ainda, caminhou cambaleante para a areia da praia onde sentou e experimentou aquela dor lancinante que se prolongaria por mais dois

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dias intermináveis. Lembra que, naquele momento, um ódio incontrolável o dominou e sua única intenção era destruir a vida daquele animal que o atingira com a calda. O sentimento destrutivo logo desapareceu e não durou mais do que os segundos necessários para causar em João uma visão de carnificina. Visão esta interrompida de imediato por mais um grito abafado de desespero vindo da sua momentânea ré. Logo João acorda dos devaneios que o atormentavam, levanta-se e, novamente humanizado, adentra as águas no intuito de continuar a salvar sua redenção. Como poderia culpá-la por um fato ocorrido involuntariamente por alguém que luta desesperadamente pela vida sem ter a mínima ideia da saída? Algumas vezes o próprio João magoara pessoas queridas, em momentos angustiantes de sua vida. E quando, desnorteado por dentro, dava-se ao mínimo trabalho de perceber o que tinha causado, não conseguia compreender como suas vítimas não o entendiam. Jamais sequer intuiu que em momentos de sofrimento as pessoas podem ferir voluntária ou involuntariamente sem por isso serem cobradas. Outros momentos houve, em que no seu íntimo acreditava estar tudo bem, e continuava machucando os que o rodeavam. Por que preço havia vendido seu íntimo, para acreditar que estava muito bem? Alcançara estabilidade financeira e sentia-se bem por isso? Fora promovido a chefe e acreditava que era um vencedor? Tornara-se arrogante e cantava a felicidade dos inocentes. Fugia, com a força de sua ignorância existencial, do sofrimento de sua alma. Já se encontrava no abismo onde, no escuro e sozinho, teria mais uma chance de nascer, se realmente algum dia pudesse enxergar onde estava, ou por acaso, ou na dor.

João segue o caminho ainda não traçado, cria o caminho,

coisa que, até então, nunca realizara em sua existência. Sempre viveu com tudo planejado, no conforto da tecnologia e com empregados para se preocuparem em agendar e organizar suas tarefas. E a liberdade, agora talvez real, o apresentará a diversas formas de interiorização e crescimento.

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Devaneio secular

Havia algum tempo que não tinha a oportunidade de conversar com o Luís Alberto. Motivos não faltavam, e os principais eram que quando eu estava no trabalho, ele estava na escola. Quando ele estava dormindo, eu estava acordando. Quando ele queria brincar, eu estava cansado e quando nos reuníamos à mesa, não surgia oportunidade para aprofundarmos qualquer assunto. Meu filho estaria completando nove anos de nascido, hoje. Tolo, nunca suspeitei de sua capacidade para compreender assuntos que muitos adultos, relativamente inteligentes, jamais decifrariam.

Certa manhã, por coincidência, acordamos juntos e

combinamos de brincar durante aqueles poucos minutos entre o despertar e o início das ações para assumir o novo dia. Luís Alberto sugeriu irmos ao jardim para corrermos e pularmos. Assim nos divertiríamos. Sugeri que seria mais fácil se ficássemos dentro de casa, pois estaríamos aquecidos e, além do mais, não precisaríamos trocar as roupas. E aquele garotinho, que há pouco aprendera a andar, olhou fixamente os meus olhos, olhos arregalados, e sussurrou:

- Pai – disse ele – gosto muito de falar e adoro pensar. Nada

disso foi tão fácil para se conquistar, como pode ter parecido.- Que estás querendo dizer, meu filho? – perguntei atônito.

Nunca achei que tão simples situação pudesse levar a tamanha consideração. Muito mais viria.

- Pensar e falar são grandes conquistas em minha existência e, para isso, foram necessários alguns milhões de anos de evolução. Não viverei muito para justificar estas conquistas, mas o pequeníssimo tempo que a mim foi concedido pode ser suficiente para nos tornar um pouco melhor. E isto está vinculado às minhas atitudes. Existem infinitas possibilidades. Quase todas são fáceis. E quase todas nem tanto.

E com mais firmeza, continuou: - É mais fácil ofender do que pedir perdão. É mais fácil

reclamar do que refletir o problema e oferecer soluções. É mais fácil

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acomodar do que lutar. É mais fácil humilhar do que engrandecer. É mais fácil encontrar defeitos do que qualidades. É mais fácil falar do que escutar. É mais fácil supervalorizar nossa dor do que perceber o sofrimento dos outros. É mais fácil permanecer do que se modificar. É mais fácil criar uma desculpa do que assumir o erro. É mais fácil estar morto do que ressuscitar. É mais fácil dormir do que acordar e enfrentar o dia. É mais fácil calar do que reivindicar, polemizar. É mais fácil torcer do que politizar. É mais fácil cair do que levantar. É mais fácil continuar fumando do que se revolucionar. É mais fácil trair do que manter a palavra. É mais fácil enganar do que ser honesto. É mais fácil esquecer do que considerar. É mais fácil representar do que se afirmar. É mais fácil bater do que conversar. É mais fácil obrigar do que ensinar. É mais fácil difamar do que respeitar. É mais fácil se embriagar e não se lembrar. É mais fácil roer do que fazer nova proposta. É mais fácil chorar do que ponderar. Desmatar é mais fácil do que cultivar. Tomar é mais fácil do que produzir. É mais fácil destruir do que construir. É mais fácil pichar do que escrever. É mais fácil ser operado do que controlar a necessidade de ingerir. É mais fácil submeter-se a uma cirurgia plástica do que aceitar o que se é. É mais fácil matar do que criar. É mais fácil amassar do que fazer uma escultura. É mais fácil criticar do que pintar. Envelhecer é mais fácil do que se renovar. É mais fácil amedrontar do que estimular. É mais fácil teorizar do que concretizar. É mais fácil simplificar do que detalhar. É mais fácil respirar do que se notar. É mais fácil viver do que existir. É mais fácil romper do que atar. É mais fácil cortar do que emendar. É mais fácil quebrar do que consertar. É mais fácil reprimir do que vislumbrar. É mais fácil crescer do que evoluir. É mais fácil fazer CPI do que purificar. É mais fácil corromper do que honrar. É mais fácil buzinar do que tolerar. É mais fácil gritar do que murmurar. É mais fácil doer do que ajudar, rasgar do que remendar, arrepender do que antes pensar, sobreviver do que melhorar. Conviver e se tornar cúmplice não são mais fáceis do que se isolar. Igualar é mais fácil do que decifrar. E é mais fácil rotular do que descobrir, ridicularizar do que enobrecer, roubar do que trabalhar, fraudar do que congregar, assaltar do que ganhar. Herdar é mais fácil do que lutar. É mais fácil crucificar do que aceitar, impor do que convencer ou conscientizar. É mais fácil lembrar do que relevar. É mais fácil isolar do que apoiar, odiar do que amar, separar que conciliar. Tomar remédio para verme é

