ESPA+çO E IDENTIDADE TESE

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5/27/2018 ESPA+OEIDENTIDADETESE-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/espaco-e-identidade-tese 1/193 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Instituto de Geociências Rita Aparecida da Conceição Ribeiro IDENTIDADE E RESISTÊNCIA NO URBANO: O QUARTEIRÃO DO SOUL EM BELO HORIZONTE Belo Horizonte 2008

Transcript of ESPA+çO E IDENTIDADE TESE

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    Instituto de Geocincias

    Rita Aparecida da Conceio Ribeiro

    IDENTIDADE E RESISTNCIA NO URBANO: O QUARTEIRO DO

    SOUL EM BELO HORIZONTE

    Belo Horizonte

    2008

  • Rita Aparecida da Conceio Ribeiro

    IDENTIDADE E RESISTNCIA NO URBANO: O QUARTEIRO DO

    SOUL EM BELO HORIZONTE

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Geografia. rea de concentrao: Organizao do Espao Orientadora: Profa. Dra. Helosa Soares de

    Moura Costa

    Belo Horizonte

    2008

  • Dedico este trabalho para Wander, meu Norte.

    Wolverine & Ludmila, sempre.

  • AGRADECIMENTOS

    Quatro anos de trabalho. Como caberiam agradecimentos no espao de uma

    pgina? Sempre acreditei que o trabalho acadmico era uma tarefa solitria. Mas

    este jogou por terra minha convico. A construo at sua finalizao, contou, o

    tempo todo, com a contribuio de pessoas preciosas. Ainda assim, correndo o risco

    de deixar algum de fora, agradeo.

    Em primeiro lugar timoneira desse trabalho, que me guiou em segurana e

    com tranqilidade, mesmo nos perodos de maior turbulncia, minha orientadora

    professora Helosa Soares de Moura Costa. Agradeo a todos os professores com

    quem tive a honra de conviver no IGC, especialmente ao professor Geraldo Magela

    Costa, por suas brilhantes provocaes que mudaram meu foco e possibilitaram a

    descoberta de meu objeto de pesquisa, e ao professor Cssio Vianna Hissa, pelo

    seu modo peculiar de perceber a educao e a msica. Agradeo Fundao de

    Amparo Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG pela bolsa concedida.

    Aos amigos, mais que irmos, Carlos, Adlia e Letcia que ouviram com

    pacincia e so fontes de incentivo permanente. Cludia, Marcus e Eduardo,

    tradutores de primeira! Aos meus alunos, que me obrigam a repensar

    cotidianamente a prtica acadmica e a crescer junto com eles.

    minha me, D. Vera, que sempre me ensinou a perceber o valor

    das pessoas e a lutar contra todo tipo de preconceitos. Agradeo tambm a

    Allex de Souza, discpulo e responsvel pelo projeto grfico da tese.

    Wander, meu companheiro de jornada, no existem palavras que

    expressem minha gratido. S amor.

    E aos meus, agora brothers: DJ ACoisa, Sir Dema, King Nino Brown, Gerson

    King Combo, Dom Fil, Mr. Funky Santos, Lcia Duarte, ao mestre Geraldo, que

    teve a ousadia de criar um novo rdio em Belo Horizonte e influenciou meu gosto e

    minha formao, anos depois, como radialista.

    Por ltimo, e especialmente, a todos os integrantes do Quarteiro do Soul -

    brothers of soul - e ao padrinho James Brown, que nos proteja a todos! Amm!

  • Diga bem alto, eu sou negro e com orgulho! Agora ns demandamos uma chance para fazer algo para ns Estamos cansados de bater a cabea contra a parede E trabalhando para outra pessoa Ns somos pessoas, ns somos como os pssaros e as abelhas Ns preferimos morrer em p Do que viver ajoelhados Diga bem alto, eu sou negro e com orgulho!

    James Brown

  • RESUMO

    A metropolizao de alguns centros urbanos estabeleceu novas formas de

    relacionamento e percepo da cidade. O crescimento urbano, associado ao

    desenvolvimento tecnolgico, atribui outros sentidos para a cidade, novas influncias

    vo se delineando e criando diferentes parmetros de sociabilidade. Tais parmetros,

    muitas vezes, se constituem a partir da fruio de produtos miditicos. Assim, em Belo

    Horizonte, vemos surgir novos espaos, ou mesmo, antigos locais que se transformam

    pela apropriao de grupos formados pelo gosto comum por determinados produtos

    culturais. Este trabalho visa investigar, a partir das manifestaes ligadas aos produtos

    da mdia, como as diversas identidades se constituem no espao urbano e como estas

    influenciam na apropriao e nos novos usos que so imputados ao espao, o que

    possibilita o surgimento do espao diferencial, como conceituado por Henri Lefebvre.

    Nossa abordagem tem como objeto emprico as manifestaes ligadas black music,

    mais especificamente ao Quarteiro do Soul, movimento que acontece nas tardes de

    sbado na regio central de Belo Horizonte, na Rua Goitacazes entre So Paulo e

    Curitiba. Nosso trabalho apresenta uma manifestao de apropriao do espao urbano

    promovida pela paixo comum por um produto da cultura de massa - a soul music.

    Dentre as peculiaridades do nosso objeto de pesquisa est o fato de ser um movimento

    encabeado por pessoas de baixa renda, vindas das mais diferentes regies da cidade,

    na faixa dos 45-50 anos, que se renem todos os sbados na rea do baixo-centro de

    Belo Horizonte, apossando-se da calada e da rua para danar black music, e tambm

    tm esse espao como ponto de sociabilidade e de afirmao de sua identidade. O

    Quarteiro do Soul surgiu como uma forma de se reencontrarem os amigos que

    freqentavam os chamados bailes black no centro da cidade nos anos 70 e que, com o

    passar dos anos, foram sendo expurgados para a periferia da cidade. Tal manifestao

    constitui uma forma de resistncia, pois os participantes do Quarteiro do Soul se

    apropriaram do local sem o aval da prefeitura e tambm se caracteriza pela afirmao da

    identidade de seus participantes, que se espelham no discurso de igualdade, na

    vestimenta e na dana criados pelo movimento soul e na figura do cantor James Brown.

    Palavras-chave: identidade; black music, espao diferencial, formas simblicas.

  • ABSTRACT

    The metropolizing of certain urban centers established new forms of relationships

    and perception of the city. Urban growth, associated with technological development,

    attributes other meanings to the city; new influences delineate themselves and create

    different parameters of sociability. Such parameters often establish themselves from

    the fruition of media products. In this way, in Belo Horizonte, we witness the surge of

    new spaces, or even, old spaces that transform themselves through the appropriation

    by groups constituted by similar tastes for specific cultural products. This work aims

    at investigating, from the manifestations connected to the media products, how the

    diverse identities constitute themselves in the urban space and how these influences

    in the appropriation and the new uses that are attributed to the space enable the

    surge of differential space, as conceived by Henri Lefebvre. Our approach has as the

    empirical object the manifestations connected to black music, specifically in the

    Quarteiro do Soul (Souls Block), a movement that takes place on Saturday

    afternoons in the central region of Belo Horizonte, on Goitacazes street between

    streets So Paulo and Curitiba. Our work presents a manifestation of appropriation

    of the urban space, promoted by the common passion for a product of popular culture

    soul music. Among the peculiarities of our research object is the fact that the

    movement is headed by people of low income, from the most different regions of the

    city, generally 45-50 years of age, that gather all Saturdays in the center of Belo

    Horizonte, taking over the sidewalks and the street to dance black music, and also

    hold this space as a social connection and the affirmation of their shared identity. The

    Quarteiro do Soul was born as a means to reconnect with friends that frequented

    the black dances in the center of the city in the 70s and that, with the passing of time,

    were expunged to the suburbs. Such manifestation constitutes a form of resistance,

    as the participants of the Quarteiro do Soul appropriate themselves of the place

    without permission from the mayors office and that it is also characterized by the

    affirmation of the identity of its participants, who mirror themselves in the discourse of

    equality, the clothing and dance created by the soul movement in the figure of the

    singer James Brown.

    Key-words: identity; black music; differential space; symbolic forms.

  • SUMRIO

    INTRODUO - NAS PRTICAS ESPACIAIS SE DESCORTINA OS

    ESPAOS DE REPRESENTAO..................................................................... 9

    1 AS CIDADES E AS FORMAS SIMBLICAS: A CONSTRUO DE UM

    REFERENCIAL TERICO E METODOLGICO................................................. 17

    1.1 O enfoque da Hermenutica de Profundidade de Thompson e sua

    aplicao a partir da Teoria do Espao de Lefebvre ............................................ 17

    1.2 Uma anlise scio-histrica no estudo da questo urbana a partir da

    evoluo do pensamento geogrfico.................................................................... 28

    1.3 As teorias sobre o espao na viso de Lefebvre ............................................ 36

    2 ESPAO, CULTURA E IDENTIDADE .............................................................. 45

    2.1 O processo de mudanas no cotidiano urbano a partir das transformaes

    do meio tcnico-cientfico-informacional............................................................... 45

    2.2 A cultura como objeto de investigao ........................................................... 51

    2.3 As relaes entre identidade e espao........................................................... 57

    3 POR UMA CONTEXTUALIZAO SCIO-ESPACIAL: DO LAMENTO DO

    BLUES LUTA PELOS DIREITOS CIVIS - O SURGIMENTO DA SOUL

    MUSIC NOS ESTADOS UNIDOS ........................................................................ 69

    3.1 O Blues: do lamento rural para as grandes cidades ....................................... 70

    3.2 Os race records e uma cartografia dos estilos do blues............................... 74

    3.3 O surgimento do blues urbano ....................................................................... 77

    3.4 A msica negra no ps-guerra: a transformao do blues, o nascimento do

    rock and roll, a luta pelos direitos civis e o surgimento da soul-music.................. 80

    3.4.1 Separados, mas iguais.............................................................................. 83

    3.4.2 Martin Luther King Jr. .................................................................................. 87

    3.4.3 Malcolm X.................................................................................................... 91

    3.4.4 O Black Panther Party for Self-Defense ...................................................... 92

    3.5 A represso ao movimento pelos direitos civis, a mobilizao social e o

    surgimento do soul ............................................................................................... 93

  • 3.6 As gravadoras e a descoberta dos talentos da soul music ............................. 98

    4 A EMERGNCIA DA BLACK MUSIC NO CONTEXTO CULTURAL DO

    BRASIL ................................................................................................................ 103

    4.1 A evoluo dos meios de comunicao de massa no pas a partir dos

    anos 60................................................................................................................. 103

