ESPAÇO NACIONAL E AMAZÔNIA · produção do espaço nacional por dois motivos principais: o...

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Título da pesquisa O ESTADO BRASILEIRO E O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO NO ACRE Simone Martinoli Madeira Campos ESPAÇO NACIONAL E AMAZÔNIA A CONCEPÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO TRABALHO PROGRAMADO 2 VERSÃO PRELIMINAR DO CAPÍTULO 2 Orientador: Csaba Deák 2004

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Título da pesquisa

O ESTADO BRASILEIRO E O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO NO ACRE

Simone Martinoli Madeira Campos

ESPAÇO NACIONAL E AMAZÔNIA

A CONCEPÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

TRABALHO PROGRAMADO 2

VERSÃO PRELIMINAR DO CAPÍTULO 2

Orientador: Csaba Deák

2004

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 39

Introdução

Como vimos no capítulo anterior, o Estado é o elemento fundamental do processo de

produção do espaço nacional. Controlando os elementos de organização do espaço -

cidades, fronteiras, sistemas de comunicações e transportes, estratégias militares, entre

outros - o Estado controla aquilo que deve ser distribuído ou integrado, organizando o

espaço nacional de acordo com os interesses dominantes. Desta maneira, o espaço

produzido reflete as relações de poder e os interesses desta sociedade, o modo de

produção capitalista vigente e também o modo de reprodução desta sociedade.

Apoiados numa perspectiva histórica do processo de incorporação e integração do

território brasileiro identificamos dois momentos específicos neste processo, momentos

estes sobre os quais estruturamos este trabalho. O primeiro destes momentos,

caracterizado pelos movimentos de conquista territorial e definição de fronteiras,

identificamos como o momento de constituição do território nacional. Ele ocorre a partir

da Independência brasileira e é concluído com a solução das últimas fronteiras durante a

primeira década do século XX.

O segundo desses momentos, identificado como o momento de produção do espaço

nacional propriamente dito, é principalmente marcado pela crescente intervenção do

Estado nos diferentes setores da economia, especialmente através da implantação de

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planos e projetos de infra-estrutura. Este momento tem início na década de 1930, a partir

da Revolução de 30, e se estende até meados da década de 1970.

Vale destacar que a identificação da Revolução de 30 como o início deste segundo

momento se deve ao fato de que ela representou uma ruptura com a elite agrícola

dominante, a partir do que foi possível uma expansão acelerada da indústria brasileira. É

verdade que o processo de produção do espaço com vistas à constituição do mercado

unificado só pode ser percebido de maneira acentuada a partir da década de 1950, no

entanto, isso não desqualifica as duas décadas anteriores como parte de um novo

momento que culminará propriamente na produção do espaço nacional a partir da

década de 50.

No que diz respeito à Amazônia, pretendemos analisar os instrumentos e a forma como o

Estado brasileiro relacionou a produção do espaço nacional e a Amazônia, buscando

apreender seu papel dentro do processo de produção do espaço nacional e a forma como

ela é concebida por parte do Estado brasileiro. A interpretação da realidade amazônica

teve como ponto de partida sua condição de parte constituinte do território brasileiro,

cuja incorporação territorial e organização espacial são função do Estado brasileiro,

considerando inclusive as peculiaridades relacionadas à sua localização estratégica para

a defesa e segurança nacionais.

De maneira sintética podemos afirmar que a Amazônia tem importância no processo de

produção do espaço nacional por dois motivos principais: o primeiro deles está

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relacionado ao processo de constituição do mercado nacional e o segundo está

relacionado às questões de defesa e segurança nacionais.

Com relação à constituição do mercado nacional, a Amazônia era a fronteira econômica

a ser expandida, uma das porções do território brasileiro que deveria ser integrada pelo

processo de homogeneização do espaço nacional com vistas à expansão da forma-

mercadoria. A Amazônia deveria ser integrada a partir de planos e projetos de infra-

estrutura, que deveriam implantar um sistema de circulação e uma rede de núcleos, o

que permitiria a expansão do mercado nacional sobre o território amazônico.

