"Escuta Essa"

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31 contos inspirados em 31 canções da nova música brasileira

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Escuta Essaorg. Izadora Pimenta

Danielly Friedrich

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ORGANIZAÇÃO E EDIÇÃOIzadora Pimenta//Danielly Friedrich

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICAIzadora Pimenta

CAPARodrigo Lourenti

REVISÃODanielly Friedrich//Mariana Rosa

www..rocknbeats.com.br

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{leia no volume máximo}

Músicas são catalisadores de sentimentos, que nos movem a preencher uma página em branco ou a projetar na tela da memória lembranças photoshopadas. Seja por causa da nostal-gia precoce dos nossos dias, seja porque somos movidos pelo hábito de buscar, no vocabulário das insônias, por palavras ca-pazes de descrever nossas reminiscências da forma mais bonita possível. Que atire o primeiro iPod, pois, aquele que nunca teve uma trilha sonora que marcou momentos especiais em sua vida, ou que nunca cometeu um poema, um conto ou uma carta de amor ouvindo uma canção escolhida a dedo.

Música e literatura combinam tão bem quanto letra e melodia. Prova disso são as muitas canções que foram inspiradas por li-vros, como “Don’t Stand So Close to Me”, do Police, que cita “Lo-lita” de Vladimir Nabokov. Ou “White Rabbit”, viagem do Jeffer-son Airplane cujo ponto inicial foi a leitura de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. E não posso deixar de citar Kate Bush, outra leitora compulsiva que compôs “Wuthering Heights” a partir de “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Bronte, e “The Sensual World”, canção inspirada pelo monólogo de Molly Bloom no capítulo final de “Ulisses”, de James Joyce. Ou “O Estrangeiro”, de Albert Camus, que além de ter inspirado “Killing an Arab”, do The Cure, é citado na letra de “A Revolta dos Dândis”, sucesso dos Engenheiros do Hawaii cujo título é o mesmo de um dos capítu-los de “O Homem Revoltado”, outro livro de Camus. Caetano Velo-so, compositor de “A Terceira Margem do Rio” (música homônima do conto de Guimarães Rosa), é outra referência na área. E isso só para citar alguns exemplos desta sinergia bem-sucedida entre obras literárias e musicais.

O inverso também ocorre. O jornalista e escritor Ronaldo Bres-sane convidou autores como Luis Fernando Veríssimo, Mia Cou-to e Xico Sá para criarem ficções que foram reunidas no livro “Essa História Está Diferente – Dez Contos para Canções de Chico Buarque”. O escritor Henrique Rodrigues organizou duas antolo-gias de contos baseados em músicas dos Beatles e da Legião Ur-

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bana. A Mojo Books, criada pelos editores Danilo Corci e Ricardo Giassetti, publicou 23 e-books inspirados por álbuns de bandas como Depeche Mode, Big Star, Mundo Livre S/A e Belle & Sebas-tian. E como não deixar de citar “Alta Fidelidade”, clássico imedia-to da literatura pop escrito por Nick Hornby, que conta a história de Rob Fleming, dono de uma loja de discos obcecado por fazer listas de Top 5 (por exemplo: cinco melhores músicas que ficaram no lado B de LPs), cujo primeiro lugar na lista de trabalho dos seus sonhos era jornalista do New Musical Express entre 1976 e 1979?

E assim, seguindo esta boa linhagem, eis que temos agora este “Escuta Essa”, coletânea de 31 contos baseados em músicas da nova música brasileira. E que tem como inspiração direta outro livro de Nick Hornby, “31 Canções”, no qual o escritor inglês diva-ga sobre porque certas músicas, gravadas por nomes tão dife- rentes quanto Bruce Springsteen, Nelly Furtado e Ben Folds Five, marcaram de algum modo a sua vida.

Os contos reunidos neste livro são uma boa amostra da capaci-dade de evocação que certas canções provocam em cada um de nós. Afinal, criar arte é uma bela maneira de fazer a catarse de lembranças, emoções, reminiscências. E assim, por meio de con-tos digressivos, relatos de inspiração autobiográfica, cartas que não foram enviadas, desabafos líricos, narrativas urbanas ou de viagens (tanto geográficas quanto interiores), os textos reunidos nesta coletânea acabam por traçar um retrato multifacetado e bastante significativo do que se passa na cabeça de uma geração que está testemunhando o fim das fronteiras entre o online e o offline, numa era de transição permanente na qual a única cer-teza é de que tudo está mudando em velocidades cada vez mais vertiginosas.

Em tempos nos quais a internet democratizou a publicação de obras e a divulgação de novas bandas, “Escuta Essa” não pode-ria ter outro formato que não fosse a de um e-book livremente disponibilizado na rede, com links que possibilitam ao leitor, ao alcance de um clique, ouvir as músicas que inspiraram os tex-tos, assim como ler suas respectivas letras. Cada canção também inspirou uma ilustração, neste mashup de referências sonoras, visuais e musicais criado por pessoas geograficamente localiza-das em diversas cidades e estados, que foram reunidas graças a

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tecnologias que dissipam fronteiras e possibilitam a criação de novas formas de arte.

Minha recomendação é de que você leia os textos deste livro duas vezes. A primeira, sem ouvir a fonte de inspiração musical. E a segunda, dando o play e deixando os fones devidamente preparados para apreciar uma boa sinestesia entre olhos, ouvi-dos, neurônios e coração.

ALEXANDRE INAGAKIAlexandre Inagaki é jornalista, consultor de comunicação em mídias digitais e autor do blog Pensar Enlouquece, Pense Nisso.

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texto: LUCIANA ESTEVAM

VIVENDO DO ÓCIO nostalgia

Limeirense de nascimento, campineira por opção. Formada em Letras pela Unicamp, vive aprontando de tudo um pouco: professora de Língua Portuguesa, Literatura e Redação, revisora, escritora, dona de brechó, desenhista, compositora, amante dos gatos vira-latas e palpiteira nas redes sociais. Ama a noite mais que o dia. Mas, na verdade, sonhava apenas cantar bem e poder ter sua própria banda.

Álbum: “O Pensamento é um Imã”, 2012Composição: Jajá Cardoso/Davide Bori/Luca Bori/Dieguito Reis/Pablo Dominguez

Selo: Deckdisc

ilustração: TAINÁ COSTACriada no interior de São Paulo, sempre se interessou por arte. Começou pintando as paredes com giz de cera e levando bronca da mãe, e agora é formada em Web Design e em Artes Visuais. Atualmente ilustra livros infantis e trabalha em uma agência de publicidade, além de escrever em sites geeks sobre uma de suas grandes paixões: o cinema.

escuta essa!►letra da música

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{nostalgia}

Enquanto discava para ela em São Paulo, olhava a paisagem que, para mim, era a mais bela de todas: Salvador. Ela provavelmente não atenderia nem entenderia. Mas aquela concretude áspera, cinzenta e fétida da metrópole paulista me oprimia. Não que não gostasse de São Paulo, juro que amo. Porém, sentia-me enjaula-do. Em vez disso, queria sentir o vento na pele do rosto. O gosto do sal no mar. O cheiro do acarajé. Contemplar as cores vivas do pelourinho. Ouvir o meu sotaque de novo e assim me sentir mais em casa. Salvador era assim: viva na saudade em todos os meus cinco sentidos.

Na manhã anterior, fizera minha mochila rapidamente e me di-rigira ao Terminal Rodoviário do Tietê. Foi tudo repentino, sem muito cálculo. Eu só precisava. Naquele momento nada era mais claro do que a sensação de precisar fazer. Comprei a passagem no guichê já conhecido de minhas outras viagens. E a aventura era longa - mais de um dia inteiro separava-me de minha terra natal. O que era pouco e muito, ao mesmo tempo. Pouco perto da saudade que eu sentia e muito para pensar se não estava fa-zendo uma burrada enorme deixando Júlia sem as devidas expli-cações. Pode o amor a uma cidade ser maior que o amor a uma mulher? São sentimentos comparáveis? Penso, penso, penso e não consigo responder.

A viagem, como todas as outras, configurou um universo parti- cular dentro daquele pequeno espaço do ônibus. Cada pessoa ali era um mundo. A moça que volta pra ver o noivo. O filho que está com saudade da mãe doente. A criança que nada entende e ain-da vai ficar irrequieta ao perceber que as horas sentadas ali não têm um fim próximo. Essa mesma criança abrirá um salgadinho do tipo “isoporitos”, cujo odor não suporto, e transformará a ter-nura recém-adquirida por ela em ódio mortal. Não falta o neném chorando e a mãe que o amamenta. Idosos lúcidos e outros nem tanto, ambos falando bobagens. Tudo ali ao meu redor.

Esse cenário já era velho conhecido meu e, em tantas viagens,

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pouca coisa muda, de fato. Mudam os rostos, mas não a essên-cia dali. Confesso que sempre torcia em silêncio por um compa- nheiro de poltrona que não gostasse de conversar. Prefiro viajar calado com meus pensamentos. E naquela situação mais do que nunca. Os deuses conspiraram a meu favor e assim foi. Um tipo magro, calado, de seus 40 anos, sentou, disse “Boa noite” e até a primeira parada nada mais balbuciou. Que bom. Melhor assim. Nada pior que as velhinhas reclamonas.

Voltei a ouvir o toque do telefone chamando, e ela finalmente atendeu. Júlia deu um alô seco, devia estar realmente brava. Ou magoada. Provavelmente as duas coisas.

Provavelmente seus olhos deveriam estar vermelhos de tanto choro, e isso partia meu coração. Mas, ao levantar a cabeça no-vamente, avistei a minha Bahia. Engoli em seco. E me expliquei. Ela ficou calada por minutos, enquanto eu vomitava as palavras. Desligou na minha cara. Senti dor, mas não arrependimento. Se ela me amar, irá me perdoar quando eu voltar. Fui em direção ao mar, tirei meu tênis e mergulhei de roupa e tudo.

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texto: JÚLIA THUM SCHMIDT

MARCELO JENECI por que nós?

Natural de Porto Alegre, hoje mora em Florianópolis, onde é acadêmica de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. É adepta da arte da escrita desde que percebeu que, com as palavras, poderia criar o que quisesse viver.

Álbum: “Feito Pra Acabar”, 2010Composição: Marcelo Jeneci/Luiz Tatit

Selo: Som Livre/SLAP

ilustração: FERNANDA MALESKINatural de Joinville (SC), hoje mora na cinza Curitiba (PR). Estudante de Design na UTFPR, trabalha como freelancer. Seus atuais trabalhos envolvem ilustração, identidade visual e web design. Possui trabalhos de animação em fase de construção. Nas horas vagas é body piercer, toca escaleta na banda Símonami, gosta de comer coisas azuis, ama fotografar e é acostumada a escrever sobre si em terceira pessoa.

escuta essa!►letra da música

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{interlúdio}

Acordou com o arco-íris, a mente imersa em diversos sentimen-tos. Em sua cabeça tocava aquela música antiga, que o lembrava vagamente de sua juventude, da época em que era o próprio ar-co-íris.

As múltiplas cores que se misturavam pelo quarto partiam do cristal preso à janela. Quando não havia um nós, havia sempre as cores, lá, à sua espera, o lembrando de um tempo onde, talvez, existisse um plural para o singular da sua existência.

À sua cabeça, resgatavam-se as mais diversas imagens, que fluíam dos becos mais sombrios e distantes de sua imaginação. Lembrou-se do arco-íris à beira da praia, de um violão abandona-do na areia, de vozes melódicas entoando uma canção.

De repente, estava de volta àquela praia, naquele entardecer, comprando uma pequena bola de cristal de uma senhora que vendia artesanato perto da areia. Embalara-a em veludo verme-lho, amarrado com uma pequena fita azul.

Vestia uma camiseta vermelha e acreditava em revolução. Vinte anos antes, afirmava que o mundo era seu e que iria mudá-lo, de alguma forma. No entanto, o passar do tempo havia exaurido toda sua ideologia. Tudo que acreditava, naquele momento em que levantou da cama, era que aquele seria apenas um dia co-mum, com, no máximo, algum happy hour para agitar sua noite.

Estava tão acostumado com o jeito que as coisas haviam se mol-dado ao seu redor que seu íntimo nem lembrava mais o que era ser jovem, muito menos o quanto sentia falta de um pouco de cor, um pouco de revolução. Sua alma urgia pela mudança, mas seus pés estavam cansados dos trajetos em círculos. E ali paira-va o arco-íris em sua parede, tentando impor aquela mudança, enquanto ele resistia, lutando contra o despertador, fechando a cortina e apagando os vestígios de luz.

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Sonhou. Reviveu alguns pores do sol, reencontrou alguns rostos, orbitou com um novo beijo, que na verdade não era novo, mas sim, velho. Um que pensou que esquecera na metade do cami- nho entre a vida jovem e a maturidade, porque era assim que se considerava: um cara com quarenta anos de idade que, embora houvesse alcançado certa estabilidade financeira, não conseguia tratar com seus próprios sentimentos.

O rosto dela continuava com a coloração do pôr do sol, pelo menos em suas memórias. Os longos cabelos estavam pintados de vermelho e, naquele momento, um pouco mais reluzentes do que o normal. O cristal brilhava em sua mão direita, e ele, de repente, percebeu do por que ter escolhido o veludo vermelho com a fita azul. Era assim que se sentia, o contraste da cor dos cabelos dela com o azul do mar, logo adiante. Enquanto ele, o arco-íris; Iasmin, o pôr do sol.

O pôr do sol se foi, e ele estava sozinho na praia com o cristal. O sonho tomou forças de um pesadelo, e ele se obrigou a acordar, perguntando-se por que nem em sonhos conseguia sentir-se em paz. Pensou que já bastava sua vida de fato, recheada de res- ponsabilidades, gravatas e conversas chatas. Lembrou-se do vi-olão que estava com eles na areia, e em como aquele momento fora infinito, fora início e fora fim.

O levantar veio tarde, a arrumação veio rápida e o fim do dia che-gou se arrastando, quase parando, mas chegou. Era assim que re-sumia sua vida, uma segunda sonhando com sexta-feira. Naque-la quinta-feira só havia mais um dia que o impedia de libertar-se daquelas roupas que nada lhe combinavam e voltar a ser ele, por um fim de semana, sonhando com um amanhã diferente, pareci-do com o ontem, que já se foi há muito tempo.

No ambiente do escritório, sentia-se peculiarmente descon-fortável. Embora tivesse começado naquela carreira pensando em causas nobres, não se orgulhava do que tinha que fazer para finalizar os relatórios mensais, para forçar as negociações; não se identificava com nenhum dos seus colegas, não se identificava com os negócios que fechava, não se identificava com a atração que algumas mulheres nutriam por ele.

Em meio a tantas pessoas, no entanto, contava com seu (único)

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amigo Zé. Odiava aquele lugar com todas as forças, odiava o cor-porativismo, o capitalismo, os presidentes do país, e o fazia lem-brar-se de sua velha camiseta.

Zé apenas trabalhava para manter a família, e constantemente aconselhava o amigo a desistir. Não havia nada, costumava men-cionar, nada para ele ali. Ele nem menos tinha alguém que de-pendesse dele. Não deveria ser sugado, nem deixar-se explorar porque, cedo ou tarde, não havia mais volta.

Mas já não havia volta. Não havia volta há muito tempo, pelo menos desde que uma cabeleira vermelha coroada de flores deixou-o apenas com o perfume do próprio travesseiro. Iasmin fora embora tão logo depois do cristal, tão logo depois do pôr do sol, tão logo dissipado o arco-íris. Pegou o violão, entrou em um ônibus e se foi, não olhando para trás, encerrando o nós.

Chutara o balde, a cômoda e a mala cheia de vinis que guarda-va, relíquia da casa dos pais. Vendera o quadro, presenteou a so-brinha com o gato. Tentou livrar-se do cristal, mas aquele ficou preso à janela, lembrando-o, ora sim, ora não, de que houve um tempo onde a constante solidão não lhe apetecia, e os cabelos ruivos cobriam-lhe o peito nas noites frias.

O toque das sete horas o recolheu dos pensamentos. Fechou o computador sem olhar os e-mails, guardou o material na pasta. Foi embora com Zé, que, soltando a gravata, o convidou para fa-zer algo diferente do que a clássica cerveja com futebol. Contou de um lugar escondido no bairro vizinho que apresentava músi-ca amadora.

O panorama cinza era o cenário da cidade pela janela do carro. Músicas americanas com batida eletrônica os recepcionavam nas rádios. Sempre que olhara para Zé, pensava em si, dentro de al-guns anos. Desiludido, obrigado e arrependido. Olheiras profun-das e olhos distantes. Admitira que vinha pensando em desistir, mas não tinha forças para começar tudo de novo. Para tornar-se escritor, ilustrador, cantor era preciso um pouco mais que talen-to, era preciso dedicação e muita, muita determinação – era pre-ciso deixar aquela vida cheia de arrependimentos para trás, e ele duvidava que conseguisse.

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Mas talvez pior do que deixar para trás fosse o ato de resgatar. A velha bandeira, as garrafas de vinho pintadas, as flores de plásti-co e a camiseta vermelha estavam em uma caixa esquecida, es-perando pelo olhar dele, para serem readequadas àquele novo estilo de vida. E não era aquilo que ele queria.

O bar a que foram era um pouco diferente daqueles que estava acostumado a frequentar. Primeiro que lá não parecia ter nin-guém ligando para a presença dele, muito menos pelo fato de estar usando terno. Segundo que o bar tinha música ao vivo, o que, para uma primeira impressão, era um alívio – havia criado uma aversão à impessoalidade daquela batida comercial que in-sistia em estar em todos os lugares.

Não sabia dizer se eram as paredes em cores vivas ou a segunda cerveja que chegava as suas mãos, mas alguma coisa naquele lu-gar o fazia sentir confortável. Em algum momento da noite – que pareceu ter enrolado o tempo e dado algumas voltas no ar –, ele ouviu uma voz melódica conhecida. A voz pertencia a uma mu-lher, que, na sua cabeça, tinha cabelos vermelhos e reluzentes. Ali, no palco, a sua frente, os cabelos eram escuros e brilhantes, os olhos ardiam fogo. Era a sua Iasmin, perdida no tempo, can-tando com o suporte de um violão.

Cantava sobre eles. Sobre os dois. Sobre o passado. Surtou. Sur-tou como nunca havia surtado. Deixou a cerveja de lado, tirou a gravata, o paletó, e só não continuou a se despir porque foi impe-dido por Zé – que por sinal, não sabia o que estava acontecendo.

O fato de despir-se ali daqueles trajes que o mantinham preso era porque precisava voltar – para as origens, para Iasmin. Enquanto ela cantava, lembrou-se das promessas, do dia em que ela fora embora, da promoção de emprego, da casa nova, de como todo o tempo em que ficaram juntos foi infinito. E aquele era o cami- nho de volta: era ela!

Aguardou o fim da apresentação. Olhou para ela novamente e percebeu que ela já o havia notado. A última canção da noite estava terminando, e ele só conseguia sentir a aflição em seus punhos fechados.

Os segundos, as sílabas, tudo orbitava naquele interlúdio entre a

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última estrofe e o final instrumental. Até que finalmente acabou. E vieram os aplausos. E todos correram para cumprimentar a vo-calista, dona daquela voz que ele chamava internamente de sua, sua, e apenas sua.

Ainda em choque, só conseguiu esperar. Sonhou acordado, ali, parado, até sentir uma pequena e delicada mão no seu ombro. Foi chamado pelo nome e conduzido até uma mesa no canto do bar. E ali, diante dela, parecia que tempo não tinha passado – que nada, de fato, havia mudado entre eles.

Ela disse que havia voltado por apenas um motivo. Queria que fosse por ele, porque aquele momento só poderia existir daquela forma. Duas histórias tão diferentes, mas que faziam maior sen-tido juntas.

O plural, o nós, era mais lógico do que o singular, do que o eu, do que as escolhas egoístas e centradas. Foi naquele momento que ele decidiu – queria a explosão. Queria viver, queria sentir, queria ver o pôr do sol na praia, queria ver a lua subindo, descendo, o sol nascendo de novo, e repetir a sequência todo o dia. Queria deixar reinar um arco-íris ocasional nas suas vidas. Chutar o balde. Dar adeus ao chefe, pegar seu caderno, usar a camiseta vermelha e sentir as mãos dela nas suas.

E sim, teria que ser com ela, porque a única certeza que tinha era que só com ela que aquele plano era capaz de funcionar. O jeito dela e dele eram tão únicos que estranhamente se completavam, transmutavam-se de dois para um, mas esse um era sempre o nós.

Pôs-se de joelhos junto à cadeira de Iasmin. Pediu uma, duas, três vezes – pediu pela bola de cristal, pelo pôr do sol, pelos momen-tos únicos que só eles eram capazes de se proporcionar – e afir-mou que sabia que era por isso que ela havia voltado.

A resposta veio tão rápida que não deu tempo de escutar. Tudo que se soube foi que estavam juntos novamente. Tornaram-se um, dois, tanto faz. Eram eles. E era o que importava.

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texto: JORGE WAGNER

VIOLINS ensaio sobre a poligamia

Natural de Paracambi, cidade do interior do Rio de Janeiro, filho do seu Jorge e da dona Hercília. Jornalista por formação, especializado em Leitura & Produção de Textos. Por diversão, produziu um tributo indie ao Raça Negra lançado em outubro de 2012 pelo site Fita Bruta e, por conta disso, acabou aparecendo nos principais cadernos de cultura do país.

Álbum: “Grandes Infiéis”, 2005Composição: Beto Cupertino

Selo: Monstro Discos

ilustração: DÉBORA ALENCARDébora vive em São Paulo, lugar que serve como inspiração para várias de suas ilustrações.Tem como passatempo o trabalho gráfico e a pintura, e seus desenhos focam, principalmente, no retrato da anatomia humana e da natureza morta. Além das gravuras, ela mantém duas plataformas online onde o assunto principal é a moda, e em seu tempo livre, gosta de registrar poemas por onde passa, para “deixar o mundo menos cinzento”.

escuta essa!►letra da música

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{ensaio sobre a poligamia}

Devo estar aqui há umas três horas, talvez um pouco mais. Isso porque o sol ainda incomodava minhas vistas quando cheguei e agora já anoiteceu e aquele número de pessoas felizes e bronzea-das e saudáveis que aqui estava quando cheguei já deu lugar a alguns poucos garis e catadores de latinha de cerveja. Três horas – ou qualquer coisa assim – nas quais eu supostamente estive pensando na conversa que tive com minha mãe durante o café. Supostamente. Três horas nas quais não fiz mais do que olhar para o nada, ao longe, e deixar minha mente se perder, vazia, embalada pelo som das ondas.

Esse é o problema com a minha mente: ficar vazia com frequên-cia. E, bem, você sabe o que dizem sobre mentes vazias.

“Tudo tem um propósito” é uma daquelas frases que costumo ouvi-la dizer mais ou menos desde quando passei a ter idade para me lembrar das coisas que costumo ouvir as pessoas dize-rem. Essa e aquela variante que diz que Deus sabe de todas as coisas ou que foi assim porque Ele quis que fosse. Boa cristã ela, a minha mãe. Mas sei lá. Ok, ok... Acredito em Deus e imagino que ele saiba o que está fazendo, mas não acho que posso colocar tudo na conta do cara. Coisas tipo mentiras, abandonos ou nos-sas falhas no objetivo de manter certas partes do corpo dentro de certas peças de roupa feitas para comportá-las são de nossa inteira responsabilidade, não? Ainda que o próprio Calvino ten-tasse me explicar, não estou certo de que sairia convencido sobre a existência de um grande propósito oculto sob isso.

Eu não sabia exatamente como deveria me sentir depois que Nani foi embora. Imaginava que devia ser tristeza, já que gostava dela. Mas a sensação era parecida com o que provavelmente sen-tiria se estivesse assistindo a um filme legal que já havia visto antes e, de repente, a luz acabasse. Era chato, claro, só que chato não me parecia o bastante. E aí resolvi pesquisar.

Segundo uma matéria num desses sites cheio de boas intenções

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e erros de pontuação, era o momento que alguns chamariam de torpor. De fato, um tipo de anestesia que seria útil enquanto eu começaria a me adaptar à nova realidade – aquela que incluía mais espaço na cama, calçados pelo chão da sala e mais comida congelada. Uma reação bem mais comum do que eu pensava.

Fiz questão de fechar a página quando li o título da fase seguinte: “a vontade de comer todo mundo”.

Minha ex-mulher saiu de casa alegando justamente que eu tive isso durante todo o tempo que estivemos juntos. Uma injustiça absurda.

Todo mundo é gente demais.

Mesmo antes dela, sempre tive critérios.

“São muitas luas e você é um cara só” foi a opinião meio sem sentido de um amigo quando comuniquei a decisão de que eu e Nani passaríamos a morar juntos. Rafael duvidava da minha capacidade de manter um relacionamento sério alegando que eu já os vinha evitando havia um tempo considerável. E não por algum tipo de dificuldade em me sentir efetivamente interessa-do em alguém, mas pela facilidade com a qual eu, dizia ele, me interessava, em um mesmo dia, por uma anônima no metrô, uma colega no trabalho ou uma amiga da faculdade com quem viesse a esbarrar depois de alguns anos.

No embalo da conversa, era engraçado ouvi-lo citar teorias de um filme ou livro, não recordo, sobre a paixão depender mais de quem a sente do que de quem é objeto dela. “Se você está dis-ponível, a coisa acontece. E você tá disponível o tempo todo! Tipo Raul e a história das maçãs: todas são iguais”.

Ria, mas discordava.

Sempre odiei Raul Seixas.

Talvez a ideia de levar à frente a decisão – que me veio à cabeça sem muita reflexão numa manhã qualquer, depois de perceber que já devia ser a terceira vez na semana em que a companheira ao meu lado na cama era a mesma pessoa – passasse mesmo

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pelo fato de discordar de opiniões como essas. Não tinha chega-do a esse ponto porque... porque não tinha pensado nisso. Mas seria capaz de viver toda a seriedade de uma relação a dois, se quisesse. Da mesma forma que uma pessoa pode parar de fumar a qualquer hora – ou não é assim?

Cito agora essa ideia do cigarro porque meu pai fumava. Numa das poucas lembranças que guardei dele, que se foi antes do meu quinto aniversário, meu pai dava longas baforadas enquan-to me puxava por uma das mãos, rindo alto por algum motivo. “Um bom homem, um homem que nunca faria sua esposa so-frer”, mamãe sempre repetiu, como um mantra, com a mesma convicção admirável que demonstra quando fala sobre a onis-ciência e os planos divinos. E até a conversa de horas atrás – que horas são agora, aliás? –, nunca imaginei que essa opção pela frase em terceira pessoa se desse menos por uma questão de es-tilo do que pelo fato de minha mãe não ser a esposa em questão.

Meu pai tinha outra família quando a conheceu e é claro que eu nunca soube disso. Se apaixonou, contou a verdade depois de algum tempo e sempre foi sincero ao dizer que nunca magoa- ria sua mulher – razão pela qual nunca a abandonou. Por fim, só falhou quando morreu vítima de um infarto – disso eu sabia – dentro de um quarto de motel – um detalhe que sempre me esconderam –, com uma mulher que não era nem minha mãe, nem sua esposa.

Talvez isso nos faça mais parecidos do que qualquer semelhança física jamais conseguiria.

Meu pai e eu, grandes infiéis.

Num dos textos que li pouco depois de Nani ter deixado o pré-dio, um colunista de uma dessas grandes revistas dizia que seria saudável se admitíssemos a existência de manifestações de dese-jo fora da relação, mas que tentar viver todas essas sensações era uma besteira. “Ando convencido que a nossa vida afetiva tem uma espécie de centro e que nele só cabe uma pessoa de cada vez”. Agora que sei quem ele realmente era, sei que meu pai, cortando o ar com seu cigarro acesso entre os dedos, riria alto se lesse isso.

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Minha ex descobriu quando uma notificação por um sinal avançado numa rua qualquer do outro lado da ponte chegou à nossa casa. As suspeitas, antes exageradas, ganharam razão de ser. Mais que isso: ganharam corpo, nome e sobrenome.

Por algum tempo, consegui provar que Rafael e suas teses sobre muitas luas, maçãs etc. estavam erradas. E, nessa época, fui um daqueles homens que nunca faria sua esposa sofrer – tal como a ideia que guardava de meu pai.

Quis ser fiel.

Mas eu tenho muitos corações.

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texto: ELAINE BARBOSA

A BANDA MAIS BONITA DA CIDADE

capitão romance

Tem 27 anos, 25 passados em Campinas e 2 anos passados por aí. Filha da Elizeti e do Nilton. Pedagoga de profissão, portista de coração. Tem “Let It Be” tatuado no pulso e uma tese de mestrado para fazer. O perfil no Facebook diz que é bolseira, mas não é um hobbit. Mora em Portugal.

Álbum: “Projeto Verso”, 2013Composição: Manel Cruz/Ornatos Violeta

Selo: ------

ilustração: LORENA SAMPAIOLorena Sampaio é soteropolitana e tem 23 anos. Tem gosto pelas formas imaginárias que vão além da matéria e também pelas formas da natureza existente. Como também é musicista, ilustrar envolvendo música é algo que também lhe agrada muito. Participar desse projeto apenas reforça essas duas paixões.

escuta essa!►letra da música

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{parto rumo à maravilha}

Deixo tudo pela segunda vez. A certeza de uma vida segura, a sala de aula, o despertar com o som dos passarinhos, o café forte da mãe, a estante de livros, as fotografias de infância, as piadas do pai, a goiaba vermelha, um par de tênis surrados, a aliança por devolver, os discos, as conversas com a vizinha, as confidên-cias com a amiga mais velha, a tarde de cerveja com o primo, as canetas favoritas e um pote de doce de leite pela metade na geladeira. Começo a achar que um ano vivendo como a sombra de mim mesma dizia que tudo isso já tinha ficado para trás da primeira vez.

A menina ao meu lado abre a mala e tenta reorganizar as coisas. Penso nas tantas vezes que fiz a mesma coisa na minha mochila e me pergunto se esse eterno abrir e reorganizar coisas não foi a causa da mudança dentro de mim. Foi tudo tão rápido. A pri-meira vez que deixei tudo era por tempo definido, e é sempre mais fácil deixar tudo com hora marcada para recuperar. Só não esperava que, de tanto reorganizar a mochila, ia acabar mudan-do tudo dentro de mim, e então recuperar o que eu tinha deixa-do já não seria suficiente. Cada lugar novo que eu visitei me fez conhecer partes novas em mim. Nenhuma delas queria o que eu tinha deixado. Todos os pequenos fragmentos recém-descober-tos diziam amar tudo aquilo que eu tinha, mas gritavam por coi-sas novas. Uma cidade nova, um trabalho novo, um amor novo.

São tantas as expectativas que me invadem cada vez que uma mensagem chega no telefone... A cada promessa de renovação eu penso que posso deixar de ser sombra e voltar a ser inteira-mente eu. Eu. Eu te amo. Respondo a mensagem com a verdade. Eu também.

Deixo a mochila no chão para amarrar os cadarços. Deixo escapar um sorriso quando me dou conta que logo vou começar sem querer a chamá-los atacadores.

O portão de embarque abre. Vejo um ônibus à espera. Outro

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sorriso. “Autocarro”. Eu pensei que não fosse ficar nervosa, mas o medo e a ansiedade se juntam ao barulho dos aviões, e eu sinto um arrepio. Ligo uma música no telefone para ver se me distraio. O som conhecido que chega faz o contrário, me traz um turbilhão de lembranças de outra vida. O vento gelado, a ponte sobre o rio, os varais nas janelas, o vinho, as cerejas, a escadaria vermelha da livraria, o vagão de trem amarelo, o azul que dá vida e nome aos azulejos. A vida que busco novamente. A fila começa a andar e os pensamentos também.