    4.2 Black is beautiful: dos novos cantores noite do Shaft.................................. 113

    4.3 O movimento soul em Belo Horizonte ............................................................ 124

    4.4 O advento da disco-music, o fim da era black-power e o surgimento do

    quarteiro do Soul em 2004 ................................................................................. 130

    5 A SIMBOLOGIA DO MOVIMENTO SOUL........................................................ 139

    5.1 A constituio do cdigo do espao da soul music......................................... 139

    5.2 O mito James Brown - o paradigma do orgulho negro ................................... 141

    5.3 A dana black ................................................................................................. 152

    5.4 A moda black.................................................................................................. 158

    CONCLUSES, MAS SEM PONTO FINAL ........................................................ 172

    REFERNCIAS.................................................................................................... 177

    Apndice A - Perfil dos entrevistados................................................................... 184

    Apndice B - Relao de documentrios e filmes de referncia .......................... 187

    Anexo A - Matria Black Rio - O Orgulho (Importado) de Ser Negro no Brasil,

    Jornal do Brasil, Caderno B de 17 de julho de 1976 ............................................ 188

    Anexo B - Manifesto lanado pelo grupo de dana Black Minas no incio dos

    anos 80 intitulado O soul est se decaindo........................................................ 192

  • 9

    INTRODUO - NAS PRTICAS ESPACIAIS SE DESCORTINA OS

    ESPAOS DE REPRESENTAO

    Nem todo pesquisador pode ser dar ao luxo de dizer que o seu objeto de

    pesquisa veio a seu encontro. Mas esse o meu caso. Entender a questo urbana

    hoje, a partir da abordagem das formas simblicas que permeiam a sociedade, ou

    seja, a partir dos fenmenos culturais uma tarefa que pressupe vrios tipos de

    recortes, pois a cidade se divide em diversos territrios constitudos por diferentes

    grupos sociais que convivem, s vezes em conflito, s vezes de maneira harmoniosa

    em meio diversidade do espao urbano. Estes grupos desempenham papis

    sociais, em momentos distintos, mas que muitas vezes se sobrepem. Analisar as

    relaes sociais no cotidiano pressupe o exerccio de uma percepo que extrapole

    uma determinada categoria analtica. Se os papis e os usos da cidade se misturam,

    cabe ao pesquisador lanar mo de uma gama de categorias de anlise que lhe

    permita ampliar sua viso, a partir da realidade focada.

    Minha formao de origem a rea da comunicao social. Grande parte da

    trajetria de estudos foi focada nas relaes simblicas e os laos sociais

    possibilitados pela interao com a mdia. O interesse pela Geografia surgiu a partir

    da leitura de Milton Santos no mestrado. At ento, para mim, a Geografia cuidava

    das relaes entre clima, relevo e vegetao. Milton Santos me mostrou que o objeto

    da Geografia localiza-se, no apenas no solo, mas na vida e nas relaes que se

    estabelecem acima dele tambm. A partir do contato com o autor, descobri a

    possibilidade de referenciar as relaes simblicas ao espao.

    Sendo goiana de nascimento, mas tendo dado os primeiros passos em solo

    belorizontino, minha paixo pela cidade, e a descoberta das indagaes promovidas

    pela Geografia, me levaram busca pelo doutoramento nessa rea. O objeto de

    pesquisa, a princpio localizava-se nas relaes estabelecidas entre a publicidade e

    a cidade. O simblico e o espacial.

    As discusses que foram surgindo ao longo das disciplinas cursadas

    trouxeram outro enfoque. Comecei a perceber, como as identidades que circulam na

    cidade tm influncia e so influenciadas por determinados espaos. Como estas

  • 10

    identidades se configuram, confirmando a hegemonia de outras, ou como surgem as

    identidades de resistncia aos valores hegemnicos. Acredito que tais discusses

    foram imprescindveis para a descoberta e escolha do meu objeto de pesquisa: o

    Quarteiro do Soul.

    Meu primeiro encontro com o objeto se deu por acaso. Ao passar no referido

    quarteiro, no dia 03 de abril de 2004, um tranqilo sbado tarde, como so os do

    centro da cidade, o que primeiro me chamou a ateno foi a msica. James Brown, que

    eu adoro, tocava em alto volume numa caravan. Buscando de onde partia o som, me

    deparei com vrios homens de meia-idade fazendo incrveis piruetas, ao redor do carro.

    Fiquei alguns minutos olhando e achando curioso, no apenas pela msica. Na verdade,

    o que me chamou a ateno foi a idade dos danarinos. O senso comum nos ensina que

    manifestaes de rua so, praticamente, prioridade de jovens.

    Passados dois sbados, retornei ao local e vi a primeira manifestao de

    apropriao do espao. Uma faixa com os dizeres: Bem vindo ao Quarteiro do

    Soul. Aqui a velha guarda se rene. Naquele momento, toda a teoria discutida em

    sala de aula se encaixou com a prtica que ali vislumbrava. E percebi que, naquele

    local, comeava a se delinear um movimento de apropriao do espao urbano.

    Depois daquele sbado fiz ainda mais quatro visitas, apenas observando os

    danarinos do outro lado da rua. E fazendo questo que eles tambm me vissem.

    No quinto sbado, atravessei a rua e travei meu primeiro contato com o universo dos

    freqentadores da soul music.

    O Quarteiro do Soul localiza-se na regio central de Belo Horizonte, na Rua

    Goitacazes, entre as ruas Curitiba e So Paulo, basicamente um local de passagem

    durante a semana, mas que aos sbados a partir das 14h se transforma em pista de

    dana, para homens e mulheres de meia-idade, advindos das mais diversas regies

    da cidade, em sua maioria negros, trabalhadores de baixa remunerao: pintores,

    donas de casa, coveiros,cabelereiras, taxistas, mecnicos, lavadores de carros e

    outras funes, que se encontram pelo prazer de ouvir e danar a soul music.

    A pesquisa que desenvolvi contou com trs nomes importantssimos para

    delinear o percurso que deveria seguir. So eles o DJ ACoisa, de Belo Horizonte

    que, no apenas me apresentou a maioria dos entrevistados, como forneceu vasto

    material de poca. Sir Dema Mathias, responsvel pelo Club do Soul no Rio de

    Janeiro, que abriu o caminho para o encontro com os criadores do movimento

  • 11

    naquela cidade e tambm forneceu grande parte do material de poca. E tambm

    King Nino Brown, representante da Zulu Nation do Brasil, de So Paulo, que tanto

    ajudou no levantamento bibliogrfico e no acervo de filmes da poca.

    Estabelecido o percurso de pesquisa, traamos a hiptese de que os produtos

    simblicos produzidos pela mdia interferem na constituio da identidade de

    determinados grupos sociais sendo que estas identidades propiciam a

    transformao do espao urbano, em funo da apropriao de determinados

    espaos da cidade, levando ao surgimento do espao diferencial, nos termos

    desenvolvidos por Lefebvre.

    Assim surgiu nossa investigao do Quarteiro do Soul.

    O sculo XXI traz em sua esteira a continuidade da chamada crise dos

    paradigmas da cincia. Cada vez mais vivenciamos o declnio de teorias, a fuso de

    outras e o surgimento de possveis explicaes para os fenmenos sociais

    ancoradas nos mais diversos campos do saber. Entre as causas apontadas para a

    crise dos paradigmas nas cincias sociais podemos pensar o vertiginoso

    desenvolvimento do meio tcnico informacional. Em menos de 50 anos quase todo o

    mundo estava interconectado pelas linhas de transmisso radiofnica, telefnica,

    televisiva. A produo, no apenas de produtos, mas tambm, e principalmente, de

    materiais simblicos disseminou-se em escala mundial.

    As transformaes no meio tcnico-cientfico-informacional refletiram-se no

    modo de vida dos povos acarretando diversas modificaes na percepo, na

    fruio e mesmo em suas relaes com o tempo e o espao. As teorias, antes

    voltadas para reas especficas do conhecimento, comeam a tecer pontos de

    convergncia nunca imaginados. Este trabalho de natureza hbrida insere-se neste

    conjunto de mudanas.

    Tendo clareza das dificuldades ao analisar um processo em constituio, j

    que o Quarteiro do Soul um fenmeno relativamente novo, optamos por um

    referencial terico-metodolgico que fosse capaz de estabelecer o dilogo com as

    teorias sobre o espao e sobre a constituio de identidades neste espao. Assim

    optamos pelo referencial terico metodolgico da Hermenutica de Profundidade de

    John B. Thompson (2002), fruto da rea da comunicao, articulando-o aos

    conceitos advindos da Teoria do Espao de Henri Lefebvre (1985).

    O referencial da Hermenutica de Profundidade parte do pressuposto que o

  • 12

    objeto de anlise uma construo simblica significativa, e para tanto, exige uma

    interpretao. A interpretao adquire um papel central nesta metodologia. Estas

    construes simblicas esto inseridas em contextos sociais, espaciais e histricos

    definidos, e se estruturam enquanto significantes, em diversas formas.

    Ou seja, optamos por investigar uma construo simblica, a soul music, a

    partir das articulaes scio-histricas que propiciaram seu surgimento de forma a

    compreender a sua estrutura interna de significados e interpretar os sentidos que

    lhes so atribudos pelos freqentadores do movimento soul.

    Thompson (2002) alerta que uma anlise que pretenda levar em considerao

    a contextualizao social das formas simblicas e analisar suas caractersticas

    estruturais internas deve lanar mo de outras metodologias. Nesse sentido, as

    abordagens da teoria do espao de Lefebvre (1985), assim como a discusso sobre

    cultura e identidade assumem tambm papis centrais em nossa anlise, visto que a

    black music, e por derivao a soul music e o Quarteiro do Soul surgiram em

    condies scio-histricas e espaciais definidas; so formas simblicas produzidas a

    partir da cultura de massas do sculo XX e elemento distintivo de uma determinada

    identidade cultural.

    Nesse percurso, alm do levantamento bibliogrfico, optamos por uma

    metodologia de pesquisa qualitativa, dado que nosso objetivo era entender

    comportamentos passados, significados, percepes e motivaes dos participantes

    do movimento. Assim trabalhamos com entrevistas individuais em profundidade, por

    trs motivos: primeiro, porque possibilitam que o entrevistado revele suas mais

    sinceras opinies, j que no estaro sob julgamento de outras pessoas, alm do

    entrevistador. Segundo, porque o entrevistado se v como o centro das atenes,

    possibilitando uma maior abertura para explorar pensamentos e idias e por ltimo,

    em funo do tempo dedicado entrevista, que permite uma maior revelao de

    informaes e possibilita o surgimento de outras questes no abordadas na

    montagem do roteiro.

