Espaço Generificado de Resistência à Cidade-Mercadoria

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    UMA CIDADE INDIFERENTE:

    Espao Generificadode Resistncia Cidade-Mercadoria

    Rossana Brando Tavares

    Doutoranda em urbanismo PROURB/UFRJ1, [email protected]

    Introduo

    Com vistas a adentrar nas fileiras das cidades ditas globais, o Rio de Janeiro h

    dcadas tem sido objeto de transformaes urbanas onde emergem novos circuitos num

    contexto de reestruturao econmica em escala internacional (Sassen, 2010; Snchez, 2009).

    A importncia de construo de uma imagem de cidade segundo padres internacionais

    hegemnicos, revelam a tendncia a um pensamento nico que capturam discursos, mesmo

    daqueles ditos mais crticos, legitimando revitalizaes, requalificaes, revalorizaes que

    s revelam eufemismos para a reconquista do espao urbano (Arantes, 2009) a favor de novas

    exigncias de acumulao capitalista. Sem adentrar nos meandros das diferenas desses

    processos entre os pases do norte e do sul, importante salientar que a presso por esse

    modelo dominante de catlogo, uma cidade-mercadoria, perpetuam inmeras estruturas degnero antigas, nutridas por novas dinmicas (Sassen, 2010). Percebemos que essas estruturas

    de perpetuao das desigualdades de gnero revelam-se mais perversas quando se impem

    uma viso de justia social imperativamente baseada na distribuio de recursos (Fraser,

    2012), ou seja, a partir da dimenso de classe.

    A epistemologia feminista tem contribudo para o surgimento de novos aportes

    tericos, reinterpretando anlises androcntricas (masculina e heteronormativa) de diversas

    disciplinas, inclusive, a dos estudos urbanos. Uma das questes fundamentais na teoriafeminista e de gnero a histrica imposio de um modelo de existncia (Beauvoir, 1970)

    reinventado cotidianamente pelos processos de dominao, e questionado por feministas, no

    s atravs do discurso mas tambm atravs da busca de prticas transformadoras que colocam

    em xeque o ideal feminino (ou de mulher). A prpria ideia socialmente construda de espao

    urbano, de forma geral, coloca as mulheres em um lugar marginal e dito feminino: o espao

    domstico (espao privado); enquanto os homens esto num lugar central, considerado

    1O presente trabalho em parte foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico Brasil e da CAPES/COFECUB.

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    naturalmente masculino: o espao pblico, sinnimo de espao urbano pela viso hegemnica

    dominante (Coutras, 1997; McDowell, 1999).

    Nesse sentido, o presente artigo visa trazer uma contribuio analtico-propositiva

    baseada na percepo a cerca da invisibilidade das desigualdades de gnero associadas e

    alimentadas pela produo do espao urbano do Rio de Janeiro. Partimos do entendimento de

    que as prticas sociais de gnero no espao e as performances de seus corpos desvendam

    processos de resistncia os quais chamamos de espaos generificados de resistncia,

    resultado de uma tenso por justia social, prxima a perspectiva do reconhecimento (Fraser,

    2006). Assim, pretendemos apresentar reflexes que buscam emergir o tensionamento entre

    os interesses estratgicos das mulheres e os seus interesses prticos (Molyneux, 2010)

    problematizado a partir das praticas sociais (Kergoat, 2012), frente s contradies impostas

    por essa cidade-mercadoria, como um caminho terico-metodolgico para a constituio de

    alternativas insurgentes problemtica urbana.

    Para o nosso propsito, dividimos o texto em duas partes: (a) a primeira em que

    apresentamos uma reviso terica sobre a perspectiva do reconhecimento para justia social

    nas cidades contemporneas, fazendo aproximaes com os processos em curso no Rio de

    Janeiro; (b) e a segunda onde problematizamos a questo dos interesses das mulheres a partir

    de prticas sociais e performances que constitui o que chamamos de espaos generificados deresistncia.

    A necessidade da luta por reconhecimento no Rio de Janeiro, uma cidade-mercadoria

    Atualmente, prevalece a ideia de que o projeto de cidade em curso no Rio de

    Janeiro evidenciado por inmeras transformaes urbanas se d em funo dos chamados

    Megaeventos Esportivos. Contudo, este projeto de cidade no algo recente. A lgica doplanejamento urbano empresarial, a fim de colocar o Rio de Janeiro nas fileiras das cidades-

    globais, tem sido pautada h algumas dcadas pela lgica da competio de fluxos de capital

    internacional que territorialmente se materializa pela mercantilizao das dinmicas scio-

    urbanas: expresses culturais, identidades urbanas, (Labrecque, 2010) modos de apropriao e

    de moradia das cidades, entre outras.