Já no que diz respeito às questões de defesa, a condição amazônica definida por sua

localização estratégica em relação às fronteiras é o ponto fundamental. Limite de

fronteira com sete países sul-americanos, as políticas desenhadas para a região

colocavam em posição de destaque o tema da defesa nacional e a necessidade de sua

ocupação territorial, inclusive considerando as concepções militares e geopolíticas. Sob

este enfoque, a produção do espaço na Amazônia deveria ocorrer de forma a constituir

as condições necessárias à defesa e soberania brasileiras.

Desta forma, o processo de incorporação e integração da Amazônia ao território

brasileiro faz parte do processo de constituição do espaço brasileiro e está diretamente

relacionado aos momentos políticos e econômicos de cada período histórico que o

constitui. Este processo reflete, no espaço produzido, a forma de reprodução social da

sociedade brasileira e suas relações de produção e poder.

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2.1 – ILHA-BRASIL – A CONSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO NACIONAL

A Amazônia foi definitivamente incorporada à concepção de território brasileiro a partir

do movimento de constituição do território nacional ocorrido durante o período do

Império. Contribuiu largamente para isso o mito da Ilha-Brasil, que projetava as

fronteiras do território herdado nos limites das bacias dos rios Prata e Amazonas, que

deveriam ser ligados em algum lugar no interior do Brasil1.

Embora a idéia do território herdado incorporasse a Amazônia, seu território, assim

como suas fronteiras, estavam longe de ter seus limites definidos ou ocupados no

momento da Independência brasileira. No período anterior, do Brasil colônia, as

bandeiras tinham expandido o território brasileiro, “balizando o contorno da nossa atual

fronteira”2, no entanto, havia imensas áreas, algumas limítrofes, indefinidas e sujeitas à

conquista, ocupação e disputas, tanto na porção norte quanto na porção noroeste do vale

amazônico3.

1 Diferentes autores desenharam possíveis ligações entre as duas principais bacias de nosso território. Uma das propostas sugere a utilização de diferentes modos de transporte na interligação das bacias do Prata, Amazonas e São Francisco, em algum ponto localizado no planalto central brasileiro. Outra proposta era a de ligação através dos rios Paraguai/ Guaporé- Madeira (hoje estados de Mato Grosso e Rondônia), inclusive ligando-os por ramos ferroviários numa previsão de uma futura ligação intermodal das duas bacias. 2 MATTOS, Carlos de Meira. 1975. Brasil - geopolítica e destino. 2ª edição. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1979. p. 22. 3 Também havia faixas de fronteira brasileiras indefinidas nas divisas com o Mato Grosso e na região sul.

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Como um exemplo da dimensão da expansão realizada pelo movimento bandeirante, a

bandeira de Raposo Tavares, a mais importante ocorrida na região amazônica, desenhou

os contornos da atual fronteira norte e noroeste brasileira, ao estabelecer os fortes de São

José de Macapá – hoje Macapá; São Joaquim – hoje Boa Vista; São José de Marabitanas

– no alto Rio Negro; São Gabriel – no Rio Negro; Tabatinga – que deu origem ao

município de mesmo nome na margem do rio Solimões; e Príncipe da Beira – na

margem do rio Guaporé, hoje Estado de Rondônia.

Mapa 1.0 – Fortes fundados pelos bandeirantes

*Fonte: IBGE. Cartografias, 1980.

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No momento da Independência brasileira, quando a elite colonial se organizou em torno

do Estado independente interessada na manutenção de seu modo de produção - baseado

no latifúndio, no trabalho escravo e na exportação de produtos tropicais - uma das

construções ideológicas erguidas com o propósito de sustentar estes interesses foi

justamente a da Ilha-Brasil.

Tal ideologia projetava a nação brasileira sobre um todo geográfico, quase insulado, que

emanava da natureza e havia sido herdado dos portugueses. O desafio desenhado por

esta ideologia era a consolidação da nação brasileira sobre este território herdado, que

deveria ser integrado, estruturado e civilizado.