    Essa metodologia de entrevista adequada para se compreender as formas

    simblicas, visto que essas advm de um campo j pr-interpretado, ou seja, o

    pesquisador trabalha as anlises que so feitas pelos freqentadores do movimento,

    ouve e interpreta suas falas e atitudes. Trabalhamos tambm com a anlise de material

    grfico, filmes, fotos, msicas e roupas dos freqentadores do movimento soul.

  • 13

    O trabalho divide-se da seguinte forma: no captulo 1 articulamos a

    construo de um referencial terico metodolgico surgido a partir da discusso

    sobre o que constitui as formas simblicas enquanto fenmenos significativos

    passveis de interpretao e os mecanismos de interao social - a interao face-a-

    face, interao mediada e a interao quase mediada proporcionada pelos veculos

    de comunicao de massa, de forma a perceber como as formas simblicas so

    apreendidas e disseminadas cotidianamente e como estas interferem na constituio

    das identidades dos indivduos.

    A partir do estabelecimento das caractersticas distintivas das formas

    simblicas, apresentamos as trs dimenses do referencial metodolgico da

    Hermenutica de Profundidade de Thompson, a saber: a anlise scio-histrica,

    anlise formal ou discursiva e interpretao/reinterpretao, articulando as

    dimenses aos trs aspectos da Teoria do Espao de Lefebvre: prticas espaciais,

    espao de representaes e representaes do espao. Em seguida, com o objetivo

    de estabelecer a importncia e atualidade do trabalho de Lefebvre, apresentamos

    uma trajetria dos estudos sobre a questo urbana, do ponto de vista de sua

    interface com aspectos culturais, at a sua conceituao da Teoria do Espao, de

    forma a estabelecer o marco conceitual mais amplo no qual se situa a anlise

    proposta.

    No captulo 2, analisamos as relaes entre espao, cultura e identidade

    partindo da perspectiva das mudanas que ocorreram no cotidiano urbano no sculo

    XX e continuam neste que inicia, a partir das transformaes do meio tcnico-

    cientfico-informacional. Estas transformaes scio-histricas acarretaram novas

    dimenses de anlise e compreenso do papel da cultura na sociedade

    contempornea.

    Tendo isso em mente, discutimos a definio e os novos sentidos atribudos

    ao termo cultura. Para um melhor entendimento acerca da constituio das formas

    simblicas produzidas pela mdia e sua interao com o cotidiano, necessitamos

    apresentar dois conceitos chave: as discusses acerca da cultura e da formao de

    identidade.

    Cada vez mais os estudos sobre a cidade gravitam em torno dos conceitos de

    cultura e identidade. Nosso objeto emprico um produto cultural, que funciona

    como um elemento de identificao social. Portanto uma discusso acerca destes

  • 14

    conceitos necessria e nos remete a uma de nossas indagaes centrais: Podem

    estas identidades, fundadas a partir da identificao com os produtos da mdia se

    constituir em identidades de resistncia como conceituada por Manuel Castells

    (1999) que levariam ao surgimento do espao diferencial, como nos apresenta

    Lefebvre (1985)?

    No captulo 3 considerando que as formas simblicas so produtos

    historicamente situados e fruto de relaes scio-espaciais determinadas,

    traaremos uma trajetria scio-histrica da black music, desde seu surgimento

    enquanto produto da comunicao de massa, e traamos um breve painel sobre as

    mudanas e conflitos que ocorreram nos Estados Unidos e que levaram at o

    surgimento do movimento soul nos anos 60. Analisamos tambm a importncia da

    difuso destes produtos pela indstria via rdio e gravadoras.

    Esse trabalho no tem como objetivo bsico discutir as questes voltadas

    para raa e discriminao racial. No entanto, no podemos nos furtar a flertar com

    tais questes, ainda que sem a devida profundidade, pois estas permeiam toda a

    constituio destas formas simblicas e das identidades surgidas a partir da

    afinidade com a black music. Estas questes afloram na fala dos entrevistados e na

    prpria constituio do movimento soul, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil.

    O captulo 4 delineia a incorporao do movimento soul no Brasil, a partir do

    final dos anos 50, tendo como base a massificao cultural promovida pelo

    desenvolvimento vertiginoso da indstria da comunicao de massa nos anos 60 e

    70 em nosso pas. Apresenta o surgimento do movimento Black Rio e seus

    desdobramentos, chegando a Belo Horizonte. A construo da trajetria da soul

    music em nossa cidade baseia-se quase que totalmente nos relatos daqueles que

    vivenciaram o movimento na poca, seja enquanto produtores, como no caso do

    locutor Geraldo Ferreira, a quem coube a primazia de lanar pela Rdio Cultura as

    primeiras canes da soul music em Belo Horizonte, seja pela viso dos produtores

    dos bailes, como o DJ Tatu, dono da principal equipe de som da cidade no perodo,

    ou na fala de Toninho Black, produtor do baile mais freqentado pelos blacks ainda

    hoje, o Baile da Saudade, e complementa-se nas falas dos freqentadores o que

    possibilitou a identificao dos espaos ocupados pelo movimento na cidade at o

    surgimento do Quarteiro do Soul, em 2004.

    Toda forma simblica estruturada por um conjunto de regras, cdigos e

  • 15

    convenes geralmente interpretados como da ordem do conhecimento prtico,

    sendo compartilhados por vrios sujeitos, explicitando assim seu carter social. O

    captulo 5 dedica-se interpretao/reinterpretao do movimento soul e do

    Quarteiro do Soul, a partir dos cdigos que se estabeleceram no movimento,

    determinantes da identidade dos seus freqentadores.

    Desta forma buscamos configurar os elementos que definiriam o cdigo do

    espao da soul music. As diversas entrevistas feitas foram decisivas para

    entendermos os processos de construo da identidade dos freqentadores do

    movimento soul e para a constituio das categorias de anlise que desenvolvemos.

    Privilegiamos trs categorias de anlise: o mito James Brown, paradigma do orgulho

    negro, focado no fascnio e no processo de identificao que se estabelece entre os

    fs do gnero e o cantor; a dana black, que analisa o processo de diferenciao e,

    ao mesmo tempo, de integrao que a dana, o cumprimento e as coreografias da

    black music estabelecem e, por ltimo, a moda black, com as distines, os seus

    cdigos e os elementos que estabelecem as identidades do movimento soul.

    Trabalhamos o processo de interpretao e, ao mesmo tempo de reinterpretao,

    baseando-nos tambm nos relatos dos seus componentes.

    Durante todo o trabalho nos referimos aos blacks. Esta uma opo

    metodolgica, pois eles assim se denominam. A maioria dos entrevistados incorpora

    ao seu nome o sobrenome Black: Ronaldo Black, Toninho Black. Entendemos que

    este um tratamento respeitoso para com eles.

    Este trabalho tambm no tem foco nas mulheres do movimento soul. No

    que elas no participem. No entanto, ao longo da pesquisa, percebemos que o soul

    um movimento no qual o masculino tem preponderncia. Os mitos, a dana e a

    moda so estruturados em funo do homem. As mulheres no tm atuao

    destacada, ainda que existam magnficas cantoras. So pouqussimas as mulheres

    que conhecemos que freqentavam o movimento nos anos 70 e, ainda hoje,

    participam do Quarteiro. Da nossa opo por centrar nossas anlises nas falas e

    no simbolismo voltado para o masculino.

    A partir do nosso primeiro encontro formal, em 2004, fui, aos poucos, tecendo

    laos de amizade e credibilidade com os freqentadores do Quarteiro do Soul. Com

    a freqncia, no mnimo quinzenal, passei a acompanhar a vida deste pequeno e

    curioso grupo, naquele momento de exceo do cotidiano. Tive a oportunidade de

  • 16

    freqentar os bailes e observar a forma como se estabelecem, ou se confirmam, pois

    em alguns casos as relaes j existem h mais de 30 anos, desde os tempos do

    clube Mscara Negra, primeiro local dos bailes black no centro de Belo Horizonte.

    Na medida em que fui conhecendo as pessoas, e me familiarizando com suas falas,

    com os papis que desempenham naquele espao, muito distinto do seu cotidiano

    semanal, comecei a compreender a dimenso de excluso que se estabelece em

    nossa cidade.

    O Quarteiro do Soul pode ser entendido como um movimento de uma

    pequena parcela de moradores da cidade, uma minoria. Muniz Sodr (2005)

    apresenta uma interessante definio sobre o conceito de minoria. Para o autor,

    minoria seria uma voz qualitativa e no um conceito quantitativo, pois essa viso

    refere-se possibilidade de um determinado segmento social ter voz ativa, ou

    capacidade para intervir nas instncias decisrias do Poder. Por isso, negros,

    mulheres, ambientalistas, indgenas so considerados minorias. O lugar das

    minorias seria aquele onde se animam fluxos de transformao de uma identidade

    ou de uma relao de poder que implica uma tomada de deciso de um grupo no

    interior de uma determinada dinmica de conflito.

    Minoria transforma-se, nesse sentido, em um conceito simblico, dotado de

    uma intencionalidade tico-poltica inserido numa luta contra-hegemnica. Tais lutas

    se apresentam em vrias instncias da vida social, na cultura e na arte de um povo.

    Surge, ento, a necessidade de se falar da msica como manifestao de uma

    resistncia que configura identidades e transforma, tambm, os sentidos de

    apropriao da cidade.

    Nas pginas que se seguem, pretendemos resgatar um pouco de uma histria

    que escrita cotidianamente nas ruas de nossas cidades. Uma histria que no

    consta dos livros oficiais, pois fala dos pobres da cidade. Milton Santos (2002) atribui

    aos pobres da cidade um papel preponderante no aumento da diversidade scio-

    espacial, sendo eles responsveis por outras formas de trabalho e vida que alteram

    e alavancam a dinmica social. Ao abrir novas possibilidades de sociabilidade, de

    interpretao e interao, os pobres da cidade fazem com que esta se abra para o

    futuro. Um futuro, que no caso do Quarteiro do Soul agora.

  • 17

    1 AS CIDADES E AS FORMAS SIMBLICAS: A CONSTRUO DE

    UM REFERENCIAL TERICO E METODOLGICO

    1.1 O enfoque da Hermenutica de Profundidade de Thompson e sua

    aplicao a partir da Teoria do Espao de Lefebvre

    A nova ordem econmica e o desenvolvimento cada vez mais acelerado e

    mundialmente disseminado das tecnologias de informao proporcionam o contato

    mais rpido entre as diversas culturas. A chamada cultura de massas1 estabelece

    padres de comportamento que influenciam, ainda que de diferentes maneiras,

    pessoas nos mais distantes lugares do mundo. Assim como vivemos o fenmeno da

    desterritorializao, percebemos que as fronteiras entre as diversas culturas assumem

    contornos mais tnues. Thompson (2002) nos lembra que o desenvolvimento da

    comunicao de massa trouxe novas maneiras de disseminao das formas simblicas,

    cada vez mais atreladas a aparatos tcnicos e institucionais das indstrias da mdia. A

    sociedade hoje vive uma situao em que a produo e recepo das formas simblicas

    cada vez mais mediada por uma rede complexa, transnacional de interesses

    institucionais, que se refletem diretamente na vida das pessoas.