    Na era Csar Maia (1993-2008) o planejamento estratgico foi a alternativa ao

    Plano Diretor da cidade (1991), deixando claro que a lgica empresarial e de resultado rpido

    iria imperar na gesto municipal. Alguns referem-se a essa fase como o da desconstruo do

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    espao urbano carioca a partir de projetos pontuais de remodelao e reurbanizao de bairros

    e favelas pautadas pelo cidado()-consumidor(a), ou seja, a concepo de insero social

    alm de se restringir a uma perspectiva economicista, limita as prticas sociais ao consumo do

    espao urbano fetichizado. Por isso, a importncia da padronizao do consumo nessa

    concepo de cidade (Ribeiro, 2009).

    Essa forma de gesto ganhou contornos mais visveis na era Eduardo Paes, por

    conta dos Megaeventos Esportivos. Predomina-se uma concepo de planejamento

    reducionista e discriminatria que serve de instrumento poderoso para viabilizar as condies

    de reproduo do capital e a construo de uma imagem de cidade que pasteuriza a paisagem,

    e a vida urbana, facilitando a constituio de superficialidades e a fragmentao da vida

    urbana em prol da mercantilizao da cidade, sendo a especulao imobiliria e o

    encarecimento da vida urbana o seu retrato mais evidente.

    Como consequncia, assistimos uma srie de violaes de direitos humanos

    atravs de remoes de inmeras famlias, precarizao dos servios, militarizao de reas

    estratgicas para os eventos. Por essa razo, a falta de transparncia e de participao popular

    na construo da poltica urbana conveniente para abrir espao a um tipo de regulao

    urbana que precisa tanto da gesto local, quanto do engajamento do aparato institucional do

    Estado para a reproduo do capital em escala global. Essas medidas tm sido justificadaspara conter a desordem urbana, conforme uma concepo associada principalmente

    violncia e a pobreza.

    Um discurso capturado que facilita generalizaes por parte das agncias

    multilaterais, como o Banco Mundial e ONU, que fazem difundir modelos de cidade

    (Snchez, 2009) dos quais contribuem para a legitimao das transformaes impostas. No

    caso da perspectiva da mulheres, o chamado gender mainstreaming(estratgia administrativa

    de cima para baixo - top-down)baseada numa agenda internacional comum, serve parafortalecer uma poltica urbana homogeneizadora em que a dimenso econmica-poltica

    prevalece em relao dimenso cultural-valorativa, isto , interesses redistributivos

    prevalecem aos interesses de reconhecimento das diferenas e desigualdades.

    Desde a Conferencia das Mulheres em Pequim em 1995 o conceito de gender

    mainstreaming se difunde como uma alternativa de poltica pblica que considera as

    diferentes implicaes entre os gneros, a partir de uma abordagem dita transversal no sentido

    de influenciar na legislao e programas em todos os nveis de governo. Entretanto, h limites

    na governana urbana que se paute por diretrizes internacionais, uma vez que acaba por

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    homogeneizar a problemtica de gnero nos diferentes pases e territrios. Tal perspectiva de

    transversalizao da perspectiva de gnero nas polticas pblicas est associada ao Consenso

    de Washington que corresponde a uma srie de programas inspirados nas abordagens de

    Milton Friedman e dos Chicago Boys, com o objetivo de fazer com que o Estado deixe pleno

    espao ao mercado (Labrecque, 2010, p. 903).

    Por essa razo, consideramos de extrema importncia a apropriao das reflexes

    na contemporaneidade sobre duas categorias da cincia poltica: reconhecimento e

    redistribuio, na perspectiva da justia e da igualdade, a fim de no recair em erros

    analticos quanto ao debate sobre o enfrentamento das desigualdades de gnero no espao

    urbano.

    A estadunidense feminista Nancy Fraser (2006) apresenta reflexes que

    basicamente se baseiam no que ela considera dilemas da justia numa era ps-socialista,

    levantando o conflito poltico que cerca questes relacionadas identidade, cultura e classe.

    Ela afirma que pessoas sujeitas injustia cultural e econmica, necessitariam de

    reconhecimento e redistribuio. Assim, quem procura promover a diferenciao do grupo,

    tenderia poltica do reconhecimento, e quem defende a sua desestabilizao ou sua

    pulverizao, tenderia poltica da redistribuio.