“O mito da Ilha-Brasil reflete o sentido de destino nacional construído a

partir da Independência. Ele ancora o Estado brasileiro nos desígnios da

natureza, sacraliza o território, delimita os seus contornos e define uma

base de princípios para a política externa no âmbito sul-americano.”4

A construção deste todo territorial se deu como uma operação do governo imperial

brasileiro, que construiu a concepção de tal integridade como poderosa característica

brasileira. Fez parte dessa operação a centralização do governo imperial, que foi

fundamental justamente na construção desta integridade territorial baseada na unidade

política e num governo centralizado5.

4 MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p.108. 5 As concepções sobre o território brasileiro também foram marcadas pelo movimento de apropriação territorial vivido nos Estados Unidos, que deu origem à expressão ‘destino manifesto’, ainda na década de 1840, se referindo à onda de pioneiros que, em busca de ouro, deslocavam a frontier para além do vale do Mississipi. Na verdade, ‘destino manifesto’ era uma expressão que bem designava o nacionalismo

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Através desta operação ficavam escamoteados não apenas os verdadeiros interesses da

elite dirigente, mas também as particularidades que caracterizavam as províncias

brasileiras, a estrutura fundiária brasileira e as contradições sociais e raciais da sociedade

brasileira.

“o projeto de centralização, que então se buscou, impôs a formação de uma

estrutura institucional e administrativa que abrangesse o conjunto do país.

No enfrentamento das pressões inglesas pela extinção do tráfico de escravo,

e mesmo na consolidação da estrutura fundiária, os interesses da classe

proprietária tiveram que ser articulados em escala nacional.”6

Se a ideologia era outra, a forma de conquista territorial da Amazônia durante o período

imperial não diferiu daquela ocorrida no período colonial. Ou seja, foi caracterizada pela

ocupação territorial de caráter colonizador e pelo modo de produção extensivo e

expatriador que caracterizava a atividade extrativista. Seu vasto território, fonte de

matérias-primas cobiçadas, foi alvo de políticas que incentivavam sua ocupação

territorial através de processos migratórios e do desenvolvimento de atividades

econômicas, especialmente daquelas relacionadas às matérias-primas em ascensão, entre

elas o cacau, a borracha e especiarias.

expansionista americano, marcado pela dialética entre a border e a frontier, onde a primeira significava a fronteira política nacional e a segunda se referia à frente pioneira de colonização, o limite da zona povoada. A predestinação geográfica intrínseca ao conceito sugeria o direito à fronteira natural, ou seja, àquela fixada pela natureza, que no caso americano significava os oceanos Pacífico e Atlântico. 6 MORI, Klára Kaiser. 1996. Brasil: urbanização e fronteiras. Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. p.131-132

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Tais políticas incentivavam principalmente os processos migratórios do nordeste, o

assentamento em núcleos ao longo dos rios amazônicos, a produção extrativista de

matérias-primas e a produção de alimentos para subsistência. De maneira geral, a

retórica que sustentava tais políticas destacava a preocupação com sua rarefeita

ocupação territorial e a necessidade de amenizar os problemas causados pela seca na

região nordeste.

Por outro lado, havia também a preocupação com o interesse internacional na região. A

partir de meados do século XIX o governo imperial passou a perceber a estratégia sul-

americana dos Estados Unidos como uma fonte de ameaça ao domínio brasileiro sobre o

território amazônico. Provocavam esta preocupação os planos e projetos norte-

americanos para a ocupação da Amazônia por meio de assentamento e traslado de

colonos e escravos, os planos de integração da produção escoada pelos rios Mississipi e

Amazonas no Golfo do México e por fim a defesa da livre navegação nos rios

amazônicos.