    Thompson aponta que o conhecimento de mundo parte de nossa experincia

    pessoal, prxima no espao e no tempo, para aquela mediada pela mdia,

    proporcionando assim uma mundanidade mediada, ou seja, ainda que eu no

    conhea a Torre Eiffel, a meno ao seu nome remete-me imediatamente sua

    imagem, j vista em centenas de filmes, na TV ou revistas. Da mesma forma, nossa

    compreenso do passado se v permeada pelos produtos da indstria da mdia,

    proporcionando assim uma historicidade mediada, na qual a tradio oral e a

    interao face a face se servem cada vez mais destes produtos. O cinema e as

    1 Embora polmico em certas definies, o termo cultura de massas refere-se s

    produes culturais de larga difuso, a exemplo do rdio, da televiso, do cinema e da msica. So produtos elaborados segundo padres estticos que permitam o seu consumo pelo mximo possvel de pessoas, e por isso prevalecem referncias a padres mdios, de forma a possibilitar lucros significativos para seus realizadores.

  • 18

    telenovelas com suas reconstituies de passagens da histria se encarregam disso,

    e criam imagens que, por vezes, nem de longe se aproximam da realidade do fato

    narrado, mas que acabam sendo incorporadas como verdadeiras e disseminadas

    como fatos histricos.

    Assim, a construo da identidade cada vez mais alimentada por materiais

    simblicos mediados. As experincias, que antes s eram possveis atravs da

    interao face a face, podem tambm dar lugar quelas mediadas. Hoje, cada vez

    mais, a possibilidade de se relacionar ultrapassa o simples encontro face a face.

    Thompson prope trs tipos de interao. A primeira delas, a interao face a

    face, tem como caractersticas ser dialgica e acontecer num contexto de co-

    presena, ou seja, os participantes esto presentes num mesmo sistema de espao

    e tempo. Uma conversa em sala de aula exemplifica esta modalidade. A interao

    mediada, tambm dialgica, implica o uso de um meio tcnico (papel, fio, ondas

    magnticas). Os participantes no compartilham o mesmo contexto espacial, no

    caso de um telefonema, por exemplo, e temporal, no caso de uma carta que leva um

    tempo maior para chegar ao destinatrio. A terceira forma de interao, a interao

    quase mediada, aquela estabelecida pelos meios de comunicao. Esta se

    diferencia das duas outras em dois aspectos: produzida para um nmero

    indefinido de receptores e monolgica.

    Assim, a experincia vivida, caracterizada por Thompson como adquirida no

    curso normal da vida cotidiana, se v permeada pela experincia mediada,

    possibilitada pela interao mediada ou quase mediada. A grande quantidade de

    materiais simblicos permite ao indivduo entrar em contato com formas alternativas

    de vida, mesmo que distantes do seu cotidiano, permitindo que este reflita sobre sua

    prpria vida, incorporando ou no, em seu projeto de vida, os elementos, imagens e

    conceitos ali apresentados.

    Ao interpretar as formas simblicas, os indivduos as incorporam, em sua

    experincia e em seu contexto scio-histrico, e estas passam a fazer parte da

    compreenso de si e dos outros. A mediao proposta pela mdia interfere cada vez

    mais na constituio da identidade dos indivduos, os horizontes de interpretao se

    ampliam e so permeados por essas informaes.

    Na recepo e apropriao das mensagens da mdia, os indivduos so envolvidos num processo de formao pessoal e de autocompreenso -

  • 19

    embora em formas nem sempre explcitas e reconhecidas como tais. Apoderando-se de mensagens e rotineiramente incorporando-as prpria vida, o indivduo est implicitamente construindo uma compreenso de si mesmo, uma conscincia daquilo que ele e de onde ele est situado no tempo e no espao. (THOMPSON, 1998, p.45-46).

    Esta nova conscincia, permeada pelas formas simblicas presentes nos

    produtos da mdia, altera os relacionamentos entre os indivduos. A interao quase

    mediada trouxe uma nova forma de relacionamento denominado por Thompson

    intimidade no recproca distncia (THOMPSON, 1998, p. 191). Esta apresenta

    dois aspectos estruturais importantes. O primeiro diz respeito ao estabelecimento de

    uma forma de intimidade com outros que no compartilham o mesmo ambiente

    espao-temporal, ou seja, pode-se desenvolver uma relao de intimidade, de

    amizade ou compartilhamento com personagens, cantores, sem as exigncias

    tpicas daqueles contextos de interao imediata.

    Este tipo de relacionamento tambm d uma maior liberdade ao receptor, que

    pode definir o grau de intimidade e de comprometimento que deseja ter com o outro.

    A intimidade pode ser estabelecida pelo simples ato de comprar um CD de

    determinado intrprete at fazer parte do seu f clube, colecionar fotos, etc.

    A interao mediada, sendo monolgica, no prev uma reciprocidade. Isto possibilita tambm ao receptor criar uma imagem idealizada dos personagens e dos atores, de forma mais livre daquela exigida pela realidade das interaes face a face. A interao mediada, como j dissemos, possibilita o contato com eventos espacial e temporalmente distantes do contexto do receptor. Assim, ela permite um deslocamento do cotidiano deste para realidades por vezes totalmente diversas.

    A recepo no somente uma atividade situada, mas ela tambm uma atividade que permite aos indivduos se distanciarem dos contextos prticos de suas vidas cotidianas. Ao receber matrias que envolvem um substancial grau de distanciamento espacial (e talvez tambm temporal), os indivduos podem elevar-se acima de seus contextos de vida e, por um momento, perder-se em outro mundo. (THOMPSON, 1998, p. 43).

    A mitificao criada em torno dos astros, principalmente no caso de cantores e

    atores, cria todo um universo ficcional que proporciona esse distanciamento do

    cotidiano real. Um bom exemplo gira em torno de mitos do cinema, da TV e da msica.

    A profuso de materiais simblicos pode fornecer aos indivduos os meios de explorar formas alternativas de vida de um modo imaginrio e simblico; e consequentemente permitir-lhes uma reflexo crtica sobre si mesmos e sobre as reais circunstncias de suas vidas. Atravs de um processo de distanciamento simblico, os indivduos podem usar os materiais mediados para ver suas prprias vidas numa nova luz. (THOMPSON, 1998, p. 185).

  • 20

    Qualquer tentativa de anlise dos produtos miditicos, como o caso da

    black music, conduz-nos de imediato noo de que as produes da mdia

    constituem formas simblicas, ou seja, elas so construes significativas que

    exigem uma interpretao. Dentro desta perspectiva podemos pensar que os

    produtos da black music constituem formas simblicas, que se disseminam atravs

    de interaes mediadas, capazes de interferir na criao de identidades, atravs do

    processo de identificao dos fs com seus dolos e com o iderio ali disseminado.

    Thompson (2002) afirma que para analisarmos algo como uma forma

    simblica, seja ela ao, objeto ou expresso significativa, devemos considerar que

    as formas simblicas possuem cinco caractersticas distintivas, como apresentamos

    a seguir.

    A primeira delas diz respeito aos aspectos intencionais. Uma forma simblica

    produzida por um sujeito para outros sujeitos e por estes deve ser percebida. O

    surgimento da soul music, e, consequentemente do Quarteiro do Soul s foi possvel

    pela existncia de um pblico fiel ao gnero, que se reconhecia em seus produtos.

    Em segundo lugar, numa forma simblica, aquilo que o sujeito quer ou

    tenciona dizer, nem sempre captado da mesma maneira pelos sujeitos que a

    recebem. Ainda que o iderio geral da soul music fizesse apologia ao orgulho negro,

    nem todos os adeptos do ritmo tm a mesma preocupao. Muitos deles se

    agregam ao movimento como forma de diverso, ou de insero social.

    Um outro trao que nos possibilita caracterizar uma forma simblica o seu

    aspecto convencional. Toda forma simblica segue um conjunto de regras, cdigos e

    convenes geralmente interpretados como da ordem do conhecimento prtico,

    sendo compartilhados por vrios sujeitos, demonstrando assim seu carter social. O

    apelo comum da msica e da dana congrega seus fs e proporciona a identificao

    entre eles.

    As formas simblicas tambm so construes que possuem uma estrutura

    articulada. Analisar o seu aspecto estrutural permite que as percebamos em dois

    aspectos. A estrutura da forma simblica, no caso da soul music, apresenta suas

    especificidades, como a presena da dana, a relao entre brothers e sisters, o

    apelo ao orgulho negro, entre outros fatores. Para uma anlise do sistema simblico

    teremos que nos debruar sobre a constituio do imaginrio da soul music e de

    seus fs.

  • 21

    No aspecto referencial, as formas simblicas representam ou referem-se a

    algo ou o dizem sobre alguma coisa. O movimento soul, originou-se nos anos 60, um

    momento em que a vida cultural e poltica no mundo todo fervilhava, quando

    eclodiam os movimentos pela igualdade racial, entre sexos, etc. Thompson afirma

    que tendo feito referncia ou representando um objeto, as formas simblicas vo

    dizer algo sobre ele, afirmando, projetando ou retratando alguma coisa, no caso, o

    seu prprio contexto histrico.

    Por ltimo, no aspecto contextual, as formas simblicas so produzidas a

    partir de determinados processos sociais e contextos scio-histricos. Este aspecto,

    no caso da soul music, remete-nos primeiramente ao desenvolvimento da black

    music no sculo XX enquanto produto de consumo, chegando aos anos 60, poca

    do surgimento da soul music, considerando-se as condies histricas, sociais e

    culturais vividas naquele momento, tanto nos Estados Unidos, como em nosso pas

    e na trajetria do movimento soul em Belo Horizonte at o surgimento do Quarteiro

    do Soul, em 2004.

    Assim procuramos estabelecer um referencial metodolgico que possibilite a

    compreenso de um fenmeno cultural que tem suas razes na chamada Indstria

    Cultural, produzido, interpretado e reinterpretado por um grupo de pessoas

    localizado espao-temporalmente. As relaes de interpretao, de recepo, as

    disputas de poder no interior do movimento e tambm as disputas pelo espao

    urbano esto inseridas em nossas indagaes.

