Esopo - Fábulas de Esopo

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Estudo, tradução do grego e notas Nelson Henrique da Silva Ferreira Aesopica Colecção Autores Gregos e Latinos Série Textos a fábula esópica e a tradição fabular grega IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS

Transcript of Esopo - Fábulas de Esopo

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    ica e

    a tradio fabu

    lar g

    rega

    a trajectria de uma vida

    Amadurecido pelas viagens e pela ex perincia da vida, materialmente afortunado, Luciano cedo se farta da actividade judiciria, da retrica e da sofstica, para se entregar a uma actividade literria que, no sendo nova, ele, no entanto, reforma de maneira radical: tratase do dilogo filosfico, mas agora entendido e elaborado segundo princpios originais. De facto, Luciano aligeira substancialmente o majestoso dilogo filosfico que vinha dos tempos de Plato e acrescentalhe um aspecto dramtico, orientado no sentido da stira o que significa reunir no novo gnero dois gneros diferentes e at muito diversos: o dilogo filosfico e a comdia. Realmente, foram sobretudo as obras em forma de dilogo que deram fama a Luciano. nelas que melhor se expande a sua crtica panfletria e corrosiva, que atinge, literalmente, tudo e todos: os deuses e os heris, a religio e as religies, a filosofia e as suas variadssimas seitas, a moral convencional, a sociedade e os seus pilares mais destacados, os homens e as suas vaidades, as suas supersties irracionais e o aproveitamento que delas fazem os espertos... enfim, podemos dizer que em Luciano conflui o que de mais violento havia na comdia. Um certo epicurismo prtico e um cinismo terico afinam e refinam o processo.

    Estudo, traduo do grego e notasNelson Henrique da Silva Ferreira

    Aesopica

    Coleco Autores Gregos e LatinosSrie Textos

    a fbula espica e a tradio

    fabular grega

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    OBRA PUBLICADA COM A COORDENAO CIENTFICA

    Lombada: 20 mm

  • Aesopica

    a fbula espica e a tradio fabular grega

    Estudo, traduo do grego e notasNelson Henrique da Silva Ferreira

    Universidade de Coimbra

  • Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

    Autor: Nelson Henrique da Silva FerreiraTtulo: AesopicA: A fbulA espicA e A trAdio fAbulAr gregA

    Editor: Centro de Estudos Clssicos e HumansticosEdio: 1/2013

    Coordenador Cientfico do Plano de Edio: Maria do Cu FialhoConselho editorial: Jos Ribeiro Ferreira, Maria de Ftima Silva,

    Francisco de Oliveira, Nair Castro SoaresDirector tcnico da coleco: Delfim F. LeoConcepo grfica e paginao: Rodolfo Lopes

    Infografia: Mickael Silva

    Obra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

    Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 7333000-530 Coimbra

    ISBN: 978-989-721-051-8ISBN Digital: 978-989-721-052-5

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    Obra Publicada com o Apoio de:

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    Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

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  • Sumrio

    Notas preliminares Propsitos da obra 7Sobre a traduo 9Agradecimentos 10

    Siglas e abreviaturas 17

    Parte I: A sabedoria popular e a tradio fabular 1. Introduo 232. A tradio popular como veculo 273. A imagtica animal na sabedoria popular 314. A fbula

    4.1. A fbula enquanto frmula conceptual: o debate acerca de um gnero. 35

    4.2 A fbula greco-latina: a definio de um gnero e a busca por uma tradio. 44

    4.3 A terminologia e conceptualizao antigas e a identidade de um gnero. 46a) Estrutura formal e processo narrativo. 50b) A mecnica semntica da fbula:

    a alegoria e o mundo real. 51c) A sentena, a aco e a moralidade. 57d) Funo e temtica de um gnero adaptvel. 60

    Parte II: A tradio espica1. Esopo 672. A fbula espica 733. Estrutura formal de um conjunto e temtica 754. A fbula espica enquanto fonte histrica 795. As fontes da tradio fabular espica

    5.1. A reinveno da fbula e o debate acadmico. 855.2 Transmisso do texto e fontes antigas. 87

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    6. As colectneas de Fbulas 917. Estabelecimento do texto grego e edio de referncia 95

    As Fbulas Espicas 101

    Bibliografia Edies crticas e tradues 227Estudos gerais 229

    Index rervm 247

    Index locorvm 257

    Index fabvlarvm 261

    Edies do corpus fabular: tabela de correspondncia 271

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    NotaS prelimiNareS

    Propsitos da obra

    Ainda que tenha gozado de uma fama intemporal e a sua tradio praticamente fundir-se com a prpria matriz cultural mediterrnea, a fbula antiga no tem motivado um estudo sistemtico no seio da academia portuguesa, quer seja a propsito da problemtica que envolve a tradio e a transmisso dos textos que a compem, quer seja no mbito do estudo antropolgico da sociedade e consequente mecnica gentica deste gnero literrio. Por esse motivo decidimos integrar neste trabalho um breve estudo que introduzisse a discusso que acarreta a tradio fabular e a recepo dos textos que chegaram aos dias de hoje.

    Apesar de no nosso estudo, a dada altura, nos referirmos fbula greco-latina (I.4.2 A fbula greco-latina: a definio de um gnero e a busca por uma tradio), no nos alongaremos na anlise da tradio da fbula latina ou da fbula grega no mbito da circulao e recepo dos

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    textos no seio do Imprio Romano. No por ausncia de pertinncia em tal estudo, em extenso ao que propomos, mas porque nossa inteno retomar a problemtica a quando da nossa publicao da traduo das fbulas de Fedro. Todavia, insistimos em designar o subcaptulo de A fbula greco-latina por nos parecer incoerente a separao entre a fbula grega e a latina, dado estarem intrinsecamente ligadas no que refere ao impacto da sua recepo.

    No que refere ao estudo e s referncias s fontes antigas, devemos notar que alternamos entre o uso de abreviaturas dos ttulos das obras em verso latina e o ttulo completo em verso portuguesa. Pretendemos com isso distinguir as obras cuja consulta teve por base edies crticas do texto original e as obras consultadas em verses portuguesas. Isto porque tommos a opo de, quando estava em causa o entendimento geral do texto ou um passo cuja necessidade de consulta no assentasse na anlise semntica dos lxicos gregos ou latinos, consultar as respectivas tradues.

    Notamos ainda que no nos deteremos na figura de Esopo por dois motivos essenciais:

    - Esopo uma figura da tradio cuja existncia acaba por ser suprflua para o corpus que trabalhamos, dado que no existe uma relao autor/obra apenas tradio/coleces.

    - As informaes referentes figura de Esopo anteriores ao romance Vita Aesopica, para alm de parcas so fragmentadas e pouco ou nada podemos, de momento, acrescentar ao estudo dessas notcias por parte de R. Adrados (Adrados 1999 vide 271-83).

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    Sobre a traduo

    Ainda que muitos textos apresentem lacunas ou variantes, dadas as diferentes notcias que uma mesma fbula pode ter, no nos deteremos na discusso das opes tomadas pela edio critica de Perry. Tal comentrio implicaria sempre o confronto com os manuscritos originais, assim como o domnio de tcnicas de datao deste tipo de documentao as tcnicas actuais so elas prprias falveis. Por esse motivo, obedecemos de uma maneira geral lio de Perry (cf. Perry 1936 e 2007; vide II.4.5. Estabelecimento do texto grego e traduo). Todavia, alertamos para a edio crtica de Hausrath (1970), cuja grande mais valia reside na apresentao de variantes resultantes das diferentes coleces que preservaram estes textos, optando por no fazer uma seleco, quando em causa esto textos igualmente atestados na tradio.

    Alertamos para o facto de, para alm do corpus Aesopica, tomarmos a liberdade de traduzir duas fbulas antigas, transmitidas por Hesodo e Herdoto, no porque tenhamos considerado que pertencessem tradio espica, mas antes por julgar oportuna a incluso destes textos, dado representarem determinados elementos da tradio fabular grega.

    Note-se que nem sempre a linguagem dos textos por ns traduzidos a mais escorreita e adequada s concepes modernas deste gnero literrio. Deve-se isso nossa tentativa de levar a cabo, na medida do possvel, uma tentativa de traduo fiel ao original, mantendo a clareza na lngua portuguesa.

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    Agradecimentos

    No registamos aqui a gratido dos afectos, pois qualquer amalgama de vocbulos seria parca em objectividade e ausente de uma manifesta validade, que s a personalizao, em momento prprio torna possvel. Por tal, agradecemos aos intervenientes directos na execuo do trabalho que aqui publicamos. Deixamos uma palavra de gratido ao nosso Mestre, o Professor Jos Ribeiro Ferreira, que nos emprestou os seus ensinamentos e correco no decurso da execuo do trabalho que apresentamos. Se acaso este trabalho se dota de qualidade, a ele ser devida. Agradecemos tambm aos Doutores Nuno Simes Rodrigues e Delfim F. Leo. Ao primeiro, pela estreita colaborao na primeira fase da execuo deste trabalho, pelo avisado conselho e didctica correco. Ao segundo, no s por ter recebido com entusiasmo este projecto enquanto director dos Classica Digitalia, ramo editorial da UI&D CECH da UC; mas tambm por, ainda em 2008, nos ter instigado a traduzir um pequeno conjunto de fbulas espicas (baseadas na estrutura de Chambry), algo que viria a motivar um posterior estudo da imagtica animal na literatura fabular grega, comparativamente com literatura sapiencial egpcia e, consequentemente, o estudo e traduo integral da fbula espica que aqui apresentamos. Deixamos tambm uma palavra de apreo Doutora Maria de Ftima pelo apoio formal e pessoal no mbito do nosso projecto de Doutoramento Erasmus na Freie Universitt Berlin, sem o qual teria sido manifestamente mais difcil compor este estudo de maior profundida analtica no que refere aos trabalhos dos autores e tericos germnicos, que tanto contriburam para a discusso do gnero fabular.

    Por ltimo, agradecemos Doutora Maria do Cu Fialho, no s na pessoa de Directora da UI&D Centro

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    de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra,*1 mas tambm como orientadora da nossa bolsa de investigao e na qualidade de Mestre, que tanta sagacidade , pacincia e cincia nos emprestou.

    Nelson Henrique da Silva Ferreira

    27/7/2013 Berlim

    1* Este trabalho foi concludo no mbito de uma Misso Cientfica Humansticos (31 de Agosto 12 de Novembro de 2012) apoiada pela UI&D CECH da UC e decorrida no final do ano de 2012. Da mesma forma, o estudo que aqui desenvolvemos foi tambm consequncia do nosso projecto de Erasmus de Doutoramentos a decorrer no ano lectivo de 2012/2013 na Freie Universitt Berlin .

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    El meu vell em mirava amb nostalgia i em xiuxiuejava en un alemany macarrnic i desvorgonyit:

    Ich glaube das ich durch Zufall von Vermgen war geboren: die Kombination aus einem Bus und einer Wscherei. Jeman rief von unten von mir ,186' und ich erinnerte mich an eine bestimmte Fabel. Ich vergesse nicht, den Wunsch, in einem Traum, der einst eine Stadt und heute ist das Universum, dass ich lichtet klug.