A música fica em pausa quando atendo a chamada recebida. Sor-rio ao ouvir a voz da qual nunca tive antes tão perto como estou agora. Conversando, guardo o passaporte no bolso da frente da mochila e procuro um lugar no ônibus para sentar. A conversa continua entre curvas e o longo percurso até onde está o avião. O som das turbinas me deixa com medo, mas o som que vem do telefone me acalma, me enche de esperança, me traz serenidade. Confiro o assento, guardo a mochila, desligo a chamada.

Ainda há pessoas entrando e se acomodando no avião. Olho para a tela do telefone, calculo que ainda dá tempo e disco o número conhecido. “Mãe, te amo, quando chegar eu te ligo. Pai, te amo, cuida da mãe. Mãe, cuida do pai. Amo vocês também”. Desligo quando a minha voz começa a falhar demais, no limite do choro. A expectativa se mistura com a saudade antecipada e tudo fica agitado dentro de mim, um desassossego como o do poeta. En-tre a certeza a preto e branco e o desconhecido em cores vivas, danço, desajeitada, com as duas.

Olho para o telefone, volto a tocar a música que parou a meio. O verso que toca parece que toca para mim.

“E dar sentido à viagem pra sentir que sou capaz/ Se o meu peito diz ‘coragem’ volto a partir em paz”

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texto: IZADORA PIMENTA

VANGUART mi vida eres tu

Izadora Pimenta se divide entre o jornalismo e a literatura. Às vezes, casa os dois. Gosta de lançar coletâneas de contos, sendo esta a terceira delas. Prepara um romance, mas deve dedicar-se a um livro-reportagem este ano para alcançar o sonhado diploma (que, sim, vale de algo). Escreve no Rock ‘n’ Beats desde 2010 e também tem ideias no BACKBEAT.

Álbum: “Boa Parte de Mim Vai Embora”, 2011Composição: Helio Flanders/Reginaldo Lincoln

Selo: Deckdisc

ilustração: LINO VICCARILino Viccari, formado em letras, recebeu o título de Artista Frustrado. Tem publicada, no fundo da gaveta de sua escrivaninha, uma Antologia Poética de Poemas Inacabados. Toca guitarra em uma banda de rock, sempre improvisando sobre a pentatônica de Mi menor. Sempre. Sonha em ser um escritor famoso, mas sofre de bloqueio criativo agudo. Tem um coração preguiçoso. Às vezes, desenha.

escuta essa!►letra da música

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{de emergência}

B. tinha a certeza de que havia se levado longe demais. Foi quan-do M. o deixou: fria, ríspida, como se estivesse fazendo algo tão simples quanto passar margarina no pão. Se ela sofria, isso era coisa que nunca o deixaria saber. Ele tinha o dom de fingir que também não ligava ao aceitar sua amizade incômoda, que o des-truía todas as vezes nas quais ele olhava diretamente para aque-les olhos castanhos que queriam se tornar negros. Negros! - tom de espera que lhe jogou novamente na angústia da procura.

M. era de lhe deixar atordoado com todas as outras coisas da vida. Um dia lhe fazia Sol. No outro, não. E, assim, B. foi aprendendo a amá-la de um jeito que não lhe dava uma voz racional. Amava seus defeitos, seus acidentes geográficos. Seu tempo, que cor-ria como a idade dos cachorros. Estava inerte em um sentimento bom e doentio, mas pouco via o quanto tudo isso, na verdade, era frio como ela.

Acabou e estava cansado de estar apaixonado por uma repetição que agora fugia de estar ao encontro do ponto que os inter-ceptaria. M., de vez em quando “amor”, quase sempre “nada”, era para B. daqueles sonhos que a gente insiste em dormir mais uns minutinhos ao acordar deles, somente por desejar que conti- nuem. Mas estava acabado, por mais que a equação se tornasse cada vez mais confusa, havia acabado porque eles não enten-diam nada disso - viviam imersos em probabilidades.

Ela não era mais uma, ela simplesmente era. Desde o primeiro momento que decidiu esparramar tudo aquilo que vinha sentin-do por ele. Mesmo que ali as suas ideias não fossem as mesmas que as de B., ele sempre se manteve disposto a aceitar a oposição. Tanto aceitou que acabou assumindo as suas antigas ideias. E não sabia quais ideias M. passou a assumir ou fingiu que passou a assumir logo depois. Vinha tentando compreendê-la através de signos e sinais, mas não chegou a analisar a crítica situação dos sentimentos – neste caso, medo, e não amor.

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As inquietações não paravam de surgir. Peças deste que-bra-cabeça lhe eram distribuídas a cada vez que ele saía para tentar refrescar a mente. Então B. caiu na tal angústia. Sorria ál-cool. 60%, destilado, meio amarelado por conta do energético. E, quando a via por acaso, olhava de esguelha, enquanto ela sor-ria lúpulo e malte, com as mais diversas porcentagens - quanto maiores, sempre melhores para ela.

M. nunca chorava, não em público, e sabe-se lá se tinha algum motivo para isso. B., procurando despejar motivos, procurava outras, com os mais variados sorrisos ou não. Procurava as suas dores de emergência, suas válvulas de escape que lhe faziam acordar sem fé alguma na existência no dia seguinte.

Mas, como logo veio a saber, essas dores de emergência não foram feitas para acalmar as mais antigas. As dores de emergên-cia entram no emaranhado de dores que a gente abriga e nos fazem repensar o sentido de tudo, a vontade de mandar as coisas embora pela origem. E, para que as dores dele se acalmassem, ele sentia a tal necessidade: estar com ela.

Não, não aquela mulher fria que o deixou. Mas ele precisava de alguém como ela. Que o completasse da mesma maneira. Ela, que era tão louca quanto ele. Que via graça nos copos de cer-veja e nas pessoas. Ela, que calculava seus próprios movimentos enquanto ele vivia uma poesia concreta. Ela, que lhe fazia sentir parte do momento com a mente, não só com o corpo cansado da estagnação. E não adiantava tentar tirar essa ideia da cabeça de B., já que, na sua condição de um cara incerto de vinte e três anos, M. parecia ter sido a única coisa certeira entre as meninas e mulheres que vagam por aí.

Afinal, B. disse outro dia mesmo para Ricardo um negócio pare-cido. Era mais ou menos como se o foco não estivesse nela - B. havia assumido isso para ele mesmo há muito. Mas o problema estava nele, por conta disso. Porque não conseguia mais acre- ditar que iria gostar das pessoas por aí. Porque tinha medo de gostar de alguém e sair magoado de novo. Isso lhe causava uma certa repulsa. “E, quando resolvo esquecer a repulsa, eu conheço gente ridícula”, finalizou.

B. vivia era na esperança de um amor idealizado, que devia existir

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apenas em sua cabeça. Ele até tentava se explicar, e por mais que a gente fingisse compreender, era mais fácil passar em Economia. Até hoje ele não saberia dizer se gostara de quem ela era de ver-dade ou das possibilidades do que ela poderia vir a ser. Mas pare-cia perfeita a combinação dos beijos inteiros dela com os meios planos dele. Queria alguém que lhe aceitasse, lhe admirasse, e com M. foi quase isso.

No entanto, alheio ao foco e ao problema, a culpa, julga, é toda dela. Por ter lhe deixado acreditar que ela era sua salvação de-pois de tanta coisa errada.

Por ter saído da vida dele quando ele passou a precisar dela.

Por ter saído da vida dele quando a vida dele era ela.

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texto: DANIELLY FRIEDRICH

HIDROCOR recém

Jornalista esportiva com uma forte queda por música e literatura, busca maneiras de unir tudo o que gosta, mesmo que seja em uma mesa bagunçada ao final do dia. Sonha em conhecer o mundo e ainda não se tornou tudo o que gostaria de ser, mas se ela já pode escrever sobre si mesma na terceira pessoa, significa que está no caminho certo.

Álbum: “Edifício Bambi”, 2012Composição: Marcelo PerdidoSelo: Capitão Monga Records

ilustração: TAINÁ COSTACriada no interior de São Paulo, sempre se interessou por arte. Começou pintando as paredes com giz de cera e levando bronca da mãe, e agora é formada em Web Design e em Artes Visuais. Atualmente ilustra livros infantis e trabalha em uma agência de publicidade, além de escrever em sites geeks sobre uma de suas grandes paixões: o cinema.

escuta essa!►letra da música

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{último (a)batimento por você}

Você queria conhecer o mundo e as tuas viagens eram o que real-mente te completavam. Eu apenas esperava pelo dia em que eu poderia ser a tua grande viagem, mas acho que eu nunca fui tão interessante quanto pousar em um lugar desconhecido ou tão excitante quanto a perspectiva de uma vida nova. Sabe como é, nem todos podem ser como você: uma âncora para os corações desavisados que ousam se apaixonar.

Foi estranho quando chegou a minha vez de partir. Eu quis ficar, quis te colocar entre minhas caixas para a mudança... Mas, pela primeira vez, você ficou. Justo quando eu fui. Definitivamente.

Sobraram as lembranças, que não permitiam que o resquício de você me deixasse. Nos falávamos todos os dias e eu também parecia ser um buraco no teu peito, mas de todos os aviões que cruzaram teu caminho nesse um ano, nenhum te levou ao meu encontro.

Eu realmente tentei me colocar no teu lugar, sabe? Mas eu só con-seguia pensar no quanto eu te amava mais e finalmente desisti. Não existia um futuro para chamar de nosso se nem podíamos viver no mesmo país. Você ainda tentou me ligar algumas vezes e também mandou aquele email que eu nunca tive coragem de abrir. Meio covarde da minha parte, eu sei, mas eu não queria correr riscos de voltar atrás. Se você me dissesse para não deixar o “nós” morrer, eu poderia continuar me sentindo um merda, mas ficaria ao teu lado e esperaria o tempo que fosse para te segurar novamente em meus braços. Sumi.

O início foi uma tortura, você estava em toda parte. O tempo se encarregou de anestesiar e, mesmo sem te esquecer, logo eu es-tava de par com outra menina. Pela primeira vez senti que estava feliz. Eu não estava mais em um lugar novo, rodeado por pessoas estranhas e sem o que eu mais amava. Era simplesmente a minha casa, os meus amigos, a minha rotina e o meu coração vivendo novamente. Pode parecer presunçoso, mas conseguir carregar a

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tua cicatriz fazia eu me sentir a melhor pessoa do mundo - até o sangue voltar a jorrar ao saber de você.

Como assim casamento? Posso lembrar com detalhes os exatos cinco meses e dezoito dias que passei tentanto me tornar o teu namorado e agora, depois de uma história ao meu lado que quase chegou aos quatro anos, nos afastamos por oito meses e você tem um noivo? Você é louca. E eu não posso acreditar que você realmente não pensou em me contar diretamente em nenhum momento. Certo que eu parei de falar com você e não retomei contato para dizer tudo de novo que estava acontecendo, mas pelo amor de Deus: me adaptar e começar a sair casualmente com uma garota é completamente diferente de subir ao altar.

Descobrir os detalhes do teu presente se tornou minha pequena obsessão e admiti para mim mesmo que eu não tinha te supera-do, mesmo sabendo que isso não te impediria de casar com esse sujeito que nem barba tem. Olhando suas fotos ao lado dele, lem-brei de todas as nossas brigas bobas por eu apenas pensar em me barbear e sorri. Oito meses e não sei mais dizer tuas preferên-cias, você realmente mudou - e me esqueceu.

Por mais estranho que pudesse parecer, eu queria te ver dizendo o sim que seria o meu eterno não, talvez o choque de realidade me ajudasse a seguir em frente de verdade, assim como você fez.

Comprei as passagens e, no grande dia, lá estava eu em um avião, enquanto você provavelmente ficava ainda mais linda para o seu quase marido. Como o azar sempre me acompanha, problemas técnicos me obrigaram a fazer uma escala que não estava pro-gramada e cheguei no aeroporto completamente atrasado. Duas horas. Nenhuma cerimônia duraria tanto assim, mas não havia por que não tentar.

Corri o mais rápido que deu, mas só consegui te ver por um se-gundo enquanto você entrava no carro, já casada. O teu sorriso era radiante. Eu não tinha o direito de simplesmente aparecer ali, então só te observei de longe.

Não vi o exato momento em que você se tornou a esposa de um cara que realmente tem muita sorte, mas te ver indo embo-ra naquele Audi prateado, sem destino definido, mas finalmente

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acompanhada, foi o bastante para ver tudo o que nós tentáva-mos ser, mas vocês apenas eram.

Me desculpe por ter sumido. Eu realmente acredito que você me amou tanto quanto eu te amei, mas agora eu sei que nós sem-pre funcionamos em frequências distintas. Com um pouco mais de tempo, algum dia poderíamos ter atingido a sintonia perfeita, mas como era de se esperar, não pudemos esperar um ao outro.

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texto: MARIANA ROSA

LOS HERMANOS de onde vem a calma

Mariana Rosa é formada em Letras, natural de Campinas (SP) e tem como sua principal paixão a música. Entretanto, seu maior escape é a escrita. Gosta de viajar, cantar, conhecer pessoas, videogame e chocolate.

Álbum: “Ventura”, 2003Composição: Marcelo Camelo

Selo: BMG

ilustração: ITAMAR DUTRAEstudante de design gráfico, natural de São Paulo, tem 21 anos. Desde criança sempre rabiscou tudo que tinha por perto e, hoje, continua rabiscando a fim de conseguir seu lugar no mercado. Atualmente trabalha em um estúdio de design. Seus trabalhos mais importantes como ilustrador são recentes, com ilustrações feitas para a revista Recreio.

escuta essa!►letra da música

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{de onde vem a calma?}

Conheci Feliciano quando trabalhava em um escritório de con-tabilidade que ficava ali na esquina da Rua Roxo Moreira com a Miguel Petroni. Foi de imediato que senti como se houvesse en-contrado alguém que nada tinha a me acrescentar; como dizem os ditados populares, nossos espíritos nunca haviam se recon-ciliado de vidas passadas. Na verdade, Feliciano era daqueles homens que todos invejavam: era bonito, vestia-se bem e tinha garbo, juntamente a uma admirável auto-confiança e calma que fazia todos acreditarem que sempre estava certo.

Para mim, Feliciano era frio e um tanto quanto covarde. Eu pen-sava que aquela sua aparência era só uma máscara que escon-dia, por debaixo de sua linda camisa de seda, a podridão de ser humano que era. Inventava suas próprias histórias para parecer interessante e fazia promessas de amor eterno às mulheres que o interessavam. Mas, no fim, nada se concretizava por sua própria covardia e Feliciano continuava com sua passividade mais do que irritante, como se nada o tivesse afetado. Quantas funcionárias já não choraram pelos corredores por causa de Feliciano? Mas tam-bém quantas não continuavam apaixonadas pelo seu sorriso e auto-confiança de mequetrefe?

Apesar de todo meu descontentamento em relação a Feliciano, eu frequentemente conversava com ele, que nem sempre me respondia com bons modos, mas que, de certa forma, estava ali para me ouvir. Discutíamos política, esportes e até mesmo algu-mas coisas sobre a vida. Algumas vezes ele desconversava ou era meio grosseiro; acho que minha presença decerto o incomodava. E, quanto mais ele parecia descontente ao me ver, eu me sentia como se tivesse mais coisas a resolver com ele. Minha intenção era entender o que se passava dentro da cabeça de Feliciano. Eu queria desvendar seus reais anseios e sua personalidade, que me parecia um tanto quanto desfalcada. Quem era a pessoa com a qual eu conversava e trabalhava? Como conseguia ter tudo facil-mente e se livrar das coisas com a mesma facilidade? Admito que algumas vezes ele chegava a me dar nojo. Eu conseguia ver

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um montarel de larvas em seus dentes brancos. Sua camisa de seda era provavelmente paraguaia, nunca de marca. Seu cabelo provavelmente era tingido. E suas palavras soavam todas falsas quando direcionadas a alguma mulher ou então a homens de cargos mais importantes. Foi quando decidi convidá-lo para jan-tar, pois estava só e precisava ir a fundo para desvendar sobre Feliciano. Nem que eu descobrisse que seu cabelo era mesmo tingido já seria o suficiente para me sentir melhor, afinal, faria todo o sentido. O que me atormentava era o fato de ele ser mes-mo excepcional, único e dono de sua própria vida e felicidade. Obviamente era uma enganação de minha parte pensar em acreditar nisso.

Feliciano aceitou meu convite provavelmente porque sabia que arranjaria um jeito de tentar ser grosseiro comigo e me humilhar em algum momento do encontro. Eu sabia que o incomodava. Ele provavelmente se incomodava com pessoas honestas. Nos sentamos, pedimos os pratos e esperamos a comida chegar. Até então estávamos em silêncio, sem conversas, somente alguns sorrisos um tanto quanto sádicos. Eu não era sádico e nem tinha a intenção de ser, mas o clima entre nós era extremamente sádi-co. Não tínhamos nada em comum e estávamos sentados juntos, frente a frente, em uma mesa de um local público, a fim de pas-sarmos algumas horas juntos.

Foi quando Feliciano proferiu as seguintes palavras:

- Você é um desgraçado. Sei que me odeia e ainda me convida para jantar.

- É claro que não te odeio, Feliciano. Senão não lhe chamaria para jantar pois não faria o menor sentido.

- Você não faz sentido, e digo que perdi a fome. Estou tentando te entender há meses e ser seu colega de trabalho, mas não dá mais para lhe suportar. Você é um enigma para mim. Vou-me embora. E vamos parar com essa palhaçada de tentarmos ser próximos.

Feliciano levantou-se da mesa, do mesmo jeito calmo de sem-pre, e andou em direção à saída do restaurante. Eu não podia permitir-lhe tamanha grosseria e estupidez. Eu, um enigma? Ele me torturava há meses com sua falsidade. Foi quando, depois de

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alguns minutos me remoendo dolorosamente, como se tivesse exposto minha ferida e a deixado aberta, corri atrás dele, peguei meu revólver e gritei:

- Devolva minha felicidade, Feliciano.

Atirei. Mas eu sabia que ia ficar são, mesmo sendo só. Eu não iria mudar, não conseguia ser diferente. Eu era honesto e Deus ia dar aval, o mal ia ter fim. E um dia, por mais difícil que fosse, eu seria coroado Rei de Mim.

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texto: IVAN PERINA

BANDA UÓvânia

Nascido e criado em Campinas, cursa Letras na Unicamp e leciona gramática e redação em cursinhos pré-vestibular na cidade. Além da linguagem, tem como paixão também a vida noturna. Paixão que o levou a virar DJ de final de semana e frequentador assíduo de shows, inclusive os da Banda Uó.

Álbum: “Motel”, 2012Composição: Davi Sabbag/Mateus Carrilho

Selo: Deckdisc

ilustração: THIAGO SILVA MORAESThiago Moraes é natural de Campo Grande, MS. É um apaixonado por todas as formas de manifestações artísticas, desenvolve trabalhos com o corpo, desenho, cinema e video. Em 2013 concluirá o curso de Artes Visuais em licenciatura e irá pelo mundo afora promover a Arte e a vida! Pra ganhar a vida ele gerencia a najon.com.br e pega uns bicos de video e produção cultural.

escuta essa!►letra da música

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{vânia}

- Ó, é aquela ali, Rodrigo.

- O quê? Aquela mesmo? Ela é linda demais! Mas você sabe que eu ainda não me recuperei do meu namoro passado... Sabe, hoje quando acordei senti tanto a falta dela ao meu lado... Te falei que não consigo parar de sentir o gosto amargo do perfume do amante dela em toda parte? Não estou pronto ainda para con-versar com ninguém...

- Rodrigo, deixa de ser frouxo! Você não era assim! Cadê o meu melhor amigo que eu conhecia? Animado, o rei da pista de dança? A gente já está nessa balada faz mó tempão e até agora você não falou com ninguém, não dançou... E ainda nem falou com aquela DE-LI-CI-NHA de mulher. Tô falando, vai lá, conversa! Eu só não namorei mesmo com ela porque semana que vem vou pra capital começar a faculdade. Cara, essa mina é uma delícia, nunca quer parar. Realizou todos meus desejos, fez tudo o que eu quis. Fala aí, você vai resistir àquela barriguinha de fora?

“Realmente, ela é linda... Não faz meu estilo, mostrando a cal-cinha, esse piercing no umbigo... Mas não sei, não consigo parar de olhar... Putz, reparou que estou olhando! E AGORA TÁ OLHAN-DO PRA MIM! E TÁ VINDO PARA CÁ, o que faço?”

- Prazer, meu nome é Vânia. Você que é o Rodrigo? Seu amigo falou muito de você, quero te conhecer. Quer me oferecer um drink?

“Nossa, que naturalidade que teve para conversar comigo. E como bebe também, me fez virar uma tequila com ela e ainda trouxe uma vodka com energético pra gente. Não vai prestar, essas bebidas não devem ser de boa procedência... E agora me chamando para dançar? Vai ser horrível, vou parecer um gringo desengonçado...”

- Nunca dançou eletrobrega, gato?

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- Não, não tenho nem ideia de como faz.... (poxa, claro que não! Sou do rock, caceta, nunca ouvi essas coisas. Estou pagando o maior mico da minha vida enquanto você fica aí só no mexe, em-pina, rebola...

- Vem que eu te ensino, então. Pode deixar que te trato com cari-nho.

“Olha, não sei se é a tequila ou se é a Vânia mesmo, mas não é que estou indo bem? Bem até demais. Ela está me olhando de um jeito que parece que vai dar um bote...”

***

“Cara, não acredito que estou na casa dela. No morro! Se eu con-tar isso pros meus amigos, eles nunca vão acreditar. Mas vale a pena. Essa mulher é demais... E como é animada! Me levou pra comer churrasquinho! Churrasquinho! Nunca tive coragem de comer isso. E na cama então? Olha, fez até bem para minha au-toestima, fico até com vergonha de falar isso, mas acredita que ela disse que o tamanho da minha pistola a enlouqueceu? Pode-ria ficar para sempre aqui olhando essa coisa linda dormir...”

- Hmmmmm.... Bom dia, meu cavalo de fogo!

- Bom dia, princesa. Dormiu bem? Eu ia preparar um café da ma-nhã pra gente, mas não sei onde tem padaria aqui perto pra com-prar algo...

- Ahhh, que fofo! Achei lindo, mas não vai ter como, logo mais já tá chegando meu primeiro cliente, preciso me arrumar.

- Cliente?

- É, eu realmente estou com pressa...

- Mas como eu te encontro depois?

- Procura no orelhão, agora eu realmente preciso que você vá... Mas volte, tá? Beijos!

“Como assim? ORELHÃO? Reparei que ela é maluquinha, mas isso

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já está ficando estranho... Peraí, é um anúncio dela aqui nesse orelhão mesmo? ‘Ele, ela ou casal, morena, completa, pele de ve-ludo, boquinha de algodão, toda sensual. Não tem comparação, é só satisfação’. Ah, não, quero uma explicação agora.”

- E aíiiii, Rodrigão! Se deu bem ontem, hein? Eu te disse que a Vânia era demais, né? Gostou do presentinho?

- PRESENTINHO? Cara, você pagou uma garota de programa pra transar comigo?

- Opa, opa, opa! Não fala assim dela! Acompanhante, por favor. E, fala aí, valeu ou não valeu a pena, hein? Eu mesmo já fui cliente. Aquele papo de namorar foi uma mentirinha inocente. Mas, né? Até dá pra pensar em namorar com ela, que mulher!

- Eu só consigo pensar é em te matar! Muito amigo você!!

- Qual é, Rodrigão.... Rodrigo? Rodrigo? Ih, desligou.

“Essa é boa, tudo bem que fui abandonado, mas não precisava também de arrumar uma garota de programa pra mim. Nunca vou perdoar esses dois. Se bem que... Vou guardar o contato dela, nunca se sabe...”

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texto: DANIEL CORRÊA

GRAMme trai comigo

Daniel Corrêa promete que um dia fará algo de que valerá a pena saber quem ele é. Mas, por enquanto, whatever.

Álbum: “Seu Minuto, Meu Segundo....”, 2006Composição: Sérgio Filho

Selo: Deckdisc

ilustração: LUCAS BASTOSLucas faz desenhos desde sempre, mas até os sete anos queria ser piloto de avião. É recém-formado em Design Digital e está na busca incessante de um estilo ou um traço para suas ilustrações. Atualmente faz freelance e busca sempre aperfeiçoar sua arte.

escuta essa!►letra da música

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{sala}

sentamos à mesa, na casa dos seus pais, com seus parentes e alguns que não sabíamos quem eram. diziam coisas, riam baixo e de dezembro sobrava o nos-so silêncio que os sustentava. entre tudo meus olhos esbar- raram sem querer nos seus, que vestiam seu melhor sorriso. talvez como no dia que éramos clandestinos naquele elevador, quando disse, com seus olhos grandes que queria saber como a desenharia se fosse um perso-

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nagem. respondi que não tínha-mos tempo. você falou dos meses, planejou anos, viagens. disse do futuro e do rumo que tomaríamos. todas as dores de cabeça, todas as noites sem sono e de todas as estrelas se-rem maiores que nossos prob-lemas. e hoje contemplamos o fim do universo, no nosso últi-mo jantar, no nosso último com-promisso forçado, com sorrisos enlatados, para nos olharmos de novo, como da primeira vez. aos poucos a nossa carne vai se

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soltar dos ossos, abrir caminho, e deixar correr veias, nervos e to-dos os mistérios e segredos, das paredes onde seremos atirados pela explosão, veremos pássaros voando no céu, e um momento perdido onde colocarei as cri-anças para dormir, prepararei o jantar, transarei com minha es-posa e lembrarei do olhar perdi-do, fechado entre o elevador e a vontade de voltar, do tempo que éramos clandestinos, contra as paredes, como tudo que não fa- lamos por medo.

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texto: AMARO MOTA

PÚBLICA long plays

Amaro Mota nasceu em Campos dos Goytacazes e desde muito novo leva música pop bem a sério. Desistiu da faculdade de Jornalismo faltando pouco para terminar por achar que aquilo não servia para muita coisa. Já escreveu muito roteiro que não deu em nada e muita história que nunca vingou.

Álbum: “Polaris”, 2006Composição: Pedro Metz/João Amaro

Selo: Independente

ilustração: ITAMAR DUTRAEstudante de design gráfico, natural de São Paulo, tem 21 anos. Desde criança sempre rabiscou tudo que tinha por perto e, hoje, continua rabiscando a fim de conseguir seu lugar no mercado. Atualmente trabalha em um estúdio de design. Seus trabalhos mais importantes como ilustrador são recentes, com ilustrações feitas para a revista Recreio.

escuta essa!►letra da música

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{ficaram as canções}

Já haviam passado alguns dias, mas ele ainda se encontrava no fundo do poço. Até suas músicas e seus discos não conseguiam fazê-lo esquecer dela e de tudo que tinha acontecido. As próprias músicas também eram um pouco dela também - eles ouviram várias juntos.

Ele lembra que até aquele lado B raro só lançado no Japão, que era um segredo pessoal e uma preferida absoluta, também está impregnado com ela. Até isso ele dividiu. O tempo vai passando, os discos já têm mais importância que ela, é neles que se pode agarrar nesse momento.

Duas semanas se passaram, e ouvindo aquele disco de que ela tinha até ciúme, tamanha era a devoção dele para com a bolacha (na verdade bolacha é modo de falar, era só uma pasta com ar-quivos em MP3), veio uma frase em sua cabeça: “Como você acha que a gente vai terminar?”, ela perguntou isso um dia. Na hora ele deixou pra lá, ela não seria capaz, mas ela foi, e agora só os discos faziam companhia.

Na terceira semana foram seus fones de ouvido que o traíram. Ao passar na frente daquele lugar onde já tinham ido tantas vezes juntos, ele percebeu que os versos que o fone passava para seus ouvidos não eram mais só seus. Decidiu então que devia ouvir música que nunca tinha sido dela também, o que era uma tarefa difícil.

Numa noite qualquer ele se agarra ao telefone, fica na dúvida se entra em contato ou não. Ele tem tantas novidades pra contar, mas, no final, acaba não ligando. Ele se lembra do Rob Fleming e da velha questão sobre música pop e sofrimento, a dúvida de qual dos dois veio primeiro. Pensa que talvez ambas as paixões, tanto a pela música quanto a pela uma mulher, estão relaciona-das.

Hora de largar as canções e tentar outra coisa para esquecer-se

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dela. Ele descobre que é bem difícil. Filmes, séries, novelas, todos vendem aquela idéia de amor perfeito e duradouro. Ele percebe que talvez venha daí todo o seu problema, por ter sido pratica-mente educado pela TV e pela música pop, ele tenha sido es-tragado e tenha se tornado um cara sentimental que acha que a vida é um filme de Woody Allen ou uma pop song romântica de três minutos.

A raiva já está passando, mas a saudade não para de aumentar.Depois de tanto tempo junto é difícil encarar as coisas sem ela. Mesmo nas horas mais fodidas ela estaria ali, quando tudo es-tivesse ruim ela diria que tudo ficaria bem e ele acreditaria. Era como se naquele momento em que ela desse colo e proteção nada daria errado. “Hakuna Matata”, diriam Timão e Pumba, “Let It Be”, diriam os Beatles, mas a realidade é cruel, bem cruel. Não existe mais colo, não existe mais proteção, e contra a realidade nem Timão, nem Pumba e nem os Beatles podem fazer nada.

O tempo começa a demorar cada vez mais para passar. Os dias, com certeza, estão durando mais de 24 horas. Querendo ou não, seu plano de ficar alheio a tudo que está relacionado a ela não está dando certo. Se suas músicas, amigas tão antigas, já o traíram, claro que amigos em comum iriam falar alguma coisa.Claro que a modernidade da internet ia mostrar algo. Ele percebe que tudo aquilo que eles escutaram juntos pode estar sendo usa-do para o mal, entenda como mal ela (a ex, não a música) chamar atenção de outra pessoa por gostar/conhecer um artista/música/disco que foi ele quem apresentou a ela. Ele se sente traído, se sente como Santos Dumont quando descobriu que sua invenção estava sendo usada em guerras.

Ele se sente velho, tem saudade da época em que a única grande preocupação era se Goku salvaria a Terra. Pensa em seus artistas preferidos, quase todos surgidos entre o final dos anos 90 e o início dos anos 00. Será que ele está virando um daqueles velhos que falam “No meu tempo era melhor...”?

Começam as maiores dúvidas: 1) Será que uma hora isso tudo vai passar? 2) Será que ela também está pensando nisso? 3) Será que as canções ficarão para sempre imaculadas? 4) Será que a vida volta ao normal? Da mesma maneira que vêm as dúvidas, vêm as respostas: 1) Sim, vai passar. 2) Não, ela não está pensando a

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mesma coisa que ele, ela quis terminar, ela já dever estar em ou-tra e muito feliz. 3) Não, uma hora as canções serão novamente só dele. 4) Essa é a mais difícil de responder, já foi afirmado que tudo vai passar, mas voltar ao normal já é bem mais complicado, o que era normal antes não é mais o normal agora, é um pouco complicado, mas de agora em diante, tudo que se passou duran-te o relacionamento ainda estará nele, queira ele ou não.

Agora, só situações bem específicas lembram ela. Partir pra ou-tra ainda é difícil, mas ele pensa que pelo menos o pior talvez já tenha passado. Chegou a hora de deixar aquilo para trás. Ele ou-viu tanta música nesse tempo pós-término, ele sempre escutou muita música, mas nesse tempo tinha um gosto diferente, era como se as músicas ajudassem nesse exorcismo sentimental que ele vinha fazendo.

Ele pensa: “Tomara que esse tempo todo tenha servido para al-guma coisa”. Tomara mesmo, ele só irá descobrir no futuro, mas ele pode muito bem ter achado algo que vale a pena no fundo do poço onde se encontrava durante esse tempo. Afinal, as canções voam por aí até encontrarem um ouvido que queira escutá-las.