    Fraser (2006, p.233) assume que a sua perspectiva de justia se aproxima aredistribuio e ao reconhecimento, mas no uma aproximao fcil j que haveria uma

    tenso neste debate, pois parecem ter, com frequncia, objetivos contraditrios.

    Lutas por reconhecimento assumem com frequncia a forma de chamar a ateno para apresumida especificidade de algum grupo [...] e, portanto, afirmar seu valor. Desse modo,elas tendem a promover a diferenciao de grupo. Lutas de redistribuio, em contraste,

    buscam com frequncia abolir os arranjos econmicos que embasam a especificidade dogrupo.

    Quando analisamos mulheres pobres que vivem em favelas, podemos associ-las

    ao que Nancy Fraser considera coletividades bivalentes, diferenciadas como coletividades

    tanto em virtude da estrutura econmica-poltica quanto da estrutura cultural-valorativa da

    sociedade (Fraser, 2006, p. 233). Essas coletividades necessitariam dos dois para a busca da

    justia social.

    Na poltica urbana comumente a considerao da dimenso de gnero na

    perspectiva das mulheres aparece apenas naquilo que refora os seus papis sociais

    tradicionais. Demandas por creches, posto de sade, espaos de lazer para crianas ou seja, o

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    que remete a responsabilidade feminina em relao ao espao domstico e ao cuidado com a

    famlia so utilizados nos discursos polticos, como reivindicao das mulheres, evidenciando

    a considerao de gnero apenas a partir do que poderamos chamar de seus interesses

    estratgicos como mes.

    Sendo assim, a invisibilidade e a desconsiderao da necessidade de mudanas na

    valorao cultural de gnero em favelas, por exemplo, no encontra soluo na redistribuio,

    mas sobretudo no reconhecimento. Sob o espectro das anlises de classe, seria necessrio

    eliminar as injustias marcadas pelo gnero, e suas respectivas diferenas, j que seria um

    problema de diferenciao econmico-poltica. Porm, no acreditamos ser possvel este tipo

    de raciocnio, seno partiramos do pressuposto que todas as diferenas simblicas e culturais

    entre homens e mulheres poderiam ser economicamente equalizadas. Nesse sentido, a poltica

    urbana na lgica de mercado, neste contexto de Megaeventos, tende a homogeneizar a tudo e

    a todos(as), reforando a invisibilidade de gnero, ou mesmo o lugar das mulheres na

    sociedade, quando j evidente prticas e relaes sociais que desafiam essa mstica.

    O debate sobre a poltica urbana se baseia, evidentemente, nos setoriais habitao,

    saneamento bsico, transporte e mobilidade. A centralidade da fragmentao dessa

    abordagem em processos de participao contribuem ou mesmo conduzem a consensos que

    reforam lgicas de injustia econmica justificadas pelo reconhecimento das demandas dasmulheres. Para o exemplo que tomamos de mulheres das favelas2, uma observao de Fraser

    (2009) parece importante para nossa anlise: no seria suficiente distinguir quando h presso

    pelo reconhecimento de diferenas culturais, se quem reivindica espera promover

    reestruturao econmica. Consta no programa de proviso habitacional Minha Casa Minha

    Vida, como acordado nos processos de Conferncia das Cidades, a titularidade do imvel

    preferencial s mulheres. Neste caso, notamos que podemos recair nos perigos sinalizados por

    Nancy Fraser a cerca do dilema redistribuio/reconhecimento. A segurana da posse considerada uma garantia, mas ela relativa porque sendo as mulheres mais vulnerveis

    economicamente, justamente por fatores socioculturais, mesmo quando chefes de famlia, a

    venda ou o repasse deste imvel por possveis dificuldades econmicas, impe a elas o risco

    de residir em condies precrias, uma vez que o encarecimento da cidade e a presso

    especulativa dos imveis urbanos atingem toda a cidade, inclusive favelas localizadas em

    reas valorizadas.

    2Estamos cientes que este tipo de classificao mulheres de favelas tambm poderia se enquadrar numa generalizao, jque no seria coerente afirmar que as experincias e interesses de mulheres de favelas no centro seriam os mesmos que dereas perifricas da cidade do Rio de Janeiro.