    Ismael Kurfrstendamm F. R. S. Celsius, 6 de Abril

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    Aesopicaa fbula espica e a tradio

    fabular grega

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    SiglaS e abreviaturaS

    All - Heraclitus, AllegoriaeAphthonius (Aftnio) - Aphthonius, ProgymnasmataAves - Coulon, V. (ed.), van Daele, H. (trad.) (1967).

    Aristophane. vol. 3. Paris, Les Belles Lettres. 1928, Repr. (1st edn. corr.).

    Ch. Chambry, mile (2005), sope. Fables. Paris, Les belles Lettres.

    Diog. Laert. Marcovich, Miroslav; Grtner, Hans (eds.) (1999), Diogenis Laertii Vitae philosophorum, Volume I: Libri I. Berlin, De Gruyter.

    CGF Kaibel, George (ed.) (1958), Comicorum Graecorum Fragmenta. Berlin, Weidmann.

    Fab. FabulaeFab. Aes. Fedro, Fabulae AesopiaeFoerster Foerster R. (ed.) (190327), Libanii Opera. 12

    vols. Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Leipzig, Teubner.

    FGrH - Jacoby, F. (ed.) (1954-64), Fragmente der griechischen Historiker. Leiden, Brill.

    FHG - Fragmenta Historicorum Graecorum, ed. C. Mllerfrg. fragmentoIEG - Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum cantati, ed. M.

    WestInst. - M. Fabius Quintilianus. Institutio Oratoria -

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    Winterbottom, M. ed. (1970), M. Fabi Quintiliani Institutionis Oratoriae Libri Duodecim. Vols. 1-2. Oxford, Oxford University Press.

    Hist. Herodotus, Historiae.Hsr. - Hausrath, A. (1970), Corpus Fabularum Aesopicarum.

    Vol. I, Fasc. 1. Leipzig, Teubner. Hausrath, A. (1959), Corpus Fabularum Aesopicarum. Vol. I, Fasc. 2. Leipzig, Teubner.

    Hsch - Hesychii Alexandrini Lexicon, editionem post Kurt Latte continuans recensuit et emendavit

    LSJ - Greek-English Lexicon, ed. Liddell-Scott-Jones.Mem. - Xenofonte, MemorabiliaNoct. att. - Aulus Gellius, Noctes atticaeOp. - Hesiod, Opera et diesPap. gr. Vindob. - Papyrus graeca VindobonensisPerry - Perry, B. Edwin (2007), Aesopica. Chicago,

    University of Illinois Press. PCG - Kassel, Rudolf & Austin, Colin (eds.) (1983-

    2000), Poetae Comici Graeci 8 vols. Berlin, de Gruyter.

    Phaedo Burnet, J. (ed.) (1900, Repr. 1967), Platonis opera, vol. 1, Oxford, Clarendon Press.

    P.Kln - Papyrologica ColoniensiaP.Oxy. - The Oxyrhynchus PapyriOCD Hornblower, Simon & Spawforth, Antony

    Spawforth (1996), The Oxford Classical Dictionary. Oxford. Oxford University Press.

    Radt Rad, Stefan (ed.) (1999), Tragicorum Graecorum

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    fragmenta, vol. 1-4. Gttingen, Vandenhoeck & Ruprecht.

    Rh. Kassel, Rudolfus (Ed.) (1976), Artistotelis. Ars Rhetorica. Berlin, De Gruyter.

    Solmsen Solmsen, Friedrich (ed.) (1970), Hesiodi. Theogonia. Opera et Dies. Scutum. Oxford, Oxford University Press.

    Ton - Aelius Theon Rhet., Progymnasmata, Rhetores Graeci, vol. 2, Ed. Spengel, L. Leipzig: Teubner, 1854, Repr. 1966.

    TLL - Thesaurus Linguae LatinaeTLG - Thesaurus Linguae Graecaei

    Sinais grficos na traduo:[] Acrscimo pelo editor ao texto fragmentado.() Acrscimo de contedo pelo tradutor.

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    Parte I

    A sabedoria popular e a tradio fabular

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    1. introduo

    O que a tradio popular e em que medida contribui para a concretizao de uma cultura? De um modo algo simplista, poderamos considerar tal questo evocando o vulgarizado diz-se e a sua propagao num determinado momento espcio-temporal. Esse mesmo dito pode tratar simplesmente tcnicas de caa, pastoreio ou horticultura; uma histria de alcova sobre uma personalidade relevante, uma peripcia vivida por algum ou, entre vrias possibilidades, uma historieta com um fundo didctico.

    Os saberes, que usualmente se servem da tradio popular como veculo, tm um propsito educacional universal. Isto , assumem a funo de instruir uma sociedade, baseando-se numa sabedoria do senso comum e natural, promotora de equilbrio nas suas relaes e instruo para a subsistncia do indivduo e do conjunto populacional onde se insere. De certa forma, estes saberes so o garante da proteco do indivduo porque o auxiliam na obedincia e no entendimento do comportamento moral humano. Note-se que a moralidade no , neste mbito particular, um conceito cerrado a interpretaes ou transversal a todo o universo dos homens. Na verdade, quando comentamos as expresses comportamento moral ou preservao da moral, temos apenas em considerao o objectivo primrio da transmisso destes conhecimentos populares: a sobrevivncia do eu e da sua comunidade. Se tomarmos como exemplo de referncia um possvel ensinamento de uma tcnica de caa antiga, dificilmente

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    encontraramos alguma questo moral, quando analisada luz da concepo moderna ocidental e judaico-crist. No entanto, naquilo que a concepo imediata da moralidade, este ensinamento permite a preservao da comunidade ao optimizar a capacidade de obter recursos do indivduo para si e para o seu ncleo familiar ou social, do qual est invariavelmente dependente.

    Como j referimos, estes saberes tradicionais cor-porizam-se na transmisso de conhecimentos prticos ou ensinamentos acerca de comportamentos e actividades das partculas constituintes das vrias sociedades humanas. Esta sabedoria popular pode ou no ser vlida quando analisada luz do empirismo crtico. Todavia, independentemente da sua correco ou cincia, obedece ao principio cogni-tivo do senso comum e analogia com o mundo natural dado que esse mundo natural no s est enraizado na ex-periencia do indivduo, que com ele toma contacto, como tambm na experiencia tradicional do seu contexto social. Desta forma, so criadas no imaginrio humano as expli-caes e propsitos do mundo natural, pelo que a tradio se ocupa de transmitir esses mesmos conhecimentos, de modo que no seja necessrio ao indivduo ou sociedade experienciar novamente as vivncias que os refutariam. O conhecimento enraza-se na estrutura identitria da prpria comunidade, ou seja na matriz cultural. Sendo assim, os seus valores ou ensinamentos so dados j como adquiridos a quando de uma experincia que os evoca. Dessa forma se cria um sistema de saberes que podem servir de instrumen-to crtico e promover a analogia com outras vivncias que, ou no foram praticadas, ou cuja explicao carece de fer-ramentas argumentativas mais complexas do que a prpria situao ou ideia em causa.

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    A ttulo de exemplo, lembramos o significado da palavra portuguesa cobra, quando usada como forma de insultar algum. Esta palavra por si s explica a perfdia de algum que ataca quando menos se espera e, ainda por cima, peonhento, envenenando ideias e relaes. Ora, toda esta definio est contida na imagem da cobra e na analogia que o senso-comum faz entre a imagem deste animal e o comportamento dos homens. Em suma, a analogia por excelncia a ferramenta que transforma a definio de ideias algo complexas em imagens imediatamente concretizveis no pensamento abstracto humano.

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    2. a tradio popular como veculo

    Independentemente do objecto narrado, a tradio popular e a sua manifestao oral so a mecnica que permite cristalizar uma narrativa numa cultura e da mesma forma fundi-la na sua matriz de tal modo que, em caso de contacto intercultural, a dita narrativa pode ser assimilada por outros receptores e integrada de forma espontnea na sua prpria matriz cultural. Isto porque se encararmos outros mecanismos de cristalizao de tradies, como seja a literatura, verificamos que estes no potenciam a fuso natural dos seus contedos numa cultura, antes so absorvidos artificialmente, sendo complementos e no componentes da cultura que os acolhe.

    Claro est, tomamos estas consideraes tendo presente a transmisso da literatura ou arte plstica entre culturas, como seja a recepo dos poemas homricos na literatura ocidental. A Ilada uma pedra basilar no apenas no culto do gnero pico, mas tambm fonte temtica para muitas obras da literatura dos dois ltimos milnios. Ainda assim, um produto da cultura e tradio literria gregas e desta forma assimilada pelas culturas que a recebem. Apesar desta obra poder ela prpria criar uma tradio autnoma, quando recebida numa cultura, essa tradio no deixa de ser uma reinveno, originria de circuitos distantes daquilo que matriz substancial da cultura. Em ltima anlise, poderamos at considerar que a prpria Ilada o resultado de vrias confluncias culturais da antiga Hlade, uma vez que este texto parece incluir elementos de outras povos ou

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    tradies. Porm, a cultura grega aglomerou e recriou esse conjunto de materiais criando um produto que, quando recebido por culturas que no a helnica, tomado como um objecto final e cristalizado e, dessa forma, intocvel e incapaz de se fundir com a matriz do seu receptor. Ou seja, est em causa uma fonte independente, constituinte da matriz cultural ocidental, e no necessariamente um elemento que tenha sido produzido por essa matriz. Isto porque no lcito tomar-se a civilizao ocidental como um descendente directo da cultura grega, mas como um herdeiro da mesma.

    Portanto, a tradio popular ocupa-se daquilo que so os elementos mais bsicos e as necessidades mais prementes da estrutura de uma sociedade complexa, como sejam: a preservao de uma histria que de alguma forma explique um determinado momento presente; ou a transmisso de um conhecimento que se faa til continuidade da sociedade onde se manifesta.

    Esse saber, como j referimos, pode manifestar-se numa simples tcnica laboral, til no quotidiano, ou na exposio de determinadas atitudes perante a vida que podem ser prejudiciais ou benficas ao homem, dependendo do seu manuseio e conhecimento. De certa forma, a prpria ideia de moral pode basear-se neste principio, dado que a moral no mais do que a identificao de princpios que permitem a subsistncia harmnica numa determinada sociedade, mas cujo principal motor o indivduo (vide supra). Ora, no nossa pretenso avanar para um estudo epistemolgico da Moralidade ou sequer criticar o conceito de tica, at pela complexa subjectividade que lhes inerente. Antes entendemos pertinente notar o interessante conjunto de conceitos, tambm eles variveis, que integram a realizao da moral numa sociedade complexa. Desde

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    logo porque so esses mesmos conceitos que viajam pela tradio popular, e no tanto o conceito geral e abstracto de moralidade. Repara-se que noes simples como a perseverana, resilincia, bondade, trabalho, inteligncia ou malcia so pouco mutveis naquilo que a sua funo para a harmonia social. Estas so independentes de variaes impostas pela anlise moral de ideias polticas, religiosas ou mesmo concepes biolgicas. Na maioria das situaes em que estes conceitos se manifestam dentro do quotidiano social, implicam a relao humana e o equilbrio justo estre os indivduos que constituem essa relao e o prprio mundo natural que os envolve. Ora, veja-se o homem que cultiva o campo deve ser perseverante e trabalhador, pois s assim conseguir obter o produto de subsistncia. Falhe ele no cumprimento dessas premissas, trar a si o risco de fome, pelo que atentar contra a moralidade, na medida em que falha na sua prpria subsistncia.