Se elas podem, ele também poderá.

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texto: ENZO ROSETTI

MUNDO LIVRE S/A concorra a um carro

Dentista, professor de cursinho, dono do Paciência Pra Quê e do Dialogarismos, ambos blogs de escrivinhança com participações de colaboradores. Reflexivo, anti-herói, altruísta e semi-paulista.

Álbum: “Por Pouco”, 2000Composição: Fred Zero Quatro

Selo: Abril Music

ilustração: CAETANO NETTONatural de Monte Mor, cidade próxima à Campinas. No momento estuda Artes Visuais e espera, um dia, conseguir ganhar dinheiro com seus desenhos.

escuta essa!►letra da música

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{dois faróis}

Dos dois lados. Fora rolar os cantos da cama com as narinas tam-padas por um resfriado o qual te atormenta há algum tempo. E sempre foi assim; acordar insalubre, viver sórdido. Dentro de alguns minutos, a vizinha dispara um despertador infernal que desperta a todos. Um estrondo que atravessa a alma. E por onde andam os bons modos? Levantar cedo, vestir-se e alimentar-se bem são obrigações levadas à risca. Dos corredores do condomí-nio, você cruza com pessoas e lhes fornece um transeunte “Bom Dia”. Um dia comum, seria. Um dia para ser com o de sempre. Como de sempre.

Dois coletivos lotados são necessários para te levar ao primeiro emprego. Gravata laçada, paletó branco e calça com vinco. O sa-pato lustrado refletia o rosto desanimado de um garçom infeliz. Mesas arrumadas; todos a postos para a abertura. O bistrô alta-mente recomendado, cheio de charme e pessoas esnobes. De onde você enxerga, os carros milionários começam a aparecer um após o outro. Você esbarra no garagista e decide parar para admirar a procissão ronronante dos automóveis. Cabeça distante, olhos vidrados. Talvez fosse necessário um pouco disso todos os dias. Esquecera-se. Ali o que importavam eram os carros. Talvez este era o momento do dia que era válido; uma redenção inex-plicável. Entre Toyotas, Hondas e Corvettes, o cutucão do maître indicava o final do transe. Era hora de agradar a clientela. Serviçal das mesas, os canapés saíam minutos antes dos pratos principais. Responsável pelas mesas externas, a visão privilegiada da aveni-da tirava a sua atenção do serviço. O açoite do sub-gerente lhe mantinha na linha. Mas desviar o olhar era quase que automáti-co. Quase uma tentação. Não adiantava. Sua fé cabine dupla res- plandece.

No fim do seu expediente, um respiro aliviado. Contas fecha-das, gorjetas maiores que o seu salário. Era a hora de passar a bola. Cumprimentou o amigo garçom, o qual serviria as mesas até o fechamento do estabelecimento; orientou sobre os devi-dos cuidados e deu as costas. O aceno espalmado ao garagista

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amigo era já da outra esquina. Do ponto de ônibus, um anúncio aguça a visão. O supermercado novo do bairro estava a anunciar o sorteio de um senhor carro. Imediatamente você atravessou a rua para conferir. Comprou alguns produtos. Recebeu o cupom e preencheu-o com a seriedade de um bilhete de loteria. Beijou-o. Submeteu-o a urna como um candidato a prefeito. Saíra reluzen- te. A confiança tomou conta de ti. Entrou no ônibus deixando uma sacola de compras para trás. Não importava. O que te inte- ressa é o carro e só ele já lhe faz falta.

Mas e quando a vida se faz de louca? Uma gangue que toma con-ta da tua rua resolve estragar o prédio errado. Ironia do intestino. Incrédulo, você se aproxima do seu prédio em chamas. Não há mais nada a fazer. Sirenes, carros pipa e assistência. Houve um engano dessa bandidagem. O problema é que, nesse bairro sem atitude do Estado, justiça é feita com as próprias mãos. Mas por mais revoltante que isso possa ser não há mais nada a ser feito. O dono do comércio em frente lhe disse que estavam para queimar um prédio, mas não era este. Houve um engano na “prestação do serviço”. Furiosamente, o chefe da gangue vai tomar providên-cias pelo erro. Além do desterro do operacional falho, algumas cabeças vão rolar. Mas e agora? Deitar a cabeça aonde?

Nessa hora é sempre bom contar com os amigos. Ligou para o garagista, homem de conversas infindáveis. Prontamente o homem lhe serviu a cama do quarto da vigilância da garagem. Imagine você dormindo com o ronco dos motores daqueles car-ros. A cantiga de ninar dos sonhos. Retomando o caminho pra lá, você aceitou a carona de um vizinho estranho. Nessas horas a solidariedade falara mais alto; transcendendo fronteiras pes-soais, ele lhe convidou para um lanche. Ao cair da noite, a fome e o cansaço aparecem quase que repentinamente. Parados em um fast food de bairro, você come com a voracidade de um etíope. Onde estão seus bons modos, moço fidalgo? Finalizada a comi-lança, a conversa masculina toma conta da mesa. Analisaram as mulheres do recinto. Deram notas; fizeram uma classificação. Riram-se. Discutiram futebol e declararam um ao outro que seu time era melhor, expondo argumentos e fatos. Parece pouco, mas consumiram três horas de boa prosa. Saindo dali, começaram a prosear sobre o automóvel. Ele te contou que vivia de comprar e vender carros. Tinha dois ou três espalhados por aí, alugando ou em processo de venda. Você ficou impressionado como uma

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pessoa pode viver assim. Estilo de vida fantástico.

No caminho para o encontro com o garagista, uma parada para abastecer. Você resolveu ajudar na gasolina. Fez questão de abastecer com a aditivada; explicou o porquê. Falou sobre oc-tanagem, rendimentos, durabilidade e vida útil do automóvel. Convencido, ele deixou à sua escolha. Mas que cara legal. Ele lhe deu as chaves e entrou na loja de conveniência para usar o ban-heiro. Você decidiu acomodar-se no banco traseiro, aumentando o volume da música. Pensou que era dono do carro. A polícia também. Uma viatura encosta na beira do posto e bate no vidro do carro enquanto você tenta pegar no sono. Assustado sai do carro e, tentando se explicar, é revistado. Começa a gaguejar e a falar que o carro não era seu; era de um rapaz que estava no banheiro. O posto de gasolina é revirado e não existe nenhum suspeito maior que você. O moço que lhe ofereceu carona desa-pareceu. Parecia que ele não existia. Ninguém o viu nem sequer entendeu a sua explicação da fisionomia. Um relato esquizofrêni-co. Os policiais riram-se e lhe disseram que o carro fora roubado semana passada. Você agora era suspeito e fora algemado por receptação. Pois bem, agora você tem um carro.

Na delegacia, a vontade de morrer. Preferia que aquele dia não tivesse existido. Como tanta coisa ruim pôde acontecer. Não dava pra entender. Do direito à ligação, ligou para o amigo garagista que não o atendeu. Já era tarde; o homem dorme o sono dos jus-tos. Por via das dúvidas, guardaram-te numa cela. Pois bem, você tinha um carro e agora um lugar para dormir. Onde está o revés? A vida te ladeia por tirar e devolver. Tudo ao mesmo tempo. Tudo no mesmo dia. Ligou para um tio distante para vir lhe ajudar. O mesmo prometeu ajuda, embora isso lhe custasse três dias de espera.

Três dias depois, o tio e um homem de bigodes o tiraram da cela. Era um advogado. Levaram-te até o seu local de trabalho para prestar explicações. O gerente ouviu tudo e, amparado pela con-versa do tio, conseguira se safar de uma demissão inoportuna. Menos mal. No outro dia, agora de dentro da garagem dos car-ros, acordou mais tarde para o trabalho. Agora era só atravessar a rua para estar no bistrô. Serviu, conversou, riu, provou uma nova receita do chef no almoço, cochichou com a garçonete, corte-jou clientes e viu carros estacionarem. A vida ficou mais leve, ca-

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marada? Acabando seu expediente, tomou um café e atendeu o celular. Era do supermercado. Pediram para que aparecesse na loja. A ansiedade alcançou níveis plasmáticos consideráveis na corrente sanguínea. Correu pela rua. Talvez tenha sido a ocorrên-cia da grande sorte.

Ao entrar no mercado, você viu balões e paetês voarem ao re-dor do veículo. Chegara para o momento de glória. Você com-prou a ideia de vencedor; que anda de carro novo, que chama a garçonete do trabalho pra sair. Que dá rolê sem motivo. E no cutucão do funcionário, te deram uma sacola com itens que você havia comprado. Você esqueceu que tinha esquecido. Você quis se esquecer de quem você era. O ganhador do carro já estava lá. Assinando papéis, retirando o veículo. Pediu uma carona para o mesmo. Para sentir o carro. Foi ignorado feito transeunte. De um salto para trás você quis voltar no tempo. Ali à sua frente, a grande chance da sua vida. Uma lágrima escorre sobre a nota fiscal da compra antiga. O lábio murcho estendeu-se. Andou pela rua de forma cambembe; a vontade de não prosseguir era imen-sa. Levantou a cabeça e viu-se desgovernado. Entrou na garagem e não viu mais automóveis. Apenas máquinas que lhe tiravam o sono. No outro dia, trocou de ala no restaurante. Passou a reparar na mocinha que servia o chopp no balcão. Seios esferoides, dois faróis verdes, traseira sedan reluzente e dianteira que chamava a atenção. Será que esta é fácil de guiar? O pedido da mesa quatro era um pressuposto para dizer um oi. Engatou a primeira marcha e arrancou para tentar a sorte.

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texto: SORAIA ALVES

QUARTO NEGRO perfume solto

Jornalista, escreve para os sites Rock’ n’ Beats e todateen. Não sabe mais se jornalismo é profissão ou paixão e é grata por isso.

Álbum: “Desconocidos”, 2011Composição: Eduardo Praça/Fábio Brazil

Selo: Daruma Records

ilustração: MARCELA PASCUSI22 anos, quase designer, amante de música, seriados e inutilidades.

escuta essa!►letra da música

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{perfume solto}

No caminho para casa, aquela praça pareceu-me um bom lugar para passar um tempo e pensar nos últimos acontecimentos nada agradáveis de minha vida. Não que seja necessário ficar parado para que os pensamentos venham à mente, mas por algum mo-tivo aquele lugar me convidava a ficar. A praça em si nunca me despertou a atenção, mas naquele fim de tarde de outono ela me saltou aos olhos como uma réplica do jardim que inspirou Monet a pintar sua “A Ponte Japonesa”.

Parei, então, no meio daquela ponte verde e estreita que serve como caminho sobre o pequeno lago de águas cobertas por folhas marrons que caem das árvores nessa época do ano. Olhei para baixo tentando ver meu reflexo no lago, mas as folhas me impediram. Virei o olhar para o lado esquerdo e o vento no sen-tido contrário jogou meus cabelos para frente do rosto. Antes de ter aquela sensação de estar cega pelos fios cobrindo meus o- lhos, virei o rosto a favor do vento, e então avistei aquela figura sentada em um dos bancos da praça.

Seria só mais um jovem passando o tempo ou descansando, mas sua inquietude me fez observá-lo. O rapaz de calça jeans, ca- miseta de um time de futebol internacional e tênis preto parecia ansioso e aflito demais. Olhava quase sem piscar para a mesma direção, passava a mão esquerda pela barba rala, conferia a hora no celular e não parava de balançar a perna direita. Ele deveria ter no máximo vinte e cinco anos e por seus trajes, provavelmente não passava por problemas financeiros.

Ainda o analisava quando outra rajada de vento trouxe-me um aroma incrivelmente bom. O cheiro suave parecia misturar toques doces e florais, mas havia algo nele que lembrava a infân-cia. Ao virar o rosto, avistei a garota de olhos verdes que passava por mim. Ela era bela, de cabelos longos num tom entre o casta- nho e o ruivo e que me pareceu ser bem único, assim como seu perfume. Fiquei com vontade de perguntar-lhe o nome daquela fragrância, mas seu olhar duro e decidido me fez travar, como de

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costume.

Ela continuou caminhando sem nem perceber que eu a olhava, quase admirada. Seguiu com passos firmes até o rapaz, que a essa altura não estava mais sentado, porém continuava balançando a perna direita. A jovem se aproximou e deu-lhe um beijo no ros-to, e ele não disfarçou a decepção com aquele gesto. A conversa entre eles começou, e por mais que eu tentasse ler os lábios de ambos, não conseguia entender qualquer palavra.

Comecei a sentir pena daquele garoto que, com tantos gestos e palavras, não conseguia quebrar a indiferença que exalava daquela moça. Talvez ele merecesse aquela situação. Que tipo de relacionamento os dois teriam desenvolvido? Um romance aparentemente feliz e que, de repente, foi abalado pela traição de uma das partes? Um relacionamento perfeito para um deles enquanto para o outro tudo não passava de mais uma tentativa de “dar certo com alguém”?

Talvez ele fosse possessivo demais. Talvez ela estivesse arrasa-da por dentro, mas posando de forte por fora. Ele poderia ser mais um canalha arrependido. Ela talvez fosse uma garota trau-matizada por relações anteriores e que hoje foge quando se dá conta que está desenvolvendo sentimentos mais fortes por uma pessoa. As suposições, porém, não me impediram de sentir uma espécie de ternura por aquele rapaz. Sua fragilidade aparente frente àquela garota de ar dominador o tornava um personagem sincero e apaixonado, que logo parecia mais atraente a cada ins-tante. Teria o destino criado uma daquelas situações absurdas de onde surgem os romances verdadeiros entre pessoas que já não acreditam mais no amor?

Enquanto ele continuava seu monólogo com a jovem estática, criei toda uma vida ao lado daquele rapaz por uma brevidade de segundos: me aproximaria dele depois que a jovem saísse. De alguma forma iniciaria uma conversa e nossas sinceridades nos aproximariam de um jeito ímpar. Trocaríamos contatos e algum tempo depois marcaríamos um encontro. E depois outro, e outro.

Imaginei diálogos, situações, viagens, pedido de casamento, a escolha do nome dos filhos... E então lembrei o porquê de ter debruçado sobre aquela ponte na esperança de encontrar res-

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postas em um lago coberto de folhas que não me deixavam enxergar a mim mesma, e que se mostravam a metáfora perfeita daquilo que automaticamente faço comigo mesma: me esconder do mundo. O breve observar da vida alheia havia me separado por instantes das angústias que caminham ao meu lado junto à dor de perder o que nem se encontrou de verdade pela simples falta de coragem para procurar.

As lágrimas que começaram a brotar em meus olhos me impedi-ram de ver o que a garota entregou nas mãos do rapaz antes que ela voltasse a passar por mim, deixando um rastro de perfume incomparavelmente delicioso e mais uma vez ignorando minha presença. Seus passos ainda eram firmes, mas o olhar decidido dera lugar a uma fisionomia aliviada.

Voltei-me para o jovem, que continuava em pé, segurando o que ela lhe entregara. Ele continuou ali, pensativo por mais al-guns minutos e então tomou seu caminho, passando por mim e lançando-me um olhar que dizia: “Eu sei que você acompanhou tudo. Por favor, vamos conversar? Quer ouvir um desabafo?”.

Mas enquanto ele passava lentamente esperando qualquer ati-tude complacente de minha parte, abaixei a cabeça e agora pude ver meu reflexo no lago. Continuei a mirar minha própria ima-gem, evitando o pensamento de que a aproximação entre mim e aquele rapaz poderia ser real e me dando conta de que ainda es-perava me encontrar encoberta não apenas no lago, mas na vida.

O rapaz se foi, seguindo o caminho do perfume solto no ar en-quanto o vento fazia questão de espalhá-lo mais ainda. O mesmo vento trouxe mais folhas, que logo cobriram o lago e a minha imagem novamente. Era a deixa para sair dali talvez com o apren-dizado de que enxerguei mais coisas em mim quando olhei os outros. Mas a sensação, de fato, ainda era de estar coberta pelas folhas, esperando mais uma rajada de vento me deixar aparecer.

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texto: ANA CLARA MATTA

PATO FU canção pra você viver mais

Editora e criadora do Ovo de Fantasma e editora do site Rock ‘n’ Beats. Estudante de Comunicação Social na UFMG, aspirante a roteirista e mente inquieta.

Álbum: “Televisão de Cachorro”, 1998Composição: John Ulhôa

Selo: BMG

ilustração: SIMONE MORAESArtes Plásticas/Guignard-Uemg.

escuta essa!►letra da música

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{a piscina vazia}

- A piscina, alguém tem que limpar a piscina, ela tá vazia, cheia de folha.

- Vô, aqui não tem piscina. Foco, vamos ver TV.

- O Seu Silva já passou aqui hoje? - Não, vô - não que ela soubesse quem era Seu Silva. Provavel-mente alguém do passado nublado, borrado de seu avô.

- Então ele não pegou aquela conta?

- Que conta?

- Aquela... conta, aquela conta.

Seus momentos solitários com o avô, que antes eram inúme- ros - caminhadas retornando do colégio, idas ao parque, idas ao shopping - hoje eram contados. Sua mãe havia saído mas logo retornaria, e ela retornaria ao seu quarto, ao seu dever de casa, aos amigos no computador.

- O Seu Silva já passou aqui hoje?

- Não.

Ela se lembrava das risadas assistindo a faroestes, se lembrava de quando contava minuciosamente como foi seu dia. Ela se lem-brava.

- O Seu Silva já limpou a piscina?

- Não tem piscina, não tem Seu Silva. Mas olha, tem filme.

Mas ela se lembrava também do início da tempestade. Os pequenos esquecimentos. As alterações de humor. O dia em que,

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ao buscá-la no colégio, ele se esqueceu do freio de mão - e o carro lentamente descia a ladeira, até o seu grito. O carro ainda descia até hoje. Ganhando velocidade.

- Olha, menina, eu tenho que ir pra casa.

- Ai, começou.

- Você não pode me prender aqui não.

- Você está em casa, vô.

Silêncio.

- Eu tenho que ir, tão me esperando lá em casa.

- Mas agora não tem ônibus pra lá, e você não veio de carro - mudar a abordagem, mudar a abordagem. Aquilo começava a se tornar um exercício mecânico.

A cada pequena crise, acessar as memórias do esquecimento doía mais. Exigia mais da garota.

Ele se levanta e começa a andar pela casa. A tempestade se aproxima.

Ela o segue para a sala, na qual ele tenta, sem sucesso, abrir a porta da frente. A chave está no bolso da garota.

- Vô, você não vai sair.

Sua voz vacila de choro. A voz dele também, enquanto implora que aquela estranha o deixe partir. Ele tem que ir pra casa...

A tempestade ganha força, a neblina sobre os olhos do antes pacífico senhor se torna densa.

- Eu vou sair e você não pode me impedir! - ele começa a andar, trôpego, pelo corredor.

- Posso sim, na verdade.

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- Se você não abrir aquela porta, eu saio pela janela.

O baque.

Ela corre, lágrimas nos olhos, para o seu quarto, em busca de seu celular, e liga para a mãe... A reunião ainda acontece, e o telefone chama, chama, enquanto os passos, arrastados e com um som arenoso, do pesado e enorme senhor ecoam pela casa.

Ele estava indo para a ampla janela do seu quarto.

Patética era a tentativa de o segurar pela força, mas foi o que ela tentou - era o que ela podia tentar. Com os braços em torno de sua rotunda barriga, ela empurrava. Chorava. Talvez, como em um piegas filme de sessão da tarde, seu toque poderia fazê-lo lembrar de que aquele era seu lar, se lembrar dela, ou de qualquer traço de sentimento ali desorientado pelos pulsos elétricos de um cérebro em curto.

Ele se sentou, embargado, na cama.

Ela não foi alguém pra se lembrar. Tudo desparecia. Ali eles choraram conscientes de que nenhuma canção faria aquelas memórias viverem mais. A morte... Ela chega, por vezes, antes ao coração.

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texto: MARCELO PERDIDO

GAROTAS SUECASela

Marcelo Perdido escreve dentro e fora da hidrocor.

Álbum: “Escaldante Banda”, 2010Composição: Tomaz Paoliello

Selo: America Dust

ilustração: LAÍS ARAÚJODesde pequena, Laís sempre rabiscava. Já sonhou em ser ilustradora e, com o passar do tempo, percebeu que desenhar era uma maneira de “desabafar seus sentimentos”. Ao entrar na faculdade de Design, começar a trabalhar e ter pouco tempo. Foi deixando de lado a rotina de seus rabiscos. Depois de ter se formado descobriu que seu desejo é atuar na área de projetos. Ilustrar sempre será sua válvula de escape. Um lápis e papel sempre estarão ao seu alcance para novos traços.

escuta essa!►letra da música

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{ela}

Ela ficava ali olhando para seu telefone esperto. Ele olhou para cima, percebendo a quantidade de cabos de força que forçam nossa vida ser tão cheia de energia elétrica e tão (...) vazia.

O mesmo bar de sempre, na mesma rua Augusta que os viu en-trar e sair da faculdade, empregos e namoros. Quase cinco da tar-de de um domingo rosa degradê, que tem o silêncio consensual de uma amizade de anos quebrado pelo fim de uma sessão no Espaço Unibanco. Da mesa que estavam era possível ver a saída do cinema, alguns casais tranquilos saíam e viravam à esquerda, subindo lentamente rumo ao Metrô verde e aos Gols cinzas do Fantástico. Pessoas sozinhas saíam e já viravam à direita, descen-do com o passo dobrado para o Baixo. Estas interessavam mais, já que compunham uma amostra que poderia ser rotulada em um blog como “um retrato da nossa geração”. Um desses, com os óculos mais grossos que as lentes, passa literalmente aplaudindo em câmera lenta o que deve ter sido o melhor filme do mundo do seu domingo a tarde.

Ela quem quebra o silêncio.

- O cinema é supervalorizado, teatrinho fotografado, e nego pre-cisa colocar mais de 20 fotos por minuto durante 100 minutos para passar uma vibezinha mais ou menos.

- Tem gente que faz com uma foto só, né?

- Mas Fotografia também é uma errada, começou bem com gen-te parada olhando para o retrato, e dava trabalho, então davam valor, hoje tá baixo astral.

- Desde o começo a fotografia veio para matar a pintura, né?

- Outra perda de tempo, sem falar de escultura.

- É impressão minha ou você tá gongando as sete artes da hu-

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manidade?

- Meio que sim, só a música salva. Talvez, a dança, um pouco, mas como ela é uma chupeta da música, só a música mesmo.

Ele lembra da amizade deles. As idas aos museus, os livros que eles se emprestaram (os dele, Ela nunca devolveu), as chances que Ele perdeu de beijá-la nas inúmeras vezes que foram ao cine-ma, a tatuagem que Ele fez sem Ela saber, a peça que Ela encenou e Ele pode vê-la finalmente pelada. Era engraçado ouvir aquela passeata contra as artes, justo dela, a menina que sempre trouxe-ra arte para vida d’Ele. Já que eles não podiam ter o amor român-tico, “que pelo menos as artes”, acho que era o que ele costumava a pensar. Outra vez, Ela quebra o silêncio.

- Me escreve uma canção?

“Como?”, Ele pensou, já que não conseguia compor fazia dois anos, desde quando toda onda da antiga banda desaguara por aí. Com o trabalho, o aluguel e a prestação da natação, compor havia ficado para depois. E sabe que escrever música depois de muito tempo é como nunca ter escrito antes, cabaço que volta, rabo de lagartixa que cresce.

- Nossa, eu achei que você nem gostava das minhas músicas!

- Só tô pedindo, porque isso é uma das coisas que nunca fizemos juntos.

- Uma música?

- É! Me escreve uma canção.

Ele conseguiu pensar em centenas de coisas que eles nunca fi- zeram, e pelo menos duas não eram sexuais ou amorosas. Na Fa- culdade Ela sempre fora uma paixonite, mas ficou muito tempo com um amigo d’Ele e acabou ficando só amiga d’Ele. Depois da faculdade, numa festa, um dia, eles quase se beijaram, mas choveu. Teve aquela vez também, e teve o velório do Tuca. Aí Ela foi trabalhar na Austrália e as tardes de domingo na Augus-ta passaram pro sofá da casa da vó. Essa semana Ela voltou, e a cerveja das cincoassete na esquina com a Luis Coelho, embaixo

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do toldo vermelho, também. Resolveu ir fazer uma das coisas não sexuais que eles nunca faziam juntos e levantou para pagar a conta. Quando Ele voltou Ela estava de pé conversando com a microempresária da região que aborda a clientela no boca-a-bo-ca, oferecendo cigarrinhos aromatizantes e relaxantes. Ele sentiu saudades do Rio, de recusar um Hare Burguer em Ipanema. Ele sentiu saudades d’Ela também, ficou feliz que ela voltou.

Eles caminharam para casa. Na calçada Ela evitava pisar nas par-tes pretas, pulando de brancas em brancas, quase como se en-tendesse a mania d’Ele de evitar tocar as teclas escuras do mi- nimoog.

Ele segurou a mão d’Ela, como quem segura uma caixa de trans-porte de gatos e leva por algum tempo. Ele tentou pensar em al-guma outra situação visual que pudesse ilustrar aquele momen-to “filme indie de amor”, mas ela realmente apertava com força a sua mão suada de cerveja.

Corte para a próxima cena.

Eles, que nunca tinham tido nada sexual e romântico, agora, tin-ham uma canção.

Transar era inevitável, mas, antes de tocá-la, Ele tocou para Ela a música que aquela tarde tinha rendido. Depois seus dedos passaram das cordas do violão para dedilhar o corpo dela, com pequenos slaps de polegar e carinhos alternados de dedo 1 e 2. Enquanto eles transavam, Ela sorriu satisfeita lembrando de quando há dois anos atrás, um pouco antes de ir para Austrália, havia encontrado a letra dessa música que lhe fora oferecida como feita agora, e pode fechar os olhos ao ressentir o que senti-ra no dia que lera aquela letra, Ela finalmente poderia fazer o que queria desde então: pedir a Ele para fazer uma canção.

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texto: MATHEUS WEYH

TÓPAZ eu sempre esqueço

21 anos, estudante de cinema. Só acredita no amor que vê nos filmes.

Álbum: “Onze Nós”, 2012Composição: Alexandre Nickel

Selo: Olele

ilustração: GUILHERME MARQUESNatural de São Paulo Capital, filho de dona Cleide Marques e Giovani Araújo, apaixonado por desenho, arte e fotografia. Influenciado por diretores e cineastas como Tim Bourton e Tarantino, e artistas digitais como o ilustrador Dave McKean. Desenvolveu arte e desenho para tatuagens, ilustrações e projetos de design gráfico pessoais e alguns trabalhos freelancer, como capa para CDs e capa de livros.

escuta essa!►letra da música

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{eu sempre esqueço}

Eu esqueci o aniversário dela. Sempre jurei que nunca mais iria fazer isso, meu último relacionamento terminou pelo mesmo motivo. Mas a Rebecca foi compreensiva. Escrevi uma carta pra ela um dia depois, pedindo desculpas, mas acabei entregando pra pessoa errada. Cansei de jurar pra ela que tento mudar.

Ela me deixou alguns dias depois disso. Superei, foi foda. Mas meu problema é, e sempre foi o seguinte: eu sempre esqueço. Datas, nomes, lugares, ruas, tudo. Quando eu tinha doze anos de idade, louco de amor pela guria mais bonita da sala de aula, roubei o toca CD do meu irmão e fui correndo para a frente da casa dela. Coloquei aquela música que ela sempre ficava canta-rolando na sala de aula, mas soube tarde demais que eu estava no prédio errado.

A verdade é que eu nunca fui bom nisso. Nunca fui bom em ser um bom cara, um bom par para alguém. Eu posso dizer que ten-tarei mudar, mas é dificil demais. É como se todas as tentativas frustradas de ser alguém melhor dessem em nada. O sentimento de nunca estar lá, estar sempre com a mente em outro lugar e, a pior coisa, nunca estar satisfeito com o que tenho.

Deve ser por isso que eu sempre esqueço.

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texto: ANDRÉ MAGALHÃES

APANHADOR SÓmaria augusta

Nascido em Campinas, André Magalhães é um adolescente aspirante a publicitário. Enquanto essa hora não chega, faz alguns tumblrs e intervenções para a “social media indie” como passatempo.

Álbum: “Apanhador Só”, 2010Composição: Alexandre Kumpimski/Fernão Agra/Drusko

Selo: Independente

ilustração: LORENA PEREIRALorena faz seus desenhos de uma forma não linear, misturando técnicas e estilos de uma maneira simples, como seus artistas-inspiração Andy Warhol e Pete McKee. Atualmente estuda em uma das escolas de arte mais tradicionais do interior de São Paulo e faz desenhos para a Parlour Flames, nova banda do Bonehead, ex-guitarrista do Oasis.

escuta essa!►letra da música

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{maria augusta}

Nada é mais surpreendente e imprevisível em um jovem do que seu coração. Por mais brilhante que seja a mente de um jovem, nada supera seu coração nesse aspecto. Você sabe disso, eu sei disso. Todos sabem. O coração de um jovem não passa de um ser totalmente inocente, que não sabe o que fazer ou qual de-cisão tomar. Essa inocência provoca diversos tipos de situações inesperadas para seus donos: boas ou ruins, com consequências grandes ou pequenas, inteligentes ou não.

Ele tinha Ela. Ela tinha Ele. No começo, viviam em uma história perfeita, com as duas partes fazendo juras de amor eterno e demonstrando uma paixão muito forte. Coisa de cinema.

Porém, o tempo foi desgastando a relação entre os dois corações. Brigas e desencontros fizeram com que aquele amor eterno fosse desaparecendo aos poucos com o passar dos dias, até chegar à estaca zero. Antes que esse dia chegasse, surgiu uma oportuni-dade de recomeço, ou, ao menos, um adiamento do fim. Seus quatro melhores amigos – Maria Augusta, Antônio, Vera e José – os convidaram para um arrasta-pé. Ele não era tão fã de forró, mas sabia que essa era a chance de se aproximar novamente. Ele se imaginava dançando com Ela, com a intimidade de antigamente: sentindo o calor de seu corpo, com as batidas de seus corações sincronizadas, e depois declarando todo o amor que parecia ter sido perdido com o tempo.

Nem tudo ocorreu como o previsto. Antes de partirem para a festa, ocorreu uma nova discussão. Uma discussão que parecia ter substituído todo o amor por rancor, que fez com que os dois desejassem terminar com qualquer laço afetivo entre eles. Ela es-bravejava que não o queria mais e que aquilo seria o fim. Naquele momento, Ele percebeu que o arrasta-pé não serviria mais para voltar com Ela, e sim para se esquecer totalmente daquela garo-ta que havia conquistado seu coração. Tinha decidido que sairia correndo para procurar outra mulher.

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Ao chegar ao arrasta-pé, Ele ficou junto dos outros casais de amigos. Não queria saber se Ela também estava presente na festa, ou se havia decidido ficar em casa. Não queria saber se Ela estava tentando se esquecer dele com outras amigas, ou lamentando uma grande perda. Não queria saber, mas não parava de pensar naquilo. Por isso, saiu “correndo para arranjar outra mulher”.

Foi aí que o coração do jovem surpreendeu novamente. Todas as outras mulheres do lugar pareciam possuir algum defeito para sua concepção. A única mulher que parecia ser “perfeita” para Ele era Ela. Apenas Ela. Por mais bonito que fosse o rosto de qualquer outra, apenas o rosto dela atraía sua atenção. Ele não queria cor-rer atrás de outra pessoa. Ele queria Ela.

Ao final da festa, Ele estava sentado em uma calçada, já rouco de gritar pelo nome da amada. Não conseguia aguentar a saudade dos bons tempos compartilhados com aquela mulher. Quanto a Ela, ninguém sabe o que aconteceu. Seu coração pode tê-la feito também ficar rouca de saudades, ou ela conseguiu superar seu ser pulsante e seguiu seu próprio caminho, sem ficar rouca de saudades.