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    J notrio os efeitos de projetos de urbanizao de favelas que se mostram como

    esforo de garantia das condies mnimas de salubridade, de servios e infraestrutura urbana

    em reas favelizadas: muitas famlias vendem suas casas a fim de incrementar a sua renda, e

    outras, so expulsas pela elevao do valor dos alugueis, se vendo obrigadas a buscar locais

    com alugueis mais baratos, ou mesmo onde possam improvisar uma moradia. Na maioria das

    vezes essa mudana no se refletem em melhorias nas condies de vida urbana. Esse

    processo adquire contornos mais perversos quando so famlias monoparentais chefiadas por

    mulheres ou quando h a coabitao, uma vez que para retomar a vida em bairro diferente, em

    condies provavelmente inferiores, sem as habituais redes sociais de solidariedade e de

    servios urbanos, fazem recair sobre os seus ombros mltiplas responsabilidades tanto em

    relao s tarefas domsticas quanto de provimento, para a garantir minimamente condies

    de moradia.

    A desvalorizao no mercado de trabalho e do trabalho domstico de

    responsabilidade das mulheres, a violncia domstica e urbana sobre os corpos femininos, das

    representaes banalizantes e humilhantes na mdia, enfim, a sujeio heteronormatividade

    masculina impem uma desqualificao generalizada do que se codifica como feminino,

    trazendo consequncias em todas as esferas da vida. Danos de injustia de reconhecimento,

    independentes da economia, que no so meramente superestruturais (Fraser, 2006).Portanto, considerando nossa linha de abordagem, a lgica do privilgio gera desprezo por um

    gnero, as mulheres, face economia poltica que o se insere na redistribuio, e ao mesmo

    tempo, a uma face cultural-valorativa no mbito do reconhecimento.O perigo da superficialidade do reconhecimento das injustias recair em

    desqualificaes e estigmatizaes, pelo no xito de uma poltica. A titularidade prioritria

    aos imveis passiveis de regularizao fundiria, ou em programas de proviso de moradia,

    anunciada como uma grande conquista, visto que a questo da segurana da posse umaaspecto bsico para inviolabilidade do direito moradia. Contudo, se tomarmos o caso da

    comunidade Vila Autdromo3que h anos luta pelo direito de permanecer no territrio onde

    se localizam na cidade, tendo adquirido concesso de uso para fins de moradia h dcadas

    atrs, tem vivenciado a vulnerabilidade do no reconhecimento de sua luta que sobretudo

    protagonizada por mulheres.

    3Antiga colnia de pescadores beira da Lagoa de Jacarepagu, na Zona Oeste do Municpio do Rio de Janeiro, que hojeconvive com a presso da gesto municipal cujas tentativas de remoo da comunidade so inmeras, tendo em vista as obrasdo Parque Olmpico destinado s Olimpadas de 2016.

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    Os obstculos materiais e simblicos conjugados na relao com o Estado e no

    dia-a-dia no mbito da sociedade caracterizam um debate pouco consistente e distantes dos

    interesses das mulheres na construo da poltica urbana. A normas culturais sexistas e

    androcntricas, somada a desvantagem econmica das mulheres, dificultam a sua

    interferncia na formao de outra cultura, na vida cotidiana e nas esferas pblicas, para busca

    de seus direitos, que considere seus interesses, sejam eles prticos ou estratgicos.

    Espaosgenerificadosde resistncia: espao de prticas

    Apesar das dificuldades enfrentadas de disputar o debate pblico para o efetivo

    reconhecimento dos direitos e interesses das mulheres numa cidade onde tudo passvel de se

    tornar mercadoria, as prticas sociais so uma ferramenta de tensionamento cotidiano que as

    mulheres acionam (mesmo aquelas que no se consideram feministas) que podem formatar

    novas formas de resistncia como portadoras de mudanas potenciais no mbito das relaes

    sociais (Kergoat, 2012, p. 128)4. Relaes sociais5de gnero que se articulam, sob suas trs

    formas cannicas: explorao, dominao e operao.

    Por sua vez, Danile Kergoat (2012) aponta que as prticas sociais podem revelar

    dois tipos de resistncias: (i) resistncias para a manuteno da tradio ou do status quo,

    comumente aqueles que exercem o papel de dominao; e (ii) resistncias ao estabelecido no

    sentido de gerar mudanas e transformaes, comumente os(as) dominados(as). Com isso, se

    estabelecem conflitos que geram consequncias cotidianas e processuais no modo como o

    espao urbano produzido e reproduzido.