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mais fácil do que ser higiênico. É mais fácil deixar ir do que voltar atrás, manter o dito do que retirar. Queimar é mais fácil do que reconstituir. Abandonar é mais fácil do que amar. Sobreviver é mais fácil do que dizer a verdade. É mais fácil mentir do que ser ético.

E não precisou mais do que o início daquelas palavras para

que eu engolisse tudo que eu acreditava ser. Enquanto escutava, surpreendeu-me a sensação de inexistência. Ao final de tudo, já não sabia mais se eu vivia. E meu filho continuou:

- O caminho mais fácil é, a cada momento, recriado por

mentes acomodadas. Vejo a facilidade que é estar numa sombra e sabemos que a sombra sempre estará no mesmo lugar. Pessoas medíocres permanecem no mesmo lugar. Algumas, ingênuas, retrocedem. Aquelas que fazem a diferença exploram novos caminhos. O mundo, desde o início, é habitado por uma diversidade de mentes. A mediocridade é perpetuada quando se busca justificar a maneira como se vive. É preciso se modificar, modificar toda uma sociedade. Refletir uma humanidade. E cada ser, por si, pode e deve se reconsiderar. Reformular. Reconstruir. E isso não é tão fácil. Os poucos, que optaram por um caminho desafiador, viveram a revolução das incontáveis formas de existir.

Já não conseguia me expressar com palavras. Era apenas

expressões indecisas. Limitei-me ao silêncio das reflexões. Luís Alberto sorriu a alegria do universo e me abraçou com a força de seu coração.

E a maneira que usou para me tocar foi a mesma com que se

foi. Sei que por algum momento nós vivemos. Sei que, mesmo que por muito pouco tempo, tudo aquilo aconteceu. Existimos por um milionésimo de segundo. Uma centelha. Existimos durante um fugaz e rebelde pensamento de um brasileiro qualquer. Essa forma de pensar, no entanto, é uma ameaça para alguém que vive num mundo degenerado. Infelizmente, logo ao se dar conta da loucura que poderia estar dominando sua mente, da podridão de ideias que poderiam estragar sua fácil lucidez, reprimiu-nos, crucificou-nos, sufocou-nos e nos destruiu.

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Renasceremos a cada instante como uma única gota de

chuva de uma grande tempestade de pensamentos. Ressurgiremos na mente de cada mulher ou homem como a unidade de trilhões de possibilidades. Reviveremos por tempos tão mais frequentes quanto for o descomunal volume de ideias que surgem em uma única mente de uma sociedade que padece. Resistiremos com determinação aos desafios e às sufocações dos pensamentos egoístas e arrogantes. Povoaremos a comunidade que tem febre e evoluiremos.

E desde há muito tempo temos optado pelo caminho mais

fácil.

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Elegante solidariedade

O medo tem congelado o brasileiro e feito de muita gente boa pessoas inúteis. Diariamente testemunho manifestações de indignação e de revolta contra a rotina a que estamos submetidos e que simplesmente optamos, com o peito cheio de covardia, por continuar reféns. Não há coragem para mudar de emprego quando algo na empresa não comunga com nossos princípios. É mais fácil se deixar corromper. Não há coragem para se mudar de governo, pois aquele, mesmo ruim, traz filtro de barro, ou restaurante popular com comida por um real, quando das eleições. Nunca vi discussões tão acaloradas sobre política quanto vejo quando algo diz respeito ao futebol.

Não vejo sábias iniciativas ou mesmo uma gota de coragem

para boicotar um concurso, por exemplo, que ofereça como salário a décima parte do salário de um funcionário que vai trabalhar com você, indicado pelo prefeito, para “fazer nada”. A diferença entre a bolada de cada um no final do mês é o dízimo. Quem passa nos concursos não é obrigado a pagar o dízimo. E o “funcionário” indicado pelo político, o cargo de confiança, deverá pagar o dízimo. Esta pequena parcela que deve ser fielmente depositada no caixa de seu partido, mensalmente, será tanto maior quanto maior for seu “salário”.

A coragem para mudar e enfrentar o novo é coisa rara nos

tempos de hoje. As poucas pessoas que já vi fazerem isso foram até criticadas pelos medrosos e acomodados. Medrosos esses que criticam e ridicularizam o edital do concurso pelos baixos salários e que escondidos, por entre as sombras, vão à secretaria, tropeçando em outros hipócritas, para fazerem suas inscrições e concorrerem àquela vaga de escravidão. A melhor maneira de se subjugar um povo é fazê-lo covarde. O medo leva à desunião. E a melhor situação para se manipular alguém é quando esta não tem com quem contar. Há séculos que pessoas comprometidas com um bem-estar geral usam estas armas e nós, "etilistas invertebrados", seguimos "subconscientizados", conformados e acomodados.

Certa vez tive a oportunidade de presenciar um fato cada

vez mais comum: uma louca colega comparando salários de vários

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profissionais, em vários estados diferentes do país. O texto mostrava uma tabela com os editais dos concursos das respectivas prefeituras, o cargo oferecido e o salário proposto. A anencéfala colega parecia transtornada. E do auge de sua histeria buscava me convencer que era ridículo um policial militar receber mais do que alguém que estudou mais do que ele. Dizia que, na sua cidade, a prefeitura pagaria muito menos pelo seu trabalho, do que em Minas Gerais, por exemplo, remunerar-se-ia o soldado de polícia. Egoísmo e analfabetismo. Até estudou mais que alguém, mas não é humana, nunca viveu solidariedade, jamais foi mais sábia que uma abelha. Na verdade devemos nos unir com todo e qualquer trabalhador, seja ele faxineiro ou professor, tenha este estudado ou não, e aí sim lutar por uma dignidade para todos. A visão de diferença entre pessoas devida a diferença de suas profissões é um erro primário. Não, o salário de um policial não é mais alto do que o dela. Os dois são uma miséria. Os dois se dedicam, arriscam-se e querem educar seus filhos. Os dois querem viver em segurança e usufruir de suas democracias. E para isso são pobremente retribuídos. Exercite o raciocínio em todos os campos profissionais.