    Tomemos por exemplo para a validade da tradio popular e oral algumas fbulas contadas nos dias de hoje e que podem encontrar paralelo seja na fbula espica, seja na tradio Sumria (vide Williams 1956). Neste ponto, tomamos a liberdade de usar o testemunho pessoal, provavelmente comum ao leitor. H vrias anos, foi-nos contada a seguinte fbula:

    Um dia, o vento e o sol decidiram apostar quem conseguia tirar o casaco a um homem que estava por ali. Ento, o vento soprou e o homem abotoou o casaco. Seguidamente, voltou a soprar com mais fora, mas no lhe arrancou o casaco e o homem abotoou-o ainda mais. Por fim, soprou com tanta fora, que o homem fechou completamente o casaco. Mas quando chegou a vez do Sol, este brilhou com

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    tanta intensidade que o homem, cheio de calor, tirou o casaco.

    Este exemplo, com paralelo na fbula espica Breas e Hlios (F. 46 = Perry 46), foi-me contado sem que o narrador conhecesse o corpus fabular antigo ou tivesse sequer lido Jean de La Fontaine. Na verdade, nem seria capaz de identificar quem lha tinha contado na sua infncia ou em que circunstncia. Esta ser uma peripcia em que muitos j se tero encontrado (cf. McCartney 1956). Quando me foi contada tal estria, era vontade do narrador ensinar-me que a precipitao no leva a lado nenhum e s potencia a asneira. Portanto, estaria aqui em causa o ensino da pacincia e da ponderao a uma criana, sob a forma de um exemplo prtico, facilmente inteligvel e sem que em nenhum momento esses conceitos fossem nomeados ou interpretados. Esta forma de ensino pela alegoria uma manifestao da tradio popular e apresenta um dos vrios veculos expressivos usados na transmisso dos saberes do senso-comum de uma sociedade.

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    3. A imagtica animal na sabedoria popular

    Os estudos etiolgicos tornam-se imperativos para a compreenso da humanidade, enquanto colectividade social, e do homem, enquanto indivduo. Contudo, a sociedade e os seus cdigos assentam sobre processos culturais evolutivos de tal forma antigos, que apenas de forma conjectural podemos expectar reconhecer a sua origem e motivao. Tal sucede com a expressividade comunicacional e com a aquisio de determinados cdigos lingusticos que tm por base uma tradio popular que, por seu turno, se baseia na observao da natureza e consequente conceptualizao dos seus observados elementos constituintes. Note-se que, sempre que falamos em cdigos lingusticos, temos inteno de referir a linguagem de expresso, como sejam a literatura, a iconografia e a linguagem popular no exclusivamente a lngua e as suas regras.

    A imagtica animal popular, originria da tradicional metfora ou alegoria to caras literatura universal , ascende a um perodo pr-histrico, que ter tido por motivao o sistema cognitivo que acima referimos.1 A propsito, nossa inteno notar que alguns animais tm caractersticas fsicas e comportamentais passveis de serem convertidas em signos lingusticos. E esses signos enraizavam-se de tal forma na cultura, que a simples evocao da imagem do animal implicava e implica o entendimento espontneo dessas caractersticas (vide supra ex. a cobra

    1 Para um estudo terico da metfora, da alegoria e da analogia vide Coenen 2002.

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    como insulto). Portanto, a metfora assumiu um papel de relevo inquestionvel na comunicao lingustica abstracta. De resto, esta , por excelncia, a forma de comunicao usada nas relaes humanas. Fazemos esta afirmao, tendo presentes a expresso plstica, literria ou o desenvolvimento de monlogos e dilogos complexos, que no tm como objecto a transmisso de informao objectiva e de prtica do quotidiano.

    Ora, as caractersticas dos animais e a sua humanizao, enquanto cdigos de lngua, obedeceram a um processo equivalente e registvel em todas as culturas escritas, ao longo de vrios perodos. De tal forma que possvel fazer-se um paralelo imediato com a imagtica de determinados animais entre diferentes culturas, mas com faunas e sistemas sociais equivalentes. Alm disso, mesmo quando se verifica uma diferena substancial das faunas regionais das culturas em paralelo, possvel encontrar as mesmas caractersticas humanas simbolizadas por diferentes animais. A isso se dever o pr-conceito que o senso-comum aplica observao comportamental dos animais, ao partir de caractersticas humanas para definies zoolgicas (cf. Douglas 1994). Ou seja, o homem tendencialmente humaniza o comportamento animal, julgando em funo das concepes e natureza prprias do ser humano.

    Ainda que neste nosso breve ensaio tenhamos por referncia os smbolos populares que a fbula espica carrega, toda a literatura grega permevel identificao tanto do smbolo animal como das caractersticas destes quando em situaes humanizveis. A propsito, bastar recordar as metforas teis retrica do discurso tico (vide Ferreira

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    2011) ou at poemas picos2 que colocam duas espcies animais em confronto, como fossem gregos e troianos, como seja a Batracomiomaquia (vide Lopes 2008). Todavia, consideramos justificvel esta nossa anlise com a fbula espica como fonte exclusiva, pois a sua simplicidade preserva os vestgios de uma linguagem popular, que se faz til para a confrontao com outras culturas (vide Ferreira 2012). Pois, o princpio que d origem a essa forma de linguagem universalmente transversal: o contacto com a natureza.

    Este contacto com a natureza e a sapincia que o senso-comum transporta criam espao para o ensinamento da tradio popular, promotora da sabedoria e do conhecimento concreto, sem que este derive exactamente da experincia. Isto , a tradio ensina a experincia de uma cultura e no directamente do indivduo. Nesse sentido, poderemos julgar a alegoria animal e a sua origem no contacto com o mundo natural como o resultado de uma tradio que preserva o empirismo original nos saberes de uma determinada cultura. E um dos mais clebres e transversais exemplos a raposa (cf. Krappe 1944). De facto, este animal surge recorrentemente na fbula, uma vez que promove um vasto leque de possibilidades para o ensinamento da moralidade. Tradicionalmente a raposa um animal que sobrevive custa da astcia. Este atributo pode por si s, dependendo do contexto, implicar sabedoria ou malcia, e a partir da esperteza da raposa que a fbula espica vai construir muitas dos suas peripcias e consequentes sentenas quer demonstrando que a sabedoria a ferramenta ideal para resolver problemas, quer avisando

    2 Referimo-nos neste ponto pica enquanto temtica universal e no exactamente conveno formal da antiga literatura grega, parodiada na obra Batracomiomaquia.

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    do perigo do chico espertismo ou mesmo notando que h que estar atento malcia dos ardis dos espertos (, vide Detienne, M. & Vernant J.-P 1991).

    Sendo o saber do senso-comum um dado adquirido, h que transform-lo num ensinamento. A a fbula desempenha um papel preponderante, pois consegue promover a juno da moralidade til ao indivduo com o conhecimento tradicional no caso concreto da fbula espica: a lio com a alegoria animal.

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    4. a fbula

    4.1. a fbula enquanto frmula conceptual: o debate acerca de um gnero

    At ao momento, ainda no foram encontradas evidncias de uma nomenclatura antiga para os textos sumrios e acdicos de carcter fabular. Pode este facto dever-se ao reduzido corpus literrio que nos chegou, alm da grande quantidade de textos que aguardam publicao. O carcter algo inseguro dos estudos lingusticos destas lnguas, especialmente a sumria, dificulta o prprio estudo da sua literatura. No entanto, existem vrias ocorrncias de textos fabulares, cuja semelhana estrutural com a fbula espica levou muitos historiadores a considerar a influncia directa destas culturas sobre a cultura grega.

    Da primeira metade do II milnio a.C. chega a evidncia escrita mais antiga da existncia de fbulas sumrias, que corresponderia a parte do curriculum escolar da Antiga Babilnia tinha como propsito o exerccio da retrica (vide Falkowitz 1984). Gordon (1958) intitula, entre outros textos do corpus sumrio, as narrativas Burro e co, Leo e cabra, Dez lobos e Co e figo; Gragg (1973) acrescenta a esta lista a fbula A gara e a tartaruga, cuja temtica encontra paralelo no texto acdico A guia e a Cobra, incorporado no mito acdico de Etana. Esta ltima, para alm de corresponder ao texto fabular acdico mais antigo (Antigo perodo babilnico), parece ter gozado de uma sistemtica circulao no s pelas regies da Mesopotmia e Levante, mas tambm pelo vale do

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    nilo. Alguns estudiosos, dada a circulao destes textos e a proximidade temtica com a fbula espica, tendem a sugerir uma relao directa entre os vrios corpus fabulares da bacia mediterrnica (vide Akimoto 2010). De resto, esse argumento pode ter a sua base de fundamentao na ocorrncia de animais em fbulas, cuja tradio no se adequa ao ambiente natural do animal. Justificar-se-ia este fenmeno com o cruzamento entre as vrias tradies fabulares e a assimilao de contedos entre as vrias narrativas. Podem tomar-se os exemplos de crocodilos, macacos, escaravelhos e camelos. No que refere a estes animais, a fonte primordial pode ter sido o antigo Egipto (cf. F. 32), podendo a tradio ter surgido pelo contacto directo durante e depois do perodo helenstico , ou pela incluso na tradio fabular grega de temticas tradicionais anteriores com origem no antigo Egipto.

    Ainda que seja evidente a proximidade da fbula sumria co e figo com a fbula espica A raposa e as uvas (F. 15); ou da fbula acdica O mosquito e o elefante com a fbula espica O leo, Prometeu e o elefante (F. 259), resistimos ideia inequvoca de uma influncia directa, pois falta-nos o acesso a um espectro maior de textos, quer orientais, quer gregos. Alm disso, comparativamente, o registo escrito literrio grego no mnimo um milnio mais recente que o uso regular da escrita literria nas culturas da antiga mesopotmia, o que reduz a capacidade de localizar no tempo registos de fbulas gregas em perodos anteriores ao sculo VI a.C.; e, por conseguinte, no possvel conhecer a antiguidade desta tradio no espao da cultura pr-histrica grega. Apenas podemos sugerir que a tradio fabular ou proverbial so anteriores a sua concepo enquanto gnero e manifestao material (cf. exemplo analisado por Cons 1924).