“O Amazonas, nas páginas cor-de-rosa do imaginoso tenente [Tenente

Mathew Maury, superintendente do Serviço Hidrográfico do Observatório

Naval de Washington] transformava-se num verdadeiro Vale da Promissão,

pois oferecia todos os produtos que brotavam do seio da terra, à exceção do

chá. [...Além do] fato surpreendente de que os navios norte-americanos, ao

saírem na foz do Amazonas, seriam logo trazidos, pelas correntes oceânicas

e pelo rumo dos ventos, em direção ao sul de seu país. [...] A visão de Maury

ia ainda muito além, ao provar que o Mississipi e o Amazonas tinham

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destinos comuns, pois ambos desaguavam no golfo do México (o segundo

indiretamente, através do Orenoco e do Gulfstream) numa região

distinguida pela importância natural, que hoje se diria geopolítica, e que

Maury sonhou torná-la the cornucopia of the world”7

Na década de 1850, no momento da regulamentação da navegação à vapor nos rios

amazônicos, a pressão exercida pelos interesses comerciais americanos, ingleses e

franceses influenciou os termos do relacionamento entre o Império e os países

amazônicos vizinhos. O governo brasileiro receou facilitar a entrada e o estabelecimento

de estrangeiros em uma vasta região quase despovoada e optou pelo monopólio da

navegação amazônica, concedendo-a ao Barão de Mauá8.

“A fluidez da ocupação humana do ecossistema amazônico, dificultando a

projeção direta de poder, e as virtualidades estratégicas da rede fluvial,

capaz de abrir o interior do continente à navegação internacional, serviram

para conferir densidade e dramaticidade aos contenciosos de soberania”9

A partir deste episódio a preocupação com a baixa densidade populacional amazônica,

média inferior a 1 hab/km² na década de 1930, esteve presente e todas as políticas,

discursos e projetos para a região. Na verdade não era apenas a baixa densidade

7 TOCANTINS, Leandro, 1961, Formação Histórica do Acre, v.1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979. p. 113. 8 Com relação aos países vizinhos a opção foi o estabelecimento de acordos bilaterais de navegação. Em 1851 foi estabelecido um tratado bilateral de navegação com o Peru. Por outro lado a Bolívia decidiu abrir os portos do Madeira e Mamoré, pressionando o governo brasileiro, o que levará à disputa pelo Acre, que veremos adiante. 9 MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p.175.

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populacional que preocupava, mas também a maneira dispersa e extensiva de ocupação

do território, característica do modo de produção extrativista que foi consolidado durante

os séculos XVIII e XIX.

No contexto brasileiro, apesar da Independência e da retórica em defesa do território

nacional, a elite colonial, agora imperial, continuou detentora do controle sobre os meios

de produção, “especialmente através do controle sobre o movimento de ampliação do

território, e sobre as formas de apropriação da terra”10.

“A privação do campesinato brasileiro do acesso legal à terra, mas

assegurando-se-lhe, simultaneamente, a subsistência, através do regime de

‘favor’, operava, portanto, no sentido oposto ao da formação do

trabalhador ‘livre’.” 11

Apesar dos esforços no sentido contrário, na segunda metade do século XIX, o trabalho

assalariado no Brasil caminhava para sua generalização12 e transformações no espaço

nacional ocorriam no sentido de formação de um mercado interno, ambos necessários ao

desenvolvimento da produção capitalista.

No que diz respeito à Amazônia, nem o movimento de assalariamento do trabalhador

chegou a alcançar de maneira importante a economia da Amazônia, nem o processo de

10 MORI, Klára Kaiser. 1996. Brasil: urbanização e fronteiras. Tese de doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. p.65. 11 MORI, Klára Kaiser. 1996. Brasil: urbanização e fronteiras. Tese de doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.p.66. 12 DEÁK (1999) sustenta esta afirmação exemplificando com a Lei da Terra e a abolição do tráfico negreiro, ambas promulgadas em 1850.

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transformação do espaço. Durante os anos do Império, o papel da Amazônia no território

nacional esteve diretamente relacionado à construção ideológica da integridade do

território nacional pretendido pela elite imperial, e não aos primeiros indícios de

constituição do mercado nacional.

No contexto nacional, o movimento em direção à industrialização, as referidas

transformações do espaço nacional no sentido da constituição de um mercado interno e o

movimento de generalização do trabalho assalariado, entre outros, não agradava à elite

oligárquica, que se organizou com o objetivo de reafirmar suas bases de sustentação.