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texto: GUILHERME PIETROBON

GRAVEOLA E O LIXO POLIFÔNICO

rua a

Um cirurgião dentista em formação pela FOP-UNICAMP e pseudoescritor não só nas horas vagas. Colaborador de três blogs e administrador de outros três. Metido a jornalista da faculdade onde estuda. Já participou de duas coletâneas de textos, além de ter um livro ainda no papel. Tem um karma que o prende a certo nome e acredita em horóscopo quando quer. Nunca abriu um biscoito da sorte, ou talvez um só.

Álbum: “Um e Meio”, 2010Composição: José Luiis Braga/Luiz Gabriel Lopes

Selo: Independente

ilustração: TITA GRACILLENascida em Salvador, terra da alegria, Talita, ou Tita para os “chegados”, sonha em viver da arte misturando desenho com pintura, gravura e a loucura que der na telha para suas produções. Professora e musicista nas horas vagas, estuda e apronta na Escola de Belas Artes da UFBA.

escuta essa!►letra da música

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{rajado}

Aquela manhã não tinha nada pra ser diferente. Rotineira como qualquer outra. O mesmo banho morno, o café fraco e pão ama- nhecido de sempre. O calçado desbotado no pé, a jaqueta jeans rasgada e a camiseta com a gola esgarçada. Tudo em seu lugar. Bolsa no ombro e os papéis do trabalho enfiados lá dentro. A ca-beleira desajeitada, presa por um só elástico, contrastando com a barba muito bem aparada - xodó e motivo de cuidado diário.

Na cabeça, as mesmas ideias e a monotonia imposta pelo tra-balho. O coração vazio, sem ninguém pra fazê-lo de morada. Abandonado há tempos. Paixão forte, daquelas que causam ce-gueira. Verdades inconvenientes abaixavam sua cabeça. Fones enfiados e volume no máximo. Os pés sabiam automaticamente onde pisar, e o caminho viciado nunca apresentara surpresas. A Rua A.

Sinaleiro verde. Os transeuntes se misturavam e quase tudo a ele passava despercebido. Vermelho. Pedestres acumulados na calçada. A cabeça forçada a se erguer. E mais uma vez, fora para- lisado.

Ali, naquele mar de gente, um olhar castanho penetrante. Aque-la tez morena específica. Os cachos caídos no ombro, um tan-to quanto não organizados. Um arrepio que subiu. Uma gota de suor gelado escorreu pela nuca. Não era a primeira vez, mas parecia ser a última. E ela, sabendo que estava sendo olhada, não retrucava. A vontade havia, mas ela não sabia o quanto. Encontro casual, que se repetia vez ou outra. Mas era sempre a mesma sur-presa. A mesma tensão. Verde. Por fim, ela passou. E ele ali, com a perna bamba e os pés colados à calçada. Vermelho.

Coragem. Meia volta. Verde. Uma mão no ombro. Um oi. Amarelo.

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texto: ALEXANDRE SPIACCI

THIAGO PETHIT mapa-múndi

Nascido em Jacarezinho, hoje Alexandre Spiacci vive em Curitiba. É músico, integrante das bandas Simonami e Te Vejo em Breve. Trabalha no Audiovisual, produzindo desde cinema, publicidade até vídeo clipes. Dedica o tempo livre para a literatura e a produção de roteiros.

Álbum: “Berlim, Texas”, 2010Composição: Thiago PethitSelo: Tratore Records

ilustração: FERNANDA MALESKINatural de Joinville(SC), hoje mora na cinza Curitiba(PR). Estudante de Design na UTFPR, trabalha como freelancer. Seus atuais trabalhos envolvem ilustração, identidade visual e web design. Possui trabalhos de animação em fase de construção. Nas horas vagas é body piercer, toca escaleta na banda Símonami, gosta de comer coisas azuis, ama fotografar e é acostumada a escrever sobre si em terceira pessoa.

escuta essa!►letra da música

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{correio elegante}

No meio semestre deste ano, eu continuava sem muitos amigos. A professora gostou do desenho que apresentei no primeiro dia de aula. Como viu que não progredi desde então, ela corrigia meus traços. Alinhava meus riscos tortos, apagava minha identi-dade infantil. Para sempre definia meu futuro concretado, igual ao dela. Ela acreditava que o humano deve sempre progredir, caso contrário, estaria entrando em decadência. Eu, em meus 9 anos e meio, entrando na primeira década. Em decadência.

Hoje, segunda feira, começava a Semana Cultural. Uma semana de cultura, voltada à cultura, mas eu não me lembro de muita coisa. Lembro de nomes que a mim não significavam muito. Es-ses nomes não citarei aqui porque só lembro quando citam e não quando cito, porque nem lembrar lembro.

O que com certeza me lembro desta semana é o Correio Elegante. Alguém pagava 50 centavos para o representante de classe e escrevia uma carta sem remetente. Esta carta era trazida ao fim de cada aula para seu destinatário. De alguma maneira, alguém naquela sala compadeceu-se de minha cara triste e destinou-me uma dessas cartas sem remetente. O texto contido na carta era o seguinte:

“Estou contente por estar na sua sala de volta”

Éramos em uns trinta alunos em sala. No momento em que li essa frase, todos pareciam me encarar e a decorar cada movimento, suor, saliva engolida e piscada de olhos secos. Hoje penso que ninguém prestou atenção em nada disso. A não ser ela.

Entendi por pressuposto que, se essa pessoa pagou 50 centavos a um Correio Elegante, que na época era o preço de um salgadin-ho, ela havia de querer retorno deste investimento. Logo presta-ria atenção em mim e em todos os meus atos citados ali acima. Analisando se a carta surtira algum efeito em mim.

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Após o recreio e antes da professora chegar, a sala já estava cheia.Todos bagunçavam. Como um aluno normal, não popular que eu era, levantei, fui em direção ao quadro e, após pegar o giz, escrevi no canto do quadro: “Quem é você? Quais são seus planos?” Des-ci o giz ao canto do quadro e voltei para minha carteira. Como imaginei, ninguém prestou atenção ou perguntou algo. Mas eu sabia que a remetente havia prestado, já que, segundo a profes-sora, neste dia ninguém faltara.

Na terça feira, no fim da primeira aula, minha carta sem reme-tente já estava acima da mesa. Sem fôlego, a li.

“Eu te amo desde a terceira série e nada mudou com o passar dos anos.”

Ali, neste momento, eu já estava apaixonado pelo remetente. Não sabia quem era se era azul, amarelo ou transparente. Se era popular ou não. Se seus desenhos tinham traços retos ou tortos. O que importava neste momento era sua intenção e que me per-cebia.

Nossa escola tinha uma peculiaridade. No teto de todas as salas havia um gigante mapa-múndi que ocupava toda a sala. De ma-neira que todo nosso céu era feito de mapas, que para mim são riscos tortos, assim como meus primeiros desenhos. Esses riscos nos posicionavam no mundo e em nosso lugar na sala. Esse mapa em nosso teto daria a localização exata sobre quem estaria escre-vendo-me as cartas. Eu tentaria achá-la no mapa-múndi.

Cheguei e a sala estava vazia na quarta-feira. Tratei de pegar o giz e a escrever em letras colossais no quadro. “DESCREVA PRA MIM SUA LATITUDE”. Todos os alunos chegaram e sentaram-se. Após a aula aguardei o Correio Elegante. A carta vinha com pouquíssi-mas palavras. Respondia minha pergunta, mas deixou um ar de fim.

“Chile. O que será do nosso amor?”

Imediatamente olhei para trás, avistei onde estava Chile no teto. Logo abaixo não havia ninguém. Era o canto da sala em que havia três cadeiras vazias. “Baque” é a palavra que traduz minha reação. Era uma pegadinha. Apenas amassei essa ideia toda em

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minha mente. As cartas continuavam desarrugadas, lisas como se saíssem da maquina neste momento. Nunca cuidei de folhas como desta vez. Lamentei, as guardei e aguardei, não havia mais nada a ser feito.

Acordei amuado quinta-feira. Fingi dor de barriga e faltei. Re-moí e fritei todos os pensamentos. Foi um dia de cão. Sexta não houve aula. A Semana Cultural não tinha tanto conteúdo para completar uma semana inteira.

Segunda-feira eu descobri que Fátima havia ido morar no Chile. Fazia alguns anos que estudávamos juntos e eu não lembro quem era Fátima. Perguntei a todos da sala se a conheciam e todos, sem exceção, sabiam quem era ela. Era uma espécie de eu fe- minino. Uma mocinha não popular que ficava na dela. Realmente o fato de eu não lembrar nem sequer de seu rosto me deixou entristecido. Para ela, eu era quem eu odiava. De alguma maneira a rejeitei, pois nunca prestei atenção em uma coisinha sequer e ela, coitada, só teve oportunidade pagando os 50 centavos do salgado de cada dia. Entrando em meus primeiros 10 anos, ali naquele momento já começava a primeira rachadura de minha decadência que se repetiria de 10 em 10 anos. Toda vez que me entristeci porque me rejeitaram, eu fazia a mesma coisa com Fáti-ma diariamente. Ao olhar os que não me viam me esqueci de ver quem podia me acompanhar. Talvez se eu tivesse ido quinta-feira à aula. Ah, se eu pudesse voltar atrás, ah, se eu pudesse voltar...

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texto e ilustração: CARLOS ALEXANDRE MONTEIRO

VIDEO HITS o basset azul

Carlos Alexandre Monteiro tem 36 anos, é carioca, jornalista, publicitário e, definitivamente, não sabe viver sem criar.

Álbum: “Registro Sonoro Oficial”, 2001Composição: Diego Medina/Michel Vontobel

Selo: Abril Music

escuta essa!►letra da música

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{o basset azul}

Não há nada pior nesta vida do que ser um sujeito impressionável. Mentira: claro que há pelo menos 470 coisas piores. Mais mentira ainda: às vezes você fixar sua atenção em algo, mesmo não que- rendo, pode ser algo positivo. Às vezes, não. Porém, se você for realmente impressionável, aquilo pode ficar contigo para sem-pre.

A partir daqui, eu poderia aplicar em vocês aquele velho recurso de atribuir situações passíveis de embaraço a outras pessoas. É mais fácil jogar tudo no colo de outros, mas dessa vez eu vou abrir mão do expediente e admitir: aconteceu comigo. Mesmo. E parando para lembrar, a verdade é que eu não queria mesmo que tivesse acontecido com outro. Mas isso não importa.

O que importa é que não foi ontem, mas há pelo menos um pu- nhado de anos - um gigantesco e generoso punhado. E começou da forma mais trivial e monótona possível: numa fila de banco. Imensa, como toda fila verdadeira se destina a ser, com o tempe-ro azedo de uma tarde calorenta. Em que cidade? Isso, me reser-vo o direito de não dizer. Mas não foi aqui - não onde escrevo, não de onde você lê.

Numa época em que os computadores não faziam ligações telefônicas e não cabiam nas mãos das pessoas, em situações como aquela eu me distraía tentando inventar histórias para os que se encontravam mais adiantados na fila. Para as que me sucediam, a graça era outra: um prazer idiota e minúsculo em cruzar olhares e imaginar que todas elas queriam estar no meu lugar naquele instante. Imbecil, certo? Mas garanto que você já fez isso. E também, em minha defesa, me ocupava muito mais em meu exercício de imaginação dedicado aos que seriam atendidos antes de mim. Me encarregava de criar nomes, longas histórias e razões pelas quais ali estavam, pra onde iriam depois. Arnal-dos, Suzanas, Lídias, Luizes. Advogados, açougueiros, manicures, geógrafas. Pagando a mensalidade atrasada da escola dos filhos, sacando dinheiro para uma viagem de três dias, fazendo um de-

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pósito irrisório na caderneta de poupança. Não vendo a hora de estarem de volta ao trabalho, comerem no McDonald’s, passarem na lotérica para um breve e semanal flerte com a pessoa do ou-tro lado do balcão. Nessas circunstâncias, para cada um, sempre arrumava um enredo, sem deixar ninguém escapar. Mas, naquele dia, abriu-se uma exceção.

Eu devia ser o oitavo da fila; ela, a terceira. No momento em que a olhei, encontrei dois olhos azuis imensos, margeados por ru-gas e uma maquiagem de véspera. Sua dona não passava 1m50, mas a força daquele olhar lhe conferia um porte que não dizia respeito a baixa estatura. Aquele momento deve ter durado uns três segundos. Um tempo suficiente para não apenas bloquear minha brincadeira criativa como para me fazer suspeitar de que, talvez, ela tivesse se antecipado à minha vez no jogo. Ou seja: eu me sentia o objeto da imaginação dela. Era ela que tentava me ler, inventar, arrancar meu passado, presente e futuro usan-do aquela mente sexagenária. Dizer que aquilo me provocou um desconforto é minimizar o que senti, mas foi algo breve. Talvez tenha acontecido o mesmo com ela, pois instantes depois aquela senhora saiu da fila, dirigindo-se ao balcão de preenchimento de envelopes de depósito.

Em cinco minutos, chegou a minha vez de ser atendido. Fiz o que tinha que fazer e, sem pensar em qualquer coisa, me dirigi à saí-da. Quase chegando à porta giratória, fui impedido de avançar por uma mão gelada segurando meu pulso direito. Era a senhora dos olhos azuis. Por um segundo ela os ergueu até os meus, sem largar meu braço, dando em seguida uma leve sacudida nele. Instintivamente, abri a mão; foi a deixa para que ela pusesse nela um pequeno papel dobrado. Não tive tempo de ler naquele instante, pois logo ela anunciou sua voz grave em duas frases de que nunca esqueci.

- Me procure ainda hoje. É de seu interesse.

Sem esperar resposta, ela virou as costas, passou a minha frente e saiu. Fiquei olhando aquela silhueta de cabelos ocultos sob um lenço vermelho e corpo embrulhado num vestido florido de avó girar até a rua e, de lá, caminhar num passo nervoso e rápido. Quando ela finalmente sumiu do alcance de minha vista, reuni a coragem que não tive para ir atrás dela naquele instante para

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me fazer abrir o papel. Trazia tão somente o nome de uma rua da qual nunca tinha ouvido falar e um número de dois algarismos.

Pensei em jogar o bilhete fora. Pensei em correr atrás da velha. Pensei noutras tantas coisas - algumas de que eu seria capaz de fazer, outras não; mas a opção escolhida foi tentar seguir o roteiro natural do dia até aquele estranho encontro: um breve almoço e meia jornada de trabalho. Um fracasso, pois mal consegui comer. O garfo se alternava em meus dedos com a breve mensagem. Por vezes - um monte delas - eu guardava o papel no bolso da camisa apenas para, segundos depois, ter o trabalho de pegá-lo novamente, desdobrá-lo e ler seu conteúdo, fingindo que ainda não o havia decorado.

Como você pode imaginar, se a refeição não foi bem sucedida, tampouco as horas de trabalho daquele dia. Pouco rendi, uma vez que, antes de chegar à redação, fui ao jornaleiro comprar um Guia Rex. Precisava saber onde ficava aquele endereço, e não de-morei a descobrir: num bairro distante, no qual eu nunca havia pisado, numa região da cidade não bem afamada.

E agora? Ir ou não? Este foi o dilema daquela noite não dormida. Curiosamente não dividi o acontecimento com ninguém - talvez por não querer ouvir amigos me estimulando a deixar para trás o que aconteceu; ou, talvez, quererem me acompanhar caso deci- disse ir ao encontro da mulher.

A verdade é que eu queria reencontrar aquela velha. Decifrar o enigma. Saber o que ela queria comigo - ou melhor, o que eu haveria de querer com ela. Descobrir o que, afinal, era de meu interesse. E como, a essa altura dos acontecimentos, talvez seja também o seu, vou pular tudo o que aconteceu entre a noite não dormida e minha mão direita batendo na porta descascada da casa feia e acabada que não resistiria a um sopro de lobo de história infantil e localizada inconvenientemente a algumas ruas da linha do trem ruidoso.

Não esperei 30 segundos até reencontrar aqueles olhos que falam mais que a dona. Novamente ela os interrompeu. Sem mão estendida. Apenas voz:

- Você veio. Fez certo. Entre, sente e espere.

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Entrei. O figurino da senhora, que rapidamente apontara para outro cômodo, era exatamente o mesmo. Por dentro, aquela hu-milde casa era mais triste e decrépita do que em seu exterior. Paredes pintadas em cor de carne, uma mesa rústica e pequena num canto esquerdo. Pelo menos uma dezena de fotos velhas penduradas em cantos aleatórios, penduradas de frente a um sofá modesto, de dois lugares. Não havia qualquer cheiro, bom ou ruim. Um armário de madeira escura ocupava a parte direita da sala, que trazia uma janela que nunca parecia ter sido aberta na vida. O silêncio dominava o ambiente, que parecia ser de ex-clusivo domínio da senhora. Ninguém ali morava senão ela.

Sentei-me no sofá e concentrei meu olhar nas fotos. Se da pri-meira vez que as vi não reparei nelas direito, na segunda notei serem recortes de jornais emoldurados. Alguns, via agora, eram do exterior, com escritos em espanhol e inglês; e todos pareci-am falar de eventos extraordinários, tendo as imagens de pes-soas agradecidas que, mesmo felizes, traziam um olhar de quem havia passado por uma espécie de transformação. No entanto, não cheguei a ler nada além de palavras soltas. Ao levantar para seguir melhor o que havia após um “¿Milagro?” grafado em ne-grito de uma manchete, fui interrompido pelo retorno da velha.

Agora, a senhora encontrava-se incomodamente próxima de mim. Trazia as mãos fechadas em concha na altura do peito. Não demorou para que as estendesse, sinalizando algo que intuiti-vamente entendi como um pedido para que eu pegasse o que quer que ela guardava. Com minha mão esquerda, atendi. Nela, recebi algo gelado, um pouco pesado. Curioso, imediatamente a abri: era uma espécie de peso de papel. Não, não, menor do que um peso. Uma espécie de pingente sem cordão, com a forma de um animal de cauda fina e longa, orelhas grandes, focinho afi-nado, corpo dobrado na forma de um C invertido. Um pequeno cachorro azulado. Não pedi maiores detalhes; ela, também, não me deixaria.

- Você não sabe o que sou nem o que faço mas, no momento em que te vi, soube que você pode morrer em breve. Algo ter-rível pode te acontecer. E você só pode evitar se andar com esse cachorro contigo.

O que falar? Agradecer? Questionar? Ou, até mesmo, recusar a

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oferta? Não soube naquele instante, não saberia mesmo agora. Tentei esboçar qualquer palavra, esbarrando numa gagueira iné- dita, interrompida por um último comando.

- Agora vá embora. E finja que nunca me conheceu.

Por alguns segundos depois da ordem, meu corpo pareceu ter tomado ciência do quão estranha era aquela situação, me impe- dindo de me mover. Respirei fundo, voltei a olhar para o pequeno cachorro. Finalmente, deixei a casa com aquele objeto dentro da mão, tentando verdadeiramente fingir que, de fato, aquilo tudo não fora simplesmente nada. Páginas rasgadas do livro da minha pacata existência, coladas novamente apenas agora. Passemos às próximas.

Na verdade, as próximas não foram exatamente rasgadas. Uma vez obediente à recomendação da senhora, com o suposto a- muleto sempre em algum bolso disponível, nunca houve pro-blemas. Nos primeiros dias, confesso, até sentia uma segurança meio bobalhona por carregar o boneco - eu, que nunca fui cético mas ao mesmo tempo não sou exatamente o que se pode con-siderar supersticioso, esotérico ou algo que o valha. Depois, sim-plesmente adotei o hábito de tê-lo e esqueci o de respeitá-lo. Era tão somente um acessório, presente no cotidiano de uma vida trivial, sem sustos nem olhos azuis assustadores que convocam encontros em casas estranhas.

Enfim: esqueci do episódio. E meses se passaram até que um dia o recolocou em minha vida de forma definitiva. Um quase começo de noite, aliás.

Lembro bem da primeira parte daquela quinta-feira, dia da en-trega de um projeto em meu trabalho que, ao ser finalmente aprovado, parecia uma bigorna abandonando meu tronco, es-talando músculos, cervical e lombar de uma vez só, num alívio generalizado. Algo que realmente merecia uma comemoração. Porém, por algum motivo meus colegas não poderiam fazer nada no dia, adiando a festa da equipe para o happy hour da sexta. Eu não podia esperar, e prometi a mim mesmo comprar uma garrafa da primeira bebida que visse exposta no bar ao lado do escritório - em questão, uma garrafa de Cointreau. Cheguei a cogitar não levá-la, mas me permiti a extravagância, indo até além: resolvi

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degustá-la em um passeio pelo deck que margeia a praia próxi-ma à redação, tentando não perder os minutos de pôr do sol.

Não demorou para me encontrar perdido entre goles e cores, na ânsia de não perder tempo em me sentir cada vez melhor. Pro-gressivamente feliz, anestesiado, abençoado, sob um céu que, de tão pleno, me fechou em meu mundo. Uma clausura tão breve quanto perigosa, como se provou pouco tempo após.

Quando ouvi os passos atrás de mim, já era tarde demais. Uma mão num golpe seco, empurrando algo que me cortava a um palmo do umbigo. Uma dor lancinante que chegou a cortar o efeito do álcool a ponto de me despertar a agonia e uma bravura impertinente. Garrafa tombada, cotovelo procurando um queixo alheio, carteira no chão, corpo na carteira, um possesso disposto a ter o que não era seu, um embriagado em defesa de um simples naco de couro embrulhando notas e de uma mochila com alguns itens desimportantes.

Cinco segundos se passaram até acontecer. Era um som grave, raivoso, num volume inexplicável, vindo por trás e cercando minha cabeça como num surround natural. Um som que você só ouvirá uma vez na vida, caso de fato ouça. Que você jamais saberá descrever ou reproduzir. Do tipo que você, se fosse poeta, escritor ou coisa assim, ansiaria por chegar em casa para pronta-mente colocar num caderno ou computador mil metáforas para tentar defini-lo. Sete segundos.

Aquele som estupendo era como se o universo se rasgasse num só rosnado avassalador, numa onomatopeia fascinante como as-sustadora. Pavor sonoro materializado no rosto de meu agressor, que deixou de lutar contra mim para apenas experimentar o que deve ser o instante seguinte de alguém prestes a presenciar a a- bertura de um inferno pessoal, prestes a consumi-lo para sempre.

Foram apenas dez segundos. Bastaram eles até a chegada da luz anil tomando o todo, me cegando, levando minha consciência a algum lugar sem perspectiva de volta.

***

Dormi em azul, acordei envolto em branco-hospital. Realçado no

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alvo cheiro de éter, de esparadrapo, de torpor. Minha mão não esperou que eu começasse a dar conta de mim, buscando imedi-atamente o lado ferido; achou em seu lugar um grande curativo e uma advertência na sequência.

- O senhor não pode mexer aí. Pode arrancar os pontos e causar mais uma hemorragia. Não brinque com a sorte que o senhor já deu. Perdeu muito sangue. Na minha terra isso se chama milagre - disse a enfermeira.

Na minha é só vida. Sorri por estar realmente de volta. E só sete dias depois, após largar as camisolas, é que me dei conta de uma curiosa coincidência: nas calças que enfim voltei a vestir, o pequeno cão já não se encontrava mais lá.

***

A porta demorou a se abrir no mesmo tempo que da primeira e última vez. O olhar da senhora trazia a mesma cor, mas algo mais acolhedor. Talvez só menos seco. Talvez.

Mais uma vez, lá estava eu, buscando por algo de meu interes-se - só que, agora, por intenção realmente própria. Quando quis forçar minha presença, não vi necessidade, pois logo ela abriu a porta por completo, me convidando a entrar novamente naquela sala. De novo, corri os olhos por aquele ambiente, percebendo que eu simplesmente lembrava de tudo o que havia visto de início. Foi isso que me fez notar a única diferença: a parede de recortes en-quadrados exibia um novo exemplar. Caminhei em sua direção para poder ler o que ele estampava. Tratava-se de uma manchete que já me era conhecida fazia dias: “Jornalista escapa da morte em ataque no cais. Paradeiro de agressor é desconhecido”.

Busquei novamente a senhora. Eu simplesmente entendi tudo, sem qualquer necessidade de que isso passasse por algum pro-cesso lógico, racional, montável, desmontável; como disse, sim-plesmente entendi. Porém, isso não me impediu a pergunta. Sem fala, sem verbo, expressa fluidamente no gesto que me fez reunir as palmas de minhas mãos. A resposta, sim, veio em tom suave, firme, compatível com a voz grave daquela mulher:

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- Ele voltou ao lugar dele. Você voltou ao seu. Agora, siga seu caminho.

Bastou-me, e me bastei. Inclinei a cabeça, concordando, aceitan-do. E quando já estava na porta, prestes a rasgar estas páginas, ouvi uma última recomendação.

- Sei o que o senhor faz da vida. Nunca volte, nunca traga nin-guém - e, antes de dizer a frase final, a velha interrompeu-se em um longo suspiro. Escancarou a porta de sua casa, abrindo a pal-ma de sua mão esquerda na direção do mundo exterior, perden-do os olhos azuis num longo horizonte inalcançável e terminan-do sua coleção de palavras inesquecíveis:

- Eles… Eles não sabem nada do que eu tenho com você.

Desta vez, o suspiro foi meu. Saí. No terceiro passo de volta à nor-malidade, ainda juro ter ouvido, misturado ao ranger da porta, um ganido vindo de dentro da casa, em volume baixo, soou man-so, despretensioso, buscando o nada. Perdendo-se não em um azul ofuscante, mas no cinza daquele novo fim de tarde.

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texto: KARINA PILOTTO

BLACK DRAWING CHALKSmagic travel

Jornalista recém formada pela PUC-Campinas. Em um relacionamento sério com seu iPod e sua atual carreira como repórter de cultura.

Álbum: “Life Is a Big Holiday For Us”, 2009Composição: Victor Rocha/Douglas de Castro /Renato Cunha/Denis de Castro

Selo: Monstro Discos

ilustração: JULIANA SORATIJuliana rabisca por aí há 21 verões. Estudante de Publicidade, ganha o pão como designer e ilustradora. Inspirada por Tim Burton, Cyril Rolando, Jan Saudek e literatura em geral, tenta traduzir sentimentos em imagens.

escuta essa!►letra da música

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{aos olhos de quem vê}

Chegou o dia mais esperado entre os últimos 9855 que já havia vivido. 8 de janeiro de 2013 foi a data escolhida para o seu últi-mo dia. Tinha curso superior, uma família estável e dinheiro su-ficiente para bancar todo o tempo em que quisesse viver sem precisar trabalhar. Mas o problema ia além de uma simples crise existencial: era uma realidade que não conseguia mais carregar desde os seus 18 anos de idade. Anos de terapia e tratamento psiquiátrico de nada serviram para aliviar a dor que a jovem sen-tia. Por isso, decidiu que deixaria tudo para trás naquele dia, às 23h30. Para aliviar o sentimento dos que ficariam na realidade em que estava deixando para trás, escreveu as respostas para as possíveis perguntas em um bilhete.

“Errados são os que vivem das certezas dos outros”, riscou em todas as paredes, postes, pontos de ônibus e calçadas por onde passava. Seu ponto final estava a 50 quilômetros, cuja caminha-da seria enfrentada com remédios tarja preta e whisky irlandês. Durante todo o percurso ela fez questão de elogiar todas as mu-lheres que usavam batom preto e riscar todos os carros das cores laranja, azul, amarelo e rosa.

A razão de tudo estava ali, naquele consultório de portas e pare-des mais verdes que a cor do asfalto daquela manhã. Esperou embaixo de sol até às 12h30, horário em que o psicólogo sairia para almoçar, conforme confirmado pela recepcionista nas últi-mas três ligações. Surpreso com a aparição repentina da paciente, disse que apoiava a decisão e contaria o segredo aos pais no mo-mento em que combinaram. O céu era roxo, as árvores brancas e, as pessoas, vermelhas. E tudo se tornara mais colorido assim que saiu do bar. Após às 19h, o ambiente se encontrava composto por marrom e roxo, com pinceladas de verde neon. Usou todas as drogas possíveis, se jogou em frente aos carros e motos no horário de pico, desviou de sombras amarelas que cruzavam seu caminho. Quebrou as janelas das casas vizinhas. Cuspiu na cara das mulheres que usavam batom branco e continuou a riscar to-dos os carros das cores verde, vermelho, preto e lilás.

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Chegando ao destino final, ela correu para pular a cerca pintada em azul turquesa, que deveria ser elétrica e estar funcionando naquele momento. Vendo suas mãos sangrarem em azul mari-nho, não hesitou em se manter próxima daqueles que usufruíam o local para atitudes ilegais. Quando a polícia aparecia, ela se escondia atrás de uma das árvores rosa choque. Não sabia mais de quantas pílulas precisava, porém sabia que qualquer quan-tidade acima de duas daquelas cápsulas era o suficiente para o efeito que esperava. Estas ela não poderia compartilhar com os novos amigos - era uma viagem sem volta, uma viagem que só ela poderia e queria experimentar. O destino ela sabia qual seria, um muito melhor do que o vivido nos últimos anos. De nada adi-antaram as inúmeras viagens à Disney, e quanto mais percorria o mundo, mais sabia que o final não poderia ser diferente. Ela não poderia conviver com a certeza dos outros. Ela precisava ter certeza que agora era hora de por um ponto final nesta jornada.

Enquanto aguardava o efeito da medicação, lembrou-se do começo de seu “karma”. Mais do que um sonho, sua vontade era mudar o mundo com sua arte. Tinha tentado na música, mas não conseguiu. Tentou com poesia, tinha menos talento ainda. Foi na pintura que encontrou a atenção daqueles que nunca se apro- ximariam em ocasiões comuns. Apaixonou-se pelas cores e pelos formatos abstratos. Percebeu que algo estava diferente quando acordou na manhã do dia 8 de janeiro de 2009 e constatou que sua visão estava diferente. Foi diagnosticada com catarata no dia seguinte, mas fez questão de contar aos pais que tudo continua-va bem. Aos poucos, não conseguia mais pintar, desapaixonou-se pela arte e nunca mais tomou gosto por nada semelhante. Nem mesmo pelas novas cores que brindavam os antigos formatos.

“Quem consegue viver sabendo que sua razão para sobreviver só terá vida no imaginário?” escreveu no bilhete antes de tomar as pílulas que a deixariam cega para sempre. Ela anotou o endereço do parque naquele bilhete e permaneceu por lá até a hora em que os pais a encontrariam. A família não sabia como proceder, anos e anos investidos em um psicólogo que apoiara uma fatali-dade como aquela.

Dias depois, a mãe da jovem entrou em contato com o oftalmo- logista da filha. Até que o silêncio no outro lado da linha fez com que ambos interrompessem o diálogo para refletir.

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“Minha senhora, creio que tenha ocorrido um engano. Sua fi-lha.... É... Ela não está cega... Passar bem.”, gaguejava o médico enquanto desligava o telefone. O que ele queria mesmo dizer era que, por conta de um engano, o resultado do exame da jovem havia sido trocado no mesmo dia com o de outro paciente.

Ela jamais ficaria cega, somente enxergaria o mundo de uma maneira não tão comum para os olhos das pessoas “normais”. O médico não revelou o diagnóstico para a família, mas decidiu que largaria a profissão, abandonaria a esposa com quem vivia feliz há 30 anos e daria vida aos olhos da menina com sua própria morte, no próximo dia 8 de janeiro.

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texto: LUCAS SANTANA

CAMBRIANAthe sad facts

Embora não consiga ler e escrever com a frequência que acha necessária para se tornar íntimo das palavras, Lucas tem dentro de si aquele instinto natural a todos os seres humanos de expressar-se artisticamente. Para colocar seus demônios para fora, apenas conversas de bar ao pé do ouvido ou sessões no psicólogo não são suficientes. Faz necessário, sem tempo marcado, escrever narrativas que são espelhos de sua vida, com as distorções pertinentes. Ademais, é um jornalista que acredita no mundo e nas pessoas. Pessimismo? Só consigo mesmo. Para ele, a vida lá fora é uma criatura prestes a evoluir.