    Para a realizao de tal processo investigativo, optamos por trabalhar com

    uma metodologia de pesquisa denominada por Thompson (2002) Hermenutica de

    Profundidade, estabelecendo um dilogo com a Teoria do Espao de Lefebvre

    (1985) em suas trs dimenses: prticas espaciais, espao de representaes e

    representaes do espao, e no possvel surgimento do espao diferencial, a ser

    desenvolvida no item 1.3. Para um melhor entendimento, inicialmente apresentamos

    o que Thompson (2002) caracteriza como o referencial metodolgico da

    Hermenutica de Profundidade.

    Thompson denomina de condies hermenuticas da pesquisa scio-

    histrica a distino do seu campo-objeto daquele da pesquisa nas cincias

    naturais. A distino fundamental diz respeito ao fato de que o campo-objeto na

    pesquisa scio-histrica no pode ser tratado atravs da pura observao e

  • 22

    explicao dos fenmenos, dado que este tambm um campo-sujeito, subjetivo

    que tambm construdo e sofre a interferncia dos sujeitos que cotidianamente so

    agentes desse processo, buscando entender-se e aos outros, produzindo e, ao

    mesmo tempo, interpretando aes e expresses significativas.

    Em outras palavras, o objeto-domnio da pesquisa scio-histrica um campo pr-interpretado em que os processos de compreenso e interpretao se do como uma parte rotineira da vida cotidiana das pessoas que, em parte, constituem esse domnio. O carter pr-interpretado do mundo scio-histrico uma caracterstica constitutiva que no tem paralelo nas cincias naturais. Na consecuo dessa pesquisa scio-histrica, procuramos compreender e explicar uma srie de fenmenos que so, de algum modo, e at certo ponto, j compreendidos pelas pessoas que fazem parte do mundo scio-histrico; estamos procurando, em poucas palavras, reinterpretar um domnio pr-interpretado. (THOMPSON, 2002, p. 33).

    O referencial metodolgico da Hermenutica de Profundidade orienta-se pela

    interpretao, ou reinterpretao, dos fenmenos significativos levando em

    considerao as caractersticas estruturais das formas simblicas, assim como as

    condies scio-histricas de ao e interao, visto que estas acontecem em

    contextos estruturados espao-temporalmente. Trs fases, ou procedimentos

    envolvem o processo de pesquisa na Hermenutica de Profundidade. So eles: a

    anlise scio-histrica, anlise formal ou discursiva e interpretao/reinterpretao.

    A primeira fase, denominada por Thompson (2002) como anlise scio-

    histrica voltada para a anlise das condies sociais e histricas da produo,

    circulao e recepo das formas simblicas. Tendo em vista que o campo-objeto de

    nossa investigao tambm um campo-sujeito e que as formas simblicas so

    produzidas e recebidas por pessoas que vivem em locais especficos, agem e

    reagem a tempos particulares e a locais especficos, tomamos como premissa:

    A tarefa da primeira fase do enfoque da HP reconstruir as condies e contextos scio-histricos de produo, circulao e recepo das formas simblicas, examinar as regras e convenes, as relaes sociais e instituies, e a distribuio do poder, recursos e oportunidades em virtude das quais esses contextos constroem campos diferenciados e socialmente estruturados. (THOMPSON, 2002, p.369).

    Lefebvre (1985) afirma que, se existem a produo e o processo de produo

    do espao, existe tambm a histria. A histria do espao, de sua produo

    enquanto realidade, de suas formas e representaes no se confunde nem com o

    encadeamento causal dos fatos ditos histricos, nem tampouco com a sucesso dos

  • 23

    costumes e leis, das idias e ideologias, das estruturas scio-econmicas ou das

    instituies. As foras produtivas (natureza, trabalho e organizao do trabalho,

    tcnica e conhecimento) assim como as relaes de produo tm um papel na

    produo do espao. Cada sociedade, com seu desenvolvimento peculiar produz

    cdigos de entendimento e representao. Esses cdigos permitem a organizao

    urbana, por diversas vezes conturbadas, do que vir a se constituir saber e poder

    enquanto instituio.

    O cdigos espaciais, assim entendidos como formas simblicas, permitiro

    que se vivencie, se compreenda e se produza o espao. No a partir de um simples

    processo de leitura. Os cdigos renem os signos verbais - palavras e frases e o

    sentido que resulta de um processo de significao e os signos no verbais -

    msica, sons, chamados, construes arquitetnicas.

    Lefebvre (1985) alerta que a histria da apropriao do espao no deve se

    contentar em apenas debruar-se sobre determinados momentos privilegiados: a

    formao, o estabelecimento, o declnio e a destruio de determinado cdigo, como

    por exemplo, aquele que legitimava a escravido. A histria do espao no pode

    deixar de lado o global, ou seja, os modos de produo enquanto condies gerais,

    as sociedades particulares que eles englobam com suas singularidades,

    acontecimentos, modos de regulao e instituies. A histria do espao traar um

    curso do processo produtivo de forma nem sempre coincidente com as

    periodizaes tradicionais, que se baseiam, por vezes, na histria oficial.

    Visando ento reconstruir as condies sociais e histricas de produo,

    circulao e recepo das formas simblicas na cidade, necessrio que

    identifiquemos as condies espao-temporais especficas em que estas so

    produzidas e recebidas.

    O entendimento da cidade deve ser feito tendo como pano de fundo a sociedade urbana em processo de constituio, portanto, em movimento. Significa, na perspectiva geogrfica, pensar a cidade a partir da espacialidade das relaes sociais em sua natureza social e histrica. (CARLOS, 2005, p. 90).

    Analisar a cidade tendo como objeto emprico um fenmeno social como o

    Quarteiro do Soul em Belo Horizonte significa levar em considerao o que Santos

    (2002) denomina forma-contedo, para quem essa idia

  • 24

    une o processo e o resultado, a funo e a forma, o passado e o futuro, o objeto e o sujeito, o natural e o social. Essa idia tambm supe o tratamento analtico do espao como um conjunto inseparvel de sistemas de objetos e sistemas de aes. (SANTOS, 2002, p. 103).

    Lefebvre (1985) aponta que a autonomizao relativa do espao como

    realidade resultante de um longo processo, introduziu novas contradies que se

    indicariam a partir da relao dialtica estabelecida pela trade: o percebido, o

    concebido e o vivido, que se traduziriam espacialmente pelas prticas espaciais, ou

    seja, uma associao entre a realidade cotidiana e a rotina urbana, as rotas e redes

    que incorporam fluxos fsicos e materiais, possiblitando a interao entre produo e

    reproduo social.

    A representao do espao ou o espao concebido aquele criado a partir de

    formulaes de cientistas, urbanistas, arquitetos e planejadores. E, por ltimo,

    espao de representao, o espao vivido, aquele que se constitui pelas formas

    simblicas, que vivido pelas imagens e associaes. O vivido, o concebido e o

    percebido juntam-se constituindo consensos, cdigos e linguagem comuns, de forma

    que os membros dos grupos sociais possam transitar por eles sem se perderem.

    Para o autor, as representaes do espao so permeadas pelo saber (entendido

    como conhecimento associado ideologia), sempre relativo e em transformao.

    Elas sero objetivas, ainda que passveis de reviso. Abstratas primeira vista, as

    representaes do espao mantm na prtica social e poltica as relaes

    estabelecidas entre os objetos e as pessoas.

    Assim dentro da premissa da anlise scio-histrica, num primeiro momento,

    apresentamos uma discusso acerca do desenvolvimento das idias sobre a

    questo urbana, e nele, a interferncia do cotidiano como base de anlise. E na

    seqncia, delineamos uma anlise acerca do processo de mudanas no cotidiano

    urbano a partir das transformaes do meio tcnico informacional. Estas

    transformaes scio-histricas acarretam novas dimenses de anlise no

    desenvolvimento cultural da sociedade. Portanto discutiremos a redefinio e os

    novos sentidos atribudos ao termo cultura. Na seqncia discutimos a influncia dos

    produtos miditicos na constituio das identidades na cidade e como estas

    disputam o espao urbano.

    A segunda fase da investigao hermenutica em profundidade

    denominada anlise formal ou discursiva. Os objetos e expresses que permeiam os

  • 25

    campos sociais constituem construes simblicas que apresentam uma estrutura

    articulada. Para Thompson (2002) estas formas simblicas so construdas dentro

    de contextos scio-histricos especficos, seguindo regras e convenes, mas

    tambm devido a suas caractersticas estruturais, objetivam e so capazes de

    expressar algo, ou seja, so construes simblicas complexas por meio das quais

    algo pode ser expresso ou dito. Lefebvre (1985) traduz estas representaes

    simblicas como os espaos de representao.

    Os espaos de representao, ou seja, o espao vivido pelas imagens e

    smbolos que o acompanham, o espao dos habitantes, dos usurios, mas

    tambm dos artistas e daqueles que o descrevem (escritores, filsofos). o espao

    dominado, submetido que intenta modificar e apropriar a imaginao. Ele recobre o

    espao fsico utilizando simbolicamente seus objetos, de sorte que estes espaos de

    representao tenderiam a constituir sistemas mais ou menos coerentes de

    smbolos e signos no verbais.

    Para Lefebvre (1985), os espaos de representao, mais vividos que

    concebidos, no se inclinam coerncia, nem coeso posto que so configurados

    a partir do imaginrio e do simblico. Eles tm por origem a histria de um povo e de

    cada indivduo que pertence a esse povo. O espao de representaes vivenciado,

    falado. Ele possui um ncleo afetivo, seja o ego, o quarto, a praa, a igreja, o

    cemitrio. Contm os lugares da paixo e da ao, aquele das situaes vividas,

    que implicam imediatamente o tempo. Dessa forma, aponta Lefebvre, ele pode

    receber diversas qualificaes (o direcional, o relacional, o situacional), pois

    essencialmente qualitativo, fluido e dinmico.

    A anlise do espao de representao pode englobar a estrutura de

    significados subjacentes forma simblica, como no caso do Movimento Soul, o

    vesturio, as expresses tpicas, as coregorafias, o mito James Brown, considerando

    tambm, alm do aspecto simblico, formal, uma anlise discursiva que considera

    as falas dos produtores e freqentadores do movimento. Para isso, investigamos a

    trajetria do movimento soul, desde suas razes nos Estados Unidos, sua

    disseminao como produto da comunicao de massa. E definimos a incorporao

    do movimento no Brasil e mais especificamente em Belo Horizonte, identificando os

    espaos ocupados pelo movimento na cidade at o surgimento do Quarteiro do

    Soul, em 2004.