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    A sugesto de uma definio da fbula, enquanto gnero literrio da antiguidade e contemporaneidade, implica um debate de contornos to problemticos quanto a redescoberta da cultura originria deste gnero.3 Neste segundo ponto, colocamo-nos sob a capa defensiva e confortvel de termos como sejam a dificuldade, a impreciso ou a subjectividade, para no apresentarmos qualquer proposta que ajude o leitor a localizar o nascimento da fbula num mapa conjugador de variveis tais como a etnologia, a antropologia, a lingustica e a geografia. Na verdade, do nosso entendimento que tal tarefa no exequvel; pelo menos no com os dados que hoje possumos. E passamos a justificar-nos com um certame estimulado por Ronald Williams (Williams 1956), no mbito da publicao de uma traduo selecta de algumas fbulas espicas pela Pengin Classics. Este criticou a seguinte afirmao de Handford (1954) sobre as obras de Hesodo e de Arquiloco:

    These poems are several centuries earlier than the earliest known fables of any other country () There is reason to believe that some Egyptian and Assyrian fables became known to the Greeks in classical times, but no evidence exists to suggest that these influences were either early or important. As far as we can see, therefore, the fable was invented by the Greeks.

    A isto respondeu Williams:

    3 Para um estudo alargado do conceito na antiguidade e terminologia vide Adrados 1999 pp. 3-46.

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    It would be an easy task to refute Handfords naive asser-tion, provided as we are with such a wealth of ancient Near Eastern fable material in Egyptian and especially in Sume-rian and Akkadian, much of it long antedating the Greeks. However, in view of the partial and fragmentary nature of the texts at our disposal, it is not often that we chance upon a fable which can with confidence be regarded as the pro-totype of one familiar to us from the Aesopic corpus, such as the Akkadian fable of the gnat and the elephant4. It is the modest purpose of this paper to trace the history of one Mesopotamian fable through Egyptian and Classical literature to the Middle Ages.

    Na verdade a ltima afirmao de Williams serve-nos de mote para a nossa simplista e talvez to ingnua quanto a concluso de Handford sugesto para a compreenso gentica da fbula. do nosso entender que a origem da fbula antiga reside no modelo para a fbula moderna e para Jean La Fontaine, o seu expoente mximo. Ora esse modelo ser Fedro, o fabulista latino que emprestou corpo literrio e autoria tradio fabular grega. Esta nossa afirmao assenta num facto simples e incontornvel: toda a abordagem literria das antigas tradies fabulares baseia-se em registos expressivos e formais provavelmente desconhecidos nos perodos em que os ensinamentos pela alegoria comearam a circular entre geraes e sociedades.5

    4 E. Ebeling, Keilschrifttexte aus Assur religiosen Inhalts, vol. 1 (Leipzig 1915-19), p. 317, No. 174, Col. 3, lines 50-54; cf. E. Ebeling, Die babylonische Fabel und ihre Bedeutungffir die Literaturgeschichte [M.AOG, II, 3] (Leipzig 1927) 50.

    5 A propsito da interpretao literria na antiguidade e da representao alegrica vide Kennedy (ed.) 2003 pp.78-90.

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    Em verdade, a fbula, enquanto conceito, existe a partir do momento em que comeou a ser pensada e questionada em funo dos seus aspectos formais e objectivos sapienciais. Nesse sentido, Fedro o primeiro fabulista a surgir como um cultor da fbula, na medida que o mais antigo autor a influenciar directamente os cultores da fbula medieval e contempornea, ainda que outros autores o tenham antecedido. A isso acrescentamos o facto de, num perodo prximo da produo fabular de Fedro, Ten de Alexandria (c. I d.C.) produzir a frase que nos parece encerrar de forma geral e pouco questionvel a ideia conceptual de fbula, seja ela uma fbula presente num texto sumrio, seja num documento potico do fabulista latino, Aviano:

    c c c c (Ton 72.28)

    A fbula uma histria inventada ilustrativa da verdade.

    A propsito dos Progymnasmata devemos notar a grande relevncia que tiveram no s no perodo Imperial Romano, mas tambm no decurso da antiguidade tardia e do perodo medieval. Isto porque compilavam o ensino para os estudantes de retrica, que inclua no s o domnio da gramtica e semntica da lngua, mas tambm a discusso sobre a concepo literria e mecnica do discurso (vide Gibson 2008 pp. XVII- XXVI). Dada a relevncia da fbula enquanto ferramenta para a Ars Rhetorica, no de surpreender a sua incluso nestes manuais, enquanto textos para uso retrico. A propsito, basta que recordemos os exerccios de Libnio com fbulas [cf. Foester 1.1.1-1.3.4 () e Gibson 2008 pp. 1-6].

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    A nossa considerao a propsito de Fedro e da sua validade para a histria critica da literatura contempornea tem presente que no existe nenhum texto que apresente Esopo como o autor inequvoco de um corpus original fechado, sucedendo o mesmo com textos sumrios e acdicos (cf. Gordon 1958). Apenas temos notcia de Esopo como autor tradicional de fbulas.6

    Isto , se pretendermos encarar a fbula como algo com uma origem e culto de gnero, motivados pelo contacto entre culturas, iremos com certeza embater no indecifrvel universo que compe a pr-histria e, por conseguinte, ficaremos circunscritos s fontes ocidentais e ao preconceito potenciado pela literatura grega e pela tradio Assria.7 Por outro lado, se aceitarmos a falibilidade das fontes mais antigas, por corresponderem seguramente a uma mnima parte de um corpus textual e oral, e se aceitarmos tambm o facto da fbula existir antes da sua realizao e conceptualizao, poderemos tom-la, no seu espectro global, como um no-gnero. Todavia, particularizando, em Fedro que localizamos o gnero segundo a concepo moderna da fbula.8 Ou seja, o conjunto organizado e estilizado por um autor, que para

    6 Sobre a tradio espica e a busca por uma autoria lendria vide a dissertao de Jeremy B. Lefkowitz (Lefkowitz 2009).

    7 Bem vistas as coisas, salvaguardando o devido critrio analtico de um e de outro, Handford e Williams no tm um ponto de vista objectivamente distinto, apenas um diferente espectro cronolgico.

    8 Note-se que Fedro o primeiro autor, chegado aos dias de hoje, a dotar a fbula de maior sensibilidade literria, alm de ter um corpus manifestamente vasto. Porm, sublinhamos que as nossas consideraes baseiam-se no facto de Fedro ser anterior a autores como Bbrio e da sua obra ter sido importante no ensino monstico das letras latinas no perodo medieval, dado que no que refere expresso literria poderamos nomear Bbrio da mesma forma que evocamos Fedro.

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    alm da funo didctica, tem um fundamento artstico na sua materializao.

    Todavia, notamos que a recepo destes textos na antiguidade no teria uma equivalncia directa ao uso dos nossos dias, ainda que no possamos precisar exactamente a amplitude das suas funes. Hoje, a fbula encontra-se dentro de um escrito sapiencial, focado essencialmente na formao do indivduo, ainda na sua infncia. E as suas formas de manifestao e meios onde estas se processam so de uma pluralidade impar em toda a histria da literatura.9

    Na antiguidade a fbula, mais do que um tipo narrativo, seria um complemento integrante da expresso de outros gneros literrios. Tomem-se os exemplos de Hesodo (Opera vv. 202-212), squilo (Perry 276, Fr. 139; cf. Radt), Sfocles (Ajax 1142-58), Aristfanes (Aves 474 ss.; Vespas 1401ss et al), Herdoto (Hist. 1.141; 2.134.3), Xenofonte (Men. 2.7.11), Plato (Alcibades. 123, Fdon 60b et al) e Aristteles (Rh. 2. 20) (cf. Priest 1985 pp. 97-110; vide Adrados 1999 pp. 240-285; Perry 1962 p. XIIIss).

    A propsito da definio de gnero, devemos ainda notar que, apesar das vrias questes que levantam a sua classificao dentro do campo literrio, a fbula serve de suporte definio de outros gneros, tambm eles de conceptualizao problemtica, muito por culpa de uma tradio antiga e muitas vezes vinculada a formas de expresso muito prprias e geradoras de preconceitos universais, como sejam os textos bblicos e a sua interveno na matriz cultural ocidental.

    Por se encaixar na tipologia da narrativa sapiencial, a parbola ser um dos mais recorrentes exemplos do uso da

    9 Veja-se como exemplo o estudo de Hibbard (1926) relativo recepo de Esopo num determinado contexto social.

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    analogia com a fbula, de modo a caracterizar-se uma outra forma de expresso, analisvel tanto como recurso estilstico retrico, como subgnero literrio10. De resto, Lessing (Vom dem Wesen der Fabel 1759), um dos pioneiros da discusso acadmica do gnero fabular, chega mesmo a tomar a parbola como uma reminiscncia da fbula, ainda que as distancie no momento imediato em que a parbola forma o conjunto cannico chegado aos dias de hoje e que tem nos textos do Antigo Testamento o principal veculo de divulgao e at integrao na cultura literria ocidental.

    Para os antigos, a parbola no seria mais do que a comparao (similitudo) usada como suporte pela retrica do discurso de persuaso (cf. Rh. 2. 20), sendo o discurso forense aquele ao qual seria mais proveitoso tal recurso (cf. Inst. 5. 11). Neste aspecto, existe uma confluncia entre as funes da parbola e da fbula na antiguidade. Todavia, h que notar que os antigos no analisavam estas manifestaes narrativas, enquanto gneros literrios, mas apenas como partculas constituintes da retrica. Nesse sentido, lembramos que a arte da persuaso ela prpria um elemento da fbula, passvel de ser identificado at como um motor fulcral da aco expressa na fbula moderna de La Fontaine (Cf. Grimm 1992).

    do nosso entender que a associao entre a fbula e a parbola, passvel de ser subentendida nos autores antigos ou claramente manifesta na obra de Lessing, apenas permite vincular um aspecto comum a estes gneros: o registo sapiencial. Isto porque, no que toca sua expresso, so em

    10 Cf. Elm, Dorothee. Parable (CT). Brills New Pauly. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 26 March 2013 .

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    absoluto independentes e cumprem funes diferentes na expresso narrativa, ainda que usem ferramentas comuns, como sejam a comparao ou a alegoria.

    Esta referncia parbola tem por objectivo notar a importncia da fbula no prprio debate epistemolgico da histria da literatura e tambm sublinhar a possvel subjectividade inerente ao estudo de tradies antigas, servindo-nos para isso da analogia entre gneros. Ainda para mais quando a gnese dessas mesmas tradies remonta a um perodo muito anterior ao registo da escrita e, por consequncia, impossvel de datar ou localizar no seio de uma cultura. Consideramos ser apenas legtimo julgar tal gentica aps o momento desse registo e por isso limitamos a sua existncia s primeiras culturas letradas (Sumria e Egpcia), que dificilmente podem ser consideradas de forma inequvoca como influncias directas na prpria tradio ocidental. Isto porque no sabemos at que ponto quer a tradio fabular, quer a tradio do uso da parbola, no existiriam em outras regies da bacia do Mediterrneo antes de se ter dado a inveno da escrita.