Álbum: “House Of Tolerance”, 2012Composição: Luis CalilSelo: Independente

ilustração: PEDRO MUNIZDas folhas de caderno na infância ao design gráfico e a ilustração na vida adulta. Santista/recifense de 21 anos apaixonado por arte, aspirante a músico, escritor, fotógrafo, designer gráfico e ilustrador, Pedro acredita que a arte tem que dominar o mundo.

escuta essa!►letra da música

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{divagação sobre aquários}

Era uma dessas noites em que a rua é mais amigável do que um teto. Noite quente, quieta, quando só se ouve o motor dos carros bem longe, indo pra qualquer lugar melhor que o próprio quarto, melhor que a cama desarrumada, que a tela do PC esperando alguma atividade. Em uma dessas noites uma jovem que poderia ser qualquer uma de vocês cansou de esperar que a agonia ces-sasse, juntou as tralhas em um canto do quarto, tomou um ba-nho, vestiu-se e foi procurar onde pudesse transformar algumas notas de dinheiro em alívio.

A agonia que não passava já durava alguns meses, um misto de solidão, medo, marcas psicológicas de uma história cheia de altos e baixos. Nunca soube lidar com a própria vida. Por muito tempo viveu na inércia de deixar que tomassem suas decisões. Quando retomou as rédeas, viu-se perdida, sem referências, aprendiza-dos, uma estúpida.

Nessa noite específica, o que tinha era um bar quase vazio. Se estivesse ali algo próximo de trinta pessoas, era muito. Ela estava com dois amigos. Uma banda tocava, mas não importava. O que importava é que na entrada do bar estava ele, olhando direto pro lado de cá. Fixo, atrás dos óculos, atingindo em cheio os anseios de alguém que não tinha nada a perder, mas queria muito ga-nhar. Encararam-se por longos minutos. Quando a música muda-va, perdia-o de vista. Quando voltava a encontrá-lo, estava mais perto, aqueles olhos, aquele sorriso. Em uma distração, ouviu sua voz bem perto, dizendo um boa noite. Tão seguro, natural, tão ele, tão refém.

Não precisamos de nomes para entender o que aconteceu en-tre os dois. São duas pessoas que numa noite se conheceram, se envolveram e as coisas complicaram. Enquanto ela se entregou por completo, ele soube usar, com grande louvor, a ingenuidade para brincar em um playground em que ele ditava as regras. A metáfora perfeita é o aquário, em que o peixe grande, carnívoro, domina todos os outros. O terreno é dele, quem ultrapassa o li-

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mite, joga pelas suas regras.

Já era a segunda vez que se encontravam por acaso. Afinal, ele não dava telefones, contatos ou endereços. Só permitia aos outros imaginar o que fazia, com quem andava, dormia. Devia dormir com todas que lhe desse na telha.

Aquela voz firme entrava pelos ouvidos como uma canção que envolve. Quando percebia, já estava cantando seu refrão e não podia tirá-la da cabeça. O barman colocava a cerveja sobre o bal-cão e a percussão da batida na mesa dava a harmonia perfeita com o que estava acontecendo. Bela voz, rosto irresistível, etílico descendo pela garganta, pronto, não havia mais volta. Os amigos que lhe acompanhavam, sumiram, o bar em volta desapareceu e nem a banda que tocava podia mais ser ouvida. Fechou os olhos por alguns segundos e, quando abriu, já estava naquela cama de cheiro familiar, amaciante azul com ursinho na embalagem, sorrisinho no canto da boca.

Embora o álcool fizesse o quarto girar, não tinha como não re-parar que o cigarro ainda soltava fumaça na escrivaninha ao lado. As pilhas de livros na estante à frente eram imponentes, mostra-vam que tudo o que aprendera na faculdade era ínfimo diante daquela mente brilhante. Quando surgiu na porta bloqueou a luz forte que vinha da sala, e só era possível ver suas curvas. “Não pensei que fosse acordar tão rápido”. Ninguém pensou, mas a ne-cessidade de estar em casa antes das seis da manhã era como um relogio despertador. Devia ser três, quatro da madrugada, mas os carros ainda buzinavam como se o sol acabasse de se esconder no horizonte. “Posso passar mais algum tempo com você antes que eu vá pra casa”.

Ele nunca esboçava reações fortes. Sempre ouvia, deglutia a in-formação e respondia com cara de quem não liga muito pra coisa alguma. “Você estava muito bem hoje”. Ah, um elogio era uma bomba prestes a explodir. Quando começava a ter algum pen- samento mais racional sobre aquela situação toda, vinha com agrados e tudo mudava radicalmente. “Gostei bastante também, você não costuma errar”. Se excitava só de pensar no quanto o sexo era bom, principalmente porque sabia chegar naquele li- mítrofe entre o selvagem e o romântico que todas buscam.

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Desencostou da porta e veio em direção à cama, sentou-se e pegou numa de suas mãos trêmulas. “Você é tão jovem, inteli-gente e se entrega com tanta facilidade que não consigo dizer não”. O sorrisinho no canto da boca desapareceu junto com o ar. “Devido a muitas coisas, eu preciso”. Ele era o tubarão que per-mite que o pequeno peixe dourado se aproxime pra lhe remover as crostas que o incomodam, quando já está satisfeito, mostra suas mandíbulas e deixa claro que é um predador solitário. “Não precisa se explicar. Sua casa, suas regras”. Era muito sincera, só se esquecia de expôr que adorava brincar de caça e caçador, mes-mo que isso lhe custasse o amor próprio e algum resquício de felicidade.

A resposta veio num beijo longo, calculado, beijo com ares de despedida. Sabia que seria o último beijo que daria nele em meses, então beijava com todo o empenho que poderia ter. Seri-am meses longos, em que poderia encontrá-lo quando entrasse em um bar, virasse uma esquina durante a noite, entrasse em um teatro, em um mercado, fechasse os olhos para dormir. Que poder esse homem tem de arrancar todas as suas defesas? Por que não revida? Esquece, deixa passar, parte pra outra? Nenhum outro teria aquela voz, aquelas curvas, os livros que o fazem tão brilhante, o jeito de não ligar pra nada e ser sempre tão seguro. Talvez esse homem seja feio, tenha mau hálito e ouça música ruim, mas ela foi fisgada para dentro daquele aquário como nun-ca antes. Lá dentro, não é mais ela, é comida de peixe, que ele devora e deixa os restos apodrecendo.

Vestiram-se, trocaram poucas palavras, atravessaram a casa em silêncio. No corredor do prédio, só teve tempo de dizer tchau. A porta se fechou, mas foi apenas simbólico. Ela continua lá, refém.

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texto: DÉBORA ZANINI

CLARICE FALCÃOoitavo andar

Paulistana da gema, deixou a terra da garoa para estudar Biologia em Campinas, na Unicamp. Hoje, socióloga (abandonou Biologia para o desespero de sua família), casada com seu primo (para o desespero de sua família), estuda comportamento humano em redes sociais digitais. Filha de pai poeta e mãe formada em Letras, não poderia deixar passar a oportunidade de ouro de (tentar) escrever um conto.

Álbum: “Monomania”, 2013Composição: Clarice Falcão

Selo: Casa Byington/Som Livre

ilustração: BIANCA PINHEIROBianca Pinheiro vive escondida em Curitiba por tempo o suficiente para já ser considerada quase curitibana. Ela desenha desde criança, o que fazia dela um ser antissocial. Quando cresceu, continuou antissocial, mas agora desenha um pouco melhor. Pós-graduada em Histórias em Quadrinhos e apaixonada por isso, atualmente vive de ilustrações e de HQs que produz semanalmente no The Flying Cow Fever.

escuta essa!►letra da música

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{luma era uma garota comum}

Luma era uma garota comum. De tão comum que era, tinha lá suas características incomuns. Bailarina, filha de pais separados, tinha 21 anos e um namorado que, não oficialmente, morava com ela. Nunca falou aos seus pais, mas não gostava de seu nome – preferia se chamar Melissa.

Havia, recentemente, saído da casa de sua mãe, com quem fi-cara depois da separação de seus pais - não que ela tenha tido alguma preferência nesta questão, mas até seu pai achara que seria melhor que morasse com a mãe. Seu pai, professor univer-sitário nas horas vagas e poeta de profissão, não tinha uma vida muito comum. “A poesia é cara”, seu pai sempre dizia. E, de fato, não podemos afirmar se para ela, mas para seu pai foi bem me-lhor assim: seus dois livros publicados tiveram o preço de uma vida inteira de solidão.

Viam-se de final de semana, praticamente todos, mas quando Luma começou a namorar, as dormidas na casa de seu pai tor-naram-se pequenos almoços no domingo. Não que eles não se dessem bem, mas era o primeiro namorado de Luma. Seu pai en-tendeu perfeitamente. Sua mãe, como na maioria das coisas, não gostou. Mas bem, o que se pode fazer? Ela já era adulta, estudava em uma universidade pública na qual passara sem precisar de cursinho e se sustentava com as aulas de Ballet infantil que dava na melhor escola da cidade. Sua mãe, diferente de quando Luma era criança, só pode não gostar – nada mais.

Sua mãe era uma cineasta frustrada e fracassada – e peço aqui a discrição do leitor, já que esta última característica era o que Luma pensava e nunca ousara falar. Trabalhava em uma pro-dutora cultural escrevendo projetos para seus clientes a serem aprovados pelo governo para financiamento público. Seu roteiro de filme mesmo, nunca mandou. Havia mostrado para alguns co-legas e recebeu tantas críticas que desistiu. Disto, aprendeu uma coisa: a escrever projetos que jamais receberiam críticas e que, também, jamais ousariam.

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Luma ficava triste com isso, mas não tinha muito que se fazer na época – hoje ela discorda. Luma hoje, com suas duas filhas, per-cebe que o principal responsável pelo relacionamento entre pais e filhos dar certo são os filhos – e não os pais. Aprender a ser pai, quando você sempre foi filho, é uma tarefa árdua e requer muita maturidade da parte dos filhos para entender que os pais erram. Às vezes me pego pensando neste ponto, quando estou sozinho: será que algum dia existirá filhos maduros que tenham paciência de ensinar seus pais sobre a paternidade?

De qualquer forma, o processo de Luma sair de casa não foi sim-ples. A relação sob o mesmo teto com sua mãe já tinha dado o que precisava dar. Há quem não concordasse com a saída dela, mas eu, particularmente, acredito que estas relações tem prazo de validade. As pessoas mudam muito e seria muita ingenuidade achar que as relações entre as pessoas, que mudam constante-mente, precisam ficar iguais. Luma era uma criança antes e agora não é mais – a relação com sua mãe, portanto, não podia ser a mesma: fato que custou muito à sua mãe entender.

Porém, como fazia faculdade pública e ganhava um razoável di-nheiro dando aulas de Ballet, Luma conseguiria sustentar meta-de das contas de um pequeno apartamento no centro. Em uma noite, depois de pizza, vinho e contas feitas no Excel, ela e seu namorado decidiram, então, que morariam juntos. Porém, isto era segredo: para os pais de Luma, ela moraria sozinha. Já havia mudança demais para sua mãe e decidiram, então, não contar, por enquanto.

O apartamento realmente era pequeno. De tão pequeno que era, nem sua mãe nem seu pai desconfiaram que o namorado mora- ria lá também. Quando eles foram conhecer, Vitor ainda não havia levado suas coisas para o lugar e, de fato, não se poderia imagi-nar que caberiam coisas de uma segunda pessoa lá. Mas coube. A vida é assim: quando a gente fica velho, a gente esquece de quão flexível a gente era. Seu pai até que gostou e sua mãe, não – pequeno e velho, daria problemas respiratórios em Luma. E deu. Mas ela não contou.

Era um apartamento em um prédio velho, onde moravam ou pessoas bem velhas ou bem jovens. Luma e seu namorado eram bem jovens e alugaram um do oitavo andar, que já estava há

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tempos sem ninguém. Dona Maria, uma vizinha de frente, quan-do viu a mudança, ficou feliz. Era viúva há dois anos e disse que seria bom ter alguém jovem naquele andar. Só não gostou mui-to quando o casal resolveu limpar a casa na primeira semana ao som de Los Hermanos – ela preferia tangos e não entendia para onde caminhava o gosto musical desta juventude. Tirando esta pequena diferença, Luma e D. Maria se deram muito bem nas conversas de corredores. Por pequenos instantes Luma se sentiu um tanto culpada, pois via sua mãe em D. Maria e chegava até a sentir um pouco de falta. Mas logo esquecia.

A relação se estreitou mais ainda quando D. Maria, em uma das conversas corridas de corredor, disse a Luma que ela se parecia com sua sobrinha que se chamava Melissa. Pronto, a amizade es-tava feita.

Luma adoraria dizer que os primeiros meses foram os mais felizes da sua vida. Mas não foram. Óbvio que ela diz isso hoje – na épo-ca ela se sentia feliz. Ouso a dizer que mais pelo fato dela estar fora da casa de sua mãe do que de fato morar com o namora-do. Era sua casa, seu espaço, seu tapete, sua televisão, seu sofá, sua geladeira e seu namorado. Todas as coisas eram suas e não precisaria dividir nem dar satisfação a ninguém. De tanto que Luma enxergava a sua nova vida apenas como sua, seu namora-do começou a não se sentir tão seu assim. Apesar de estarem morando juntos, estavam muito mais distantes e muito mais au-sentes um do outro.

Tudo o que sua mãe a privara, Luma resolveu que era o momento de fazer. Voltou a fazer aulas de Ballet para se tornar uma dança-rina profissional e isso consumia um tempo grande do seu dia. Pois pense: eram 4 horas de aulas e ensaios cotidianos durante a manhã, 2 horas de aulas que ela ministrava para as crianças a tarde e faculdade à noite. Viam-se muito pouco e faziam cada vez menos parte da vida do outro. Vitor também não se acanhou e preencheu seus horários com tantas coisas que ele nem bem sabia se daria tempo de tudo.

E foi assim durante os vários meses, até completarem os 12 de um ano inteiro. Cada um com suas vidas, cada um com seus es-paços e cada um com seus interesses. Vitor, matemático dedica-do, foi chamado a ministrar um curso de verão em Paris e nem

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hesitou, nem consultou Luma, para aceitar.

Foi. Passou dois meses que diz terem sido perfeitos e quando voltou percebeu que não gostava mais de Luma. Estranho pensar que não gostava mais, mas quando desistia de pensar e se deixa-va sentir, percebia que era isso mesmo. Já até haviam contado aos pais de Luma que moravam juntos, não seria fácil.

Mas era isto, estava decidido: não seria mais possível. Luma quis morrer – não de mentira, de verdade. Passou o último ano inteiro tendo tudo sendo seu que esqueceu o que seria não ter mais. Luma surtou, chorou, berrou e se atirou no chão da cozinha, per-to da porta de saída. D. Maria, preocupada, bateu na porta e foi xingada por Luma – indignada, voltou ao seu apartamento e li-gou para a policia.

Vítor não recuou, nem mesmo poderia, se quisesse, diante de uma situação como aquela. Arrastou Luma para alguns passos longe da porta e tentou sair. Quando estava perto de cumprir seu objetivo – que era sair dali o mais rápido possível – caiu na bestei-ra de olhar para trás. Olhou e viu que Luma alcançara uma faca suja da pia. Gritou, mas Luma já estava sangrando com metade da faca no seu pescoço. Segundos antes da polícia chegar, Vitor se ajoelhou perto de Luma e ela sorriu, acariciou seu rosto - que o causou uma mancha de sangue na bochecha - e, depois, des-maiou.

Todo o tempo de Luma no hospital foi acompanhado por Vitor e, por isso, ela estava feliz. Era o que importava – era a única coisa que importava, na realidade. Não via a hora de sair de lá e voltar para sua casa, com suas roupas, seus livros e seu namorado. Foi o que aconteceu.

No final daquele ano Luma e Vitor estariam casados oficialmente, como manda qualquer contrato formal e nunca mais falariam so-bre separação, felicidade e Ballet.

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texto: MARCOS XI

CÍCEROaçúcar ou adoçante?

Marcos Xi jura que não come meleca. Só limpa o salão como todo mundo, mas escondido. Fora isso é editor chefe do RockinPress e faz participações especiais para NME Br, Submarino, SWU e quem mais o chamar. Ainda brinca de assessoria digital nas horas que não trabalha com conteúdo online na agência carioca Ladobê.

Álbum: “Canções de Apartamento”, 2011Composição: Cícero Rosa Lins

Selo: Deckdisc

ilustração: MARINA DA SILVA20 anos, universitária, letrista, assalariada e beatlemaníaca, que desenha nas horas vagas. Descobriu recentemente que possui certa dificuldade em desenhar xícaras, o que a deixa deveras frustrada.

escuta essa!►letra da música

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{açúcar ou adoçante?}

Oi, tudo bem? Nem vi você chegar. Já faz algum tempo que não nos vemos. Você não me ligou mais, não me chamou mais, não me amou... Não estou acostumado a receber visitas a essa hora da noite. Entra pra ver como você deixou o lugar. Não repare a bagunça. O tempo que levou para arrumar foi maior que o tem-po que você usou sorrindo para mim. Tire os sapatos pra entrar (e pensar que um dia tirava a roupa para amar).

Lembra daquela gaveta? Ela ficou meio vazia depois que joguei nossos sonhos fora. Lembra de quando gostávamos de ver um filme, ir a um parque, discutir Caetano, planejar bobagens? Você espetou sua casa aqui dentro, em mim. Faz tanto tempo, né? Al-gumas certezas mudaram. Talvez eu tenha mudado e você não. Talvez. Aliás, tem ido ao analista? Desculpa, esqueci que você não gosta de tocar nesse assunto. Esqueci que um dia eu realmente não me importava de saber que você não se importava comigo. Isso é tão... Tão... Tão...

Mas se você quiser alguém pra amar, ainda... Hoje não vai dar. Não vou estar. Te indico alguém para por açúcar ou adoçante no seu café. Desculpe, não queria te magoar, mesmo que você tenha me magoado, não queria te magoar. Nem queria te amar, mas eu amei. Fica um pouco mais. Vamos relembrar cada momento que deixou de ser um momento, um lugar, um pedaço de mim para tornar uma parte de ti. Vamos contar os dias que a minha paisagem passou a ser você e eu passei a não ser eu, passei a ser seu... Objeto.

Este silêncio sentencia a noite, a despedida. No fundo, apenas os carros passando e a vitrola avisando que acabou o disco. É o fim. Que bom.

Mas se você quiser alguém pra amar ainda, eu posso te falar. Pos-so te olhar firme e dizer que... Te indico alguém. Sim. É sexta feira. É carnaval. É a solidão do meu apartamento começando a desco-brir o que é chegar e o que é partir. O meu coração só precisa de

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ar e deixar você partir. As coisas mais velhas dentro deste lugar são este sofá e o que eu senti por você. E o que eu não sinto mais, não mais, não agora.

Acho que já é hora. Desculpa se eu desabafei, se eu te fiz chorar as lágrimas que um dia eu chorei. Ah, se tu soubesse... É sempre sem querer, mesmo querendo para si, mesmo querendo perder. Penso e sei que isso é um adeus. Meus olhos fixam em seus cabe-los enquanto me despeço da porta. Fica bem aí. Essa luz compri-da ficou tão bonita em você daqui. Fica bem aí. E desse fio de luz me despeço do passado, afinal, eu também preciso de alguém pra amar.

Para quem preciso ligar?

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texto: ANDRÉ FELIPE DE MEDEIROS

PÉLICO não vou te deixar, por enquanto

Quase nada paulistano para muita coisa e até demais para outras, André Felipe se formou em Comunicação e, de tanto fazer arte, foi buscar um diploma também nisso, numa tentativa de buscar uma poesia corriqueira em um mundo cada vez mais compreendido. Curioso e crítico, está no jornalismo cultural há alguns anos. Nesses últimos, se tornou pai do Música Pavê, tio do Atelliê Fotografia e padrinho do Monkeybuzz.

Álbum: “Que Isso Fique Entre Nós”, 2011Composição: PélicoSelo: YB Music

ilustração: THIAGO SILVA MORAESThiago Moraes é natural de Campo Grande, MS. É um apaixonado por todas as formas de manifestações artísticas. Desenvolve trabalhos com o corpo, desenho, cinema e video. Em 2013 concluirá o curso de Artes Visuais em licenciatura e irá pelo mundo afora promover a Arte e a vida. Pra ganhar a vida ele gerencia a najon.com.br e pega uns bicos de video e produção cultural.

escuta essa!►letra da música

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{não vou te deixar por enquanto}

Ao chegar na esquina, ela já o via acenando do local combinado. Olhou para os dois lados algumas vezes antes de atravessar e, com passos pesados, chegou até o sorriso, o abraço e o conse-quente e corriqueiro beijo de “oi”. Quando você beija duas pes-soas no mesmo dia, o segundo parece ter gosto de obrigação. Mas lá estava ele, feliz por encontrá-la, a mão tão carinhosa e res- peitosa em volta do seu rosto e o hálito doce, tão seu. Só agora ela se dava conta de que “hálitos” vão muito além de bons ou ruins. Acabam sendo uma impressão muito própria de alguém, uma lembrança muito íntima. De olhos fechados, era um misto de paladar e olfato, um sabor antiquado, que não a deixava es-quecer quem estava à sua frente.

Começaram a andar, com respostas triviais a perguntas comuns. Sol de tarde de primavera com vento, seria o tempo perfeito para andar de mãos dadas, não fosse o incômodo causado por qualquer contato físico naquele momento, porém os dedos se alocavam em seus devidos lugares como de costume. Pararam em algum canto bom de sentar e conversar, um banco de praça desses que você só percebe a existência quando precisa se sentar de fato. Ele falava de coisas cotidianas com a paixão de sempre e a vista perdida na cidade. Enquanto isso, ela notava o quanto ele lhe parecia opaco em pele, voz e verde dos olhos. Todas as manias e defeitos com os quais ela aprendeu a conviver – alguns depois de certo esforço – ali, bem na sua frente, junto do que ela admirou desde que se conheceram, do que sempre lhe chamou a atenção, formando uma composição que ninguém mais via, só ela conheceu. Tudo isso era observado enquanto ele falava do trabalho - ou seria da conversa com o primo, ou das compras que tinha feito? De tanto olhar as minúcias, justo às palavras lhe fal-tou atenção.

Esses detalhes eram como pequenos argumentos para sua men-te, fossem para o bem ou para o mal. Refletia e ponderava, mas se virasse a cabeça para qualquer outro lado, por qualquer se-gundo que fosse, eram outros olhos que lhe apareciam à mente.

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Uns nada verdes ou opacos, que vinham com palavras às quais a atenção era inevitável. Aquele momento que viveu mais cedo ainda era presente, cada sorriso ou risada, cada folha balançando com o vento enquanto conversavam na varanda sobre coisas tão pessoais em um tom leve. Tudo lhe vinha em pequenas cenas de cortes rápidos, cada pormenor lhe soava ritmado, musical. Mas, esses acordes perfeitos foram interrompidos por uma pausa si-lenciosa: ele fizera alguma pergunta.

Precisou admitir a distração mexendo a cabeça para os dois lados e piscando lentamente. Sem se importar, ele repetiu a pergunta. Era alguma opinião sobre algum fato que lhe parecia familiar, provavelmente algo já conversado antes. Respondeu que sim , sem pensar muito - era melhor apenas concordar naquela situ-ação. O assunto foi retomado enquanto ele acariciava suas mãos, olhando fixamente para elas e perdido em seu próprio discurso. Ela analisava cada ângulo do seu rosto. Tão bonito, como sempre. Belo e sem brilho, cheio de expressões desgastadas pela con-vivência, ainda que nutridas pelo amor. E estava certa de que se amavam, sempre tinha sido mútuo. De outra coisa também tinha certeza: o que agora acontecia em paralelo poderia não ter lógi-ca, mas fazia tanto sentido quanto todos esses meses de namoro.

Não é que ela estava infeliz com o que os dois tinham, mas aca-bara de conhecer uma felicidade que antes era inexistente. Com seu novo “amigo” – era esse o termo que parecia melhor no mo-mento -, tudo tinha sido natural, espontâneo e também mútuo, sem qualquer necessidade de seduzir ou forçar nada. Os dois jun-tos apenas aconteceram. Ainda não conseguia verbalizar para si mesma, mas sabia que, apesar de não estar descontente com o presente, a possibilidade de um futuro diferente era libertadora. “Libertar-me do que, se estou feliz?” - tudo ainda era muito cinza em sua mente. Procurava por algo que lhe firmasse a opinião, mas só sabia pensar que sua vida era um pouco mais completa depois de tudo aquilo.

Será que ela era uma daquelas pessoas que estragam as coisas que estão dando certo, que não sabem ser felizes de verdade? Não, o que aconteceu era justamente uma situação de buscar felicidade, como se houvesse um impulso para estar ainda me-lhor. Sentia-se esquizofrênica, ou bipolar, alguma coisa dessas de viver realidades diferentes em um só corpo. Pensar que as coi-

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sas poderiam dar tão errado dali pra frente, de uma forma ou de outra, causava-lhe frio na barriga, alguma tontura pré-desmaio. Felizmente, foi capaz de adiar tais sensações, assim não sofreria ali, na frente dele. Não queria perdê-lo, mas não se via arrependi-da do que fez. Com a alma ofegante, apesar do exterior apático, ela nem percebeu seu rosto descendo enquanto o raciocínio se formava: a terrível ideia de que talvez nunca fosse se encontrar inteiramente em alguém.

Ao perceber um silêncio, mirou de volta os olhos verdes, que a observavam esperando alguma resposta novamente. Ela fez o mesmo gesto de antes, mas ele não repetiu o que disse dessa vez. Apenas sorriu e perguntou se ela estava cansada. Respon-deu que sim com a cabeça, sorrindo com só um lado da boca, e ele a beijou no cantinho entre o olho e o cabelo dizendo que a levaria pra casa.

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texto: THIAGO DALLECK

LUDOV o passado

Nascido e criado em São Paulo, Thiago Dalleck é uma cabeça e várias ideias, um pouco de acidez e uma dose de escrúpulos – sal a gosto. 22 anos, formado em Design Digital, é editor do Escuto no Metrô. Na Fábrica de Prosopopeias, rascunha poesias, contos e crônicas, nas horas vagas e não vagas. Prefere o Paul do que o John.

Álbum: “Caligrafia”, 2009Composição: Mauro MotokiSelo: Liga Leve/12 Dólares

ilustração: SABRINNA SUZUKISabrinna é um grande clichê paulistano: marca encontros na catraca do metrô, tem rinite por causa da poluição e acha refúgio em atividades solitárias. O papel diz que ela é bacharel em Comunicação, mas seu coração sempre foi das artes. De todas as artes: fissurada pela franquia nintendista Zelda, ela se orgulha da tatuagem do Hyrule Crest que carrega nas costas. HQs, filmes, músicas, pinceis, lápis, contas pra pagar, sonhos e uma porrada de boas conversas. Ela é igual a todo mundo, mas jura ser gente boa!

escuta essa!►letra da música

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{domingo}

A chuva é um acontecimento interessante. Mais do que água caindo do céu, não é apenas um fenômeno. A chuva é um sen-timento. A alma sente os pingos finos da garoa, cobrindo os ombros de quem acabou de se despedir para sempre de outro alguém. Numa tempestade vista pela janela fechada, lágrimas do céu escorrem no vidro embaçado. O ambiente torna-se parte integrante de um mundo monocromático. Os pensamentos mais inquietantes voltam a surgir, aquecendo o olhar vago.

Uma voz suave como a primavera vem redizer as verdades que o orgulho ousou enterrar. Os trovões colaboram para a chuva ficar mais intensa. Os raios de sol tentam se libertar, mas nuvens ne-gras ainda derramam água sobre a cidade. São só quatro horas da tarde, mas a melancolia já vem fazer companhia pela terceira vez no dia.

A esperança de um arco-íris é o mesmo remorso do passado. As coisas poderiam ter sido diferentes. A nostalgia está ali, cantando baixinho para o coração livrar-se do peso e dormir em paz.

É possível que a música termine antes que as dores se assentem. Elas sempre voltam. Elas também podem doer, independentes da tristeza – clamando por apatia. No universo das dores mais solitárias, existe um lago frio e distante. Distante das pessoas, distante dos sentimentos. Submerso no lago, um novo ser está prestes a se libertar da placenta, para respirar o ar impuro que a natureza humana lhe oferece. Este ser é o subconsciente, preso e torturado pelo frio. A solidão, por sua vez, é só o vento, que deixa de soprar as folhas das árvores para contemplar sua beleza.

Por onde a lágrima passa, a alma renovada purifica a pele. A chu-va purificou o céu. O sol já está voltando.

Paulo terminava de lavar a louça naquela tarde de domingo. Não havia quase nada para lavar. Uns dois pratos, talheres e um copo. Morava sozinho em uma casa alugada, na cidade pequena onde

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estudava. Secando o copo, viu pela janela da cozinha um carro de sorvetes rodeado de crianças. As crianças gritavam os pedidos. O motorista estacionou e a moça que o acompanhava começou a entregar picolés e geladinhos.

Três vezes por semana, o carro de sorvetes passava por aquela rua. Vez ou outra, Paulo não resistia e comprava um. Deixou o pano e o copo na pia e saiu pela porta. Aproximou-se do carro.

- Você tem aquele de brigadeiro? – Perguntou Paulo.

- Ainda tem sim – disse a moça. – Vai querer um só?

- Isso. Só um. De brigadeiro – Paulo tirava as moedas do bolso enquanto a moça buscava o picolé no fundo do isopor.

Com o sorvete em mãos, Paulo sentia-se novamente criança. Cer-cado de responsabilidades prematuras, era tudo o que conseguia para amenizar e adoçar a vida. Voltou para casa e sentou-se no sofá da sala. Tirou o picolé do plástico e deixou pingar pelo chão. O gato, gordo e marrom, dividia o espaço do sofá velho com Pau-lo. Ele ainda não havia dado um nome para o gato, achou-o com fome numa rua próxima, voltando da faculdade. Seria um bom companheiro para as noites e os fins de semana. Paulo não saía muito. Nunca quis se isolar, mas não gostava de ruídos. Vivia mer-gulhado nos livros, estudando.

Ligou a TV. Um pouco de imbecilidade sempre cai bem. Passava um programa de auditório em um canal qualquer. “Olha todos esses personagens, a maquiagem derretendo de suor e cansaço”, pensava. “Olha esse palco distorcido, distorcendo as almas. Olha essas fantasias, os sorrisos...”

Paulo dormia no sofá todo sábado, com a TV ligada. Procurava algum filme ruim pra ver e comia besteiras até pegar no sono. O cobertor que trouxe da casa de seus pais ainda estava lá, servin-do de cama para o gato. Deitou, ajeitou o cobertor nos pés e deixou o apresentador do programa de auditório “comandar seu domingo”, como a propaganda sempre anunciava.

Ele sentia o apresentador olhando em seus olhos, pressionando sua vida. A plateia aplaudia e gritava sempre que uma palavra

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com entonação mais forte era dita. Todos que presenciavam o show de bizarrices – a atração principal do programa – se diver-tiam e gritavam. Gritavam mais que as crianças em volta do carro de sorvetes. Aquilo era o sorvete deles. A cada grito em uníssono emitido pelo público, a TV de Paulo chiava. O som não estava muito bom. Ou talvez a própria TV já não quisesse ouvi-los.