    As mulheres escreve[m] enquanto l[em], ali onde a represso falhou, onde o

    sistema se fragmentou, e onde ela[s] no deseja[m] ser reconstruda[s] descobrindo nele o

    reflexo de um sistema unitrio, homogneo, fechado (Agrest, 2008, p. 596). Isto quer dizer,que procuramos as brechas para existirmos na cidade. Achamos brechas quando ousamos sair

    de bermudas nas ruas no incio do sculo XX, ou mesmo de minissaias na dcada de 60.

    Ousamos votar, estar nas ruas trabalhando, ousamos ser donas de nosso sistema reprodutivo,

    ousamos falar, gritar e chorar em pblico por nossas perdas, pela violncia que sofremos,

    4Traduo nossa.5Na lngua francesa, h uma distino entre rapport sociale relation socialque em portugus seria igualmente traduzidocomo relao social.Rapport social abstrato e ope os grupos sociais em torno de uma questo.Relation socialsoimanentes aos indivduos concretos, entre os quais aparecem (Kergoat, 2012).

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    ousamos existir segundo o que acreditamos ser a existncia em nosso tempo. Isso nada mais

    que resistir.

    Um espao paradoxal (Rose, 1993), reflexo da heteronormatividade masculina que

    estabelece e produz o espao urbano a partir da violncia, imaginado e estruturado como uma

    fortaleza, para sua prpria proteo a excluso dos(as) outros(as) (Silva, 2007). Apesar das

    relaes de poder entre opressores e oprimidos, h prticas sociais de resistncia excluso

    promovidas pelas subjetividades dominantes. Esta constante tenso de quem est fora e quem

    est dentro, depende de inmeros elementos, como a identidade do grupo, o tempo, etc. entre

    os quais influenciam nas prticas sociais e tambm na performance6das mulheres. Nesse

    caso, a combinao de prticas sociais e performances permite os processos de resistncia e a

    possibilidade da criao da novidade, subvertendo o ideal de gnero e de heteronormatividade

    no espao (Rose, 1993; Silva, 2007).

    A mera presena desses corpos desorienta e desestabiliza o espao segundo padres

    dominantes (Ahmed, 2006). Podemos afirmar que isto ocorre no somente com pessoas que

    possuem orientao sexual no-hetero, mas tambm aos corpos fora dos padres sociais

    masculinos considerados como normal ou apropriado para um local, um espao. Sendo

    assim, se estabelece prticas e performances, que se refletem no processo de resistncia de

    ambos, dominante e dominado, quem est no centro e quem est a margem espaoparadoxal (Rose, 1993). O processo de resistncia alcanado pela variedade de prticas

    sociais (no-normatizadas) faz seus corpos tornarem-se estranhos e passveis de serem

    violados ou mesmo menosprezado no espao urbano. Um menosprezo que no o do

    esquecimento, mas de torna-lo invisvel, menos importante, e marginal para garantia da logica

    de produo do espao da cidade.

    Acreditamos que o espao urbano das cidades o retalho de uma significativa

    diversidade de formas de resistncias a essa cidade-mercadoria, onde podemos analisar o quechamamos de espaos generificados de resistncia, em que as mulheres negam para afirmar a

    cidade e seu espao urbano (Agrest, 2008).

    Ao mesmo tempo, negaes e afirmaes em metrpoles como do Rio de Janeiro,

    extremamente diversas e conflituosas, so constantes nos inmeros grupos sociais. Entretanto,

    os corpos das mulheres no s so resistentes na sua afirmao, como tambm servem de

    conexo queles(as) que apenas resistem atravs da negao cidade, como por exemplo, os

    6Entendemos que as prticas sociais so indissociveis das performances das pessoas que s so possveis atravs de seuscorpos. Esse debate se inspira na teoria queer que busca questionar a heteronormatividade a partir da sexualidade e a

    performance dos corpos (Ahmed, 2006; Silva, 2007).

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    corpos das domsticas que vivem em favelas ou em reas perifricas da metrpole atravs de

    sua trajetria cotidiana de sua casa at a casa da(o) patroa(o).