E enquanto a massa, digo, todos nós nos comparamos e

lutamos entre nós para saber quem deveria ganhar menos mal, uma minoria come caviar e ri, do alto daquela montanha, na savana. O Brasil é feito por brasileiros. O Brasil somos nós. É um país povoado por seres que ainda não conseguiram perceber algo além de seus estômagos. Quando haverá união? Quando ocorrerá de um motorista de ônibus apoiar a luta da classe de professores que reivindica salários melhores? Quando o clube de empresários vai apoiar a luta de seus vendedores, por dignidade? E quando vai compartilhar de suas angústias? Gostaria que alguém me respondesse, meus caros leitores, quando alguém, neste desunido Brasil, nesta desunida espécie que se auto intitula humana, vai se dar conta de que a luta de uns poucos é a manifestação última de esperança e talvez de desespero, restando então, após o último suspiro, apenas mais humilhação. E que estas manifestações, tão raras entre nós covardes, são um grito de ajuda, um pedido de apoio. Pedido que insistimos em ignorar e apoio que lutamos para não ofertar.

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Num belo final de tarde, quando todos estavam ocupados em finalizar seus dias de trabalho, a querida colega, confundindo-se com as pulgas e sarnas que pulavam nas calçadas, tomou o rumo da prefeitura, e fez sua inscrição para aquele concurso. Viva!

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Extremo da vida

As sandálias já apresentavam sinais de exaustão. Uma delas exibia tiras de couro cru desbotadas pelo uso e a outra, em um estado de conservação um pouco melhor, mas não menos desgastada, apresentava pontos de iminente ruptura das tranças, nos locais de maior tensão. Eram usadas por quase toda a vida. Era raro alguém que usasse mais de dois pares, durante a vida adulta. Faço das crianças exceção, pois estas crescem. A maioria deixava de existir antes delas. Algumas crianças também. Aquelas, as primeiras a que me referi, foram únicas e viviam já havia dezesseis anos.

A cerimônia de entrega acontecia por volta dos dezessete

anos e representava a passagem para uma nova fase da vida. A maioridade. Significava culturalmente que se podia caminhar com liberdade e, vinculado à liberdade, assumiam-se responsabilidades. Tamanha manifestação de contentamento diante deste ato de afirmação era comparada apenas aos momentos de união matrimonial e de nascimento dos descendentes. Os três acontecimentos eram os mais importantes valores do lugarejo e os passos que conduziam aos supremos princípios foram chamados de vida. Princípios ainda hoje respeitados. As de tamanho adulto, as sandálias, que obviamente variavam no comprimento, eram acolhidas humilde e definitivamente.

Levavam-no aonde queria e após o simples ato de decidir já

estavam prontas para mais uma caminhada. Venciam obstáculos físicos e intelectuais e proporcionavam a alegria de uma companhia fiel. A ação e a reação se modificavam a cada instante. As sandálias sofriam mudanças e, por vezes, provocavam-nas. O horizonte tornava-se nítido, mas, noutras situações, confundia-se. E todas as consequências foram assumidas e assimiladas. Para todas foram formuladas soluções. Poucas soluções atentavam contra a vida. Estas eram desconsideradas com a sabedoria de que dispunham. E cada desafio conduziu a um aprendizado. Assim ocorreu a evolução.

Sua força é seu princípio. Os passos corajosamente

assumidos fazem uma sociedade em harmonia. As consequências sabiamente enfrentadas lapidam o homem e a mulher. Surge o

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individual que percebe e respeita outro individual. Neste ponto nasce o social. O respeito à existência é naturalmente conscientizado. E a excelência da vida acontece.

E aquelas sandálias, as primeiras a que me referi, foram

únicas. Separaram o pó do ato de viver e de existir. Igualaram o coexistir.

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Despedida

Laurel era o apelido dado ao meu irmão, pelo meu tio, em momentos de descontração e brincadeiras, quando já adolescentes, em época de férias do colégio, no sítio da Mangabeira. Pois bem, havia quatro anos que não encontrava o Laurel. Os motivos dos desencontros podiam ser formulados a partir de vários acontecimentos, mas os principais se baseavam nas prioridades por que continuávamos optando, a cada momento da vida. Fizéramos escolhas cujas consequências ainda hoje são incompreensíveis. O trabalho exaustivo tomava nosso tempo e, obcecado, lutava para conquistar todos os bens materiais que o mundo me oferecia.

Nossas histórias se confundiram durante os primeiros

dezessete anos de minha vida, quando, atormentado pela miséria, açoitado pelas humilhações e fome, decidi sair ao encontro de vida decente. Nossos pais, além de emocionalmente doentes, deixaram-se derrotar social, e talvez por isso, financeiramente. Foram aquelas mesmas pessoas que, por medo de perder, fracassaram. Jamais foram ao campo de batalha. E jamais sairiam à luta, jamais se arriscariam pelos seus filhos. Eram exímios egoístas. Suas inteligências eram finas quando buscavam encontrar explicações para a vida que levávamos. Nunca se deram conta de que as desculpas eram a confirmação e a aceitação de seus fracassos. Eram sensíveis a ponto de nos usar, apenas crianças, como anteparos de suas ansiedades, seus sofrimentos, suas paranoias, divergências, frustrações e desesperos. Este mundo eu e meu irmão compartilhávamos involuntariamente. Era hora de construir o meu. Era hora de fazer tudo que nossos pais nunca haviam feito.

A madrugada se evidenciava quando, sem conseguir dormir,

resolvi ligar para o Laurel. Para minha surpresa ele atendera ao primeiro toque do telefone e sabia que eu telefonaria. Perguntei-lhe se poderíamos ir à casa da mamãe para tomarmos um café, talvez até conversarmos e convivermos. Seu sim foi forte e emocionante.