O picolé pingava no sofá. Paulo se concentrava para conseguir rir do que via. O chão estava sujo, como a casa toda. Algumas formi-gas começaram a aparecer. O picolé continuava a pingar. O gato olhava de soslaio; de olhos semiabertos, vigiava as formigas. Pau-lo estava prestes a dormir novamente no sofá.

A cabeça pesou e a voz do apresentador desapareceu. Tudo o que restou foi a escuridão de seus olhos fechados percorrendo o infinito. Estava de volta ao fundo do lago gélido. Seus pais da-vam-lhe a mão através da água, tentando puxá-lo para a super-fície. Davam-lhe a mão, pois Paulo pedia com o olhar. Viu num relance a luz do sol brilhando no reflexo do lago. Havia uma gar-rafa de vidro boiando. Nadava para cima, em direção à garrafa, mas a superfície do lago parecia inalcançável. Pessoas sorrindo o abraçavam e nadavam junto com ele, mas não o deixavam subir.

Sentiu-se cego e sem ar. O desespero que o cegava impedia Pau-lo de enxergar o caminho para a superfície. Estava desesperado por um sopro de vida, por um olhar sincero. Perdendo completa-mente o fôlego e já desfalecendo no fundo do lago, viu o apre-sentador da TV sorrindo para ele, oferecendo-lhe tudo o que pre-cisava para realizar seus sonhos, bastava tomar uma atitude. O apresentador começou a gargalhar e exclamou novamente com entusiasmo: “realize todos os seus sonhos!” Uma multidão saiu de um palacete submerso e começou a aplaudir e a gritar. Muitos também gargalhavam.

Paulo despertou assustado. Impulsivamente, sentou-se no sofá e chegou a derrubar o gato. As mãos seguravam a cabeça, os cotovelos apoiavam-se nas pernas. A TV estava desligada, havia pifado de vez. A chuva voltara.

Pegou o gato no colo e o acariciou, enquanto seus olhos arrega- lados e o coração disparado discerniam o pesadelo da realidade. Não sabia qual dos dois mundos o incomodava mais.

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Levantou e colocou o gato no sofá. Limpou com um pano as go-tas de sorvete do chão. Encheu de ração a tigela do gato sem nome. Desligou a TV da tomada.

Paulo foi até o quarto. Havia roupas espalhadas numa cadeira e na cama desarrumada. Pegou uma blusa de moletom no guar-da-roupa – ia sair para caminhar e olhar a noite. Vestiu a blusa e colocou as mãos nos bolsos. Tirou um papel do bolso, desdobrou e viu que era um bilhete. Parecia bem velho. Nele lia-se “Os fins de semana nascem para trazer paz. Pena que entre eles existam as semanas. Obrigado por existir”. Paulo lia e relia as palavras es-critas com sua letra torta. Deveria ter entregue o bilhete, deveria ter tomado uma atitude. Era um futuro que não viria mais.

As lembranças dos sonhos compartilhados inundam os olhos, quando os sonhos já são impossíveis. Os dias juntos, o “até logo, já tô com saudades”, todos os presentes e o presente que virou passado... Tudo isso embolado na memória poética, versificam acontecimentos e são colocados numa garrafa de vidro. Uma garrafa que flutua sobre o lago das dores subconscientes.

Paulo ficou imaginando como seria o seu próprio mundo se esse bilhete tivesse sido entregue. Naquele momento, um novo sen-timento surgiu. A angústia do arrependimento. Antes tarde do que nunca.

O amanhã terá um pouco mais de hoje, mas com nome diferente. Paulo se perguntava quem foi que colocou nome nos dias da se-mana. Isso só enganava os tolos.

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texto: MARÍLIA ROCHA

SILVA a visita

Nascida e criada no sul de Minas, Marília escreve para dar vazão ao turbilhão de ideias por segundo que surgem na sua mente. Estuda História na Universidade Federal de Alfenas e pesquisa os perfis de mulheres ideais em revistas femininas do começo do século XX.

Álbum: “Claridão”, 2012Composição: Lucas Silva/Lucio Souza

Selo: Som Livre/SLAP

ilustração: THAÍS BIANCAMestiça e grande apreciadora de gatos, Thaís Bianca é residente de Campinas-SP e recém formada em Design. Seu forte é a ilustração lúdica colorida a aquarela de traço muito peculiar e sutil, afim de trazer um sentimento de felicidade serena e nostalgia. Thaís usa seus queridos (humanos ou não) como inspiração para o que faz.

escuta essa!►letra da música

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{a bailarina que não dançava}

Ana fechou o vestido e passou o batom. Colocou aquele sapato que a filha tinha comprado, mas nunca teve coragem de usar. Era bonito demais pra usar à toa, ela pensava. Olhou no espelho e ajeitou os cachos impecáveis. Aqueles cachos sempre estiveram ali, embora tenham mudado de cor. Agora brancos, antes seus cabelos eram loiros, por isso na sua infância todos a comparavam com Shirley Temple. Inclusive o Raul.

Eles passaram a infância juntos, eram tão próximos... Ana não se lembra de quando parou de falar com ele. Talvez tenha sido no começo da adolescência, quando as pessoas sofrem de uma timidez instantânea e fingem não se conhecer. Talvez tenha sido quando Raul se mudou da rua. Mesmo assim, continuavam estu-dando na mesma escola e Ana acompanhou a transformação de Raul em um pretendente desejado por todas as garotas. Todas diziam que ele tinha voz de locutor de rádio. Enquanto isso, ela se encontrou no balé. Fez disso a razão da sua vida, até que vieram os conflitos, a lesão e o Pedro.

Pedro foi o resgate pra confusão que era a sua vida. Não foi o tipo de paixão que gostaria de ter vivido, mas ele era um homem bom. Ele não gostava que a Ana dançasse. Tiveram duas filhas. Pedro morreu há cinco anos. Ana não saiu de casa para se divertir durante todo esse tempo.

Mas Tereza a convenceu. No dia anterior, quase arrastou Ana para o baile da saudade. Ela ficou o tempo todo sentada enquanto a amiga dançava.

- Vem dançar, Ana! Lembra dessa música? A gente dançava tan-to...

- Vou ficar aqui observando pra aprender.

- Uma bailarina que não dança? Era só essa que me faltava...

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A noite passava, os casais dançavam e Ana só olhava. Tereza es-tava quase desistindo da amiga, após oferecer vários pares para dançar e Ana só recusar.

- Dança com o João, Ana! Ele é o maior pé de valsa do baile.

- Não, vou ficar sentada por enquanto.

Enquanto Tereza se levantava para mais uma dança, um homem senta à mesa de Ana, deixando-a sem jeito.

- Esse lugar tá ocupado? – disse ele com voz grave

- Na verdade está, minha amiga está no salão...

- Então ela não vai se importar. É muito triste ver a mulher mais bonita do baile sozinha. Os homens daqui não são lá muito de- licados.

- Estou sozinha por opção, não vejo problema nenhum nisso. E você também não me parece lá muito delicado... – replicou Ana

- Mas é claro, que indelicadeza a minha... Meu nome é Raul, como você se chama?

- Sou a Ana... Escute aqui, Raul! Você é muito galante e parece ser uma pessoa inteligente, então vai entender que eu quero ficar sozinha, não é?

- Espera, você disse Ana? A Ana bailarina? Claro que é! Eu reco- nheceria esses cachinhos da Shirley Temple em qualquer lugar! Estou ficando velho mesmo...

Conversaram até o final do baile. Não dançaram nada, mas Raul marcou uma visita na casa de Ana no dia seguinte.

Ela então esperava ansiosa pela chegada de Raul. Não demorou muito para ele aparecer no portão, segurando vários discos de vinil.

- Pra quê tudo isso? – perguntou Ana enquanto os dois caminha-vam de braços dados.

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- São meus velhos discos de bolero. Quero lhe ensinar como dançar.

- Como é irônica a vida, não é? Uma bailarina que não dança...

- É só falta de prática, tenho certeza que logo você pega o jeito.

Depois de cafezinhos, lembranças e risadas, Raul colocou um dis-co na radiola.

- Você não vai se safar dessa... Venha aqui dançar.

Ana se aproximou, segurou a mão de Raul enquanto ele abraçava sua cintura. Ela estava com problemas para encontrar o ritmo.

- Dois pra lá e dois pra cá – disse Raul, ao pé do ouvido.

Na segunda dança ela já se sentia confiante e sequestrava a atenção de Raul, cantando junto da música.

- Y al mar, espejo de mi corazón, las veces que me ha visto llorarla perfidia de tu amor...

E assim eles dançaram. Com Ana junto ao peito de Raul, o tempo parecia voltar. Na verdade parecia nunca ter passado. Na sala de visita, uma bailarina de cachinhos dançava bolero com o melhor partido do colégio. E estava bom assim. Esperavam amar depois.

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texto: FILIPE C.

FERNANDA TAKAIinsensatez

Músico, produtor e compositor. Futuro proprietário e morador de uma casa às margens da Estrada Real, na altura de Paraty - só falta o dinheiro. Por sua escolha de vida franciscana, acaba mesmo passando a maioria de seus dias dentro de uma sala cheio de instrumentos. Atualmente, curte dormir assistindo algum documentário após encher a cara com chá de erva cidreira.

Álbum: “Onde Brilhem Os Olhos Teus”, 2007Composição: Tom Jobim/Vinicius de Moraes

Selo: Do Brasil Música/Tratore

ilustração: RENATO PENOVRenato nasceu em São Paulo, tem 29 anos e curte desenhar desde criança (talvez ainda seja uma). É formado em Publicidade e Propaganda pela ESPM. Já fez ilustrações para Pepsico (Toddynho), Arno e Ferrero Rocher.

escuta essa!►letra da música

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{insensatez}

Ela acordou, deu-lhe um beijo no rosto e suspirou de um jeito tranquilo se preparando para aquela sexta-feira de trabalho. Era uma manhã como outra qualquer, e, por isso mesmo, ele sabia da sorte que tinha ao acordar do lado dela.

Seus cabelos escuros como seus olhos, sua pele branca e as pintinhas nos seus ombros. O jeito leve como acordava, sempre cantando, errando todas as letras e rindo de si mesma. Prova-va inúmeros vestidos, floridos ou de bolinhas. A pilha de roupa se acumulava na cama, mas sempre escolhia algo básico - seu charme fazia qualquer pedaço de pano parecer deslumbrante.

Sentiu o colchão se movimentando e um doce “nos vemos a noi-te” sussurrado em seu ouvido, seguido de mais um beijo no rosto. Seu coração sempre acelerava ao sentir o perfume dela. A porta da casa fechou e o barulho das chaves batendo uma nas outras foi se afastando. O portão de metal da frente da casa gemeu ao ser aberto. Ela se foi.

O vazio silencioso daquela casa o perturbou. Levantou-se, pegou seu café, foi até a varanda e assistiu as crianças jogando bola na rua. Acompanhava com o olhar o menino mais gordinho dos três, que tentava desarmar os seus colegas mais habilidosos, mas an-tes mesmo da xícara de café acabar, o garoto já estava com uma expressão desapontada, com as mãos apoiadas nos joelhos e de boca aberta respirando com dificuldade. Identificava-se com aquele menino em especial, “é a sintese da minha vida” , pensou, virando o último gole enquanto entrava na casa. Sentou no sofá e, com o laptop no colo, começou sua rotina de responder emails com informações sobre máquinas de corte de tecidos. Achava aquele trabalho um dos piores meios que já tinha inventado para conseguir pagar suas contas. Ainda não tinha sentido coragem para sair daquele emprego pois seu tio havia arranjado a vaga em sua empresa. Era um serviço cobiçado pois todo o trabalho podia ser feito de casa. Porém, estava sufocado dentro daquele tédio.

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Deixando o computador de lado e imerso em pensamentos que voavam para longe das máquinas, tentava lembrar onde ele tinha guardado as malas cafonas que havia comprado em sua última viagem.

Correu para o quarto, olhou embaixo da cama onde então avis-tou o brilho do ziper de uma delas. Deitou-se no chão empoei- rado, esticou o braço e, com o rosto colado no chão, agarrou e puxou a alça. No tecido velho, o logo “Adventure” estava escrito em grandes letras azuis na parte da frente e tentando criar um cenário épico, montanhas nevadas traduziam o que poderia se entender por aventura.

Sem nenhum cuidado em manter os vincos de suas calças, começou a encher a mala. Empilhou todas as suas roupas e en-fiou revistas e livros nos bolsos de fora.

Na outra, colocou cuidadosamente as roupas e vestidos dela. Separou as peças que já havia visto ela usar muitas vezes. Sabia, por exemplo, que o jeans desgastado com a mancha no joelho era seu preferido. A camiseta com um trocadilho de um filme que ela adorava, apesar de ser presente dele, poderia ficar de fora. A maquiagem, o perfume que ele amava, os sapatos, a foto de sua tia-meio-mãe que morreu ano passado, os tantos cd’s que havia feito para ela com as músicas que gostavam, seus remédios para dor de cabeça, o brinco - presente de seus pais pelo vigési-mo quarto aniversário, seu chapéu que ele odiava mas ela usava mesmo assim, sua coleção de dvd’s , seus caderninhos de ano-tações, contas, fotos dos dois juntos, textos e seus óculos de grau que gostava de usar em situações sociais desconfortáveis.

Tudo ali era tão dela e tão dele ao mesmo tempo. E ele adorava isso.

Foi até a escrivaninha e começou a separar mais algumas fotos. Dentro de um caderno repleto de desenhos aleatórios, daqueles que ela fazia enquanto conversava no telefone, achou o mapa com algumas anotações sobre valores, datas e rotas.

Há meses planejavam visitar o primo dele que morava em uma cidadezinha a muitos quilômetros dali. Era uma viagem que du-raria semanas e tinham decidido aproveitar as férias dela e o

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aniversário de quatro anos de namoro que se aproximava para se darem esse presente.

Ao desdobrar o mapa completamente, uma folha de papel caiu em seus pés. Era um texto datilografado. Sentou-se no chão, cru-zou as pernas e se surpreendeu com a frase no topo da folha:

“Nunca teremos certeza”

E a carta continuava:

“Hoje é seu aniversário e chegou aquele momento que sempre imaginei. Deitados na grama do sítio do seus pais, olhando para o céu, naquelas noites calmas, nossa única preocupação era pen-sar se iria fazer sol no dia seguinte para irmos tomar banho de cachoeira e fumarmos maconha o dia inteiro. Você me pergun-tava o que eu faria depois da faculdade e eu respondia que não sabia. Não nos ensinaram a pensar sobre as nossas vidas. Desde sempre nos condicionam a vencer objetivos e a ir para a próxima etapa.

Quero tanto tudo. Há dias que quero desistir da vida mas em ou-tros quero domá-la. Gostaria de saber como seria se envelhecês-semos juntos, depois de quase quatro anos desde aquela manhã quente na faculdade.

Meu coração coça.

Não te incomoda saber quantas oportunidades atravessam sua vida diariamente? Como você seria se, ao invés de termos ficados juntos, eu não aparecesse na aula naquele dia da sala abafada dos grupos de trabalho? Ou se eu nunca tivesse cruzado a sua vida?

O que seria de mim agora? Pior, eu acho.

Esta noite eu sonhei que viajava de madrugada num trem de car-ga. Estava frio e eu me agarrava à minha mochila de pano com um pacote de doces, água e uma calça. Quando acordei, quis que não fosse um sonho e eu tivesse uma história daquelas para con-tar de verdade. E se, ao invés desse quarto, eu estivesse agora acordando naquele trem, com o sol na cara, em uma cidadezinha

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deserta? Eu ainda desejaria dividir uma cama quente com você, compartilhando planos e memórias mais legais ainda.

Como aquela viagem que fizemos no nosso primeiro ano jun-tos – estávamos na praia numa festa de fim de ano e fomos para o lado contrário de onde achávamos que os fogos estourariam. Não tínhamos percebido, mas estava tudo armado a poucos me-tros de onde paramos, atrás dos carros estacionados.

No fim da noite, já bêbados de champanhe quente e apavorados com as explosões sobre nossas cabeças, éramos as pessoas mais felizes da praia, não precisávamos de mais nada. Estava tudo ali.

Inundado por esse sentimento, fiquei projetando nosso futuro com um filho, uma casa ao lado da escola dele e bem próxima ao nosso trabalho. Você se dedicaria apenas à pintura e eu teria tempo de sobra para escrever. Ensinaríamos pra ele que não é importante sempre andar para frente, mas saber qual o destino. Saber o porquê de seguir aquele caminho e se gosta realmente dele. Ele passaria por crises terríveis na adolescência, se apaixo- naria muitas vezes, quebraria a cara outras tantas e viraria um adulto. Nos deixaria com um beijo na testa após a festa de seu casamento.

Enquanto escrevo essa carta, sei que tenho pelo menos uma cer-teza que não tinha antes de te conhecer; que no mundo existem pessoas incríveis como você, capazes de abrir mão de muita coi-sa, de se dedicarem a algo em que acreditam, de se preocuparem realmente com os outros, de dizerem as palavras mais bonitas para quem está tendo um dia horrível e não consegue ver cor em mais nenhum lugar, de jogarem com doçura quando tudo que recebem é um olhar amargurado e frustrado de alguém que não se encontrou na vida.

Não falo de dias ou meses. São quase quatro anos. Quero que você fique bem sempre e fuja do que te faz sofrer. “

Ao terminar de ler a carta sem identificação, não sabia ao cer-to de quem eram as palavras. Ficaram tão parecidos ao longo dos anos que não conseguiu lembrar quem tinha escrito todas aquelas verdades.

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Com os olhos cheios de lágrimas, guardou a carta e o mapa no bolso interno do seu casaco, fechou o zíper das duas malas, foi para o lado de fora e carregou o carro. Voltou para dentro da casa e, após um rápida olhada ao seu redor, sentiu-se ansioso e alivia-do por pensar sobre os dias que estavam por vir.

Depois de meia hora de trânsito na companhia de um rádio cheio de estática, chegou na frente do prédio. Estacionou, descarregou a mala e foi até o balcão de recepção. Aproximou-se e pediu para a atendente ligar no ramal do terceiro andar e avisar que tinham deixado uma encomenda eu seu nome – “Ela está em horário de almoço, mas avisarão que o senhor deixou essa mala assim que ela retornar” , comunicou a moça atrás do balcão.

Ele saiu do prédio e no caminho do carro, parou. Deu meia volta e foi em direção a atendente mais uma vez – “por favor, não es-queça de entregar isso também”, enfiou a mão no bolso e tirou a carta que achara momentos antes, dentro do mapa dobrado.

Voltou para o carro, abriu o mapa no banco do carona sem saber quando ou se um dia voltaria. Virou a esquina, e, numa névoa de incertezas, seguiu pela estrada afastando as gotas que molha-vam o para-brisa.

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texto: CAROL TAVARES

PHILL VERAS o velho john dizia

Carol Tavares é ex-editora de conteúdo da TV Minuto e da TVO, na Bandeirantes, ex-repórter do Portal MTV por quase três anos, e atual jornalista/produtora que trabalha por conta. Apaixonada por música, pela Jazz House (um nome para seu CNPJ), pelo namorado e pelas fotos de seu acampamento no Jalapão.

Álbum: --Composição: Phill Veras

Selo: --

ilustração: ADRIANA AMARALFormada em Ciência da Computação, Adriana arrisca de ilustradora nas horas vagas. Suas inspirações vem das várias coisas que gosta, livros de ficção, vídeo-games, música, séries e filmes, sendo as principais influências jogos da Nintendo, os escritores J. K. Rowling, J. R. R. Tolkien, Stephen King, Douglas Adams e Michael Crichton, e os artistas Shigeru Miyamoto, Phobs, Dave Perillo, Magda (meago), Kevin Bolk e Otis Frampton.

escuta essa!►letra da música

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{a vida é um cabaré}

A vida se tornou um cabaré para ele. John é o tipo de cara que está em todos os lugares, em todos os corpos, em todos os corações, menos em um.

Ele caminhava pelos bares daquela Paris dos anos 50. Era tudo apaixonante para um coração que não se apaixonava mais. Vi-via entre os quartos solitários de Camila e Priscila. Uma sabia da outra, mas a competição entre mulheres quando o assunto é um homem não é tão simples de entender. Essa guerra fria alimen-tava as esperanças de que seriam escolhidas, enquanto John só queria vê-las brigando por ele.

Era amaciar o ego que ele precisava. Era o controle, sentir que poderia ter o mundo se quisesse. E ele poderia, por mais vazio que fosse. Solitário, mas era o mundo que queria agora - um lu-gar seguro, onde ninguém poderia machucar um coração que já estava amarrado em uma camisa de força.

A noite estava fria enquanto ele vagava, com um cigarro no can-to da boca. Sua cabeça girava como a de um leitor no momento em que inicia Dostoievski. Sacou o uísque do bolso e virou tudo num único gole. Naquele dia, podia sentir-se mais só que antes. Naquele dia, ele soube que a única pessoa que amou de verdade havia falecido.

Ele se perguntava por que havia deixado Maria. De que havia va-lido trocá-la por uma noite com Priscila. E como ele poderia tê-la deixado partir desta vida sem que soubesse que, na verdade, ele havia feito isso por insegurança, por medo de estar amarrado a uma única mulher pra sempre. Seu pecado o havia destinado a viver a partir de então em muitos braços, menos naqueles que realmente desejava estar. E, agora, nunca mais poderia estar. Não nesta existência.

Maria o havia perdoado, na época. Mas não aguentou a pressão de viver ao lado de um homem em quem não confiava. Não con-

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seguiu conviver com o fato de ter-se tornado uma mulher feia por dentro, acometida pela insegurança de que o seu amado poderia tocar quem quisesse a qualquer momento. Ele nunca entendeu o real motivo de ela chorar todas as noites e inventar qualquer outra desculpa para o que sentia. Agora, ele não tinha mais a chance de perguntar: por quê? Ele não teria mais a chance de se redimir. Ele não teria mais a chance de tentar fazer as coisas ficarem melhores.

Ele pensava e a cabeça rodava. Ele lembrou dos últimos meses com Maria. Ela o seguia por toda a cidade, não podia ficar longe. Ela fazia todas as vontades de John. Ele se acomodava. Sabia que não voltaria a trai-la, mas sentia-se totalmente sufocado com a situação e se afastava dela. Cada vez que tentavam conversar sobre o assunto, uma outra briga começava e ele fugia. No fun-do, John sabia qual era o grande problema, mas preferia pensar que sua mulher estava maluca. E se afastava mais. Ela implora-va carinhos. Ele implorava uma liberdade. Mal sabia John que a liberdade estava em assumir um erro e começar outra vez. Ironi-camente, enquanto buscava a liberdade no casamento, acabou preso à eterna solidão.

Ele caminhava, bêbado, acendendo um novo cigarro. As ruas se tornavam mais escuras. Nada poderia ser mudado agora. Tudo que ele poderia fazer era tentar recomeçar. Bateu à porta de Camila, que acordou assustada. Quando ela o viu ali, esperando, seus olhos brilharam e o roupão abriu. Ela sentiu o que estava por vir - John resolveu dar-se uma chance e a pediu em namoro.

Foram seis meses felizes. John faria por Camila tudo que não havia feito pela sua falecida amada. E fez. Comprava flores a cada aniversário de namoro. Deitava todas as noites com ela e fazia os mais belos e quentes carinhos. Havia valido a pena. Ele se sentia finalmente livre.

Um dia, chegando do trabalho, com seu buquê de flores, John ou-viu barulhos vindos de seu quarto. Gritos de prazer. Seu coração pulou pela boca. Quem era o homem que se atrevia a tocar sua esposa? Quando abriu a porta, lá estava ela - Camila, nua. E, por cima dela, estava Priscila. As rosas vermelhas caíram ao chão, despedaçando cada pétala, enquanto o coração de John era a- marrado novamente à camisa de força.

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Ele perdoou Camila, mas passou a chorar todas as noites. Naquele momento, ele entendeu que não foi o câncer que matou sua amada Maria. Ele a matou no dia em que se negou a entendê-la. Ele a matou quando deixou que o amor que havia entre eles se tornasse um peso.

E o velho John dizia: “dói meu coração, eu não consigo dizer não”.

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texto: EDUARDO ARAÚJO

GUI AMABIS trabalhos carnívoros

Natural de Campinas/SP, mas Sul Mato-Grossense de coração. Formado em Publicidade e Propaganda, resolveu focar sua atenção na cultura. Além de redator e planejador, contribui com a revista VISTUISSU através de artigos sobre música, moda e cultura, e com o site Rock ’n’ Beats como editor.

Álbum: “Trabalhos Carnívoros”, 2012Composição: Gui Amabis

Selo: Independente

ilustração: TITA GRACILLENascida em Salvador, terra da alegria, Talita, ou Tita para os “chegados”, sonha em viver da arte misturando desenho com pintura, gravura e a loucura que der na telha para suas produções. Professora e musicista nas horas vagas, estuda e apronta na Escola de Belas Artes da UFBA

escuta essa!►letra da música

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{a tosca paixão}

A caminhonete Ford havia parado bruscamente, e o aviso era para que, mediante a qualquer movimentação, Josué se escondesse nas lonas empoeiradas que o faziam companhia na caçamba.

Com ouvidos atentos, ouviu a voz rouca do policial, que devia fu-mar um tabaco atrás do outro para ter adquirido aquela voz que vinha acompanhada de um pigarro:

- Seguindo para Campo Grande, é?

- Sim, senhor.

- A serviço de que?

- Estou indo buscar uma carga de ração para o Sr. Marcos, propri-etário da Fazenda Miranda.

O policial, desconfiado, pediu a documentação do veículo. En-quanto Rogério, o motorista, procurava no porta-luvas, ouviu-se um espirro.

- Está indo buscar ou está levando um desses paraguaios para a cidade?

- Não, senhor...

- Me deixe conferir sua caçamba...

Rogério abriu a porta que rangia e se dirigiu para o fundo da caçamba. Desamarrou as linhas que seguravam as lonas nos aros da carroça. O policial olhou lentamente e então subiu para con-ferir o que tinha por debaixo daquela lona dobrada no canto. Se aproximou sorrateiramente, como uma cobra que prepara o bote.

Puxou com tudo para fazer surpresa e recebeu apenas uma onda

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de poeira, que agora enfeitava até o seu bigode. Mas sua descon-fiança era tamanha que o convencia de um falso sexto sentido. Olhou em volta e viu um feixe desamarrado na lona da caçamba, mas não era algo que o chamasse a atenção. Desceu e entregou os documentos na mão de Rogério.

O caminhoneiro suava bicas de nervoso. Subiu na sua boleia, se ajeitou ao banco que já possuía o desenho de seu corpo no esto-fado, passou a mão na testa, a fim de amenizar a quantidade de suor que transpirava, e deu partida no veículo. Pensou: “onde es-taria aquele moço paraguaio que dei carona perto da fronteira?”. O pensamento passou. Não podia ir atrás de alguém que nem conhecia, e tinha que chegar à cidade morena antes do fim do dia.

Josué não tinha escolha. No momento em que ouviu o policial en-grossando com o seu recém-conhecido, escapou por uma fresta arranjada, indo em direção ao mato alto que fazia acostamento com a rodovia. Correu com toda a velocidade possível. Não tinha rumo, só entendia que voltar não era uma opção. Após centenas de metros, se viu perdido no meio do cerrado. Seu estômago já roncara algumas horas antes, mas conseguiu guardar seu único lanche para um momento de fome maior, atitude sábia.

Começou a buscar por alguma árvore que fizesse sombra, uma busca difícil para quem se encontrava em meio a uma mata com árvores de pequenas folhas e galhos espaçados. Sentou próximo a um buriti, que formava uma bela paisagem junto a um monte de terra vermelha, moradia para uma centena de formigas. Abriu sua sacola, que continha apenas uma calça, camiseta, seu lanche e uma pequena imagem de São Jorge que roubara do altar de sua mãe.

Tentou saborear aquele pão seco recheado por uma única fatia de mortadela e uma camada fina de margarina. Foi a única coisa que conseguiu preparar ao sair no meio da madrugada da casa de seus pais no dia anterior.

A imagem de sua mãe era latente, acompanhada de remorsos de abandonar a única pessoa que amava. Do seu pai só tinha pena e raiva, o álcool o consumirá alterando seu comportamento ao passar dos anos, jogando fora as oportunidades que tinha e dei-

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xando sua família desamparada.

Após comer metade de seu lanche, recolheu suas coisas e seguiu. Não sabia para que lado ir, mas tinha certeza de que conseguiria atingir seu sonho de chegar na cidade e construir uma vida dife-rente da que levava até então.

Sua caminhada duraria horas, e todo esse tempo serviria de es-paço para sua imaginação se exercitar, imaginando como sua vida seria daqui para frente, todas as opções de trabalho... For-matara em sua mente um quarto aconchegante no qual conse-guiria começar sua vida e conquistar aquilo que todo homem buscava, ou pelo menos deveria: a dignidade.

A cada passo, parecia que mais longe estava do seu destino. Re-solveu fazer mais uma parada, sentando em um lugar qualquer.

Estava tão cansado que não conseguiu buscar nem um local mais aconchegante. A sacola plástica frágil encobria todos os seus per-tences e mostrava o quão pouco ele possuía agora – não muito mais do que na casa em que morava. O desânimo conflitava com os pensamentos sonhadores que projetavam um futuro melhor.

Após comer a segunda parte do sanduíche, Josué deitou sua cabeça no mato. O pôr do sol já acontecia, e o céu estava tão belo que parecia uma obra de arte daquelas que nos inspiram. O rosa tomara conta da paisagem em um tom pastel e ameno, assim como a temperatura que diminuira no decorrer daquela tarde.

Ele ficou durante alguns minutos com a cabeça fervilhando. Sua inquietação era maior que o cansaço, então apoiou a palma da mão na terra e levantou-se para retomar a caminhada.

O crepúsculo começou a abrir as cortinas para uma noite pouco estrelada. A penumbra tomou conta por poucos minutos, luzes da cidade começaram a iluminar o caminho de Josué, que se deu conta do quão perto estava do primeiro dia do resto da sua vida. Apertou o passo o quanto pôde, suas botinas estavam matando seus pés, mas teria que se acostumar, já que aquele par era o úni-co que havia trazido consigo.

A cidade se aproxima de Josué e casas começam a aparecer ti-

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midamente na beira da estrada, que logo virou mais uma das ruas de Campo Grande. Josué ansiava por encontrar uma efer-vescência, que provavelmente aconteceria ao centro da cidade. Buscava informação olhando as placas de metais penduradas em muros. Uma delas informava “Rua Ruy Barbosa” e se sobressaía pela largura. Tomou esse caminho que provavelmente daria em algum lugar.

Andou até encontrar outras ruas também ladrilhadas, que indi-cavam que a região abrigava um bairro nobre, com casas que re-ceberam maiores detalhes em gesso e exibiam um bom gosto. A-quilo o remetia às residências próximas à prefeitura de sua ci-dade, Pedro Ruan, então lembrou que estava longe de sua casa e tentou imaginar o que sua mãe sentirá ao ler sua carta de des-pedida.

Seus pensamentos logo foram tomados pela preocupação de onde repousaria aquela noite. Andou mais um pouco até então ver uma rua ainda mais espaçada. Por ali passavam algumas pes-soas andando, todas elas bem arrumadas. Os rapazes vestiam ternos ou blazers pretos, combinando com os carros nas ruas.

Certamente era o centro da cidade, então viu um relógio fixa-do no meio de um cruzamento. Olhou os ponteiros que indi-cavam nove e quinze. Josué estava no cruzamento da Avenida Calógeras com a Rua Afonso Pena. Sem saber onde ir, ele chegara exatamente onde queria, mas sua cabeça só se perguntava o que ele faria agora.

Olhou para os lados e viu uma pequena movimentação em uma janela. Passou pela calçada tentando entender qual era o evento. A entrada e saída de alguns rapazes e moças indicava o grande pensionato que, em letras cursivas, recebia o nome de “Pensão Pimentel”. A viola tocava uma polca paraguaia que fez Josué se lembrar dos bons tempos que passou com seu pai, um grande violeiro. Ele se aproximou e viu um senhor tocando sua viola, en-volto de mulheres e homens.