Desta organização resultou a Proclamação da República, que supostamente rompia com

o passado, mas na verdade serviu para a manutenção do modo de produção vigente.

Através da República ficaram preservados os interesses da elite agrícola produtora de

café, em detrimento dos interesses do processo de industrialização. Este foi mais um

momento dentre os diversos momentos do debate entre os interesses agrícolas e os

interesses pela industrialização, que permearão a história da industrialização no Brasil.

A transformação ocorrida a partir da foi o enfraquecimento da unidade do Estado

construída durante o Império. MORI (1995) afirma que o federalismo instituído com a

República teve fundamental importância no “enfraquecimento do caráter unitário do

Estado, evitando que a mudança do regime pudesse conduzir a um processo de

unificação econômica efetiva do país, e, portanto, à eliminação dos entraves à

acumulação. Na negação dos avanços havidos no processo de integração ao longo do

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Império, o movimento carregou as marcas de um recuo político em relação à efetivação

de um projeto nacional”13.

Assim como enfraqueceu o caráter unitário do Estado, enfraqueceu também a ideologia

que conduzia ao mito da Ilha-Brasil e à integridade territorial. No que diz respeito ao

território, a defesa do território nacional e a importância de sua integridade só estiveram

presentes no período da Primeira Republica devido algumas disputas territoriais em

áreas de fronteiras e à presença do Barão de Rio Branco, que conduziu a diplomacia

brasileira desde o governo de Rodrigues Alves até o de Afonso Pena.

Rio Branco defendia a “necessidade de preservar a qualquer custo uma unidade nacional

que ele encarava como ainda precária”14. Sua defesa do território brasileiro se tornou

ferrenha diante das disputas territoriais que ocorreram em diferentes pontos do território

brasileiro - entre eles, a questão de Palmas ou das Missões, do Amapá e do Acre – no

período que compreende as duas últimas décadas do século XIX e a primeira década do

século XX. Ele foi o responsável brasileiro pela solução destas disputas, todas elas

solucionadas diplomaticamente.

“‘Território é poder’, frase atribuída ao Barão, exprime o essencial da

questão: o território em si pode não ser o poder mas é certamente sua base,

sua ‘condição de possibilidade’ .”15

13 MORI, Klára Kaiser. 1996. Brasil: urbanização e fronteiras. Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. p.134. 14 MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p.208. 15 RICUPERO, Rubens. 2000. Rio Branco: o Brasil no mundo. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2000. p.28.

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Por outro lado, neste mesmo momento, ganhou destaque o discurso sobre a posição

brasileira no continente sul-americano, inspirado pelas concepções do ‘pan-

americanismo’16. Esta idéia dominou a concepção de continente americano do governo

republicano brasileiro e, no final do século XIX, ganhou como adepto o Barão de Rio

Branco, que defendia que o Brasil deveria consolidar sua liderança sul-americana como

o elo entre os Estados Unidos e a América do Sul, consolidando seu papel como pólo

sul-americano.

“o desafio do pan-americanismo consistia em produzir uma representação

ideológica viável, capaz de transfigurar a unidade puramente geológica do

continente [americano] em comunhão de história e destino.”17.

Foi neste contexto que finalmente se constituiu o território brasileiro, com a solução das

últimas fronteiras indefinidas, já na primeira década do século XX. Marcada pelos

elementos que sustentavam a ideologia republicana, entre eles o federalismo que

enfraquecia a integridade territorial, pelo pan-americanismo que focava a discussão

sobre o território sul-americano e pelas disputas territoriais de fronteiras que reacendiam

a ideologia nacionalista em defesa do território nacional.

Num sentido contrário à idéia de território brasileiro construída no momento da

Independência – de uma unidade territorial centralizada política e administrativamente, a

16 O pan-americanismo surgiu com a emergência da liderança americana nas Américas, sua origem está na Doutrina Monroe, numa prática ideológica, política e diplomática que estabelecia uma unidade essencial ao continente americano, separando-o do ‘Velho Mundo’. 17 MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p. 192 – 193.