Era um sábado de céu claro e os raios do sol iluminavam, pela

janela, o quarto em que conversávamos. Aquele dia comum era perfeito

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para uma conversa comum. Ríamos a alegria de podermos estar juntos conversando até mesmo o que acontecia de mais simples em nosso dia-a-dia. Falávamos de nossas vidas, atualizávamo-nos sobre nossa família e confrontávamos fraternalmente nossas crenças. O sentimento de paz repovoava nossos corações por tão raros instantes que, ao nos darmos conta de tal graça, silenciávamos e a gratidão a Deus nos provocava profundas respirações de amizade, saboreando cada segundo, com a certeza de que seria a última vez. Eu, na rede, lugar onde há muito não deitava e de que gostava desde garoto, balançava-me empurrando o pé na cama onde o Laurel repousava após o almoço. Costumamos nos balançar na rede para que se resfrie corpo e se acalente a alma.

Já estávamos cochilando quando entra no quarto a namorada

do Laurel. Estava acompanhada do Luke, seu cachorro. Eu costumava brincar com o Luke e enquanto cumprimentava a Daniela já sugeria com gestos que ia brincar com ele. Enquanto eles se falavam, caí ao chão e a primeira impressão foi de quanto o Fila havia crescido. Fazia bom tempo que também não nos víamos. Insultei o Luke para brincarmos. Ele rosnou e em meio de mordidas, latidos, gritos e desespero, senti a respiração difícil, minha vista estava embaçada pelo meu sangue, ouvi sons distantes e pareciam ser a voz do Laurel. Senti alguém me sacudir. Já não era tempo de coexistir.

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Divagações

É escuridão e o sentimento de leveza invade minha consciência. Sou todo consciência e a matéria por que lutava para manter viva já não me proporciona aquelas sensações. Sinto, porém, a dor de não poder senti-la, e a angústia de não compreender o que está se passando é dilacerante. A condição de existência que eu definia perdeu completamente o sentido uma vez que intuo não ser percebido por qualquer outro ser. A noção é exatamente a de algo imperceptível. Por vezes consigo sentir a necessidade dos que ainda estão lá de um contato meu. Anseiam pela minha voz, silenciam em busca de sonoridades, aguçam o olfato em busca de um cheiro, hipersensibilizam suas peles a espera de um toque, fecham os olhos com a esperança de enxergarem um feixe de luz. Nada! A separação é extremamente forte.

As emoções são outras e não consigo chorar. Se soubesse ao

menos como identificar o choro poderia fazê-lo, mesmo que sem as lágrimas. A mim, não me foi permitido, ainda, distinguir o verdadeiro das minhas necessidades carnais. Sou apenas indagações. E como poderei saber o que era visão? O transtorno onde me encontro indica que há algo por resolver. Agora, a ausência de paz me leva a desconfiar do fim comum a que todo ser teoricamente deveria chegar. A ideia de que minha viagem será única como a unicidade do que tive a oportunidade de representar outrora se evidencia a cada laceração das minhas emoções. Percebo-me só.

Os planos que não concretizei parecem caminhar com o que

restou de mim e, como um vício, tendo a procurar pô-los em prática até que eu venha a me dar conta da impossibilidade física de tal intento. Já consigo, em alguns momentos, conscientizar a ausência de necessidade de realizar qualquer daqueles sonhos. As vivências que assimilei fervilham em busca de uma ordem que já não acredito existir. Eventualmente, deduzo que seja ao acaso, consigo mentalizar ideias completas mas que não parecem ter conexão com a realidade em que acredito estar submetido. Perceber que sempre estive submetido me tortura. As condições que me foram proporcionadas foram-me proporcionadas. Que fiz eu para interferir? Até mesmo os momentos 46

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em que acreditei ser alguém muito forte não poderia relacionar com a ausência completa de interferências externas e incompreensíveis. Tudo já estava criado?

A essência que tomou as impressões enviadas pelas

extremidades do meu corpo e marcou minha consciência, em cada momento de minha vida, permanece. Há momentos em que suspeito de que havia uma condição imperceptível de minha mente que determinava a maior parte de minhas atitudes sem que eu as criticasse e esta região relativamente insondável continua fazendo parte de mim. Essência e consciência parecem se confundir. Estou, enquanto essência, optando por um dos infinitos caminhos proporcionados pelo acaso. Ainda não sei se poderei modificá-lo ou trocá-lo. Talvez não haja necessidade para trocá-lo. Talvez o caminho possa mudar nos momentos em que eu consiga me modificar. Até que ponto posso me modificar e continuar sendo eu? A minha identidade é garantida por qual parte da minha essência? Esta parte é eternamente imutável? Se mudar será a mesma identidade, o mesmo eu? Então posso acreditar que há inúmeras identidades e que estas são únicas? E qual a importância de tantas essências e identidades distintas se não se afetarem?

Os meus limites, muitas vezes imprecisos, preenchem-me

com sensação imprescindível de individualidade. Sinto a necessidade de ser individual ainda que consciente de ser uma parte que constitui um universo maior. Desejo plenamente caminhar ao lado de outras pessoas. Não quero estar só eternamente.

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A revolta do pão

Algo curioso tem acontecido no Brasil, nos últimos tempos. Precisamente desde o dia 20 de outubro de 2006, quando foi iniciada a obrigatoriedade da venda do pão francês pelo seu peso. A repercussão tomou proporções tais, que quase diariamente se escutam reportagens sobre o assunto. As escolas estão ensinando aos alunos a nova maneira para se calcular o troco do pão. As donas-de-casa de Minas Gerais, e em breve, de todo o País, já estão se organizando e as manifestações nas ruas e nas frentes das padarias estão se tornando o símbolo da revolta. A mídia tem dedicado atenção especial diante de tal fato e já se cogita fazer debate, em cadeia nacional, com os grandes defensores de cada forma de comprar o querido pão francês. O matemático Lupuloso de Cousas se pronunciou a favor da continuidade da loteria como método de não se preocupar com o preço do pão ou de qualquer outro bem material.