Observou por mais alguns minutos o que ocorria ali, a identifi-cação por uma referência musical o atraiu de forma compulsória.Logo ouviu um chamado: “Ei, Ei, psiu!”. Olhou para o lado e viu uma moça de cabelos presos, com um vestido florido tímido que

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exibia as poucas curvas de seu corpo. Josué tentou entender se era com ele, quando viu um gesto vindo da mão da moça, o con-vidando a se aproximar.

Em passos cuidadosos ele chegou até a porta de onde a moça aparecera:

- Olá, senhorita - disse, timidamente.

A moça disse baixo:

- Fale baixo, meu pai não pode ouvir! Preciso que você entregue um recado para mim. Por favor, dê esse papel para Ricardo Alves, ele deve estar no único bar aberto da rua acima. Preciso que seja agora! Você pode fazer isso, por gentileza? - pediu com um sor-riso encantador que transmitia toda a graciosidade e a leveza da moça.

Josué até se perguntou o que ganharia com aquilo:

- Qual o seu nome? O meu é Josué e acabei de chegar na cidade, estava buscando um lugar para dormir. Você poderia me di-zer com quem eu posso conversar para passar essa noite nesta pensão?

A moça entendeu a situação que Josué se encontrava. Não seria o primeiro e nem o último a passar por ali pedindo para passar a noite sem pagar. Ela olhou para ele com um sorriso de lado e disse:

- Corra para entregar esse recado que pode passar a noite aqui. Quando voltar entre por ali e entre na primeira porta à esquerda, não faça barulho e não use a luz. Ninguém pode saber que está aqui.

O rapaz concordou com tudo que a senhorita disse, então foi entregar o recado. Só então percebeu que não sabia seu nome.Retornou um passo atrás para perguntar, mas a moça já desa-parecera. Seguiu então ao seu destino próximo, procuraria por Ricardo Alves, que estaria no único bar existente naquela rua.

Chegou ao local, que era povoado por rapazes aprumados. Sen-

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tiu-se acuado pelos olhares: todos, com desdém, o julgavam pela sua aparência simples e interiorana.

Josué chegou e procurou por alguém que poderia ser menos arredio com ele. Seus olhos buscaram até ver um rapaz sozinho em uma mesa, encostado na parede com um olhar distante. Ele se aproximou do rapaz que vestia terno marrom e engomado, apesar da gravata estar arregaçada e, na sua frente, Josué per-guntou:

- Boa noite, estou atrás de Ricardo Alves, você o conhece?

- O que você quer com ele?

- Entregar-lhe um recado, de uma moça da pensão...

- Sou eu.

Então Josué sacou o papel do bolso, entregou e permaneceu por um instante ali. Talvez devesse sair, mas também poderia per-manecer para carregar uma resposta. Na dúvida, optou por ir:

- Entregue, agora vou-me embora.

- Espere, qual o seu nome?

- Josué... Por quê?

- Nada, só quero te agradecer. Obrigado, Josué.

- Que isso, até mais...

O mensageiro voltou em direção à pensão, passou novamente pela janela, agora fechada, deu a volta, como indicado pela moça, pegou na maçaneta e a porta parecia não querer abrir, provavel-mente estava emperrada. Forçou um pouco, o que causou cer-to ruído. Por um segundo segurou o ar, com medo de chamar atenção. Empurrou e conseguiu abrir. A pintura azul escurece mais o corredor. Logo, Josué viu a porta que deveria dar entrada no local que o abrigaria naquela noite.

Viu ali um pequeno espaço com uma cama de solteiro, acom-

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panhada de um pequeno criado. Na outra parede estava um pequeno armário que fazia par com uma janela de madeira.

As frestas iluminavam pouco, então o rapaz abriu uma pequena para que ventilasse e desse a luz necessária para se organizar. Retirou suas vestes e botas, colocando a imagem de São Jorge no pequeno criado mudo, deitou e sentiu como se estivesse bus-cando aquela sensação de conforto há meses. Seu cansaço o fez adormecer rápido.

Na manhã seguinte levantou cedo, como de costume. O cansaço não o fazia perder alguns velhos hábitos. Ao sentar na beira da cama para calçar suas botas, a porta foi aberta repentinamente, assustando-o.

- Bom dia! - disse a moça que encontrou na noite anterior - Vim te agradecer pelo seu favor ontem, e também dizer que você preci-sa partir antes que minha mãe venha arrumar esse quarto.

- Bom dia, tudo bem, já estou colocando as botas - disse Josué, levantando rapidamente - Ontem você não me disse o seu nome, pode me dizer?

- Ângela. Me desculpe a falta de educação, estava apressada para não deixar que meu pai desconfiasse da minha saída ontem.

- Tudo bem? E saiu como esperado?

A moça discreta mudou de assunto rapidamente:

- Você vai para onde agora? De onde veio, Josué?

- Vim da fronteira do Paraguai, ainda não sei o que vou fazer, mas estou em busca de um trabalho e algum lugar para dormir.

- Você sabe datilografia?

- Sei um pouco, aprendi com meu pai que trabalhava em um es-critório antes de se mudar...

- Posso falar com Ricardo, ele trabalha em um escritório de advo-cacia no centro. Ele redige processos para os advogados.

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- Seria ótimo se você fizesse isso por mim, mas não vai incomo-dar?

- Fique tranquilo. Caso você consiga um trabalho lá, pode vir conversar com meu pai para tentar morar aqui, temos mais dois quartos vagos.

- Não sei nem por onde te agradecer.

- Retribua mantendo sigilo sobre o que aconteceu ontem e não conte ao meu pai sobre a noite que você passou aqui. Agora se arrume que vou te falar onde deve ir.

Ângela então disse para o rapaz ir até a avenida Mato Grosso no número 890, que abrigava o escritório. Chegando lá, perguntou à recepcionista sobre o jovem Ricardo.

Ele chegou na recepção e reconheceu o mensageiro da noite an-terior:

- Olá Josué, tudo bem? O que devo a honra? Outro recado para mim?

O jovem então começou a explicar:

- Ângela me disse para falar com você... Estou em busca de um emprego.

- Nossa rapaz, preciso saber se aqui tem alguma vaga. Você faz o quê?

- Olha, eu sei um pouco de datilografia, mas...

Ricardo então virou para a recepcionista e perguntou:

- Marylu, você sabe de alguma vaga de datilografia?

- O Dr. Jaime comentou que iria precisar de um ajudante para escrever dois processos, posso deixar um recado na mesa dele.

- Não, deixa que eu converso diretamente com Dr. Jaime, preciso retribuir um favor para esse rapaz - falou, olhando sorrindo para

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Josué.

Pediu então para o recém chegado o acompanhar, bateu na por-ta do tal Sr. Jaime, explicou que soube da vaga e disse que tinha uma pessoa para indicar.

O advogado possuia uma aparência jovial em seus olhos, mas já era um doutor de idade, com cabelos grisalhos e uma barba que preenchia o rosto por inteiro. Então perguntou:

- Quem? Esse aí?

Ricardo entendeu o leve preconceito que passou pela cabeça do senhor que estava à sua frente e resolveu responder firmemente sua indagação:

- Sim, doutor, meu amigo Josué é um bom datilógrafo e com cer-teza vai dar conta do serviço. Dê essa oportunidade a ele.

O advogado hesitou por alguns instantes e disse:

- Tudo bem... Mas um só erro e rua! Pode começar quando rapaz? - questionou virando-se para Josué.

O rapaz então respondeu:

- Quando quiser doutor, agora mesmo.

Naquele dia Josué passou entendendo o que teria que fazer e ficou a par do máximo de informações que o auxiliariam a man-ter o trabalho. Às cinco da tarde entregou o que tinha digitado, esperando um retorno do seu superior.

O advogado olhou a quantidade de páginas, que era mais do que ele esperava, e leu as primeiras linhas.

- Volte amanhã a partir das sete da manhã, rapaz.

Josué concordou com a cabeça e foi em direção a porta da sala, mas recebeu uma observação do advogado:

- Assim que receber seu primeiro salário quero novas roupas,

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você não pode vir trabalhar de botinas desse jeito. Está na cidade agora e precisa se portar.

- Fique tranquilo Doutor, farei o possível para vir trabalhar decen-temente.

- Assim espero - finalizou o advogado.

Ao sair do escritório, fez o caminho de volta para o Pensionato Pimentel para encontrar com o dono, pai de Ângela. Bateu à por-ta da frente e viu a família da moça sentada na sala. Ângela era muito parecida com sua mãe, mas estava sentada ao lado do seu pai, com quem tinha grande afinidade e apego.

Josué cumprimentou a todos:

- Boa Noite, tudo bem?

Seu Antônio, pai e dono da pensão, respondeu:

- Boa Noite, meu jovem. O que devo a visita nesse fim de tarde?

- Estou em busca de um quarto para alugar, o senhor pode me ajudar?

- Qual seu nome?

- Josué. E o do senhor?

- Antônio Nantes. Tenho um quarto disponível, mas só alugo com pagamento antecipado.

Então Ângela interviu:

- Onde você trabalha Josué?

- Trabalho no escritório de advocacia da Rua Mato Grosso. Sou datilógrafo do Dr. Jaime Coelho e também sou escritor. Porém acabo de chegar e não possuo dinheiro para pagar antecipado.

O dono da pensão o fitou, como alguém que censura um bicho não identificado, estranho e desconhecido, devido a aparência

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tosca que o rapaz apresentava:

- Trabalha no escritório do Dr. Jaime, então? Um filho de um ami-go trabalha nesse escritório. Ricardo, conhece?

- Ricardo Alves, claro, conheci sim. Muito simpático.

A expressão de Antônio se tornou mais curiosa, porém menos contrária à imagem do rapaz:

- O que te traz à cidade?

- Vim em busca de começar a vida de novo.

- De onde é?

- Pedro Ruan Cabaleiro, Paraguai.

- Como atravessou a fronteira? Como fala tão bem o idioma?

- Vim clandestinamente. Meu pai morou muito tempo no Brasil e me ensinou.

- Posso te adiantar um quarto, mas tem que me dar sua palavra que não irá atrasar. Disse o homem, colocando a mão em cima do revólver que estava pendurado em um cinto.

- Não atrasarei não, senhor, fique tranquilo. Muito obrigado - disse, olhando primeiro para o dono da pensão, com aflição, para sua esposa e por último para sua filha, com um sorriso de agra-decimento.

A mãe de Ângela, Dona Mércia, se incumbiu de apresentar os aposentos ao rapaz. O quarto não era o mesmo que passou a noi-te anterior, mas possuia as mesmas características e disposição dos móveis.

O rapaz pediu emprestado uma toalha da casa e se dirigiu para o banheiro. Ao entrar, se olhou no espelho e se pegou pensan-do em Ângela. O banho foi um momento de descanso físico e mental. Josué conseguira o que precisava para dar os primeiros passos de sua nova vida.

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No dia seguinte, acordou cedo para não pegar a fila do banho, tomou café servido pela pensão e saiu à caminho do escritório. Logo ao sair, foi chamado por Ângela, que ia ao encontro do amante, acompanhando Josué:

- Disse ao meu pai que minha aula de corte e costura começaria mais cedo. Preciso falar com Ricardo.

- Seu pai não sabe do namoro de vocês?

- Nem pode saber. Meu pai tem muito ciúmes de mim e não quer que eu me envolva com ninguém por agora.

- Entendi.

- E você, tem namorada?

- Não - disse o rapaz envergonhado e cabisbaixo, como quem quisesse que sentissem pena dele.

- Fique tranquilo, essa cidade tem muita moça bonita - finalizou Ângela, acreditando que o rapaz estaria livre e disposto a co-nhecer alguém.

No caminho, a moça ainda contou um pouco sobre como sua família chegou à cidade. Seu pai resolvera vender o pouco de terra que possuía e foi para Campo Grande no intuito de ganhar uma melhor qualidade de vida.

Josué se interessou pela história da moça e foi só ouvidos para tudo que Ângela contava. Chegou ao escritório, se despediu de Ângela e foi em direção à sala do Dr. Jaime, enquanto a moça perguntava para a recepcionista se Ricardo havia chegado.

A resposta foi que Ricardo ainda não estava lá, pois ainda falta-vam 15 minutos para o seu horário de chegada. Ouvindo isso Josué chamou a moça para dar uma volta enquanto esperava.

A conversa entre os dois fluiu de uma forma muito natural. A sim-plicidade e o modo simpático que o rapaz puxara de sua mãe cativou a moça com pequenos detalhes. Andaram pela quadra observando as vitrines e falando agora de como ele resolveu ir

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para a cidade:

- Eu li muito sobre o que acontecia aqui em algumas notas do Correio do Estado. Então resolvi vir para Campo Grande e tentar uma vida melhor.

Quando Josué pensou em se aprofundar na sua história e se abrir para aquela que já fazia seus olhos brilharem, viu Ricardo em frente ao escritório.

A moça foi até o rapaz e falou:

- Obrigada por ter ajudado o Josué, sabia que você ia conseguir algo.

- Que isso, eu só retribui o favor que ele nos fez. Só me avise antes quando for assim.

A moça sorriu e abraçou o moço. Josué então o cumprimentou com a cabeça e deixou o casal a sós, mas seus pensamentos já o imaginavam no lugar de Ricardo, recebendo aquele abraço.

No decorrer do dia sua cabeça se voltou para a imagem do rosto da moça por diversas vezes e para a tarefa dificil de executar ao final daquele dia. Precisaria pedir um adiantamento para o chefe, pois passou aquele dia sem o almoço e não poderia continuar o resto do mês assim.

Saiu de lá mais uma vez contente - pelo que calculou, o dinheiro que recebeu daria para almoçar até receber seu salário e ainda sobraria um troco para algum divertimento.

Chegou na pensão, a qual era tomada por um forte cheiro de sopa. A refeição seria servida em algum tempo. Josué aproveitou o tempo livre para conhecer melhor o senhor que o recebera e se encontrava no sofá de sua sala lendo uma carta.

- A pensão do senhor é muito bem cuidada, o quarto muito aconchegante, obrigado pela recepção.

- Minha mulher é dedicada a tudo que faz, tens que agradecer a ela também, ficará feliz com seu elogio. Mas retribua pagando

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corretamente.

- Fique tranquilo, receberei no quinto dia útil e pagarei o valor acordado.

A bela Ângela entrou com toda sua leveza. Estava abraçando um embrulho que continha um vestido feito por ela no curso de corte e costura:

- Bença pai, boa noite, Josué - cumprimentou ambos. Deu um beijo no seu pai, que levantou para retribuir com um forte abraço.

- Deus te abençoe, minha filha.

Josué viu ali um grande laço afetivo, muito diferente do que re-cebera de seu pai nos últimos anos. A moça sorriu e se virou em direção à cozinha para encontrar sua mãe.

Na sala, a conversa prosseguiu sobre a filha de Antônio - que como todo pai zeloso, não parava de elogiá-la:

- Ângela é uma moça muito prendada, aprendeu a cozinhar mui-to cedo e cuida da casa como ninguém, mas insiste em aprender a costurar. Já disse que ela não precisa, não vai sair de casa tão cedo.

Josué viu naquela afirmação todas as suas esperanças, que já cri-ava sobre Ângela, tolhidas. Primeiro teria que competir a atenção da moça com Ricardo, e, depois, passar pelo punho de aço de seu pai.

O jantar foi servido. Diversos moradores da pensão se reuniram em volta da grande mesa que ficava ao lado da sala. Todos os presentes que totalizavam oito pessoas fizeram do jantar um in-terrogatório sobre a vida do novato.

Josué contou que saiu de Pedro Ruan Cabaleiro pois ali não vira perspectiva de fazer algo que gostava, como escrever seus con-tos, e em Campo Grande poderia exibir seus textos aos intelectu-ais e, quem sabe um dia, trabalhar em um jornal.

Todos observaram o brilho nos olhos do rapaz recém chegado.

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Muitos pensaram que ele era mais um tolo sonhador do interior, outros apreciaram a força de vontade do rapaz, porém o senti-mento de desdém era presente em todos.

Após a refeição, todos levantaram e lavaram seus pratos, uma das regras da pensão. Após fazer isso, se aproximaram de Seu Antô-nio, que cantava agora canções que iam de Adoniran Barbosa a outras apenas conhecidas na região.

A alegria contagiava a todos, mas os pensamentos de Josué só se concentravam em Ângela. Naquele momento ele percebeu o quão estava apaixonado pela moça. Sua risada era tão bela que parecia acontecer mais devagar. O tempo paralisava na cabeça de Josué.

A fixação foi ficando cada vez mais perceptível no decorrer das canções. Dona Mércia, mãe de Ângela, foi a única a perceber. Com seu jeito quieto observou o rapaz no decorrer da noite, mas resolveu não criar alardes, sabia do ciúmes de seu esposo com sua filha, e, além do mais, poderia estar enganada.

Após uma noite repleta de boas canções, Josué parecia mais à vontade com a casa e seus moradores. Sentiu que aquilo era um lar - algo que há tempos não tinha, devido às dificuldades com seu pai. Pediu licença, mas ao sair da sala parou no corredor e se virou para ver mais uma vez aquela que já era sua inspiração.

Os dias se passaram e, a cada novo encontro com Ângela, mais apegado ele se via, assim como estava mais amigo de Ricardo e era, muitas vezes, o ombro amigo de ambos, sabendo de deta- lhes e dificuldades da relação que era mantida em segredo. Ele guardava todos os sentimentos para manter próximos aqueles que gostava.

No fim dos dias, em seu quarto, ele descarregava tudo o que se passava em textos, escrevia a mão em um caderno velho que servia como válvula de escape. Os seus textos também criavam um futuro no qual só Ângela fazia parte. A sua admiração virou obsessão.

Em uma manhã, a moça pediu para que seu amigo entregasse mais um recado para Ricardo:

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- Peça para me encontrar às cinco horas, na Avenida Central.

O recado foi dado, mas ficou latente na cabeça de Josué, que se imaginava no lugar do amante. Viu Ricardo indo em direção da Avenida Central, que era próxima de onde trabalhavam e re-solveu segui-lo.

Se escondeu na lateral da agência bancária, onde conseguia ver o encontro do casal apaixonado que compartilhava de sorrisos e afagos. Seu mundo girava toda vez que via essa situação, então correu para a casa e foi diretamente para o seu quarto, onde ali podia dilacerar em textos todos os seus sentimentos.

Começou a escrever um poema sobre o que sentia, e ali revelava sentidos primários, animalescos, que denegriam a imagem pe-rene de Ângela. Ao ler tudo que escreveu, sentiu raiva de si mes-mo. O turbilhão de sentimento o fez pensar que não pertencia àquele local, que, ali, o terreno era hostil.

Josué nunca lidou muito bem com a rejeição. Quando saiu de sua casa, imaginou que a vida seria receptiva e as pessoas seriam as mais simpáticas possíveis. Era essa imagem que criara de uma cidade grande.

A emoção fez com que pegasse o lápis e perfurasse sua mão, como se pregasse uma parede com toda a força que conseguia. A dor em uma mão diminuia a força da outra. Josué caiu no chão e soluçou no choro.

Começou a se dar conta de que talvez tudo o que conseguiu fosse por puro dó das pessoas. Viu que até mesmo sua paixão platônica o tratava de forma diferente. Talvez tenha tido pena dele desde o princípio.

No dia seguinte, Josué acordou no chão, na mesma posição que havia caído de dor. Sua mão latejava, mas o sangue estava seco.Sabia que, em breve, melhoraria, e pediu que o mesmo aconte-cesse ao seu coração.

Levantou e se dirigiu ao banho. Sentou no chão nu e se sentiu um ser humano pequeno, tosco, que não tinha importância. Buscou pela toalha, e, ao se deparar com o espelho em sua frente, visua-

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lizou a própria imagem. Não conseguia decifrar o que se passava, apenas resolveu que seguiria com o dia.

Passou na farmácia, onde recebeu um curativo, e seguiu para o trabalho. Seu chefe perguntou o que houve, então o rapaz deu uma desculpa:

- Levei um pequeno tombo e cortei a mão, nada grave - mentiu, sem nenhum pudor.

A sua inocência foi rompida no convívio dos últimos anos com seu pai, mas agora ele se via fora do papel de vítima que assu- mira: era um ser humano apaixonado que tinha medo de todos os atos que pudesse tomar.

Pensou em diversas alternativas. Contar ao Seu Antonio sobre o amor secreto da moça, tentar mentir sobre algo que Ricardo tenha feito, seduzir a moça de forma com que ela esquecesse seu atual amante e caísse aos seus braços...

Em todas as alternativas ele se via fracassar. Sentia que não tinha tato para lidar com diversas questões. Uma delas era o amor, um novo terreno, para o rapaz. Voltou para casa mais uma vez e se deparou com dona Mércia, que falou para aguardar o jantar.

A casa cheirava a milho e aquela noite teria cantoria. Josué agra-deceu, mas disse que ia se recolher. Mércia forçou uma conversa:

- Sei que não é de minha conta, mas anda muito cabisbaixo, rapaz. É uma paixão que o está deixando desse jeito? - testou a mulher.

- Não é nada não, dona Mércia, estou bem.

- A aparência não anda das melhores, mas se diz... Aliás, estou há algum tempo querendo falar com você. Qual seu interesse nessa cidade? - retrucou, de forma hostil.

- Dona Mércia, meu pai era um grande homem, culto e bem vivi-do. Ele trabalhava em um jornal e se dedicava nas horas vagas aos seus textos, porém de uns anos para cá se tornou um bêbado que vive largado pelos cantos. Então resolvi vir para a cidade e

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tentar a vida.

- Sei... Uma dessas histórias tristes, que se ouve por aí... Deve es-tar sentindo uma falta de casa, né?

- Um pouco. Agora, se a senhora me der licença... - disse o rapaz, se locomovendo para o corredor que dava no seu quarto.

Josué deitou em sua cama e começou a lembrar de tudo que passara na casa dos pais nos últimos anos. A raiva de seu pai era forte toda vez que pensava no assunto.

Mas agora sua mente ficava dividida entre a dor de relembrar os momentos amargurados que passou antes de chegar ali e a de saber que sua amada estava nos braços de outro.

As horas passaram e, no decorrer da noite, a imaginação do rapaz voltou-se para a imagem da filha da família Nantes se despindo. Seus seios na proporção média faziam o convite para observar todas as curvas do seu belo corpo. Josué sentiu um tesão incon-trolável.

Pegou seu caderno e escreveu um texto que detalhava tudo que vira. As palavras estavam vivas e concretizavam aquilo que só ele sentia. As páginas foram se completando através dos dias com as mais diversas estórias. Josué já estava se arrastando pela moça.

O rapaz mantinha sua pouca reputação por ser ponderado com todos que conversava, mas sua cabeça o atormentava como se fosse uma pessoa fora de si, ele não conseguia mais lidar com os pensamentos que o atormentavam.

A vida que imaginara não era nem de longe aquilo. Queria ter apenas sua tranquilidade, mas vivia como um bicho solto na ci-dade.

Em um final de semana, resolveu usar sua folga para caminhar e se afastar dos problemas que tinha. Mas como fugir dos pro-blemas que estavam dentro de sua cabeça? Tudo até então não passara de uma obsessão em cima de Ângela e da raiva que nu-tria por seu pai.

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Andou até chegar em um grande edifício na cidade. Ali, a mo- vimentação era efervescente devido ao centro comercial que abrigava também a rodoviária da cidade. Resolvera circular pela redondeza a fim de conhecer algo que nem sabia o que era. Talvez algo que tapasse o vazio que ele e aquela cidade repre-sentavam um para o outro.

Ao olhar a passagem de ônibus e carros por ali, que dividiam as ruas com pedestres atravessando apressadamente em busca de pegar a condução, constatou que Campo Grande era uma cidade emergente.

Ouviu um grito, então percebeu que, na sua frente, uma moça foi atropelada. O carro freou bruscamente, mas a fração de segun-dos fez a fatalidade. A fina garoa que recém começara a cair, e, em alguns instantes se transformou em chuva.

Josué se aproximou da cena, outras pessoas também o fizeram e a água que escoava ao lado da moça se misturava com sangue. A ambulância logo chegou, levando a moça para a Santa Casa.

Josué se espantou ao ver Ângela na maca. Não a reconhera an-tes, pois a multidão em volta atrapalhara sua visão. Com a cena martelando sua cabeça, ele virou o rosto para o lado e chorou. Ao abrir os olhos, enxergou tudo vermelho. O chão estava coberto de sangue. Chovia sangue.

Voltou para o prédio da rodoviária, entrou em uma lanchonete e se sentou no balcão. Pediu um café, ainda na tentativa de compreender que sua amada havia morrido naquela ocasião. O garçom perguntou se ele iria querer algo, mas foi ignorado.

Tentou unir toda a força que tinha para levantar e se arrastar até a Pensão Pimentel, a fim de avisar aos pais da moça o ocorrido. Sua amada estava morta e sua cabeça estava em colapso.

Correu para lá, entrando pela porta dos fundos. Lembrou do mo-mento que viu, pela primeira vez, Ângela. Congelou por alguns segundos e chorou.

Buscou por todos e, após se deparar com a casa vazia, lembrou que no final de semana a casa estaria mais vazia, já que muitos

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moradores iam visitar seu pais. Os donos iriam almoçar na casa de amigos.

Começou a andar na casa como uma barata tonta, sem direção, passou por sala, cozinha, foi para seu quarto. Estava em deses-pero. Nunca gostou de alguém daquele jeito e, agora que unia forças para conquistá-la, ela havia morrido.

Levantou seu travesseiro, onde estava seu caderno de capa pre-ta. Abriu nas últimas páginas, as únicas em branco, e começou a escrever aquela cena que tinha visto, mas uma coisa o atormen-tara: começou a ver o rosto de Ângela atropelada. E, como um impulso invonlutário, se viu com tesão pela cena que ocorreu em sua cabeça.

Aquilo soava doentio para Josué, que estava acorrentado em uma memória criada pela sua cabeça. Começou a socar sua própria cabeça na parede, como se quisesse exorcizar seu cére-bro. Resolveu que daquele jeito não podia continuar. Começou a passar mal e, em alguns segundos, estava sufocado, como se não recebesse ar. Sua obsessão o sufocava.

Josué saiu de seu quarto e subiu as escadas que davam direta-mente para os quartos de Ângela e de seus pais, no segundo andar da casa. Abriu a porta da esquerda. O quarto de Ângela, imaculado, era pintado com nuances rosas nas paredes e os tons eram pasteis como a paisagem que vira na estrada.

Josué abriu a primeira gaveta da cômoda da moça, na qual es-tavam alguns lenços que a moça colocava como faixa no cabelo. Ele pegou um e sentiu o perfume da moça na fita de seda. Passou alguns instantes ali parado, como alguém que mata a sede. A- quilo o consumia, mas preenchia o peito de ar, como se estivesse satisfeito.

Josué saiu sorrateiramente como um criminoso e se dirigiu para o quarto de Dona Mércia e Seu Antonio. Abriu o criado mudo do lado direito da cama, onde ali estavam algumas presilhas e pequenos potes que pertenciam à esposa de Seu Antonio. Foi para o outro criado, que pertencia ao homem da casa, em busca do revólver, que antes o amedrontava.

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Abriu a primeira gaveta. Ali tinha o que buscava. O calibre 38 de Seu Antônio, carregado com quatro balas. Josué o pegou e tirou a capa de couro que o prendia pelas laterais.

Saiu novamente do quarto, quando gritou:

- Ângela, eu te amo!

Disparou contra sua própria cabeça. Josué girou como se o chão não fosse firme o bastante. O rapaz caiu no instante seguinte do disparo. A bala tinha atravessado sua cabeça.

Ao ouvir o tiro, Dona Mércia e Seu Antônio correram para ver o que tinha ocorrido. Estirado, no assoalho, estava Josué.

Ângela subiu em seguida, junto de Ricardo.

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texto: ANA PAULA SANTOS

TULIPA RUIZàs vezes

Quando Ana Paula Santos nasceu, apertaram o play e, desde então, cada dia foi uma trilha sonora ininterrupta, na qual até o silêncio tem som. Paulistana tão plural e tortuosa quanto o cenário da sua cidade, carrega emoções exacerbadas que preferem melodias e narrativas agridoces. Estudante de Relações Públicas, não sabe o que será de seu futuro profissional, mas tem certeza de que ele é regido por música. Tem cota especial no coração para músicos britânicos e seu reino, além do gosto por conhecer novas histórias e por contá-las.

Álbum: “Efêmera”, 2010Composição: Luiz Chagas

Selo: YB

ilustração: RENAN CUSTÓDIODesenhista que veio do sopro quente do mato..

escuta essa!►letra da música

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{nua}

Provavelmente você deve estar estranhando receber uma carta nesta altura do século XXI, mas acho que esta foi a melhor manei-ra que eu encontrei, na minha própria concepção, de fazer o que eu quero fazer. Não sei até onde você vai levar isto a sério. Você sabe, eu sempre desconfiei da sua capacidade de sentir alguma coisa por você sempre escolher agir como uma pedra, salvo por alguns momentos.

O que me importa e o que eu gostaria é que você chegasse até o final de todo esse aglomerado de palavras, por mais longo que ele seja (já estou vendo sua cara de “qual a chance?”), se você ainda tem algum resquício de um sentimento qualquer por mim como dizia ter, ainda que fosse menos que o meu. E você sabe que eu falo para caramba, então se prepara. Pensa que é aquele livro do Bukowski que eu te dei.

Já não me importa mais se você vai dizer que eu estou fazendo drama (como você já me disse e talvez pense por eu sentir muito mais intensamente do que você, por algum motivo, talvez tenha capacidade de sentir), ou se você vai rir, ou se vai virar e mostrar isso pro cara que mora com você dando risada, pensando “Ela tá mesmo achando que eu tô dando a mínima” ou “Que idiota!” ou “Coitada, está mesmo pensando que é filme”. Não me importa se você vai contar isso como piada para outras meninas de ontem, de hoje ou de amanhã, ou para os seus amigos da sua cidade natal daqui a um tempo; se vai por no seu livro, rasgar os papeis, jogá-los fora ou até mesmo parar para pensar em alguma coisa sobre você mesmo ou nós. Não me importa se você merece que eu faça isso ou não, como várias vezes não me importei ao es-tar com você. Não me importa se eu mesma vou me achar idiota daqui um dia ou dez anos por estar fazendo isso ao me lembrar. O que me importa é que eu – frisando bem, eu vou me livrar das últimas coisas entaladas no peito que preciso te dizer antes que este ano e esta etapa da minha vida acabem.

Para que eu vire esta página e escreva novas, eu preciso primei-

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ramente externar essas linhas para você porque eu sinto tudo de uma forma que você talvez jamais sinta ou que precise descobrir dentro de si. A maioria das coisas talvez você já saiba, mas eu in-sisto em deixá-las, ainda assim. Não com a função de jogar tudo na sua cara ou tentar te sensibilizar com o meu caso não porque é programa do Luciano Huck, mas para eu me libertar disso.

Eu precisei passar sete meses ao seu lado para perceber que eu não controlava meus sentimentos pelas pessoas do jeito que pensava que conseguia, como você faz ou tenta (eu nunca vou saber ao certo). Que eu me entrego sim, gosto sim e me apaixono sim. Transpareço tudo porque não tenho máscaras, como um dia você mesmo ressaltou ao dizer pra eu tomar cuidado com quem me queria mal por ser tão verdadeira, apesar de isso ser o mais encantador em mim. E não é por culpa minha - finalmente estou em processo de entender isso. Todo mundo passa pelo que eu estou passando e quem sabe, um dia, até você passe (eu espe-ro realmente que sim, se ainda não passou). E não porque sou a mais fraca ou a mais frágil. É porque somos humanos. E é porque descobri ser uma humana muito diferente de você quando se trata do conceito de considerar, respeitar e fazer as coisas pe-las pessoas, principalmente aquelas que queremos ter ao nosso lado. Não é culpa minha ou sua, muito menos da minha ou da sua genética. Ressalto que é só uma questão de humanidade e suas infinitas possibilidades de personalidade e índoles mesmo, e ambos sabemos disto.