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concepção do território brasileiro durante a Primeira República se apresentava dispersa e

descentralizada. O foco sobre o federalismo e sobre o pan-americanismo atuava

exatamente no sentido contrário àquele pretendido pela ideologia da integridade do

território nacional construída no momento da Independência.

Durante a Primeira República não interessava à elite brasileira a idéia da integridade do

território brasileiro, uma vez que esta idéia levaria justamente às condições necessárias à

generalização do trabalho assalariado, à urbanização e à industrialização. A concepção

de território nacional da elite dominante pautava-se pela defesa dos interesses agrícolas

contra o processo de industrialização, ao qual é inerente a generalização da forma-

mercadoria através da homogeneização do espaço, da urbanização e da expansão do

trabalho assalariado, entre outros.

A exceção ao referido processo de descentralização vivido durante a Primeira República

foi o processo de definição das fronteiras em situação de disputa, solucionadas por Rio

Branco até o final da década de 1900. Este processo, motivado por movimentos que

conjugavam pressões internas e externas ao Estado brasileiro, ocorreu à revelia dos

interesses da elite brasileira e foi o último passo no sentido de conquista e incorporação

territorial do território brasileiro18. Com a definição destas fronteiras ficou constituído o

território brasileiro.

No que diz respeito à Amazônia, o processo de definição das últimas fronteiras, durante

as primeiras décadas do século XX, foi fundamental no processo de sua constituição 18 A parte deste processo que nos interessa, aquela relacionada à definição das fronteiras acreanas, será tratada no próximo capítulo. Lá será possível melhor vislumbrar a postura do governo brasileiro, e por conseqüência da elite brasileira, com relação ao território brasileiro, durante a Primeira República.

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como parte do território brasileiro. Não apenas pela configuração de suas fronteiras

territoriais, mas principalmente pelo que foi construído neste processo, ou seja, a idéia

de seu pertencimento ao território brasileiro.

“E tudo isso se fazia, como ele [Barão de Rio Branco] mostrou com clareza e

realismo, porque ‘o problema só se podia ou pode resolver ficando

brasileiros todos os territórios ocupados pelos nossos nacionais.”19

2.2 – A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL – 1930 A 1980

O território brasileiro foi finalmente constituído na primeira década do século XX, com

a solução das disputas sobre as últimas fronteiras ainda indefinidas. Constituído o

território brasileiro teve início o movimento de produção do espaço nacional, onde os

esforços do Estado brasileiro estavam centrados na homogeneização do espaço nacional,

com o objetivo de constituir o mercado interno brasileiro. Este novo momento foi

caracterizado por um novo discurso sobre o território brasileiro, que agora precisava ser

ocupado, organizado e integrado, o que consequentemente levaria a sua

homogeneização, ainda que limitada às porções do território.

19 RICUPERO, Rubens. 2000. Rio Branco: o Brasil no mundo. Editora Contraponto. Rio de Janeiro, 2000. p.29.

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O período que identificamos como o momento em que se deu o processo de produção do

espaço nacional teve início na década de 30, sob o governo de Getúlio Vargas, e se

estendeu até meados da década de 70, sob o governo militar.

Como já mencionamos, a identificação da Revolução de 30 como o início deste período

se deve ao fato dela ter rompido com os interesses da elite agrícola dominante,

caminhando no sentido de centralização do poder do Estado e de expansão da indústria

brasileira. Este processo de centralização do poder do Estado trazia, em suas entrelinhas,

a estruturação do aparelho estatal e de sua burocracia, que por sua vez seriam os

responsáveis pela elaboração e implantação dos planos que modificavam a realidade

brasileira.

Vale destacar que os planos de desenvolvimento, propriamente dito, ganharam

importância e destaque a partir da década de 50, no entanto, nas duas décadas anteriores,

algumas das questões que seriam elementos centrais dos planos de desenvolvimento já

eram temas de interesse nos discursos e em políticas isoladas, caracterizando os

primeiros passos no sentido da produção do espaço nacional.