Tenho considerado várias explicações para tal fenômeno e a

mais razoável é a do amadurecimento político. Antes quero comentar sobre algumas ideias que me ocorreram e que, apesar de algumas beirarem o absurdo, julgo apresentáveis. Cogitei a possibilidade da lei da simplificação, onde a matemática do problema permite que qualquer pessoa, alfabetizada ou não, possa criticar, com argumentos próprios, a situação, uma vez que os desafios são alguns cálculos de adição e, no máximo, de multiplicação simples. A segunda hipótese foi a da “ miopia ” coletiva. Nesta sou tentado a concluir que cada pessoa só consegue enxergar o que está bem ali na sua frente. Se algo ocorrer em uma distância um pouco maior ou se não se materializar em linha reta ao campo visual, não será sequer notada. A da “miopia” coletiva, associada com a lei do menor esforço, não excluo confusão entre ambas, conceberia a terceira hipótese a qual gostaria de denominar “brasilística”. Esta postula que o cidadão se dá conta, em algum momento, de que algo está acontecendo, e sem saber como, onde, nem o porquê, vem a se acostumar com a nova realidade evoluindo para a acomodação. A “brasilística” vem ganhando credibilidade já que tem sido comprovada diariamente no cenário sócio-político do Brasil, nas últimas décadas. Ajuda a concluir que é mais fácil combatermos algo que modifica o que podemos ver e comer com manteiga, que esteja em 48

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contato direto com nossas necessidades gástricas. Violações e manipulações intelectuais, educacionais e culturais, por exemplo, não poderiam ser combatidas, pois, sem ao menos desconfiar, até por que o exercício da desconfiança exige certo esforço e isso fere os princípios da hipótese, de que as causas para tal agressão, atentado ou problema podem vir de um lugar bem mais distante, por vezes, de atitudes tomadas por pessoas que jamais vivenciarão tal dificuldade. A quarta hipótese é a da conspiração “porfíria” em que nos pães produzidos no Brasil, depois de decreto secreto, foi instituída a introdução de uma certa quantidade oculta de soníferos e barbitúricos, com o apoio financeiro das panificadoras dos países desenvolvidos, e que, agora, com o rodízio de pessoas para comer pães em cada família, pelo menos uma teria momentos de lucidez quando da má sorte de não ter podido comer o pãozinho francês naquele dia. Há, por fim, que se mencionar a questão da dignidade e da honra, em que, no Brasil, a honorabilidade se reveste, dentre outros rituais, do ato de se levar o pão para casa diariamente. Não há, contudo, conflito para se conseguir tal alimento uma vez que todos desfrutam de emprego digno e produtivo. Enquanto se puder, pelo menos, comer o pão de cada dia, como reza o religioso brasileiro, alguém vai fazer por ele as demais tarefas cíveis, econômicas e quaisquer outras mais complicadas.

O amadurecimento político é a teoria que mais se adapta ao

padrão das reações ora desencadeadas. É um comportamento previsível partindo-se da análise imparcial do nível elevado nos âmbitos ético, moral, social, educacional e financeiro que todos nós brasileiros manifestamos. Tal nível encontra-se no patamar humano de comportamento. Creio que a marcha do pão, vinculada ao amadurecimento político, vá contagiar outras pessoas e, por reação em cadeia, chegue a comover até os mais “míopes”, ou “surdos”, ou os “insensíveis” e, assim, a conquista do respeito humano passe a ser uma realidade em todos os setores sociais, todos os grupos e relações inter-humanas. E por que não acreditar que a reação alcance o nível ecológico? E, nas mais diversas áreas, trabalhadores e desempregados perceberão o valor da união ética e honesta. A união humana é um desafio pouco cogitado, menos ainda praticado, e pode ser uma experiência salvadora. A revolta do pão, a salvação do Brasil... Vislumbro uma luz no fim do túnel em relação a tantos escândalos que

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destroem o país. O Brasil irá mudar com a febre de princípios que está dominando todas as senhoras do país.

A matemática para o cálculo do preço do pãozinho é bem

mais fácil de ser compreendida do que a matemática dos impostos em cada alimento que compramos, dos impostos em cada salário no final do mês, do imposto em cada litro de combustível, dos impostos nos transportes, das fraudes do INSS, “mensalões”, desvios, licitações tendenciosas e, até mesmo do próprio pão francês. É certo que tudo esteja caminhando para que os escândalos cheguem a um extremo tal que comprometa inclusive a matemática do pãozinho francês e, aí, espero que já não seja tarde demais para convencer os nossos “ criadores e donos ” de que não poderemos viver sem o pão com manteiga, artigo último mantido com o objetivo de se ter força de trabalho, em troca.

Estou inclusive pensando em propor aos meios de

comunicação que, a partir de agora, veiculem fraudes e desvios em unidades de pão. Imagine o jornal televisionado dizendo ao Brasil que foram encontrados deputados com dois milhões de pães franceses nas cuecas ou que os deputados receberam oitocentos mil pães franceses para aprovar alguma proposta do governo. O Risco País seria de quantos pães? E quando a empresa de eletricidade anunciasse aumento de quinze pães no preço da luz? Ou da água e do telefone? “Gostaríamos de anunciar que o governo federal vai investir trinta pães franceses por pessoa na saúde pública, este ano, no país... E o médico receberá quatro pães por consulta no SUS...”. “O Salário mínimo vai aumentar vinte e oito pães, passando de setecentos pãezinhos para setecentos e vinte e oito...”. “O Juiz Fulanal desviou cem milhões de pães franceses para suas contas bancárias...”. Ficaríamos impressionados ao escutar que as autoridades policiais cobraram doze mil pães franceses para proteger determinado criminoso? E que os fiscais e auditores aceitam se subordinar por cinquenta e cinco mil pães para não autuar um infrator?... E ouvir que as nossas riquezas naturais estão sendo trocadas por duas ou três centenas de pães? Pedágio : $Pão-Francês 12,00. Quem sabe se a unidade monetária do país fosse ao invés do real o pão talvez o cálculo

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dos escândalos fosse mais fácil de assimilar e assim a reação do brasileiro seria algo mais imaginável.