  • 26

    Para que possa estudar a arte de forma eficaz, a semitica ter que ir alm do estudo de sinais como meios de comunicao, como um cdigo a ser decifrado, e consider-los como formas de pensamento, um idioma a ser interpretado. [...] Relacionando esttuas cinzeladas, folhas de sagu pigmentadas, paredes cobertas de afrescos, ou versos cantados, com a limpeza da floresta, os ritos totmicos, a interferncia comercial ou a discusso de rua, possvel que este diagnstico comece por fim a localizar, no significado do contexto onde surgem essas artes, a origem de seu poder. (GEERTZ, 2006, p. 181).

    Compreender a simbologia explicitada na admirao e fascnio que

    determinados cantores da black music exercem para os freqentadores do

    movimento soul, como so definidas as roupas, os discursos, a gestualidade da

    dana e dos cumprimentos constituem categorias de interpretao que nos permitem

    entender o universo dos freqentadores em relao ao outro e vida social ali

    estabelecida. Toda forma simblica segue um conjunto de regras, cdigos e

    convenes geralmente interpretados como da ordem do conhecimento prtico,

    sendo compartilhados por vrios sujeitos, demonstrando assim seu carter social.

    Assim, apresentamos uma discusso acerca do conjunto de regras que congrega os

    fs do movimento soul: iderio, modos de vestir, falar, o papel da dana, a

    identificao com seus dolos, chegando na ltima fase, denominada por Thompson

    de Interpretao/reinterpretao. Essa simultaneidade atribuda ao fato de que as

    formas simblicas constituem um campo pr-interpretado. Elas so partes de um

    mundo scio-histrico e sofrem suas interpretaes dos sujeitos desse mundo. O

    processo de interpretao extrapola os mtodos de anlise scio-histrica e anlise

    formal ou discursiva, visto que as formas simblicas possuem um aspecto

    referencial, o que faz com que sejam construes que representam algo, dizem

    alguma coisa sobre determinado aspecto.

    Assim, a Interpretao/reinterpretao, objeto do captulo 5, baseia-se nas

    falas dos freqentadores do Quarteiro do Soul e possibilita ao pesquisador ir alm

    do aspecto histrico, geogrfico e formal, permitindo que se reinterprete tais formas

    simblicas luz de uma nova perspectiva que considere os trs aspectos. Dessa

    forma tentaremos traar possveis explicaes para um fenmeno cultural que teve

    suas bases lanadas nos Estados Unidos nos anos 60 do sculo passado,

    transformou-se em produto de consumo de determinado segmento social e hoje

    toma forma na cidade de Belo Horizonte pela ocupao de um espao na cidade, o

    quarteiro da Rua Goitacazes entre So Paulo e Curitiba.

  • 27

    A cidade se reproduz na contradio entre a eliminao substancial e manuteno persistente dos lugares de encontros e reencontros, da festa, da apropriao do pblico para a vida. H resduos e resistncias nos subterrneos que fogem ao processo homogeneizador e terrificante do capital. (CARLOS, 2005, p. 91).

    Buscamos entender as relaes que se estabelecem entre um peculiar grupo

    de freqentadores e um local no centro da cidade, que teve a funo de via de

    acesso e estacionamento transformada aos sbados em espao de encontro e

    sociabilidade. Assim, o espao concebido pelos planejadores urbanos, pela vontade

    dos moradores da cidade transforma-se no Quarteiro do Soul. Deixando de se

    configurar como um espao abstrato o Quarteiro do Soul emerge na cidade como

    um espao diferencial.

    O espao diferencial aquele que emerge das contradies do espao abstrato. [...] Tais diferenas, entretanto, no esto baseadas em particularidades individuais, mas so diferenas que emergem de um processo de luta. Em termos scio-espaciais, esse processo traduz-se na forma de uma luta que procura resgatar o valor de uso do espao da tendncia de transform-lo em uma simples forma de valor de troca. (COSTA; COSTA, 2005, p.374-375).

    Pela investigao do movimento soul, que se reflete e identifica no Quarteiro

    do Soul buscamos compreender tambm como as aes de apropriao e uso

    desse espao aos sbados, sem consulta a nenhuma instncia de poder, podem ser

    consideradas como manifestao de resistncia de uma determinada parcela da

    populao.

    As lutas, as formas de resistncia, que emergem das contradies impostas pelo capital contrapem-se a ele e isso se d no estreito limite da reproduo do espao urbano enquanto reproduo da vida humana em sua plena dimenso. O espao urbano o espao da reproduo das relaes sociais que envolve vrias dimenses da vida humana. (CARLOS, 2005, p. 91).

    Pensar essas dimenses articulando-as a partir dos trs aspectos da

    Hermenutica de Profundidade dialogando com a Teoria do Espao de Lefebvre,

    pode nos possibilitar uma melhor compreenso deste fenmeno cultural. Buscamos

    na prxima seo traar uma evoluo das vises sobre a questo urbana a partir

    dos enfoques geogrficos e scio-culturais, enfatizando a viso da teoria do espao

    de Lefebvre (1985).

  • 28

    1.2 Uma anlise scio-histrica no estudo da questo urbana a partir da

    evoluo do pensamento geogrfico

    A questo urbana vem sendo alvo de discusso desde o sculo XIX na busca

    de paradigmas que conseguissem perceber os processos urbanos a partir das mais

    diferentes vises. Optamos por trabalhar com aquelas que nos chamam a ateno

    por considerar aspectos simblicos da vida cotidiana como ponto de partida de suas

    anlises e tambm por pensar os diversos papis sociais do homem, inclusive em

    sua relao com os produtos da mdia. No entanto, entendemos ser necessrios

    levantar alguns aspectos sobre o desenvolvimento de tais estudos que desembocam

    nos estudos atuais, como observamos a seguir.

    Nenhuma disciplina pode querer monopolizar o estudo da cidade, pois os problemas urbanos fluem atravs de muitas das divises tradicionais da investigao acadmica. De modo semelhante, nenhuma metodologia predomina sozinha na anlise urbana, porque h a necessidade de se adotar ampla variedade de abordagens para se analisar as complexidades da vida urbana. na natureza interdisciplinar dos problemas urbanos que a cidade oferece as maiores dificuldades para o analista. Os progressos na compreenso urbana requerem a fuso de ensinamentos derivados de muitas disciplinas, onde cada uma trata o estudo da cidade atravs de perspectivas nitidamente distintas. (CLARK, 1985, p. 17-18).

    A Geografia, numa abordagem mais convencional como a apresentada por Clark

    (1985), pode ser definida pelo estudo cientfico de padres espaciais. Ela investiga tanto

    a localizao como a distribuio dos fenmenos fsicos e humanos sobre a superfcie

    de nosso planeta. a perspectiva espacial dos fenmenos responsvel pela

    especificao do objeto da Geografia. O espao, nesta viso, percebido como uma

    dimenso que interfere diretamente nos fenmenos que nele se localizam, foco de

    interesse privilegiado. O estudo de fenmenos mais complexos como as cidades, no

    entanto, necessita do estabelecimento de inter-relaes entre os estudos da anlise

    geogrfica e as demais disciplinas que perpassam a rea das cincias sociais. Assim, a

    Geografia Urbana, para o autor, visa compreender os processos sociais, econmicos e

    ambientais determinantes da localizao, arranjo espacial e evoluo dos lugares

    urbanos dando suporte e complementando as investigaes elaboradas pelas

    disciplinas como a sociologia, antropologia, comunicao, entre outras, que tm a

    cidade e suas relaes, como objeto especfico de estudo.

  • 29

    Os estudos ligados rea da Geografia Urbana sofreram transformaes

    diversas no decorrer do sculo XX. Clark (1985) define o perodo que cobre o incio do

    sculo at aproximadamente 1945, como os estudos voltados para a explorao e

    descoberta, com a anlise das relaes entre o homem e o meio ambiente e com a

    descrio das regies. Os trabalhos anteriores so considerados mais como descritivos

    apresentando observaes sobre os aspectos fsicos e impresses marcadas pela

    subjetividade dos autores sobre os lugares urbanos. A troca da descrio pela

    interpretao da localizao e pela anlise dos processos de produo, reproduo e

    apropriao do espao foram elementos determinantes para o estabelecimento das

    matrizes da Geografia Urbana no sculo XX. Clark atribui aos trabalhos de Hassert

    (1907) e Blanchard (1911) uma nfase na anlise geogrfica urbana centrada sobre a

    anlise do stio e situao das cidades. Tal abordagem, ecolgica, no sentido atribudo

    pela Escola de Chicago, em sua nfase pressupunha que a localizao e o

    desenvolvimento das cidades eram conseqncias das condies fsicas locais. As

    anlises baseadas no estudo do stio e da situao urbana apenas denotavam aspectos

    gerais das cidades, e no implicavam na explicao entre as possveis similaridades e

    diferenas no carter urbano, j que no eram consideradas as caractersticas scio-

    econmicas e os fatores histricos das cidades. O surgimento de estudos focalizados

    sobre a planta e a construo das cidades, os estudos de morfologia urbana, originaram-

    se na Europa e procuravam classificar e estabelecer diferenciaes sobre as cidades a

    partir de seu plano virio, aparncia e funo das edificaes ou do uso do solo. No

    perodo entre-guerras, surgem tambm os estudos voltados para a escala interurbana

    das cidades e suas regies.

    Clark (1985) aponta que, independente das diferentes nfases, seja nos estudos

    sobre stio e situao, na morfologia urbana ou no estudo da cidade regional, tais

    trabalhos at os anos 50 mapearam e fizeram anlises das caractersticas ambientais,

    fsicas e funcionais da cidade, no se preocupando com explicaes sobre origens e

    caractersticas que definem as peculiaridades do urbano.

    A partir dos anos 50, a utilizao de mtodos dedutivos substitui as

    abordagens descritivas e indutivas tendo o modelismo e a anlise espacial como

    nfase. O autor afirma que tais modelos seguiam dois campos distintos: os estudos

    voltados para a localizao de cidades e aqueles dedicados anlise da estrutura

    social e espacial interna das cidades. Vamos nos concentrar na segunda vertente, j

  • 30

    que ela vai ao encontro de nosso objeto de estudo.