Acho que, escrevendo esta carta, estou tomando uma atitude que você não teve coragem de tomar nesse tempo que a gente está sem se falar. Talvez por imaturidade ou somente por escolha sua mesmo, vai saber. Você é um enigma (pior que o paradeiro do Santo Graal ou a Tumba da Cleópatra muitas vezes, embora seja extremamente previsível noutras) e eu sei o quanto você gosta disso. Parabéns!

Desde o começo com você e durante esse tempo todo, eu me senti numa missão. Isto porque desde o início achei e ainda acho que você tem uma infinidade de sentimentos e sofre na mesma medida que todo mundo. Eu li isso nos seus olhos, não sei quan-tas vezes exatamente, mas estava tudo lá, comprimido, relutan-do em sair. Fico feliz por ter conseguido, em alguns momentos, que você confiasse em mim a ponto de se revelar e conseguir

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se abrir comigo como disse jamais ter conseguido com outrem, o que me faz ainda mais adepta dessa teoria. O que você fez foi só desenvolver sua maneira de fazer isso não existir, pelo menos não perto de qualquer outra pessoa que não seja você mesmo. E quem sou eu para te julgar?

Nessa missão que eu inventei, eu quis te fazer libertar os sen-timentos que eu achava que você guardava demais para você. Quis te fazer ver que podia ser diferente, que você podia precisar das pessoas de vez em quando, sem nenhum tipo de orgulho ob-sessivo, e que isso não é problema. Eu quis te fazer enxergar que ter sentimentos (não ser piegas e exagerado como na música do Cazuza, mas assumir ter sentimentos mesmo) seja por amigos, mãe, pai, avó, enfim, não importa, e demonstrá-los de alguma maneira é normal e não faz de você alguém mais frágil ou mais “engolível” pelo mundo. Se não dentro do mundo de mentiras e interesses no qual você já vive e no qual eu vou viver daqui pra frente ao trilhar os caminhos que escolhemos profissionalmente, fora dele isso é nada menos do que aceitável e comum, humano.

E quando falo de demonstrar sentimentos, não falo de palavras. Falo de atitudes. Coisas pequenas e corriqueiras. Isso é um dos maiores clichês, mas também uma das maiores verdades. Como eu te disse, não estava tentando te mudar. Só queria que você pudesse ver diferente. Era uma escolha, mas uma escolha sua e não minha. E o problema foi eu começar a achar que era minha e tentar engolir tudo que você me fazia sentir de ruim pela consi- deração e admiração que tinha por você. Não deu.

Cheguei a achar, sim, que eu era fraca por estar deixando me en-volver com um cara que me jogava na cara e me deixava claro a todo tempo as bostas e tudo que ele fazia e poderia vir a fazer que pudesse me chatear (embora, como eu te disse várias vezes, no começo eu também não me importasse porque não sentia o que vim a sentir por você). Comecei a achar que era culpa minha, que eu estava sendo chata, desinteressante, eu estava pesando e eu era quem não estava sendo o suficiente para você quando eu fazia de tudo e mais um pouco para te satisfazer. Enquanto isso, muitas vezes, eu me esquecia de satisfazer a mim. Eu nunca seria ou serei o suficiente para você simplesmente por você ser do jeito que é (e gostar de ser assim), como muitas vezes disse para mim. Você vive de momentos e um dia após o outro (essa úl-

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tima coisa eu tenho que aprender pra aplicar em muitas coisas na minha vida). Você quer saber dos seus impulsos e do seu prazer. Eu deixei os meus, inúmeras vezes, de lado pra satisfazer e viver os seus e mesmo que algumas vezes tenha valido a pena, me ma-chuquei muito com isso, mas sempre tentei resistir porque acha-va que tinha essa “missão” e também por não conseguir te julgar.

Você me disse que gostava de ser diferente e de quando as coisas e pessoas eram diferentes. Não vejo de que maneira eu poderia ter sido mais diferente para você. E como você me disse, eu era diferente e também mais do que suficiente. E foi aí que eu co- mecei a perceber que não era culpa minha. Que não era eu que não era o bastante para você, mas você que já dava sinais de que começava a não ser mais suficiente para mim de muitas maneiras e que sua escolha de estilo de vida não batia mais com o meu depois de sete meses praticamente vivendo grudados.

Depois desses sete meses estando ao seu lado em qualquer tipo de situação (e você sabe que foi qualquer, “qualqueríssima” mes-mo), fosse do jeito que fosse – e em muitas delas eu tive de me esforçar muito para não te dar um chute no saco e quebrar seus óculos de lentes mutantes (que eu sempre achei péssimas e ca-fonas como te disse um dia. Isso também eu ignorei por gostar de você, porque o resto era mais significante para mim do que óculos, mas nada disso vem ao caso), como de fato fiz afinal - eu me dei conta de que alguns desses jeitos me magoam muito e não servem para mim.

Isto porque você me via só como uma amiga que tinha à sua disposição sexualmente quando queria, agiu e quis ser só isso o tempo todo. O tempo passou e eu quis ser mais pra você do que um item de cardápio de fast-food (o seu sempre foi bem diverso e extenso, né?), que a gente pede, não demora a vir e depois que a gente come está satisfeito. Mais do que essa amiga inseparável, embora tenha tentado colocar a importância de sê-la acima de tudo. Talvez eu tenha sido mais mulher, ou mais amiga ou mais qualquer outra coisa que você está preparado para ter ou quer ter ao seu lado neste momento da sua vida e não tem culpa disso.

Não pequei pelo que fiz.

Mas, depois desses dias todos vivendo de tudo e mais um monte

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com um cara que se relaciona comigo intimamente – amistosa e sexualmente - e que sabe um livro de mim, eu preciso que esse cara me respeite. Que queira me tocar. Que sinta vontade de transar comigo por conta própria. Que queira me beijar por conta própria, do nada, porque deu vontade. Que queira vir falar comigo por conta própria. Que se esforce mais do que só tocar minha perna. Que queira, de fato, fazer as coisas comigo ou abrir mão das suas (como muitas vezes eu abri das minhas) para estar comigo. Um cara que, quando vem falar comigo, me pergunta das minhas coisas também ou se eu estou bem, ou como foi meu dia, como eu fiz sempre contigo. Que queira enfrentar meus de-feitos e os seus, e as partes ruins de tudo comigo de verdade e não escondendo de mim as coisas que me chateavam quando verbalizou a escolha, comigo, de tentar fazer isso. Um cara que me agradeça e não venha falar do seu mais novo projeto quan-do ganhar um presente. Que queira conversar comigo sem ser monossilábico e não use como desculpa seu jeito de ser para ser assim todos os dias (porque quando te interessa e quando você tem de ter atitude, você sabe que é outro. Você foi, quando estava interessado em mim, no começo. Você foi quando estava empolgado com outros, outras e seus projetos pessoais).

E você sabe que tudo isso até essa parte veio desde o começo, porque eu sempre te disse desde lá. E eu te dizia “um dia, isso vai me encher o saco e eu não vou aguentar mais, vou dar no pé”. Pois bem. Continuando: que não diga “maior friaca” quando eu mergulhar pelada na piscina e chamá-lo para se divertir comi-go. Que não pare o sexo no meio não uma, mas duas vezes, para dormir, porque ele se importa se eu gozei ou não também. Um cara que se importe em me fazer sentir prazer também (eu meio que sinto que tive que te fazer perceber isso ao longo do tempo e sinto também que, ufa, funcionou de alguma forma) e não só meter para satisfazer o pau dele e pronto. Seu egoísmo transpa- recia até nisso. Um cara que, ao meu lado, não faça com que eu me sinta um pedaço de bosta e que está comigo por pena e por obrigação (por mais que você falasse que não, muitas vezes era assim que me tratava – e deve ter tratado mil outras pelo que já escutei de você-, ainda que não tenha maturidade para enxergar dessa forma e que ache que não). Um cara que, mesmo saben-do do que eu sinto e como sinto e que as coisas mudaram pra mim, não resolva me por ainda mais para baixo e me segurar com palavras em vão para depois fazer piadinhas que sabe que vão

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me chatear só para me provocar. Principalmente, um cara que considere meus sentimentos por ele ou por qualquer outra coisa mais importantes do que o almoço que ele tem que fazer. Um cara que me queira por completo assim como eu te quis, e não pela metade.

Não sei se você sabe, mas muito do que eu disse acima faz parte de uma amizade, também. Não sei se das suas, do seu círculo de relacionamentos, mas das minhas e do círculo de pessoas que eu quero integrar, sim. Se esforçar para ser alguém bom, ressaltan-do, para alguém que se importa com você e faz as coisas por você e te dá valor e que você diz gostar muito também de uma manei-ra ou de outra, é bem viável. De resto, acho que você pensa como todo mundo pelo menos deveria (principalmente eu): foda-se quem não me quer bem. Você me disse que sou linda e que me adora e que eu mereço tudo de bom e de melhor que o mundo tem pra oferecer. Que eu tenho mais de um capítulo no seu livro. Que eu sou o contrário de tudo de ruim que pensava sobre mim mesma. Mas suas atitudes, na maioria das vezes, nunca condis-seram com as suas palavras. Não estavam no mesmo contexto, contradiziam-se repetidamente.

No fim, não é como eu suponho que você pensa. Decidi me a- fastar, sim. Mas justamente por isso: porque foi o fato de você falar e não fazer, de errar e insistir em cometer os mesmos erros (e eu percebi que não só comigo, mas com todo mundo que te adora) sem aparentemente dar a mínima que pesou mais para mim. Você pede desculpas, mas pedir desculpas é muito fácil no seu caso porque já faz parte da sua zona de conforto. Chega a ser dissimulado. Talvez, na sua cabeça, não importa o que você faça, mas no final todo mundo não se machuca e acaba passan-do por cima de qualquer merda, sendo hipócrita e sentando na mesma mesa para beber cerveja numa noite, como se nada houvesse acontecido e todo mundo continuasse confiando em todo mundo da mesma maneira e não tivesse se machucado ou desgastado, não precisasse reparar ou reconstruir algo de ne- nhuma maneira. Para mim, não funciona assim. No seu caso, é diferente. Como você mesmo me disse um dia em uma conversa “então, não confia, ué!”. Você fez sua escolha e tudo bem. Você não precisa de ninguém porque sempre foi muito independente, muito menos de mim e eu compreendo.

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Já te disse: está tudo bem e não mudou nada para você porque você vai sempre ter companhia, alguém que te divirta e não al-guém pra dividir as coisas. É isso que você quer: nada de laços, de alguém que te acrescente. Eu entendi. Companhias efêmeras e mulheres efêmeras que queiram ser efêmeras (diferentemente de mim que não quis porque acreditava no que você tinha de bom e no que nós tínhamos de bom e porque você, também, de alguma forma não quis que eu fosse passageira) você vai ter a todo momento na sua zona de conforto, até o dia em que ela se durar. E quem sabe não dure até o último dia da sua vida mesmo? Só espero que, até lá, você tenha aprendido que não é legal falar pra garota que gosta de você (e nenhuma no mundo) que ela precisa parar de tomar Coca-Cola porque está cada vez mais gor-da e contar isso pros outros dando risada como se fosse motivo de orgulho.

Como quis dizer no começo da carta com o “salvo por alguns momentos” (tá, eles não foram poucos), de maneira alguma es-tou deixando de pensar no que a gente viveu de divertido e bom. Penso muito nisso e sempre levei em conta. Foi muito bom mes-mo! Muito!

Não deixo de pensar de quando você (me surpreendeu muito!) foi altruísta por me fazer almoços, ou me ceder sua casa por fi-nais de semana inteiros ou até quando você não estava lá. Ou me buscar nos breus dos cafundós do Judas ou na rodoviária da sua cidade quando, talvez, tinha planos com outra e não me que-ria ali (mas essa última coisa é cachorrada mesmo, na verdade). Quando você arrumou meu colar conta por conta no dia da minha comemoração de aniversário, me consolou por um monte de coisa ter dado errado e por ainda assim ter feito de tudo pra conseguirmos curtir. Conseguimos! Por me aguentar chorando, arrasada por coisas que eu sabia e também não sabia o que eram, e de alguma forma tentar me confortar da maneira que podia, dizendo que era tudo coisa da minha cabeça. Por cuidar de mim quando eu tomei o maior porre na minha vida em uma cidade desconhecida, me apresentar aos seus amigos e sua mãe e sua avó que são pessoas incríveis (e que, como já te disse mil vezes, você deve valorizar até quando não sentir vontade). De quando gostou de mim quando eu duvidava de você, gostou de mim te dando apelidos bestas mil, fazendo perguntas desconfortáveis ou com paranoias de DST e gravidez. Das poucas vezes em que

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você me disse “obrigado”.

Não vou me esquecer jamais das risadas que a gente deu, ou de como eu me divertia te ajudando nos seus projetos, fazendo pi-adas sobre Natalie, te fazendo cócegas na cama, cantando alto no seu carro até você ficar bravo, fazendo pole dance de zoeira na balada e depois fingindo desmaiar na Augusta pra te assustar, falando dirtytalk no seu ouvido ou das vezes que a gente rolou e “desrolou” na cama por 4 horas seguidas. Quando dançava “Glad You Came”, fazia interpretações ou números musicais com ou sem seu melhor amigo, cantava funk sem vergonha, morria de rir com você e seus amigos na “Favela”. Das fotos idiotas que eu que-ria tirar da gente e você de mim, na esperança de me desenhar. De te ajudar com o concurso de francês. Não vou me esquecer das festas nas quais você me levou, das coisas sobre a profissão que eu quero seguir que você me ensinou e das pessoas do meio que me apresentou. Não vou me esquecer de tudo que só eu e você sabemos (ou São Paulo inteira porque eu escandalizei ao ser expansiva e falar alto demais em lugares inapropriados). Das exposições (sua primeira vez no MASP!), das garrafas de vinho. Do cupcake de aniversário. Das aulas frustradas de música e das comemorações fora de hora que eu insisti em fazer pras suas conquistas que me deixaram feliz. Dos dias que a gente parava para fazer nada quando eu queria fazer tudo, ou quando assistir clipes e coisas na MTV e estar um ao lado do outro em silêncio ou falando sobre música e o futuro que imaginávamos um pra cada bastava para ambos.

Consegui um trabalho em uma agência incrível, com pessoas in-críveis, do jeito que eu queria para começar, olha só! E não vou aguentar, vou ser sádica: eu te agradeço por tudo isso, eterna-mente, da maneira que você não fez e eu tive que te lembrar quando eu te dei um último presente material (a camiseta). E não foi por causa do estágio que eu procurava que a gente se conhe-ceu, afinal? Hahaha

Isso tudo de bom aconteceu enquanto eu era interessante para você e te fazia bem. De quando eu ainda conseguia te arrastar para lugares da cidade que você nunca havia ido e que eu gostava que fosse sua primeira vez comigo assim como a minha em muitas coisas foi (e ainda está sendo) com você. Como tudo é passageiro pra sempre ou tem que ser passageiro que vai e volta,

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não sou mais interessante, não caibo mais na sua vida do jeito que você quer e nem você cabe na minha. Muito menos tem me feito bem como já fez.

Eu idealizei muito e por muito tempo um cara para mim como você, no quesito habilidades e interesses artísticos e profissionais (porque é tudo que sempre me interessou mais também). Ad-miro muito isso em você, sempre admirarei, como todo mundo. Seu esforço, sua determinação, sua batalha para conseguir o que quer e conseguir deveras. Sua independência (não confunda com egoísmo). Mas como você sabe, também tem outros caras por aí com as mesmas habilidades – e com outras mil diferentes delas - que vão me tratar melhor e me dar mais valor do que você pode e está pronto para me dar e dar para qualquer uma (como um dia você também me disse) no momento. A sua parte que realmente importava para mim não estava bastando e só estava me cortando a alma. Guitarras libidinosas, mãos bonitas e musi-calmente habilidosas, interesses musicais e piadas imbecis sobre a vida são ótimas, mas não funcionam como pilar.

Idealizei passar um ano novo divertidíssimo ao seu lado, mesmo que fossemos somente nós dois no fim das contas, o que infe-lizmente não acontecerá como eu imaginei. Isso acontece, frus-trações normais que vou ter de aguentar sucessivamente até a morte.

Parece que, agora, nós estamos nos dando um chá de “nós nos avisamos”. Eu já vi, li, assisti e também escrevi tanta coisa assim, deveria saber como elas se desenrolavam. Eu só cometi o mes-mo erro de todo mundo: quis tentar porque achava que a parte boa poderia resistir a todos os contratempos, ou voltaria do nada se sumisse, ou valeria a pena quando já não dava mais daquele jeito para mim mesma e você também não estava tão empolga-do para tentar como dizia que queria.

O clímax geralmente ao fim da história, que às vezes é um fim literal para aqueles que seguem seu curso. Eu sabia que uma história com muitos clímaces e quase um season finale por se- mana como a nossa não teria outro fim que não fosse um final quebrado e relativamente trágico, por isso aproveitei o que houve de bom até não ter mais nada para extrair.

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Creio que te pressionei. Não que achasse que a gente fosse fi-car junto como estávamos para sempre e que nunca nos desen-tenderíamos. Isto não acontece com quase ninguém, como eu mesma disse para você na noite depois da minha apresentação na faculdade. Nunca acreditei em príncipe encantado e meu “pra sempre” significa outras coisas. Só achava que a gente poderia ser agradável um para o outro e seguir se relacionando (não es-pecificamente sexualmente) sem interrupções, mesmo com os desgastes.

Esse tempo que a gente está sem se falar tem sido difícil para mim. Já chorei muito de frustração por saber que você não me quer mais, não dá a mínima, não sente falta e que não tem tempo para pensar em mim e se importar se eu estou chateada ou não porque você sabe lidar com isso melhor do que eu e tem sua vida atribulada nos backstages pra se ocupar enquanto nem trabalho para mim eu estava conseguindo e estava correndo atrás como uma louca, mais intensamente nessas últimas semanas sem você. Que você não precisava e não sentia falta de conversar comigo e saber de mim como com você. Minha autoestima nunca esteve tão dilacerada e eu nunca me senti tão rejeitada.

Lógico que tive e continuo tendo momentos ótimos e me diver-ti, mas sofri muito por saber que ainda assim eu sofria e você, supostamente ou definitivamente, não. Só se divertia e pegava a parte boa, como sabe fazer com todo mundo como ninguém. Senti inveja por não conseguir ser fria e ainda não saber lidar com isso como você. Não saber aceitar um “já foi, passou. Se não deu, paciência” de primeira.

Não queria te admitir isso, porque me sentia imbecil e fraca por sofrer por um cara que mal tinha mais tempo na cabeça dele para mim e me fez as coisas que você fez (você sabia porque apanha-va, embora se fizesse de desentendido constantemente). Mas me ponho nua assim mais uma vez frente a você, por aqui, sim, porque entendo que não me diminuo e que não devo me com-parar, devo colar cada caquinho do que quebrou dentro de mim tendo autoestima e autoconfiança dilaceradas com ou sem o que a gente passou para piorar. E você conheceu esse meu defeito mesmo quando a gente estava bem.

Porém, ele me serviu exatamente para eu me dar conta do que já

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havia te dito: eu tenho que olhar mais para mim, pensar mais em mim, me dar mais valor e menos pros outros. Você, mais pros ou-tros e menos para si mesmo. Serviu-me para eu me dar conta de que não resta interesse para você ou de que você gosta de jogu-inhos e provocações (coisas que eu detesto) embora finja que não. Se eu ainda te interessasse, física ou afetivamente, você teria vindo dizer um singelo “oi, tudo bem?”. Teria tomado atitudes de me convidar ou me chamar para sair quando nos víamos e agora que não nos vemos mais. Porque, repito, o que me pesou mais foi eu ter de tomar atitude com você para 99% das coisas enquanto você nadava na sua zona de conforto e eu me fodia do meu lado. Porque eu quis, já que você me avisou? Deve ter sido.

Ou então, sei lá qual o seu motivo. Quem sabe, com alguma es-perança, é exatamente por você saber que não estava mais me fazendo bem e pensou em mim e não e você? Eu nunca vou te desvendar. Tive esperanças de que iria, mas nem rolou. E eu sei que, ainda que inconscientemente, você vai se achar muito por isso.

Um dia você me disse “Você se preocupa demais com isso e comi-go. Acho que tem coisas mais importantes para se preocupar”. Eu resolvi fazer isso, agora. Eu vivi demais a sua vida e me en-volvi demais nela e com as pessoas dela. Errei por fazer isso e me desvalorizar muitas vezes? Não sei. Mas eu não me arrependo. Você não fez o mesmo comigo porque, como eu disse e não sei por qual motivo, raramente cria laços (ou simplesmente porque prefere não fazê-lo e não por medo ou qualquer outra razão que eu pense). Ou, se os cria, não os trata com carinho e valor su-ficiente. Acabam soando artificiais, hipócritas, pelo menos para mim. Porque você é esse cara do presente imediato e só dele. Eu não. Para mim, tem algo além dos imediatismos e impulsos que valem mais a pena do que ambos, muitas e muitas vezes.

Não sei o que te aconteceu para te deixar assim (porque, quando conversei com sua mãe, senti de alguma forma que você tinha gastado sua cota de compaixão toda antes da adolescência), ou se você sempre foi assim, mas já não me importa saber.

Talvez você ache rude demais da minha parte dizer isso assim, mas é só o que eu penso e você não precisa do que eu penso. Quem sabe o que é certo para você, das suas escolhas e dos seus

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pensamentos, como eu sempre te disse, é você mesmo (apesar do fato de que escutar quem te quer bem, de vez em quando, é muito bom). Não tem certo e errado ou verdades universais (por isso mesmo eu tentei tanto ficar contigo mesmo me machucan-do, como já te disse).

Eu não queria te falar isso, mas você foi a pessoa que mais me magoou até hoje (eu sei, ainda tenho muita vida pela frente pra mais mil pessoas me chatearem mais ou tanto quanto). E eu me permiti ser magoada por você também por querer te agradar e me pôr em segundo plano por te idealizar.

O que eu quero agora e é melhor para mim é você afastado da minha vida. Não sei por quanto tempo, isso não é a gente que calcula, é ela mesma. Por esse motivo, vou me afastar totalmente até que eu consiga lidar com tudo que eu estou sentindo e com todos os machucados que você me abriu, ainda que tenha sido sem querer da sua parte, de forma que eles não doam mais como ainda me doem pelo fato de serem recentes.

Eu preciso de um tempo de você para ter tempo para mim. Para enxergar meu valor e querer do meu lado quem me valorizar da forma que eu mereço. Para me dedicar ao meu novo trabalho que eu tanto quis. E você terá tempo de sobra pra sua solidão agora, para fazer o que você quiser e dar atenção só quando você quiser para quem e o que quiser. Não que eu te tirasse isso, mas se você disse para mim que de alguma forma eu importava e você queria me fazer bem, me dar atenção e que eu não te incomodava, en-tão quero acreditar nisso.

Mentiria para você se não dissesse que você e esse ano prati-camente inteiro que passamos juntos não fizeram diferença na minha vida, que você não causou uma reviravolta nela (vai se achar de novo, talvez? Hahaha). Você mudou tudo, para melhor e para pior. E tudo isso só me serviu para aprender e enxergar mil coisas de outras mil maneiras, para eu me olhar de outras manei-ras. Para eu amadurecer. De alguma forma posso dizer com todas as letras: obrigada. Espero que eu tenha feito alguma diferença para você também, mesmo que ela seja ínfima.

Se você, como me disse, não tem nada para terminar comigo, eu tenho para terminar com você, pelo menos por agora, e estou

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fazendo isto.

Do fundo do meu coração: não te odeio, não tenho raiva de você, não guardo rancor e nem vou guardar mágoas e remoê-las. Não vou me esquecer do que aconteceu e do que eu senti de ruim, claro que não, isso só vai cicatrizar e perder importância. E isso vai e tem de acontecer porque, trabalhando no mesmo meio que você e conhecendo as mesmas pessoas, estando nos mesmos lugares que você, algo me diz que a gente ainda vai ter de se cruzar muito por aí e ser legais e colaborativos um com o outro.

E, quando o dia em que a gente se cruzar de novo chegar, espero olhar para você já curada ou pelo menos melhor de tudo isso. Não sei como será. Não sei se um dia terei a mesma afetividade por você, mas espero, pelo menos, conseguir começar tudo de novo, se por acaso da vida, sem ser mal educada ou grossa. Como se nunca tivesse havido “Oi, eu sou a Ana Paula e estou procuran-do um trabalho...”

Porque, apesar de tudo que eu escolhi não ter de lidar com, eu sei que você é uma pessoa boa e um cara legal (chato para caralho, mas legal, sim). Apesar de você se mostrar uma pessoa completa-mente sem caráter no campo afetivo, eu insisto em acreditar que ele está aí, guardado dentro de você, só esperando a chegada de mais maturidade pra irromper.

No mais, nesse tempo espero que você tenha ainda mais sucesso na sua carreira e vida pessoal, espero escutar sua futura banda ou bandas que produzir tocarem no rádio, espero ver vários projetos seus por aí, ler seu livro (espero também que você leia os meus), que você se divirta viajando por aí tanto quanto eu me divertirei e quero que você seja feliz da maneira que escolher, seja ela entre Narizinhos, Batatinhas, garotas que vem do mar, Natalies ; entre Nada Surfs e Maïas Vidal; Paris ou na caipiragem. Seja dormindo com francesas famosas (ainda que isso seja invenção da cabeça da nossa colega) ou com a francesa com distúrbio de personali-dade, que eu nunca saberia se era francesa mesmo e que será a futura namorada do seu amigo.

Eu vou ser feliz também, aqui, do meu lado. Aos trancos e bar-rancos, assim como você e o resto da população mundial, mas do meu jeito.

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Feliz Natal com a sua mãe e avó incríveis e que você tenha um 2013 ainda melhor do que 2012 (se assim você o considerou). Lembre-se do quanto a gente se divertiu!

Espero que você tenha chegado até este trecho da carta, o que, eu sei, é um grande esforço da sua parte. Decidi digitá-la porque, já que você não quis e atualmente não quer saber do resto de mim, minha caligrafia importa menos ainda.

Não, eu não quero resposta alguma. Nem que seja um “hm” uni-versal ou “tá certo” ou “tchoorr”.

Não mais.

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texto: NINA ROCHA

ECOS FALSOSspam do amor

Nina Rocha tem 20 anos e é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve de tudo no blog Torradas Tostadas, mas não sabe escrever biografias curtas e bem humoradas.

Álbum: “Q.U.A.S.E.”, 2010Composição: Ecos FalsosSelo: Monstro Discos

ilustração: THAYANE FERREIRANascida em 1991, em Montes Claros, movida a criatividade, boa musica, pintura e desenhos, suas ideias e princípios transparecem a todos que a conhecem. Fez quatro anos de aula de pintura em sua infância, o que a incentivou a continuar trabalhando seus dons artísticos. Hoje cursa Arquitetura e Urbanismo e faz trabalhos de criação/desenho/pintura a parte.

escuta essa!►letra da música

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{inbox}

Sei que você odiaria receber um buquê de flores - jogaria-o fora antes mesmo de abrir o cartão - e carros de mensagens são mui-to cafonas até mesmo pra mim. Já não sei mais o que fazer. Meus telefonemas, você ignora, minhas mensagens, você não lê. Pediu até para o porteiro do seu prédio me dizer que você se mudou pra bem longe, mas tenho certeza que você não iria sem levar as suas cortinas vermelhas. Meus e-mails devem estar todos perdi-dos no limbo da sua caixa de entrada (ou excluídos por um filtro com o meu nome). Mas só você mesmo para me fazer escrever uma carta, pra me fazer enfrentar as filas enormes dos correios e comprar selos. Ninguém mais escreve cartas e eu não escrevo pra mais ninguém. Eu não deixaria meus garranchos expostos pra outra pessoa se não você, da mesma forma que não escancararia meus sentimentos assim num pedaço de papel.

Sabe bem que meu maior medo sempre foi me perder. Nas ruas desconhecidas de seu bairro ou até mesmo agora: estou apavorado com a possibilidade de você não me encontrar en-tre suas contas a pagar e as faturas atrasadas do seu cartão de crédito, como provavelmente aconteceu com os meus milhares de pedidos de desculpa que devem ter se tornado lixo eletrônico e lotado o seu e-mail. Mas devo dizer que todos os meus me-dos, que sempre te pareceram muito insignificantes, ficam ainda mais bobos perto do medo que eu estou de te perder. Eu odeio aventuras, mas quando você me segura pela mão e me promete levar a um lugar novo, eu tenho vontade de percorrer o mundo inteiro com você. Adoro quando me deixa surpreso. E adoro seu sorriso. Porque quando você ri, seus olhos somem e tudo que eu quero é sumir com você. Eu sei que você já deve estar achando tudo isso muito clichê, mas o amor é assim mesmo, meio piegas, não é? É como aquela minha camisa estampada, que você diz ser cafona, mas mesmo assim, no fundo, adora. E eu te adoro de uma forma que não sei explicar.

Sei também que errei e que às vezes sou todo errado, mas es-tou certo de que te encontrar foi uma enorme sorte. Não vou

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desistir fácil assim. Se precisar, mando uma carta por dia e encho a sua caixa de e-mails do trabalho com letras românticas e longas declarações de amor. Sei que não serão as mais bonitas ou criati-vas entre as tantas que já recebeu - mas serão as mais sinceras de todas. Eu nunca deveria ter te deixado ir. Preciso que você saiba que me arrependi, mas que ainda estou aqui.

Me desculpa. Te espero hoje e te espero de novo. Espero que as-sim como os e-mails que enviei e as outras cartas que escrevi, você também volte pra mim.

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{agradecimentos}

Não há palavras para agradecer a todas as 59 pessoas res-ponsáveis pela realização deste projeto. Foram muitas e muitas discussões trocadas, ideias que surgiram e se concretizaram e tudo o mais em um único grupo de Facebook - e vale destacar aqui as ajudas de Danielly Friedrich, Daniel Corrêa, Mariana Rosa, Marcelo Perdido e Jorge Wagner, fundamentais. Muito obrigada também ao Rock ‘n’ Beats, pelos quase quatro anos, tortos ou não, de parceria. E um agradecimento especial para Rodrigo Lourenti, pela capa, para Amauri Terto, mentor intelectual que, de uma for-ma ou de outra, não abandonou o barco, para Allan Nucci, Chris-tian Camilo, Fernando Galassi, Leandro Luz e, claro, para o Chico Buarque, que ainda não sabe, mas tem tudo a ver com este livro.

Izadora Pimenta

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ALEXANDRE SPIACCIAMARO MOTA

ANA CLARA MATTAANA PAULA SANTOS

ANDRÉ FELIPE DE MEDEIROSANDRÉ MAGALHÃES

CARLOS ALEXANDRE MONTEIROCAROL TAVARESDANIEL CORRÊA

DANIELLY FRIEDRICHDÉBORA ZANINIEDUARDO ARAÚJOELAINE BARBOSA

ENZO ROSETTIFILIPE C.

GUILHERME PIETROBONIVAN PERINA

IZADORA PIMENTAJORGE WAGNER

JÚLIA THUM SCHMIDTKARINA PILOTTOLUCAS SANTANALUCIANA ESTEVAMMARCELO PERDIDO

MARCOS XIMARIANA ROSAMARÍLIA ROCHANINA ROCHAMATHEUS WEYHSORAIA ALVES

THIAGO DALLECK