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Oito de dezembro de mil trezentos e seis

A explicação incoerente mostrava apenas o quanto ele não estava preparado para exercer aquela tarefa. O pavor estava estampado em seu rosto e cada palavra que dizia denunciava sua vulnerabilidade. Cabelos brancos que denunciavam mais sofrimento do que velhice. Olhar rápido e desconfiado mostrava o quanto nosso líder, governado e obcecado pelo sentimento de perseguição, deixou-se dominar. Submeteu-se como quem tem fome. E, flagelado, esqueceu-se da sua ética, esqueceu-se da dignidade de todos que representava.

Alguns meses antes, Alberto lutara para ganhar a confiança

de todos. Dizia que, ao nos representar, quando eleito, combateria a humilhação, o desrespeito e tudo que se traduzisse como prejuízos causados aos seus semelhantes. Conquistou nossa atenção quando disse que resgataria a dignidade de cada um que trabalhava sob regime de servidão. Buscaria nos lugares mais inóspitos apoio e armas para defender nossa causa. Era um homem com boa fluência verbal e a usara com maestria para nos convencer de que, se o apoiássemos, obteríamos melhores condições de vida e boas mudanças para nossas famílias.

O esgotamento físico era uma das causas de nossa apatia.

Obrigados a trabalhar até a exaustão em troca de alimento para nossos filhos, ignorávamos qualquer ideia de mudança que pudesse surgir. E, mesmo que alimentássemos alguma ideia, o cansaço e a subnutrição nos faziam perdedores. O medo não era incomum. Mesmo quando alguém se mostrava corajoso, outros trinta argumentavam sobre a possibilidade de deixarmos famílias órfãs. Mencionavam as dores do corpo e o desgaste da alma. Tudo nos intimidava. Desconhecíamos qualquer forma de pensar em alguma mudança, uma vez que jamais havíamos entrado em contato com outro modelo de sobrevivência. Apesar de sermos muitos éramos desunidos. Por razões inescrutáveis sequer intuíamos os meios e benefícios da união. Pelas mesmas razões éramos mecanicamente manipulados.

Houve um louco que tentou nos falar. Dizia que viver sem

liberdade não era viver. Gritava que vivíamos a morte plena. Defendia

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uma divisão justa de tudo que produzíssemos e falava sobre respeito e ética. Por vezes tentou desenvolver em nós as faculdades do pensar. Falava que quando todos se respeitam, reúnem-se, discutem, refletem e produzem o crescimento. Defendia a capacitação de todos para que cada comunidade pudesse andar com suas próprias pernas. Tentou nos ensinar. Ignorantes e assombrados pelo medo de perder o pouco que nos era garantido, entregamos o nosso semelhante aos nossos patrões. Estávamos acostumados com nossa vida. Uma boa maneira de nos fazer covardes era nos deixar acreditar que tínhamos alguma coisa; mesmo que fossem apenas a batata que alimentava e a água que saciava a sede. Acreditar que se possui algo gera o temor de perdê-lo.

E houve o Alberto. Ele se aproximava de cada um de nós com

um vasto sorriso e palavras de mesura. Paciente, iniciava a conversa com temas amenos e aos poucos introduzia as ideias que tencionava que assimilássemos. Atencioso, transmitia interesse pelos nossos problemas. Devo afirmar-lhes que até conhecê-lo não tínhamos consciência de que tínhamos problemas. Desde então tornamo-nos inquietos e ansiosos por uma mudança. Alberto, porém, nunca nos desenhou uma maneira de enfrentar as desigualdades e isso nos encantava, pois sabíamos que ele resolveria, e não precisaríamos nos esforçar. Era o nosso salvador. Ele até gostava de que o chamássemos assim.

Em pouco tempo todos fomos cedendo aos seus propósitos.

Logo, muitos apoiávamos Alberto e a onda de pensamento invadiu toda a comunidade, chegando ao conhecimento do nosso Senhor. Este, percebendo a iminência da reação, tratou de criar um cargo elegível pela comunidade, para um de nós. Cargo este que representaria uma possibilidade de termos um simples servo, com voz, como nosso defensor. Este foi o primeiro passo brilhante.

Aos poucos, após escolhido, passou a frequentar o castelo e

todos os eventos que lá eram realizados. Ganhara presentes e tornara-se amigo do nosso Senhor. Orgulhosos, celebrávamos nossa conquista. Mais um brilhante passo. Gostava de xingar o Senhor para todos nós e não perdia uma oportunidade sequer de criticar duramente aqueles que, entre nós, não estava satisfeito com a

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evolução da sua representatividade. Imagino as piadas contadas nas festas do castelo sobre nosso povo. Alberto transformava-se a cada dia e hoje percebo o quanto sua coragem para nos combater se tornava maior do que aquela para nos proteger. As nossas cobranças eram rebatidas com agressividade por ele; era como se o estivéssemos ofendendo. Mais uma grande jogada.

E a intenção era que tudo aquilo estivesse acontecendo. Os

fatos se sucederam com uma precisão tal que é possível imaginar que tudo tenha sido articulado por alguém meticuloso. Certamente alguém mais inteligente do que todos nós juntos.

Surgiram famílias inteiras mortas nas suas casas enquanto

dormiam. A tolerância com nossos erros se tornava visivelmente menor. Éramos surrados por qualquer indício de pensamento e se falássemos algo éramos condenados à morte. Onde andaria Aberto?

Nosso representante havia sido contatado dias antes e

desaparecera. Hoje sei que Alberto recebera de nosso patrão a informação de que alguns de nós estávamos nos unindo para derrubá-lo. Era o xeque-mate. Para o medíocre Alberto era mais fácil seguir os padrões de um escravo do que de um nobre. Era mais fácil para Alberto matar-nos do que enfrentar um nobre. E nosso salvador nos dizimou.

A ideia de Alberto, de ser o único a lutar para salvar toda

uma comunidade, era provavelmente a atitude mais conveniente para perpetuar a nossa desunião. Sua iniciativa era destrutiva e levava implícito o sentimento da necessidade do poder. Quem faz acreditar ter o poder de lutar pelos outros sem capacitá-los para o combate vem posteriormente mostrar que o poder é o seu objetivo final. A ânsia pelo poder usa a máscara da salvação para conquistar os que nela creem. Qualquer pessoa que se acredite poderosa o suficiente para modificar uma nação estará cegamente extasiado quando se sentir maior do que todos? Aquele aparentemente humilde e comprometido com a dor do semelhante que diz ter força para mudar a vida deste estaria demonstrando claramente suas ambições de poder? Regozijar-se-á quando conquistar o que desejava?