    Porm, apesar desta nossa breve exposio que no mais pretende do que acender o debate epistmico sobre as origens , consideraremos apenas no nosso breve estudo a fbula a partir do princpio da recepo de Esopo, isto , tendo por base as tradies Assrias e ocidentais, no seguimento de um estudo semntico cronologicamente abalizvel, como aquele que feito por R. Adrados (2005).

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    4.2 a fbula greco-latina:a definio de um gnero e a buSca por uma tradio

    De facto, no ser to problemtica a distino terica de outros gneros narrativos, como sejam a alegoria11 ou parbola, o provrbio, a anedota e o conto fantstico com animais, como ser a concretizao exacta do modelo conceptual antigo a que supostamente obedece o gnero que aqui tratamos. A propsito da ideia de fbula como pertencente a um grupo especfico de textos, com Demtrio de Fleron, no final do sculo IV a.C., que coligida a primeira coleco conhecida de fbulas gregas. Esta foi composta a partir de citaes de autores helnicos que as usavam como exempla (vide Perry 1962). No mbito da considerao do conceito de exemplum, devemos notar a relevncia de tal ferramenta em sociedades altamente politizadas e dependentes do uso da retrica no discursos civil e forense (vide Demoen 1997).12 Ao oferecer todo um universo paralelo, explicvel por si mesmo e com a apresentao de comportamentos padronizados, as narrativas fabulares so a ferramenta perfeita para o uso da analogia na construo de um argumento.

    Esta coleco ou organizao de textos tradicionais antigos, promovida por Demtrio, ainda que no corresponda a um levantamento exaustivo e concretizao do gnero, implica pelo menos uma aceitao de correspondncia temtica e estilstica entre os vrios textos. Apesar desta reunio corresponder aceitao de uma simetria estrutural e funcional dessas fbulas e consequente concepo da ideia

    11 A propsito do registo alegrico grego cf. obra de Heraclito, Allegoriae (= Quaestiones Homericae).

    12 A propsito do aspecto mimtico no discurso forense e da transversalidade da fbula no meio retrico e literrio vide Kurke 2006.

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    de um conjunto pertencente ao mesmo universo, a definio de fbula na antiguidade permaneceu vaga.

    Aristteles o primeiro autor, cujo trabalho seja conhecido nos dias de hoje, a referir a fbula enquanto uma entidade literria prpria (Rh. 2. 20). Porm, este evoca-a com o propsito de comentar o estudo da retrica e apresenta-a com tendo a funo de ferramenta estilstica e no tanto como gnero independente. Os exemplos usados pelo filsofo grego colocam dois oradores (Estescoro em Hmera e Esopo na ilha de Samos) na circunstncia de usarem a fbula para fazerem valer o seu argumento, atravs do paralelo de circunstncia (cf. Jedrkiewicz 1987). De resto, este ser o mesmo valor detido nos manuais de retrica de outros autores como Ton de Alexandria13, Hermgenes e Aftnio14, em que a fbula tem o intuito de chegar persuaso (cc) pelo exemplo (cf. Craig 2008, pp. 1-8; Gual 2004, pp. 9-11) a vertente pedaggica unanimemente assumida pela recepo da antiguidade, como indissocivel do gnero fabular.15 Repare-se que Aristteles chega mesmo a identificar as fabulas como paradigmas () de uma realidade, insistindo na funo do exemplo de uma realidade (Rh. 1393a. 23).

    13 No mbito dos retricos antigos, Ton ser aquele que, no s mais se dedicou conceptualizao da fbula, mas tambm que mais se aproximou do princpio analtico moderno (cf. Progymnasmata 72. 27 ss).

    14 Weienberger, Michael (Greifswald). Aphthonius. Brills New Pauly. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 27 April 2013

    15 No mbito da literatura latina, esta constante presena da fbula no estudo e uso da retrica ter sido alvo de stira e zombaria, dada a tamanha recorrncia, algo que provavelmente denunciaria alguma pobreza de recursos da parte do seu utilizador (vide Marchesi 2005).

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    4.3 a terminologia e conceptualizao antigaS e a identidade de um gnero

    A indefinio provocada pela pouca ateno terica de que gozou na antiguidade, poder explicar o facto de no existir um termo grego concreto e exclusivo que designe fbula; pelo menos no antes da terminologia latina. Aristteles identifica-a como c16, mas existe em outros autores uma certa variao entre este termo e c17; o prprio Hesodo introduz a fbula O falco e o rouxinol (Trabalhos e Dias, 202)18 usando o termo c19, pelo que poderemos, pelo menos em contexto da Hlade arcaica, colocar uma terceira varivel nesta equao lxico-semntica:

    cc c c20

    E agora, vou contar uma fbula aos reis, tambm eles prprios sbios. (cf. F. 4b)

    16 Trata-se de uma forma nominal do verbo , podendo significar facto ou fico, pelo que o seu uso pouco criterioso.

    17 Este termo significa literalmente palavra ou discurso e, contrariamente a c, ocorre frequentemente em Homero com o sentido de estria. Cf. Dijk 1997, p. 84-88.

    18 Vide Ferreira 2005. Esta a mais antiga notcia que nos chega do gnero fabular em contexto grego. Seguem-se, entre outros os textos de Arquloco a raposa e o macaco e a a guia e a raposa; e de Simnides O escaravelho e a guia. Vide Irwin 1998.

    19 Note-se a existncia de uma relao etimolgica com o termo (enigma, adivinha).

    20 A antiguidade de Hesodo ter, provavelmente, sido o mote para Quintiliano considerar o poeta Helnico o inventor da fbula em detrimento de Esopo: Illae quoque fabellae quae, etiam si originem non ab Aesopo acceperunt (nam uidetur earum primus auctor Hesiodus), nomine tamen Aesopi maxime celebrantur (Inst. 11.19.1-4).

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    De forma muito resumida, c significaria no seu sentido literal palavras ditas com um sentido, alm daquele que apresentam, como seja o elogio (cf. Dijk 1997, p. 81). De facto, esse o sentido que tem na Ilada (XXIII, v. 652 e 795)21 e Odisseia (XIV, v. 509), embora essas ocorrncias no circunscrevam este termo a esse significado concreto, uma vez que no se resume s oposies homem/animal, representativo/sugestivo, real/ficcional, fbula animal/provrbio/advinha (cf. Adrados 1999, pp. 5-8). Tecrito (14. 43), por exemplo, usa o termo como significando provrbio, tal e qual o entendemos nos dias de hoje. 22 No entanto, o termo paroimia () o mais preciso identificador do conceito de provrbio, pois corresponde ao dito popular: uma verdade geral que surge como uma forma de aviso, composto essencialmente por uma nica alegoria (cf. Rh. 1413a, 15-17).23 Repare-se que o prprio provrbio foi alvo de debate na antiguidade e sujeito inclusive a criao de colectneas.24 O prprio Digenes de Larcio nota esse facto, referindo os paroimia (, cf. Diog. Laert. 5. 26ss).25

    21 Na Ilada o seu significado aproxima-se de palavras de elogio. Cf. Dijk 1998.

    22 c c / c, c . / c c c .

    23 A propsito do provrbio e da sua tradio na cultura ocidental, mais precisamente de matriz judaico-crist, vide Erhardt 1953.

    24 Estas colectneas no so exclusivas da antiguidade grega, sendo que possvel encontrar este tipo de textos na escrita sumria (vide Taylor 2005).

    25 Vide Damschen, Gregor (Halle/Saale). Paroimia Brills New Pauly. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 25 March 2013

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    Para usarmos de maior preciso, no perodo arcaico (sensivelmente compreendido entre os sculos VIII VI a.C.) que o termo c tem maior preponderncia na nomeao de um genrico tipo narrativo que incluiria a fbula. E durante este perodo que surge a estria assria de Aiqar (c, Diog. Laert. 5. 50), onde possvel encontrar elementos tpicos de um texto designado por c. Embora no nos tenha chegado a verso original, sendo a mais antiga correspondente a um papiro do sculo V a.C. escrito em aramaico clssico, esta novela foi amplamente divulgada na antiguidade, pelo que lhe so conhecidas verses em demtico, grego, latim, eslavo eclesistico antigo, rabe, armnio e siraco. Este texto, em cuja estrutura e peripcias possvel encontrar bastantes semelhanas com a Vida de Esopo, versa sobre a vida de Aiqar, um oficial dos reis Sennacherib (Sn-a-erba) e Asarhaddon (Aur-au-iddina) (c. 704-669 a.C.). Esta personagem, cuja veracidade histrica no est devidamente atestada, ter sido popularizada pela sua sabedoria. E nas vrias circunstncias em que essa celebrizada sapincia posta prova, que as suas estrias e sentenas assumem todo seu potencial no manuseio da retrica e evocao da moral e justia.

    No nos possvel precisar quando e como aconteceu, mas a verdade que o termo c foi perdendo relevncia e acabou por ser substitudo na designao de fbula pelos termos ainda mais generalistas e vagos: c e c. A prpria discusso do significado especfico de cada um dos termos associvel ao gnero fabular faz-se complexa, at porque estes parecem ter variado de significado ao longo do

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    tempo e em funo do contexto26. No entanto, a lngua latina que vai produzir aquele que o termo identificativo deste gnero na modernidade: fabula.

    possvel que tenha sido o prprio Fedro a consagrar fbula como designao ao referi-la no prlogo s suas Fabulae Asopiae (Pro. 1.1-69).27 No que refere literatura latina, nio o primeiro autor de que temos notcia a fazer uso destes textos de carcter gnmico, ao contar a mais antiga fbula escrita em lngua latina nas suas Saturae (Sat. vv. 21-58).28

    O certo que este gnero, ainda que negligenciado no que reflexo epistemolgica diz respeito, foi bastante divulgado na antiguidade e logrou assumir uma nova dimenso na modernidade, com fabulistas como Jean de La Fontaine29, Flix Mara de Samaniego (1781-84), Toms de Iriarte (1782), Jean-Pierre Claris de Florian (1792), Tommaso Crudeli (1798), Gian Carlo Passeroni (1779-88), Lorenzo Pignotti (1782), Aurelio Bertola de Giorgi (1788), Luigi Fiacchi (1795, 1802, 1807) e os irmos Jacob e Wilhelm Grimm. Na verdade, com os trabalhos dos trs primeiros

    26 Podemos inclusive mencionar outras ocorrncias que teriam a significao de fbula no contexto em que se inseriam: , , , cc, c, , , , c, cc, fabula, fabella, argumentum, exemplum, imago, historia, iocus, narratio, neniae, parbola (medieval), sales (neo-latino), similitudo (medieval), urbanitates (neo-latino), para alm de nomes compostos derivados destes lexemas. vide Dijk 1997, pp. 88-95.