    Clark (1985) demonstra que a partir do final dos anos 50 a investigao, antes

    baseada nos modelos da estrutura do uso do solo urbano, propostos por Burgess

    (1925) e Hoyt (1939), agora comeam a ser substitudos pelas anlises da rea

    social propostas por Shevky e Bell. Em seu trabalho, os autores desenvolveram uma

    teoria de mudana social urbana com suas implicaes para as estruturas sociais e

    econmicas da cidade. A teoria da rea social possibilitou a emergncia de uma

    srie de estudos, aproximando-se das cincias sociais e inspirados por uma

    aproximao s teorias da Escola de Chicago, um dos primeiros movimentos criados

    no sentido de entender a questo urbana a partir de uma viso cotidiana,

    estabelecido pelos pesquisadores da Escola de Chicago2 nos anos 30, destacando-

    se a os trabalhos dos socilogos Robert E. Park e Louis Wirth.

    O enfoque do grupo de Chicago inaugurou os estudos sobre a sociologia

    urbana, claramente influenciada pela escola alem, especialmente os trabalhos do

    psiclogo social Georg Simmel, que tinham como premissa os chamados estudos da

    ecologia humana. No entanto, talvez pela influncia de Simmel, os principais

    aspectos que ainda hoje podem ser considerados fatores de influncia determinados

    por tais estudos dizem respeito ao papel do cidado e aos diversos papis sociais

    que tm nas cidades a sua arena.

    Ao se debruarem sobre o superficialismo, o anonimato e o carter transitrio

    das relaes urbanas e sociais, os autores apontam para aquele que o incio da

    sociedade de massas como aquela em que vivemos atualmente. Ao apontar o

    carter segmentrio das relaes sociais, os autores insistem tanto na possibilidade

    de liberdade que permite ao indivduo o anonimato e a heterogeneidade de

    personalidades nas grandes cidades, como no risco do estado blas, na concepo

    de Simmel (1976), quanto ao estado de anomia, ou vazio social, como caracterizado

    por Durkheim (WIRTH , 1976).

    2 A assim chamada Escola de Chicago cobre dois grandes perodos: a) a Primeira Escola de

    Chicago associada a Robert Park, lder intelectual do Departamento de Sociologia de 1915 a 1933 - esta fase contou, alm do prprio Park, com William Thomas, Ernest Burgess, William Ogburn, Ellsworth Farris entre outros, sendo este perodo considerado como central na histria da ecologia e da sociologia urbana; b) a Segunda Escola de Chicago, associada a alguns dos ex-alunos de Park, como Louis Wirth e Everett Hughes - que se tornaram professores do Departamento de Sociologia -, e a socilogos, como Herbert Blummer, William Foote Whyte, Erving Goffman, Howard Becker e Anselm Strauss. (VALLADARES, 2005, p. 18).

  • 31

    Os estudos da Escola de Chicago implicaram ainda na investigao de

    fenmenos ligados violncia, delinqncia e perturbaes mentais, trabalhando

    tambm as novas formas de interao social mediadas pelas instituies sociais e o

    estudo das muitas formas de marginalidade. Ainda que os mtodos utilizados por essa

    escola sejam considerados reducionistas, pois abordam a questo urbana a partir de

    uma lgica funcionalista, a sua contribuio continua sendo objeto de estudos, visto ter

    sido determinante para a constituio de vrias linhas de investigao na sociologia

    urbana.

    Ainda hoje seus trabalhos e pressupostos tericos servem de matriz para a

    investigao da vida urbana. Isaac Joseph ressalta que a discusso sobre os

    aspectos urbanos na atualidade em muito se deve ao carter precursor dos estudos

    da Escola de Chicago:

    Na verdade, as cidades expressam para ns aquilo que entendemos por reunio, mas agora est longe de ser a priori a nica forma de reunio, tampouco a melhor delas. Precisamos, igualmente, prestar ateno aos ajuntamentos e s filas, s multides e cabines de trens ou, quem sabe, abandonar o domnio estrito da sociologia urbana para fazer, segundo Norbert Elias, a histria cultural da relao entre os costumes e o poltico nesses espaos intermedirios (a noo de Jean Rmy, o primeiro a reencontrar o caminho de Simmel e da Escola de Chicago) que so os crculos, sales, cafs, lugares de lavar roupas e clubes. (JOSEPH, 2005, p. 98).

    Coube Escola de Chicago a primazia nos estudos que percebiam a cidade a

    partir das muitas relaes que se entrecruzavam, privilegiando as diversas

    identidades que se configuravam a partir dos vrios papis desempenhados pelos

    moradores. Ela tambm pode ser considerada uma das primeiras escolas a perceber

    e privilegiar a interveno dos veculos de comunicao de massa no imaginrio e

    na vida social. Em parte podemos atribuir isso ao fato de Robert Park, um de seus

    principais tericos, ser jornalista. Em 1916 ele j atentava para a influncia da mdia:

    Em meio urbano, a vizinhana tende a perder uma grande parte do significado que possua nas formaes sociais mais simples. Os meios de transporte e de comunicao mais acessveis e que permitem aos indivduos repartir a sua ateno e viver ao mesmo tempo em vrios mundos diferentes tendem a destruir a permanncia e a intimidade da vizinhana. (PARK3 apud JOSEPH, 2005, p. 117).

    3 Robert Park apud GRAFMEYER, Yves; JOSEPH, Isaac. Lcole de Chicago. Naissance de

    lcologie urbain. Paris: Aubier, 1991. p. 198.

  • 32

    Os estudos desenvolvidos na Escola de Chicago ainda hoje se apresentam

    como contribuies atuais, tendo influenciado as pesquisas sobre a comunicao de

    massa e aquelas que trabalham os processos de constituio das identidades e

    papis sociais.

    Nos anos 70, outras influncias comeam a se delinear nos estudos urbanos.

    De carter mais estrutural, de origem marxista, calcada principalmente na

    importncia econmica do urbano para o processo de acumulao capitalista.

    Pode-se identificar uma mudana substancial no que se refere ao tratamento do processo de urbanizao e da anlise urbana em geral, desde o final dos anos sessenta/incio dos setenta at o momento atual, seja no desenvolvimento terico quanto na anlise de situaes concretas. Daquele perodo inicial at meados dos anos 80, os estudos urbanos ocuparam posio de destaque nas cincias sociais: como marcos referenciais destacam-se o questionamento sobre a existncia da sociologia urbana como campo disciplinar especfico (Castells, 19724), as at hoje atuais discusses sobre a renda da terra urbana e funcionamento do mercado imobilirio (Lipietz, 19745; Topalov, 19746), bem como as formulaes tericas sobre o papel desempenhado pelo ambiente construdo no processo de acumulao capitalista (Harvey, 19737). As contribuies acerca do papel do estado na produo de bens de consumo coletivo (Lojkine, 19818, entre outros), bem como da emergncia dos movimentos sociais que se organizam principalmente em torno da proviso de meios de reproduo social, vem contribuir para a politizao da discusso. (COSTA; COSTA, 2005, p. 367).

    A publicao de A Revoluo Urbana, por Henri Lefebvre (2003) nos anos 70

    abre novamente um campo de discusso acerca das vrias possibilidades de

    percepo dos fenmenos urbanos, no apenas como relaes que se estabelecem

    na esfera do domnio econmico, mas levando em considerao as vrias relaes

    sociais que so constitudas a partir da cidade. Lefebvre pensa o fenmeno urbano

    como um campo que no se atrela a nenhuma cincia propriamente dita, pois para

    analis-lo dentro da sua totalidade, vrios campos de saber devem se entrecruzar.

    A obra de Lefebvre nos permite compreender as diversas manifestaes

    simblicas que permeiam a sociedade. Para Lefebvre, o fenmeno urbano se

    4 CASTELLS, M. La questin urbaine. Paris: Maspero, 1972. 5 LIPIETZ, A. Le tribut foncier urbain. Paris: Maspero, 1974. 6 TOPALOV, C. Fazer a histria da pesquisa urbana: a experincia francesa desde 1965. Espao &

    Debates, cidade, v. 23, p. 5-30, 1988. 7 HARVEY, D. Social justice and the city. London: Edward Arnold, 1973. 8 LOJKINE, J. O estado capitalista e a questo urbana. So Paulo: Martins Fontes, 1981.

  • 33

    apresenta como realidade global, que implica o conjunto da prtica social, uma

    globalidade que no pode ser apreendida por apenas um parmetro de investigao.

    O filsofo nos chama a ateno para a necessidade de utilizao de todos os

    procedimentos de anlise, respeitadas as especificidades de cada cincia, sem os

    quais no possvel conceber a cincia do fenmeno urbano, j que este no se

    constitui como um sistema nico de signos. Para o autor, ultrapassando a

    abordagem de Clark, a prtica urbana excede essa sistematizao, incorporando

    uma srie de signos e significaes em vrios nveis, quais sejam: o das

    modalidades da vida cotidiana, o da sociedade urbana no seu conjunto e o do

    espao-tempo urbano particularizado.

    O conceito de cidade no corresponde mais a um objeto social. Portanto, sociologicamente trata-se de um pseudo-conceito. No obstante, a cidade tem uma existncia histrica que no se pode desconsiderar. [...] Uma imagem ou representao da cidade pode se prolongar, sobreviver s suas condies, inspirar uma ideologia e projetos urbansticos. Dito de outro modo, o objeto sociolgico real, neste caso, a imagem e, sobretudo, a ideologia! (LEFEBVRE, 2002, p. 61).

    O autor percebe a cidade como um espao que ultrapassa os limites fsicos

    em que cada construo, e as relaes que a partir dali se estabelecem so

    pensadas dentro de uma determinada ideologia.

    Os anos 80 abrem espao para discusses mais especficas, tendo como

    foco o individual, o cotidiano, lugar e identidade.

    A partir dos anos 80, a literatura aponta uma tendncia de mudana de enfoque nas questes gerais para as especficas, do coletivo para o individual, de forma a incluir a esfera da vida privada no bojo da anlise de questes urbanas/sociais abrangentes. [...] Nas novas abordagens os grupos sociais so vistos como sujeitos de suas prprias aes e demandas. Conceitos como lugar e identidade se tornam cada vez mais utilizados para a compreenso da dinmica social. (COSTA; COSTA, 2005, p. 367).

    A partir dos anos 90, de acordo com Costa e Costa (2005), os novos

    enfoques relacionados questo urbana definem-se muito mais a partir dos

    aspectos culturais ou sociais, do que a partir daqueles aspectos especificamente

    urbanos, como na viso de Milton Santos (2002, p. 252), para quem cada lugar

    sua maneira, o mundo. Santos trabalha a dimenso do fenmeno urbano

    considerando as duas vertentes, o global e a sua influncia, pensando, ao mesmo

    tempo, a dimenso local. Para o autor, a uma maior globalidade, corresponde uma

  • 34

    maior individualidade (SANTOS, 2002, p. 252). O global e o local se intercalam e se

    complementam nas relaes estabelecidas na cidade. Ainda para Santos, a

    comunicao (seja pessoal ou de massa) fornece o elo para as duas dimenses.