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Que sentimento nos faz acreditar no poder de outra pessoa

e não na nossa capacidade de nos modificar? Que avidez nos faz crer em doadores de salvação? Que força nos conduz a aceitar passivamente a necessidade de alguém que venha nos proteger? Que cegueira é capaz de nos impedir de perceber o que se esconde detrás de máscaras há séculos semelhantes?

Se um pode lutar e defender todo mundo, ninguém vai se unir

para conseguir alguma coisa. Ficaríamos, como realmente ficamos, esperando pelo salvador. E piora quando a comunidade se divide mais ainda pois a metade acredita em um salvador e a outra metade acredita noutro. A intenção de Alberto era simples : assumir as dores de todo mundo seria um estímulo à covardia dos outros. Era uma constatação da fraqueza da maioria. Era mais uma aceitação de outra forma de dominação : pessoas dominadas pela ideia de que alguém vai combater por elas; pessoas dominadas pelas ideias da pessoa que as fez acreditar que as salvaria; pessoas dominadas pela ignorância do seu próprio poder de união.

O poder que cada pessoa encerra e o poder maior ainda que

surge da união de muitos surgirá no dia em que estes forem transformados em vida. Por enquanto apenas destroem vidas.

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Valdir e o pesadelo da humanidade

Dois mil e sete foi definitivamente um ano diferente para Valdir Esconso, meu pai. Hoje, já é desbotada a sua imagem, revelando seu mais íntimo desejo para aquele ano, quando do seu inevitável início, na madrugada do dia primeiro. Embora a nitidez de sua proclamação tenha tido um efeito devastador para todos nós, presentes àquele instante, por quase oito anos intermináveis, contrariando inclusive a natureza imprecisa da memória humana, sentimos falta de sua imagem. Agora, consigo apenas enxergar a ideia da cena. Valdir era um homem de aparência silenciosa e bondosa, com seus incompletos cinquenta e sete anos. Éramos uma família disciplinadamente pacífica seguindo, como dogmas, as lições que meu avô costumava proferir. Não tivemos a oportunidade de conhecê-lo em vida, senão pelas doutrinas religiosamente seguidas por tios e Valdir, que o mantinham entre nós. Reporto-me àquele ano pois estou cada vez mais convencido de que foi ali que nossas realidades foram interceptadas. Já na madrugada daquele primeiro dia, após as festas e celebrações, já lançadas aos ventos todas as palavras de desejo, Valdir Esconso iniciara uma cadeia de sonhos, ou talvez uma cadeia de acontecimentos pois ainda não tenho o instrumento necessário para diferenciar tais eventos – mesmo analisando-os friamente atualmente – que terminariam há dois dias, com o seu sepultamento. Valdir foi uma pessoa dócil que viveu tranquilamente e jamais se preocupou com os problemas de sua sociedade, esteve interessado exclusivamente em sua existência e apenas no que dissesse respeito à sua vida e à sua família.

Faz-se necessário, neste momento, recordarmos o que foram alguns dos anos que precederam o marcante 2007 e que definiram como aquele próprio ano seria construído e os outros se sucederiam. Recordo algumas características daquele tempo. Informações outras consegui por meio de pesquisas e entrevistas. Lembro bem que aqueles anos ficaram marcados pela frase: “contra argumentos não há fatos”, consagrada pela incapacidade de a 56

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humanidade reagir ao que via e sentia. Estávamos todos sob controle de uma força autoalienante provocando uma deplorável necessidade de submissão e condução intelectual. Reagíamos com destreza ao que pronunciavam nos meios de comunicação como se adestrados fôssemos e o que bastava era aquela opinião que muitas vezes nem sabíamos de quem era. Aconteceram muitas vezes de termos visto através dos meios de comunicação, e, também, na maior parte das vezes, vivenciado cenas de homicídio e genocídios; fraudes; corrupções; sequestros; subornos; compras de votos; enforcamentos; apropriações indébitas; queimadas criminosas, poluições oceânicas, aquecimento global e suas enchentes, secas, tornados, tufões, tempestades e desidratações; mundos de obesidades e caquexias inexplicáveis; riquezas e pobrezas extremas sem a tendência de um mínimo equilíbrio; concessões obscuras; educações banalizadas, instruções maldosamente manipuladas, lúcidos pintados como loucos, distorções dos fatos; obrigação de impostos abusivos; estupros, violações de direitos humanos e de nações, violência infantil; extinções e mais uma imensidade de depravações corroboradas pela falta completa de vergonha de uma grande parte da humanidade, inclusive nós, a família Esconso, calados, acomodados e covardes. A comprovação da degeneração e da desvergonha foi possível com a simples constatação da ausência de reação por parte das pessoas diante de tantas agressões à vida. Lembro de ter testemunhado, após aquelas cenas, inúmeras vezes, explicações dos criminosos, homicidas, fraudadores, sequestradores, genocidas, ladrões, estupradores, políticos (legisladores, gestores, líderes de comunidades...), juízes, fiscais, auditores, assessores, organizações unidas, que negavam seus atos e saiam em defesa de suas atrocidades, justificando-as, a despeito de todas as imagens registradas. E eles venceram, impuseram suas explicações, convenceram, dominaram, conseguiram ser mais inteligentes e mais fortes. E depois de a humanidade testemunhar calada e inerte as matanças brutais por todo o planeta, pessoas continuaram sendo mortas com a mesma sede que mataram-se árvores e animais. Continuou havendo morte de pessoas em nome de petróleo e em nome de status; permaneceram as devastações criminosas das reservas naturais já escassas em busca de balanças comerciais favoráveis e em nome de uma falsa busca pela sobrevivência; perpetuaram-se as fraudes e humilhações, os genocídios e a

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manipulação com objetivos próprios. Permaneceu a busca acelerada por algo que muitos nem sabiam dizer o que era.