Entre os temas mais destacados nos planos de desenvolvimento estava a integração

nacional, que pretendia a integração de todo o território brasileiro através da implantação

de infra-estrutura de comunicações e transportes. Na verdade a defesa da integração

nacional se configurou como um discurso que sustentava justamente o processo de

produção do espaço nacional, que pretendia a constituição do mercado interno brasileiro.

A defesa da integração nacional contribuiu ainda para o destaque de elementos das

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concepções geopolíticas, especialmente aqueles relacionados à defesa e soberania

nacionais, temas que orientaram e sustentaram a elaboração de parte dos planos de

desenvolvimento.

No que diz respeito à Amazônia, como já mencionamos na introdução deste trabalho, ela

tem importância no movimento de produção do espaço nacional por dois motivos

específicos. O primeiro deles está relacionado ao processo de constituição do mercado

nacional, uma vez que a Amazônia era uma das porções do território brasileiro que

deveria ser integrada ao espaço nacional, expandindo assim o mercado interno brasileiro.

O segundo destes motivos está relacionado às questões de defesa e segurança nacionais,

uma vez que sua localização estratégica em relação às fronteiras brasileiras e as

características de sua ocupação territorial colocam os temas da defesa e soberania

nacionais em posição de destaque, quando não de prioridade, nas políticas para

Amazônia.

Por serem variadas e extensas as questões que envolvem o processo de produção do

espaço nacional neste período, optamos por organizá-las segundo os temas mais

relevantes para nosso estudo. Assim serão abordados: (1) os planos de desenvolvimento

que desenharam a organização do espaço brasileiro no período; (2) as concepções

geopolíticas que sustentaram os planos de desenvolvimento; e (3) o processo de

integração da região amazônica ao espaço nacional.

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2.2.1 – Os planos de desenvolvimento e a integração nacional

Com a constituição do território nacional nas primeiras décadas do século XX, o

movimento que o sucede é o de produção do espaço nacional propriamente dito. A partir

da década de 1930, a meta da política territorial brasileira foi a integração territorial

brasileira, com o objetivo de constituir o mercado interno brasileiro, condição necessária

ao processo de industrialização brasileiro que vivia uma fase de ascensão.

“No nível político, pode-se afirmar que a Revolução de 30 veio ao encontro

da necessidade de se constituir um Estado capaz de promover a unificação

do mercado nacional em face do processo de industrialização que se

consolidava.”20

Neste novo momento as políticas territoriais brasileiras foram influenciadas pela política

de industrialização brasileira e pelas teorias geopolíticas a cerca da defesa nacional. Foi

a partir deste novo enfoque que obtiveram destaque as políticas de desenvolvimento e de

integração territorial que sustentaram o processo de produção do espaço nacional no

período de 1930 a 1980.

A partir da década de 30 houve um processo de estruturação e burocratização do aparato

estatal, inclusive através da criação de ministérios, órgãos e departamentos, que criou

condições para o crescimento da intervenção do Estado na estrutura do país. 20 SCHIFFER, Sueli T. Ramos. 1999. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. P.73-110. In: DEAK, C., SCHIFFER, S. T. R., (orgs.), O processo de urbanização no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. p.86.

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Os planos elaborados a partir da década de diferiam das políticas anteriores devido a sua

concepção integral dos elementos que compunham a realidade brasileira. Até então,

respeitadas as variantes de cada momento histórico, os planos elaborados eram na

verdade projetos isolados, normalmente focados sobre problemas específicos e centrados

basicamente sobre o sistema de circulação.

Entre estes antigos projetos está um projeto de 1852, que propunha a ligação ferroviária

entre São Paulo e a fronteira mato-grossense. Sustentava esta proposta o argumento de

que era necessário alcançar o Mato Grosso por uma linha estratégica que permitisse ao

governo central levar mais facilmente a sua ação política e militar até as fronteiras

meridionais e ocidentais do país. Ainda no século XIX, esta proposta foi retomada

quando a guerra do Paraguai revelou a vulnerabilidade do trajeto fluvial platino e a

inexistência de alternativa de acesso ao ‘interior do Brasil’21.