    Em janeiro de 2014, em entrevistas realizadas com trabalhadoras domsticas 7 ,

    sobretudo, diaristas, algumas falas nos fazem concluir que elas so o nico ponto de conexo

    das famlias onde trabalham com os bairros mais empobrecidos e segregados da metrpole, ou

    seja, os bairros e favelas onde elas residem, onde tambm elas resistem frente a essa cidade-

    mercadoria que no as inclui. A presena de seus corpos nos centralidades urbanas, e dentro

    do espao domstico da populao de classe mdia e alta da metrpole, o meio no qual esses

    corpos acostumados ao distanciamento, tm proximidade com o espao urbano daquelas

    acostumadas ao excesso de aproximao. Proximidade de corpos que se revelam pela forma

    urbana das favelas, por exemplo, que por sua vez nos mostra a concretude das formas de

    resistncia ocorridas nesses espaos. Proximidade com a prpria cidade, por circular e se

    apropriar do espao urbano de uma maneira diversa, extensiva, policntrica e distinta dos

    corpos que somente as negam.

    Cotidianamente, elas circulam por diferentes pontos da metrpole, sobretudo,

    diaristas, constituindo espaos de resistncia durante seu percurso at o trabalho. Poderamos

    estar tratando aqui de qualquer outra trabalhadora que precisa enfrentar o transporte pblico

    precrio, superlotado, sujeita todos os tipos de assdio, ou mesmo circular em horrios, pelamanh e a noite, em locais desertos, sem iluminao adequada, correndo o perigo de um

    assalto ou estupro. Alm disso, antes de se aventurar na cidade preciso se organizar,

    mobilizar meios ou redes de solidariedade no sentido de suprir sua ausncia no espao

    domstico, para viabilizar sua vida como trabalhadora. Quem est mais sujeita a este tipo de

    experincia so as que residem em reas perifricas, ou seja, o posicionamento de classe e de

    gnero as coloca em um tensionamento no espao urbano que influenciam suas prticas de

    resitncia (e enfretamento) e, consequentemente, seus interesses.Considerando mulherescomo abstrao, verdade que tm interesses em comum. No

    entanto, no h consenso sobre quais interesse so e como elas so formuladas. Isto porque

    no h uma teoria casual, aplicvel, universal e adequada que explique a subordinao das

    mulheres, assim como um interpretao geral de como os interesses das mulheres podem ser

    interligados. Uma teoria dos interesses que tem aplicao no debate sobre a capacidade das

    mulheres em lutar e se beneficiar de mudanas sociais deve iniciar-se a partir do

    reconhecimento da diferena do que assumindo a homogeneidade (Molyneux, 2010, p. 22).

    7Realizadas no mbito do trabalho de pesquisa de tese de doutorado em curso.

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    Ao nosso ver, esses interesses, que podem gerar processos de resistencia, derivam

    tanto daquilo que Maxime Molyneux (2010) chama de interesses estratgicos e interesses

    prticos que esto diretamente ligados a subjetividade das mulheres e de seu diferente

    posicionamento na sociedade: classe, gnero, raa, gerao, etc.

    Diferente dos interesses estratgicos, os interesses prticos so formulados por

    mulheres que esto nessa posio do que fora das interaes e contradies. Por isso, so

    interesses que se divergem quanto quelas que procuram a emancipao ou a igualdade de

    gnero. Quando a vida familiar est ameaada, e o Estado no provm suas necessidades, as

    mulheres tendem a se organizar, normalmente as mais pobres, para mobilizao de recursos

    (Molyneux, 2010). O desafio, segundo Molyneux, compreender que os interesses prticos

    no desafiam as formas predominantes de subordinao de gnero, e que mesmo sendo em

    parte produto da subjetividade, tais interesses no podem ser considerados como imunes aos

    efeitos de classe. Esse entendimento vital para a compreenso do posicionamento poltico

    dessa mulheres quando buscam se mobilizar ou pressionar por aes estritamente voltadas aos

    seus interesses prticos. E neste caso, podem entrar em conflito com os interesses estratgicos

    daquelas que esto na luta por igualdade.

    Por isso, reconhecer aquilo que caracterizamos como os espaos generificados de

    resistncia na cidade sejam eles constitudos por prticas sociais ligadas aos interessesestratgicos, sejam eles ligados aos interesses prticos, fundamental para nutrir o debate da

    poltica urbana para que se busque a constituio de uma cidade mais justa socialmente. Desta

    forma, a cidade no pode ser algo fechado e acabado. Ela deve ser aberta s interferncias

    daqueles(as) que esto margem, tensionando os(as) que esto no centro, tanto por suas

    prticas sociais que se caracterizam por formas distintas de apropriao do espao urbano,

    quanto por prticas polticas de presso e participao nas esferas pblicas.

    Referncias Bibliogrficas

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