    27 Aesopus auctor quam materiam repperit, /Hanc ego polivi versibus senariis./ Duplex libelli dos est: quod risum movet/ Et quod prudentis vitam consilio monet./ Calumniari si quis autem voluerit,/ Quod arbores loquantur, non tantum ferae,/ Fictis iocari nos meminerit fabulis.

    28 Vide notas preliminares.29 Note-se que este autor viria a marcar a obra dos autores subsequentes.

    Sobre a influncia da fbula espica na obra de Jean de La Fontaine vide Bassan 1970.

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    que a alegoria animal e o mundo natural se concretizam como recursos elementares na conceptualizao moderna da fbula (vide Adrados 1999, pp. 17-21)

    a) Estrutura formal e processo narrativo

    O gnero fabular, que compe o corpus Aesopica e que projecta as obras de Bbrio, Fedro ou Aviano,30 essencialmente uma composio literria de carcter gnmico, que pretende o ensino prtico da moral e das implicaes desta no comportamento humano.31 No que refere ao aspecto formal, estes textos constroem-se a partir de um relato, geralmente breve, e culminam numa moralidade sentenciosa, por vezes subentendida.32

    De uma maneira geral a fbula tradicional antiga enquadra um ou mais de trs elementos narrativos:

    1- Disputa: uma situao provocada pelo conflito de interesses das personagens.

    2- Escolha: uma personagem selecciona uma opo

    30 Estes autores so tidos como os grandes cultores da fbula do mundo greco-romano, todavia, esse pressuposto baseia-se na conjunto literrio que chegou at aos dias de hoje, pelo que no absolutamente certa a inexistncia de outros autores com produes considerveis, mas com menor divulgao. Assinalamos tambm as noticias que nos chegaram de algumas fbulas de Dositeu (IV d.C.), Libnio (IV d.C.) e Aftnio (IV d.C.), Rmulo (c. IV-V d.C., nome fictcio). Sobre estas questes vide Adrados 1999, 2000, 2003.

    31 Cf. passo de Ton de Alexandria: c c cc c c , c c . c , c c c , c c c (Progymnasmata 73. 24-33).

    32 Algumas das fbulas, para alm da sentena final, podem ter indexadas narrativa uma outra sentena, proferida ora pelo narrador ora pelas personagens.

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    entre as possibilidades apresentadas, advindo da um determinado resultado.

    3- Julgamento ou sentena: a avaliao de um comportamento tipo que se reflicta num resultado positivo ou negativo a quando da sua concretizao.

    Ora, quando em causa est a aco de um ou mais personagens, a obteno do sucesso depende do manuseio de determinados atributos seleccionados previamente pela moralidade da fbula: a astcia e sabedoria, o poder perante a fraqueza do outro e obedincia justia moral. Na verdade, se tentarmos encontrar na fbula uma ideia de sociedade, deparamo-nos com um universo onde so constantes a luta pela sobrevivncia, a opresso dos mais fracos pelos mais fortes, a procura pela ascenso social ludibriando o outro e a malvadez como predisposio.

    Dentro do contexto greco-latino as verses escritas mais antigas surgem na poesia inica e so ainda designadas por c (vide supra). E, tal como no restante corpus, a mensagem factual do texto apresentada de forma clara e integrada numa determinada aco. Na generalidade das fbulas que compem a tradio greco-latina, o detalhe da narrativa em certa medida parco, dada a sua relevncia subjectiva para o argumento central. Esse argumento central ser o gon da aco, o nico ponto de referncia para a analogia (tertium comparationis). Voltamos a notar que pela analogia que o leitor ou ouvinte converte o contedo da aco na mensagem pretendida pelo texto.

    b) A mecnica semntica da fbula:a alegoria e o mundo real

    O principio analgico obedece nica e exclusivamente intenso moralizadora da fbula. Isto , a alegoria realiza-se

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    em funo dos conceitos abstractos presentes na narrativa. Portanto, toda a imagtica e aco funcionam em funo da exposio do ensinamento. Est em causa a avaliao de uma determinada conduta, quer seja pelo argumento explicito, com a moralidade final, quer seja de forma indirecta, ao apresentar a consequncia, benfica ou prejudicial, dos actos das personagens intervenientes.

    o intuito didctico da fbula que define a estrutura textual e baliza os limites da narrativa, por norma, breve. Exactamente pelo carcter curto e pela manifestao imediata de ideias, o argumento faz uso do potencial da imagtica do mundo natural, profundamente enraizado nas formas de expresso de cunho popular (vide supra). Isto significa que a fbula greco-latina tem no carcter alegrico o principal elemento identificativo. A alegoria deriva ou da situao que a narrao expe ou das personagens que a integram.33 No entanto, frequente tanto personagens como narrativa corporizarem a alegoria da fbula, sem que exista uma relao dependncia semntica entre ambos os elementos da fbula.

    A alegoria fabular parte de princpios e caractersticas humanas, cujas personagens encarnam e expem atravs dos seus prprios signos. Isto , se a raposa simboliza a astcia humana, a relao com o animal deve-se prpria astcia que lhe reconhecida, ainda que seja de carcter irracional. A esse propsito devemos notar um curioso facto. Apesar de os

    33 A propsito devemos notar a profunda influncia da alegoria fabular na execuo dos bestirios medievais. Cf. Henderson 1982; para o desenvolvimento deste assunto vide tambm Hassig 1995, Henderson 1973, http://digital.library.wisc.edu/1711.dl/HistSciTech.Bestiary, e Apostolos-Cappadona, Diane. Bestiary. Religion Past and Present. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 22 March 2013 .

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    animais serem dotados de razo, dada a capacidade de falar e entender as situaes pelo pensamento abstracto, frequente na fbula espica o uso do termo c (irracional) para se referir ao mundo animal ().34 Isto significa uma total aceitao do valor alegrico da narrativa, no estando nunca em causa a manifestao de um mundo fantstico e paralelo ao universo humano ou ao universo animal. Ou seja, em nenhum momento a estria narrada tem existncia formal por si s, estando dependente da associao ao mundo real e moralidade deste.

    Embora o valor significante que as personagens da fbula detm seja multifacetado e se revele em funo da situao a que so expostas, o smbolo popular do animal no varivel, pelo que no concordamos totalmente com a afirmao algo sentenciosa de Gual: Los personajes (generalmente animales) no poseen un valor fijo, sino que se hallan sujeitos a una determinada valoracin dentro del conflito, definido por su posicin y su relacin recproca. Para decidir el xito de la accin importan slo los rasgos: la fuerza y la inteligncia.(Gual 2004, p. 15). A nossa relutncia em aceitar tal considerao reside no facto de o signo animal nas fbulas antigas, chegadas aos nossos dias, no ter representaes contraditrias, mas simplesmente apresentar as vrias caractersticas que o animal adquire aos olhos de uma sabedoria popular (vide por exemplo Tzifopoulos 1995). Ou seja, o animal e o seu smbolo no so portadores de apenas um signo. Na verdade, ainda que em cada fbula o smbolo se faa simples, o conceito da imagtica animal que lhe serve de base to complexo quanto as noes populares acerca do comportamento do animal. De resto, devemos notar

    34 Cf. Fbulas 81, 83, 107, 188 e 220

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    que a alegoria, a metfora e o smile com base na imagtica animal so frequentes na literatura grega, no se cingindo apenas fbula e ao registo gnmico (vide Adrados 1999, pp. 192-239).35

    De resto os retricos antigos sublinham o carcter alegrico da fbula, aleado ao ensinamento, como o seu principal elemento identificativo. A propsito dos retricos antigos, devemos notar que muitas das fbulas que chegaram at ns foram transmitidas nos seus exerccios de retrica, como sejam os Progymnasmata (vide Adrados 1999, pp. 128-32 e Gangloff 2002). Veja-se como exemplo o comentrio de Ton (supra citado). Como a prpria definio de alegoria indica, est em causa a apresentao de uma cena distante do mundo real e no enquadrvel num determinado contexto cultural. Todavia, representante de uma circunstncia transponvel para o mundo real. Aqui se distingue a fbula do simples conto fantstico, pois este ltimo pretende sair do universo humano, criando um mundo paralelo no concebvel no plano do real, naquilo que semntica da narrativa diz respeito. A esse propsito, devemos notar que a certa impreciso que paira sobre a designao moderna e generalizada de fbula nos dias de hoje se deve muito certa confuso entre os dois modelos narrativos. Isto porque o conto de fadas, de carcter infantil, ter tido a fbula antiga como percursora e ter sido potenciado pelo mesmo autor que recuperou o gnero fabular antigo e o recriou: Jean de La Fontaine. Sucede que La Fontaine expande em alguns dos seus textos a narrativa, relativamente quilo que seria o padro antigo. E, da mesma forma, chega a criar situaes

    35 A propsito da metfora na tradio clssica vide tambm Boys-Stones 2003.

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    que no se concretizam unicamente num mundo alegrico, mas sim no mundo fantstico, onde o animal falante no se converte numa metfora, mas sim num mundo mgico, realizvel num imaginrio infantil.36 Neste ponto, Jean de La Fontaine inova relativamente aos trabalhos de autores anteriores, que normalmente se limitavam coleco, traduo ou adaptao de fbulas de tradies antigas. disso exemplo Heinrich Steinhwel, intitulado de Esopo de Ulm (vide Lenaghan 1968). Ainda que este tivesse publicado os seus textos em 1476, antes da publicao da primeira traduo para lngua alem de fbulas orientais por Anton von Pforr (1480), os seus textos obedeciam integralmente estrutura tradicional da fbula antiga e tinham grandes similitudes com a obra de Aviano.37 Note-se que a obra deste fabulista latino fora um dos primeiros livros impressos em terras germnicas (Der Edelstein 1461).38 J a fbula espica merece um grande destaque com a publicao de Esopus (1548) pelo monge protestante Burkard Waldis (vide Lieb 2011).

    Paralelamente, devemos tambm notar que na pennsula Itlica tinham sido j desenvolvidas algumas

    36 A esse propsito devemos notar os comentrios de Jacques Rousseau (mile II) relativamente vertente didctica das fbulas de La Fontaine. Isto porque no entendimento do filsofo francs a ensinado que os mais fortes e astutos so os que logram ter xito, independentemente da justia (vide Gual 2009, p. 13).

    37 A poesia didctica germnica medieval encontrava na fbula espica um valoroso suporte argumentativo, designando-a por bispel, termo correspondente ao exemplum e.g. Der Marner, Bruder Wernher, Reinmar, von Zweter. Vide Infra Dithmar.