    Uma das premissas de Santos o olhar voltado para o cotidiano, como uma

    redescoberta da dimenso local, levando-se em considerao as prticas sociais. Na

    sua opinio, esse seria um retorno ao cotidiano, j que essa uma viso difundida

    por autores como Simmel, Lefebvre e Michel de Certeau defensores do cotidiano

    como importante dimenso de estudos. Para Certeau e Giard:

    As histrias sem palavras do andar, do vestir-se, de morar ou do cozinhar trabalham os bairros com ausncias; traam a memrias que no tm mais lugar - infncias, tradies genealgicas, eventos sem data. Esta tambm o trabalho dos relatos urbanos. Nos cafs, nos escritrios, nos imveis eles insinuam espaos diferentes. Acrescentam cidade visvel as cidades invisveis de que fala Calvino. Com o vocabulrio dos objetos e das palavras bem conhecidas, eles criam uma outra dimenso, sempre mais fantstica e delinqente, terrvel ou legitimante. Por isso, tornam a cidade confivel, atribuindo-lhe uma profundidade ignorada a inventariar e abrindo-a a viagens. So as chaves da cidade: elas do acesso ao que ela , mtica. (CERTEAU; GIARD, 1996, p. 200).

    As falas dos habitantes, os gestos, a apropriao do espao e todas as

    pequenas aes que constituem o cotidiano se transformam em material de anlise

    para se entender os vrios universos que constituem a cidade, ou seja, o cotidiano,

    que para Milton Santos (2002, p. 321), representa uma quinta dimenso do espao

    banal, o espao dos gegrafos. Entender a materialidade que se configura na

    relao entre cotidiano, espao e movimentos sociais um dos grandes desafios

    que o autor aponta. Assim tambm, Gomes (2006) coloca:

    O comportamento, dinmico e mutvel, dos atores sociais considerado de forma relevante, e surge toda uma gama de problemas e de requalificaes do espao, estranhas ao modelo das tipologias tradicionais. Este tipo de abordagem obriga tambm os gegrafos a uma colaborao mais estreita com profissionais de outras disciplinas que tambm vem estudando o fenmeno urbano: arquitetos, socilogos, antroplogos e historiadores.

    A cidade no pode, pois, ser concebida como uma forma que se produz simplesmente pela contigidade das moradias ou pelo simples adensamento de populao; ela , antes de qualquer coisa, um tipo de associao entre as pessoas, associao esta que uma forma fsica e um contedo. (GOMES, 2006, p. 18-19).

    As diversas facetas que compem a dinmica urbana hoje levam utilizao

    bases de anlise que considerem sua lgica cotidiana, trabalhem a percepo do

  • 35

    cotidiano, as diversas identidades, os movimentos sociais que ali se delineiam e

    percebam como estes movimentos interferem na transformao e apropriao do

    espao urbano e que busquem reconhecer como a percepo social cada vez mais

    sofre a influncia tambm da mediao das formas simblicas pelos diversos meios

    tcnicos informacionais, sejam eles os grandes veculos de massa, como a TV, o

    cinema ou aqueles que tm um alcance mais restrito e direcionado, como os

    fanzines ou as rdios comunitrias. Essas relaes que so relativamente novas e

    mutveis, trazem novas dimenses compreenso do espao.

    As diversas questes que emergem na abordagem do urbano e dos

    processos scio-espaciais necessitam de procedimentos de anlise que no corram

    o risco de fragment-los excessivamente, perdendo a dimenso do todo. Costa e

    Costa (2005) demonstram o atual estgio das anlises sobre o urbano: De fato, os

    textos hoje produzidos sobre o urbano e os processos scio-espaciais, perderam a

    linguagem comum de um paradigma dominante, que permitia um melhor

    entendimento de conceitos utilizados (COSTA; COSTA, 2005, p. 370). Os autores

    apontam limitaes aos modelos marxistas de anlise, que, em sua viso no eram

    capazes de apresentar formas de se avanar da teoria para a ao transformadora

    (COSTA; COSTA, 2005, p. 371), e tambm de alguns enfoques ps-estruturalistas,

    j que a fragmentao das anlises levaria a interpretaes superficiais e a

    proposio de formas por vezes equivocadas para a mudana social. Nesse sentido,

    mesmo reconhecendo os mritos destas teorias, apostam em uma outra dimenso

    de anlise baseada na Teoria do Espao de Lefebvre:

    Apesar dessas crticas, no negamos que ambos os enfoques tericos acima mencionados representam importantes contribuies para a anlise terica das prticas urbanas. O que gostaramos de afirmar, no entanto, que a teoria do espao, especialmente aquela desenvolvida por Henri Lefebvre, que de fato uma economia poltica do espao, oferece um entendimento mais unificado do espao social (urbano) do que a tradicional economia poltica da urbanizao, de inspirao marxista e com forte vis economicista.

    Diferentemente do enfoque da economia poltica, portanto, a teoria da produo do espao desenvolvida por Lefebvre (19939), incorpora, por meio do conceito de espao social, as aes sociais de sujeitos tanto individuais quanto coletivos (p. 33), ou seja, um conceito que considera a idia de ambiente construdo para produo e consumo, mas ao mesmo tempo, vai alm dela, incorporando as prticas scio-espaciais. Assim, no h separao entre anlise e prxis na teoria de espao Lefebvriana. (COSTA; COSTA, 2005, p. 371).

    9 LEFEBVRE, H. The production of space. 3rd. ed. Oxford: Blackwell, 1993.

  • 36

    A teoria do espao, ou a viso do espao social na perspectiva de Lefebvre

    (1993) funcionaria como uma ferramenta para a anlise da sociedade, no partindo

    de um paradigma terico dominante, mas pretendendo uma interpretao unificada

    da sociedade, a partir do espao. A contribuio de Lefebvre para o entendimento

    do espao a partir de sua Teoria do Espao converge, em suas trs categorizaes

    principais - prticas espaciais, espao de representao e representaes do espao

    - com o paradigma de anlise da Hermenutica de Profundidade de Thompson em

    suas trs categorias de anlise - a anlise scio-histrica, anlise formal ou

    discursiva e interpretao/reinterpretao. Para um melhor entendimento desta

    proposio, apresentamos a perspectiva Lefebvriana na prxima seo.

    1.3 As teorias sobre o espao na viso de Lefebvre

    O conceito de espao advm, segundo Lefebvre nos apresenta no livro La

    Production de LEspace (1985), de uma longa discusso filosfica tendo, a princpio,

    a metafsica como suporte. A contribuio de Descartes foi decisiva para a criao

    do conceito de espao e de sua emancipao da tradio aristotlica, segundo a

    qual, o tempo e o espao constituam categorias o que permitiria nomear e

    classificar os fatos sensveis sem, no entanto, conceder-lhes um status. Para a razo

    cartesiana, o espao pertence ao absoluto, objeto que precede o sujeito, dominante

    j que contm os sentidos e os corpos.

    A definio de Descartes fundamental para o pensamento posterior de

    filsofos como Spinoza, Leibniz e dos newtonianos. Para estes, a questo do

    espao caminha desde a sua considerao como atributo divino at a definio

    como uma ordem imanente totalidade da existncia.

    Kant, ainda segundo Lefebvre, resgata a noo de categoria, modificando-a.

    Para o filsofo, o espao relativo, instrumento de conhecimento e de classificao

    dos fenmenos, no se separando do emprico. Ele existe a priori da conscincia do

    sujeito, sua estrutura interna e ideal, sendo transcendental e imperceptvel. Tais

    controvrsias marcam a passagem da filosofia cincia do espao.

    A contribuio da matemtica j destacada da viso filosfica discerne e

  • 37

    classifica, com preciso, inmeros espaos. Um novo problema se constitui: como

    passar dos espaos matemticos compreendidos assim como as capacidades

    mentais da espcie humana, da lgica, da natureza primeira vista, para a prtica

    da teoria da vida social que se desenvolve tambm no espao? Lefebvre aponta que

    uma nova viso se estabelece a partir de tais indagaes. A epistemologia recebe e

    aceita um estatuto do espao como coisa mental ou lugar mental, ou seja, uma

    representao psquica. A teoria dos conjuntos, apresentada como a lgica deste

    lugar, fascinou no apenas filsofos, mas escritores e lingistas. O conceito de

    espao mental disseminou-se em vrios campos: no espao literrio, espaos

    ideolgicos, espao do sonho, em tpicos psicanalticos, sem uma definio mais

    precisa de seu estatuto, de acordo com o autor . Para Lefebvre, a cientificidade,

    como a definio dita epistemolgica sobre o saber adquirido (LEFEBVRE, 1985,

    p. 11) e espacialidade se articulam estruturalmente a partir de uma conexo

    pressuposta, evidente pelo discurso cientfico, porm jamais apresentada enquanto

    conceito. A reflexo epistemolgica, conjugada aos esforos tericos dos lingistas,

    para o autor, proporcionou um curioso resultado, acabando por liquidar o sujeito

    coletivo, ou seja, o povo entendido como gerador de uma lngua, de determinadas

    seqncias etimolgicas e o substitui pelo sujeito abstrato, impessoal gerador de

    uma linguagem geral.

    A principal crtica de Lefebvre diz respeito ao fato de que nas investigaes

    de ordem filosfico-epistemolgicas, ocorre uma fetichizao do espao. Afirma que

    o mental encobre o social e o fsico, na viso de grande parte dos autores, criando

    uma prtica terica gerando um espao mental ilusoriamente exterior ideologia.

    O espao mental ento, para Lefebvre, circundado por uma prtica terica distinta

    da prtica social.

    Assim, a identidade quase lgica pressuposta entre o espao mental (aquele

    concebido pelos matemticos e pelos filsofos ligados epistemologia) cria um

    abismo entre os termos: o mental, o fsico e o social. Lefebvre aponta que a reflexo

    epistemolgica-filosfica no conseguiu estabelecer um eixo, mesmo considerando-

    se o grande nmero de publicaes e trabalhos, para a chamada Cincia do

    Espao. Considera ainda que as diversas descries e recortes, como aqueles

    descritos por Clark (1985) para uma parte da Geografia urbana convencional,

    representam apenas inventrios do que existe no espao, ou seja, um discurso

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    sobre o espao, jamais um conhecimento do espao. O discurso simblico que

    aproxima mas que incapaz de esgotar todas as suas dimenses. Para o autor,

    falta um conhecimento do espao que possibilite a transferncia do discurso, de uma

    linguagem enquanto tal, que incorpore ao espao mental uma boa poro das

    at