Nossa vida era algo sem muitas variações. Na semana, acordávamos e, após nos vestirmos, tomávamos café com a mamãe que depois nos levava à escola. Valdir já estava a caminho do hospital quando levantávamos. A escola era aquela imposição de informações por professores deprimidos, arrogantes, frustrados e preocupados com seus problemas financeiros e emocionais, que nos conduziam militarmente ao mundo da grande oportunidade de um emprego. Acreditavam assim que estavam contribuindo para o progresso e a evolução da nação. Nossa mãe era vendedora em uma loja de roupas e, sempre que as compras eram boas, percebíamos através de seu humor enlevado a satisfação de se ter um bom dia de trabalho. Nossa rotina era esta. Raramente havia um dia que o Valdir pudesse ou devesse nos levar para a escola. Buscar nunca aconteceu pois seu plantão ia horas além dos nossos horários. Ele acordava e, como sempre costumava fazer, banhava-se e arrumava-se impecavelmente para ir ao trabalho. Trabalhava em um hospital na cidade vizinha e procurava cumprir as regras e horários normatizados daquele emprego. Costumava tomar café no hospital e naqueles primeiros minutos podia folhear o jornal do dia. Conversava rapidamente com os colegas sobre alguma notícia recente e seguia para atender aos seus assíduos pacientes. Havia alguns momentos de folga entre os atendimentos e no descanso, esperado e merecido, ele ia para a sala de convivência e lá surgiam os pronunciamentos de revolta e de indignação com uma possível intercorrência hospitalar ou mesmo com mais alguma notícia veiculada pelo noticiário ou comentada por colegas e amigos. As reclamações tomavam uma onda de exaltação e sempre era seguida por um estado de plena conformação e retorno para sua salinha de consultório. Este era meu pai. Em casa, quando tínhamos a oportunidade de encontrá-lo, estava consumido pelos temas mais recentes da medicina ou mergulhado no mundo da televisão. Houve alguns finais de semana que pudemos sair para passear ou visitar tios e primos. Esses eram bons pois conversávamos no caminho e durante o almoço; brincávamos com os primos e disputávamos as melhores histórias, inventadas ou não. Em casa e entre a família, nunca vi nosso pai reclamar, esbravejar, lutar ou se indignar. Parecia tentar demonstrar tranquilidade e confiança.

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Demonstrava despreocupação mesmo quando enfrentávamos algum problema ou presenciávamos alguma injustiça. Assim foi até o dia 31 de dezembro de 2006. Mas a omissão de Valdir diante das injustiças e desonestidades também era um crime contra a natureza humana, contra si e contra todos nós. O medo que o dominava e o impedia de lutar por um mundo mais honesto o transformava em alguém tão desonesto quanto os personagens de seus futuros tormentos.

Valdir acordara naquela manhã com uma sensação de medo. Não lembrava do que tinha sonhado mas supunha que a sensação estava relacionada com o sonhar. Logo ao levantar pôde ouvir um comentário diferente da esposa, em visível manifestação de pavor: – “nosso vizinho foi sequestrado e encontrado morto por volta das quatro horas da madrugada”. Valdir então lembra das cenas de Francisco sendo levado, violentado e assassinado. Calado, sem entender as lembranças, caminha para a copa e toma um copo d’água como que para assimilar as imagens tão nítidas em sua mente. Daquele dia em diante nossa vida sofreria uma guinada.

Desde então, Valdir continuou aparentando ter uma vida normal contudo sonhava diariamente com assaltos seguidos de mortes, fraudes, desonestidades, humilhações, difamações, homicídios, estupros, espancamentos, abusos, enforcamentos, sequestros, homicídio por dinheiro, etc. E os sonhos do Valdir não tinham relação alguma com sua rotina e sua vida diária, mas curiosamente a cada dia surpreendia-se com um noticiário que relatava exatamente o seu sonho, na vida de outra pessoa, às vezes um conhecido ou parente. Passou a sentir medo dos pesadelos que tinha e isto de certo modo o incomodava durante o dia quando surpreendia nos noticiários algo que havia sonhado. Depois de um ano as imagens passaram a povoar sua mente durante a vigília e surgiam como se ele tivesse sido o agente direto da ação. Sentia-se culpado. Relâmpagos de cenas atormentavam Valdir a qualquer hora e ele começava a pensar na possibilidade de realmente ter sido ele que estava cometendo tais barbaridades. O tormento passou a ser a rotina também nos dias de Valdir em busca de explicação para suas visões. Passou a ser alguém sombrio e inseguro. Vivia em pânico e já não podia trabalhar como antes. A atenção aos filhos ora era exacerbada ora renegada e a esposa já não tinha mais

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perspectiva de mudança. Esconso tinha medo de que algo acontecesse à sua família e realmente tinha medo de que dor e sofrimento corroessem seu corpo e suas entranhas.

E Valdir percebeu que naquele dia, quando pediu a Deus uma chance para fazer de sua vida algo diferente, plena em coerência e válida para a sua existência e de seus filhos, recebeu o presente da visão da verdade. Recebeu o dom da percepção, nua e crua, da horrenda realidade que domina o mundo. Talvez, sentindo na própria pele o que sua omissão estava avalizando, pudesse agir. Percebeu que não poderia haver mudança se continuasse levando aquela vidinha acomodada que levava e que para haver conquistas que representassem um valor humano deveria haver renúncia e luta. Luta interior, luta intelectual, luta emocional... Recebeu ainda o dom da coragem e da sabedoria para ir ao sol, mesmo sob o risco de ser visto e de se tornar um alvo facilmente exposto, usando toda a sua força humana, agora positiva, para conscientizar, reformar, modificar, salvar, combater, proteger e fortificar, semear esperança, criticar... Reavaliar suas crenças, discutir, compartilhar e continuar mudando...

Valdir Esconso, tornou-se meu pai naquele dia. Assumiu sua hombridade e sua família. Assumiu seu papel social com maestria. Resgatou sua existência. Ensinou-nos o valor da verdade e da humildade. Apresentou-nos a força da coragem e da dignidade. Mostrou-me que posso ser seu seguidor e aperfeiçoar seus passos, guiado pela suas ideias de vida, de respeito, de honestidade e de cidadania.

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JACINTO LUIGI DE MORAIS NOGUEIRA

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