    38 Dithmar, Reinhard (Berlin RWG). Fable (CT). Brills New Pauly. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 25 March 2013

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    edies e tradues de fbulas antigas (sculos XV e XVI), que podem ter motivado o trabalho do editor Burkard Waldis (vide Manganelli 2012, pp. 20-22). A mais famosa destas edies a de Bonus Accursius, mais precisamente as duas redaces florentinas de 1479/1480 e de 1482.39 A esta trabalho podemos acrescentar as relevantes redaces posteriores de Aldus Manutius (1505), Isaac Nicolaus Neveletus (1610) e Gottfriedus Hauptmann (1741).40

    Tanto os animais como os objectos animados da fbula posicionam-se num microcosmos humanizado, pelo que esto dotados de razo e fala (c). Porm, estes atributos humanos so sempre conjugados com as caractersticas originais das criaturas que compem a narrativa. Por esse motivo, Ton refere-se a uma fico (c) para ascender verdade (). Da que um grande conjunto das fbulas termine com um facete dictum (sentena, sententia) iniciada pelo termo , que, numa traduo literal, significaria: da mesma forma. Ora, pretende o narrador fazer a ponte entre o mundo extraordinrio que apresenta e o mundo dos homens, alvo da sentena. Assim, refora a espontaneidade da alegoria ao identificar o paralelo com o mundo dos homens. O mesmo propsito tem a expresso (ou ) para evocar o sentido

    39 De notar que em 1448, Rinuccio da Castiglione de Arezzo (Remicius Aretinus) publicava uma traduo da Vita Aesopica e das fbulas espicas, havendo ainda hoje discusso sobre qual a fonte grega usada na traduo, uma vez que antecedem o trabalho de Acrcio (vide Perry 1934). J antes Lorenzo Valla (1439) havia publicado uma verso latina, cuja fonte provavelmente ser a mesma.

    40 Note-se que paralelamente havia uma tradio da edio das fbulas espicas, mas em texto latino. disso exemplo a edio de Lorenzo Valla de 1439, que serviu de referncia para a primeira traduo castelhana de fbulas espicas, publicada por Johan Hurus em 1489.

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    alegrico da fbula e fazer a coneco com a realidade dos homens e consequente moral.

    c) A sentena, a aco e amoralidade

    importante notar que nem sempre bvia a relao entre a sentena e a aco que compe a fbula. No seguro que a fbula e a sentena tenham sido efectivamente produzidas como um texto nico na verdade, tal possibilidade bastante questionvel. O mais verosmil que ambos tivessem sido construdos como passos independentes e em momentos distintos. Por esse motivo, optmos por distinguir o texto da fbula da sentena final, no julgando a fbula como a soma da narrativa com a sentena. Na grande maioria do corpus que compe a fbula espica, a prpria narrativa encerra em si um ensinamento sentencioso, pelo que a sentena final apenas o refora ou, em alguns dos casos, (re)interpreta/adapta (cf. F. 130) e acrescenta informao ao prprio ensinamento da fbula (cf. F. 1, 2, 33). Ora, porque o tema da fbula , normalmente, de realizao imediata e simples, parece-nos questionvel a sua concluso em elementos que no so imediatamente reconhecidos na aco exposta. Da, poderamos sugerir que um possvel autor pretenderia expandir e completar a informao transmitida pela fbula, a cuja tradio tivesse tido acesso. Desse modo, estaria em causa, da parte do autor, uma complexificao do ensinamento, ainda que este continuasse a acarretar um argumento simples.

    Porm, o facto de, no momento da reunio das fbulas, os prprios textos estarem fragmentados e por isso existir a necessidade de serem completados de forma a adequar-se estrutura dos demais, pode ter motivado a eventual discrepncia entre algumas fbulas e as sentenas

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    que as acompanham. Por esse motivo, a nossa argumentao, no que toca independncia da sentena e da fbula, pode incorrer num erro, por tomar o corpus que nos chegou como o resultado directo de um precedente original, no corrompido por quem tomou a empresa de reunir tais textos e tradies.

    Alm disso, devemos acrescentar que o corpus correspondente fabula espica no possui ainda uma estrutura absolutamente hermtica e invarivel, tpica nas obras de Fedro, Bbrio e Aviano. Por tal, no totalmente inconcebvel que alguma falta de unidade e clareza fabular dentro do prprio texto se deva menor capacidade do autor original da fbula. Do mesmo modo, devemos salientar que a estrutura formal e assinatura autoral na fbula no estavam ainda rigidamente padronizadas, algo que de resto apangio da poesia. Da entender-se as estruturas formais mais vincadas nas obras em verso de Bbrio e Aviano.

    Enquanto exemplo de alegoria, a fbula caracteriza-se pelo elemento dramtico e pela mecnica que a constri. A arquitectura da imagem alegrica acaba por expandir o prprio recurso estilstico, pois acrescenta-lhe a possibilidade de subentender uma sentena. As caractersticas dos animais ou objectos so por si s elementos de uma determinada moralidade, pelo que no existe apenas a recriao de um mundo humano com personagens animais, mas tambm uma intercepo entre os vrios planos; pois os animais, estando no ambiente alegrico, podem tambm entrar na realidade do humano. A propsito, lembramos a fbula As raposas no rio Meandro (F. 232), onde uma raposa diz ir at cidade de Mileto.

    A fbula antiga de uma maneira geral um relato curto, parco em explicaes e exemplificaes, dado o carcter sentencioso a que se propunha. Por tal se fazia imperativa

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    a apresentao de imagens que s por si implicassem uma narrativa: os elementos do smbolo animal. Isto , a apresentao de um imagem com um sentido semntico prprio, que tivesse como fonte uma narrativa anterior que, por exemplo, notasse a astcia de uma raposa, ou o contexto que faria do lobo um animal do qual se deve desconfiar. Tais informaes, muitas vezes registadas no senso-comum, compem a narrativa que constri o smbolo. Esta austeridade e ascetismo da exposio atingiram o seu expoente mximo na fbula espica.41

    Por norma, a informao que a narrativa contm em si mesma um argumento moral cerrado e que se explica por meio da metfora e sugesto de contedo. Nesse sentido, e como j referimos, a incluso das sentenas finais ou concluses de uma maneira geral identificvel como artificial. Na verdade, estas concluses, na maioria das vezes, iniciadas por c ou c so elementos independentes que poderiam por si s servir o propsito educativo como mximas. O mesmo se pode dizer do advrbio , que implica a manifestao da comparao entre o mundo alegrico representando na narrativa antecedente e o mundo humano. Contudo, referindo novamente o ensinamento em causa, como que aclarando a informao da fbula.

    Devemos contudo notar a excepo composta por algumas das concluses que implicam a identificao do destinatrio tipo dos ensinamentos da fbula como sejam

    41 Designamos por fbula espica o corpus que atribudo a Esopo, ainda que seja hoje convencional que no corresponde a um conjunto de textos atribuvel a um nico autor e a uma poca com um contexto histrico especfico. Vide Perry 2007, pp. 295-311.

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    as frmulas c c ou simplesmente . Quando as concluses, acompanhadas por estas expresses, apenas identificam o destinatrio sem o contextualizar, o sentido didctico da sentena acaba por estar ausente, pelo menos de forma independente, uma vez que apenas so compreensveis quando anexadas fbula que lhes d origem. So apenas elementos explicativos, ainda assim artificiais, pois mesmo nestas circunstncias continuam a ser acrscimos a um ensinamento j encerrado.

    d) Funo e temtica de um gnero adaptvel

    Na verdade, a simplicidade estrutural da fbula e o prprio ensinamento sentencioso e de senso-comum tero conduzido muito frequentemente sua identificao como um gnero de carcter pueril e, portanto, destinada s crianas. Porm, ainda que nos dias de hoje, tendo presente o cnone que compe o gnero fabular, no seja totalmente descabida tomar-se essa considerao, no que diz respeito fbula na antiguidade no claro que esse fosse um entendimento generalizado. Quando Aristfanes se refere fbula espica, tem presente a actividade poltica da plis e no o ensinamento de crianas (cf. Vespas 1427ss e F. 63).

    A propsito, devemos notar que a fbula acaba por ser dotada de um cunho poltico no s como ferramenta da oratria grega, mas tambm enquanto veculo na transmisso de narrativas de temtica poltica. Tomem-se o exemplo dos textos de carcter fabular de Hesodo (cf. Op. 202-11), Arquloco (cf. IEG fr. 172-81; 185-87), Semnides (IEG fr. 8-9) ou as notcias de Aristteles a propsito das fbulas que Estescoro dirigiria contra tiranos de uma cidade siciliana (Rh. 1393b); e tambm a notcia de Herdoto que d conta de uma fbula de Ciro da Prsia dirigida aos Gregos

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    (Hist. 1.141).42 Na verdade, esta vertente poltica da fbula acabou por estender-se ao perodo moderno, podendo notar-se, a ttulo de exemplo, a popularizao deste gnero tanto no discurso como na invectiva politica da literatura inglesa dos finais do sculo XVII e incios do sculo XVIII (vide Hanazaki 1993-1994).

    A fbula de facto um gnero de carcter poltico, na medida eu que promove a transmisso de ensinamentos que valorizem o indivduo e consequentemente a sociedade onde se insere. Talvez por isso se justifique ter sido uma ferramenta to privilegiada, no mbito da interveno pblica na plis, fosse como invectiva poltica,43 fosse como exemplum na exposio retrica.

    A ideia generalizada da fbula como literatura infantil poder tambm ter por base autores posteriores como Fedro ou Aviano, usados nas escolas monsticas como material para o ensino da gramtica e para a transmisso de uma moralidade no comportamento adequado vida religiosa. De resto, j no sculo XII, Konrad of Hirsau introduz o uso compulsivo da literatura fabular com quatro objectivos precisos: ensino da leitura; exerccios para a instruo gramtica; introduo sabedoria sentenciosa e guia de conduta para a experincia do indivduo; introduo ao conhecimento das lnguas e culturas antigas da matriz europeia. 44

    42 Repare-se que o prprio Plato faz referncia em Alcibades I fbula como fonte de argumento (cf. Alc. I 123 1).

    43 A prpria fbula pode carregar a invectiva, seja pela adaptabilidade da sua moral aos diferentes contextos, seja pelo acrscimo exterior e posterior da sentena, aditivo que permite converter a fbula numa referncia directa a um dado contexto (cf. F. 243).

    44 Vide Kmmerling-Meibauer, Bettina (Tbingen RWG). Childrens and Young Adults Literature (CT). Brills New Pauly. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 26 March 2013

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    Ora, se tradio escolar e educativa acrescentarmos a recepo da fbula no sculo XVII e as colectneas que se foram reunindo e produzindo nesse perodo e que tinham o pblico infantil como alvo , intuitivamente compreende-se a converso que a prpria histria da literatura fez de um gnero sapiencial popular em narrativa de instruo e entretenimento para crianas (cf. Lyons 1975).45

    De facto, esta variao de enquadramento de gnero dentro da cultura literria receptora um dos motivos pelos quais se pode considerar a fbula como um dos gneros cannicos da literatura, tal qual como o gnero pico, a tragdia ou mesmo o romance. Isto porque, da mesma forma que os referidos gneros sofrem mutaes associadas a correntes literrias, perodos histricos ou inovaes artsticas, tambm a fbula est sujeita a constantes reinvenes. Note-se que no mbito da literatura, como em qualquer manifestao artstica, a criao e gnero da mesma so organismos vivos, pelo que uma obra pode conceber uma cristalizao enquanto objecto final, mas o contexto em que se insere e o rgo maior que compe (a literatura) continua o processo de adaptao e reinveno de si mesma e da realidade que constri pelo somatrio de todos os seus constituintes artsticos. Isto o mesmo texto, no tem que necessariamente cumprir a mesma funo ao longo da sua histria e, mesmo que a sua interpretao no suscite ambiguidade passvel de adequao a um determinado contexto, o seu contedo pode em si mesmo conter diferentes funes em diferentes perodos

    45 Cf. as edies ilustradas: Fables (Paris 1668-1694) de Jean de la Fontaine , Fabeln und Erzhlungen (Leipzig 1746-1748) de Christian Frchtegott Gellert, Basni (St Petersburg 1809) de Ivan Krylov.

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    e culturas. Sendo assim, ainda que a fbula espica no corresponda na sua gnese a literatura de carcter infantil, esta pode coerentemente ser usada como literatura didctica para a criana, sem que o sentido que encerra se perca.46

    46 A propsito da apropriao da fbula pela literatura moderna e da sua redefinio enquanto gnero infantil vide o estudo de Shu-Jy Duan (1994).

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    Parte II

    A tradio espica

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    1. eSopo

    Antes de mais, devemos notar que no nos deteremos de forma alongada sobre esta personagem. O principal motivo da nossa disposio ser a impossibilidade de relacionar credivelmente a figura de Esopo com o corpus textual que tratamos e cuja traduo aqui publicamos. No que diz respeito ao estudo dos textos, o lendrio fabulista mais uma entidade perifrica, cuja importncia se regista essencialmente no estudo de uma tradio fabular e da sua lenda (vide Adrados, pp. 271-86). Por tal, iremos ignorar o romance Vida de Esopo como fonte, ainda que alguns dos dados desse texto coincidam com fontes como Herdoto ou Plutarco. A esse facto dever-se-, muito provavelmente, a existncia de uma fonte tradicional comum.

    Acerca da vida de Esopo so poucos os dados que nos chegaram e mesmo esses no permitem remover esta personagem do plano ficcional ou lendrio.47 Ainda que possamos demiti-lo da criao do conjunto de fbulas, que tanto a antiguidade como a modernidade teimaram em atribuir-lhe, no seguro que este no tenha efectivamente existido, dado o seu nome estar to profundamente enraizado na tradio. Na verdade, podemos comparar a lenda deste cultor da sabedoria popular tradio de Homero, enquanto autor dos Poemas Homricos, dada

    47 Para um resumo comparativo entre as vrias notcias sobe Esopo vide Chambry 2005, pp. IX-XVIII.

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    a vincada subjectividade das notcias relativas sua existncia.

    De uma maneira geral, as vrias notcias acerca da vida de Esopo parecem concordar que este teria vivido durante o sculo VI a.C. e teria a sua origem provvel na Trcia ou na Frgia48. Este ltimo dado oscila em funo do autor que o nomeia, como seja Herdoto, Aristfanes, Plato, Aristteles ou Fedro. No seguimento da obra deste ltimo autor, devemos notar que a relao entre fbula e Esopo est de tal forma vinculada na tradio, que ele prprio personagem em fbulas de outros fabulistas antigos e chega a ser includo enquanto tal no corpus da tradio que lhe est associada (cf. F. 8 ou F. 63). Alm disso, Fedro refere-se a Esopo no primeiro prlogo s suas Fabulae Aesopiae como criador das fbulas que pretende polir na sua obra.49 E, na mesma obra, o fabulista latino nota Esopo como autor, ao identificar um estilo devedor de Esopo:

    Librum exarabo tertium Aesopi stilo (Fab. Aes. 3.29)

    Lavrarei um terceiro livro ao estilo de Esopo

    No entanto, devemos salvaguardar um aspecto relevante: a tradio mais antiga no nota Esopo como o fabulista, mas sim como um contador de histrias e cultor

    48 Os escravos com estas provenincias eram muito frequentes na antiga Grcia. A razo provvel seriam as frequentes incurses militares neste espaos e as consequentes capturas de habituantes locais. Estas regies tambm se caracterizaram por vrios perodos de anarquia governativa, o que deixava os seus habitantes desprotegidos e sujeitos ao saque e ao rapto por piratas.

    49 Aesopus auctor quam materiam repperit,/ Hanc ego polivi versibus senariis (1. Prol. 1-2).

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    da sabedoria do mbito popular, baseada na anlise do senso comum e empirismo social. A propsito recorde-se o comentrio de Scrates no Fdon de Plato.50 Nesse passo o filsofo ateniense nota como Esopo justificaria atravs de uma estria o conflito/simbiose entre o prazer e a a dor, fazendo uso da personificao dos dois conceitos e da interveno dos deuses na resoluo do problema (cf. Dover 1966). De facto, a obra de Plato trata Esopo como um veculo de um determinado tipo de pensamento que requer a analogia e o exemplum para se justificar.

    Como j referimos, Esopo chega a ser personagem de um dos parcos exemplos chegados at aos dias de hoje de romance antigo grego: Vida de Esopo (cf. Vita Aesopica, Perry ed.).51 Este texto pretende ser uma narrativa da vida do antigo fabulista. Todavia, para alm do perodo tardio (ca. II-III d.C.), em que as verses conhecidas deste texto parecem ter sido elaboradas,52 a sua indubitvel componente ficcional no nos permite usar esses dados para a sugesto de uma biografia (vide Perry 1933). Muito embora algumas notcias da vida de Esopo presentes na novela sejam coincidentes

    50 c , , c, , c c . c c c c c c c , c , c, c, cc , cc (Phaedo 60c 1-7).

    51 Vide Adrados 1979 e Luzzatto, Maria Jagoda (Florence). Aesop Romance. Brills New Pauly. Brill Online, 2013. Reference. Universittsbibliothek der Freien (Univ Berlin). 25 March 2013 http://www.paulyonline.brill.nl/entries/brill-s-new-pauly/aesop-romance-e110960.

    52 No entanto, salvaguardamos que, pesar das verses corresponderem a um perodo tardio, o estilo da narrativa e o prprio cenrio em que colocada, leva a considera-la como uma obra original do perodo helenstico.

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    com as indicaes de autores antigos como Xenofonte ou Plutarco como j foi dito , ignoraremos este texto como fonte, at porque esta novela carece de uma anlise particular luz de outros conceitos que no a fbula e a sua prpria conceptualizao.

    Ainda que a existncia de Esopo seja uma possibilidade credvel, no nos possvel distinguir realidade de fico. A mais antiga notcia sobre o clebre fabulista -nos legada por Herdoto (Hist. 2. 134). O historiador apresenta-o como criador de fbulas e coloca-o na ilha de Samos, como um escravo frgio servindo Idmon tradio que Plutarco segue (vide tambm OCD Aesop, p. 29). A isto acrescenta que teria compartilhado a escravido com a hetera Rodpis, amante do irmo de Safo, Carasso.53 Este dado apresenta-se interessante para aqueles que pretendem a historicidade desta personagem, independentemente da sua verosimilhana, porque faz por associar duas celebridades na Magna Grcia. De resto, trata-se de um tpico comum nas tradies em que se baseiam os autores gregos, que tendem a cruzar personagens relevantes na histria da Hlade, como se tivessem uma rbita comum, independente de ser possvel atest-lo como facto; tal sucede at quando no existe coincidncia cronolgica das suas vidas o que, partida, no seria o caso de Esopo e Safo.

    O historiador grego conta ainda que a sua morte seria a expiao de um crime. Este teria sido morto pelos habitantes de Delfos por ter sido acusado, alegadamente de forma injusta, de um roubo sacrlego.54 Esta noticia coincide com a

    53 A propsito de Rodpis vide Lidov 2002.54 Repare-se que a expresso Sangue de Esopo est atestada em Suda,

    como sinnimo de uma destruio injusta:

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    apresentao de Esopo em Aristfanes: contador de fbulas para defender-se das acusaes dos Delfos, que o acusavam de ter roubado um vaso do deus55 mais propriamente, o narrador de O escaravelho e a guia. (cf. infra 2.4.3. As colectneas de Fbulas, referncia ao fr. 192 de Calmaco).

    Tambm Plato e Aristteles aludem actividade deste fabulista. O primeiro diz no Fdon que, durante os ltimos dias de priso e vida de Scrates, este tratava de versificar as fbulas de Esopo, das quais era perfeito conhecedor (cf. 60b et al). Aristteles, seguindo a imagem de entidade poltica, refere que o fabulista teria participado na assembleia dos Smios e a teria usado da fbula A raposa e o ourio.

    O certo que esta personagem lendria se ter imortalizado pelo corpus que se lhe associa, ainda que seja evidente que estes textos no foram produzidos na sua forma original por um nico autor. Contudo possvel considerar uma fonte antiga que tivesse reunido um conjunto de fbulas em circulao na oralidade e as tivesse transcrito. Porm, no h provas que confirmem ou contrariem de forma definitiva esta sugesto. A tradio algo lendria acabou de tal forma perdida no tempo, que o prprio Calmaco afirma cantar uma fbula de Esopo num dos seus iambos, no sendo claro se considera que a fbula teria realmente sido criada pelo autor Esopo e, dessa forma, tendo-a recebido atravs da tradio, a tivesse adaptado; ou se est em causa apenas um topos literrio do poeta helenstico (vide infra 2.4.3 As colectneas de Fbulas, Calmaco Fr. 192).

    (Suda 332.1).55 {.} / {.} ./ {.}

    (cf. Vesp.vv.1446-1448).

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    2. a fbula eSpica

    Esta uma designao que teima muitas vezes em no intitular as publicaes de tradues e de estudos coincidentes com o corpus tambm por ns tratado. O titulo preterido em funo de Fbulas de Esopo, nomenclatura com a qual partida o leitor mais se identificaria. Ainda que, no nosso entender, tal se deva a um preconceito residente na analogia com autores modernos, como seja La Fontaine, cuja obra com profundo impacto na cultura ocidental e inspirao para as mais variadas verses literrias, plsticas, musicais e cinematogrficas , intitulada tradicionalmente por Fbulas de La Fontaine. Em verdade, este preceito j bastante antigo, pois a tradio de intitular uma suposta obra de Esopo parece ter em Fedro o seu grande cultor, dado o ttulo da sua obra: Fabulae Aesopiae. E, uma vez que a obra do fabulista latino se encontrava entre as ferramentas do ensino da lngua e retrica, nos perodos medieval e moderno, possvel que tambm a influncia essa influncia tenha instigado a prtica.

    A fbula espica no ser mais que a constante recompilao de fbulas que acabaram por resultar em coleces de textos passiveis de serem atribudos, muito conjecturalmente, a um clebre fabulista de nome Esopo. partida, esta reunio facilitaria a catalogao de textos, que circulavam por via da tradio popular, por citao de autores antigos ou mesmo pela autoria de fabulistas