Estes primeiros projetos de interligação supunham, não apenas o acesso ao ‘interior

brasileiro’, pretendiam também a extensão da planejada artéria estratégica para além dos

limites do Brasil, até alcançar o Pacífico. Este objetivo era uma espécie de consenso

apresentado pelo Plano Bicalho, em 1876. Depois dele, os planos Bulhões e Rebouças

também previam uma ou mais ligações transcontinetais, todos eles evidenciando uma

clara influência da concepção do pan-americanismo e dos exemplos americano, da

Transiberiana e da trans-continental sul-americana 22.

21 Durante esta guerra as tropas que partiram de São Paulo para socorrer o Mato Grosso demoraram mais de um ano para chegar a seu destino. 22 Ainda no século XIX foi concluída a primeira ligação transcontinental sul-americana, ligando Buenos-Aires a Valparaíso, via Mendoza. Por outro lado, no Brasil, a estrada de ferro Noroeste já tinha sido

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Mapa 2.0 – Plano Bulhões – 1882

*Fonte: MATTOS, C. M. Brasil - geopolítica e destino. 1975. p.46.

Também centrado nas vias de comunicação, porém já em 1926, Pandiá Calógeras,

propôs “a vertebração do território ainda invertebrado”23 através da construção de cerca

de 13.000km de ferrovias complementadas com rodovias e transportes marítimo e

fluvial que abrangeria todo o território brasileiro.

iniciada, mas somente em 1910 foi inaugurado o trecho Bauru-Itapura, com o encontro dos trilhos em Campo Grande. Em 1917 a ferrovia foi concluída e ligada à Sorocabana e à Paulista. (MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p.282.) 23 MATTOS, Carlos de Meira. 1975. Brasil - geopolítica e destino. Livraria José Olympio Editora. 2ª edição. Rio de Janeiro, 1979. p.51.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 59

No entanto, foi a partir da década de 1930 que a burocracia do Estado passou a elaborar

planos de desenvolvimento econômico, obras públicas, viação e defesa nacional.

Associada ao processo de estruturação do Estado brasileiro e ao “crescente papel do

Estado na conformação da sociedade e do espaço nacional” 24, as teorias geopolíticas

obtiveram espaço e destaque e marcaram fortemente os planos que se sucederam.

A ascensão dos planos de desenvolvimento está diretamente relacionada ao início do

processo de industrialização, especialmente concentrado em São Paulo, que levou à

substituição da atividade agrícola que caracterizava a economia brasileira. A indústria

em ascensão necessitava de um mercado interno constituído, que, assim como a

ocupação territorial, era caracterizado pela dispersão, fragmentação e por vezes, pelo

isolamento.

Desta maneira, a meta de integração territorial trazia, em suas entrelinhas, o objetivo de

constituição e unificação do mercado nacional, que para ser implantado fez uso de

políticas e planos integrados, especialmente a partir do final da década de 30.

O processo de produção do espaço durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) se

deu através de políticas econômicas e de investimentos em infra-estrutura e em

atividades econômicas. Com o sentido de organização do território e do processo

produtivo, Vargas estruturou o aparato estatal criando ministérios, órgãos e

departamentos; investiu no processo de regulação da legislação trabalhista, sustentando

o processo de assalariamento no país; implantou políticas de ocupação e colonização das

24 BECKER, B. K., A geografia e o resgate da geopolítica, 1988. In: Revista Brasileira de Geogafia, Ano 50, nº especial, Tomo II. FIGBE, 1988. p.110.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 60

áreas menos povoadas; elaborou um plano nacional de vias. Durante seu governo, de

caráter nacionalista, foram debatidos temas como a emancipação econômica, a

industrialização baseada no capital nacional, a ocupação do território, as relações cidade-

campo, entre outros.

Em seu segundo governo (1950-1954), a relação entre o Estado e a economia ganhou

novo impulso. Os esforços do governo brasileiro se concentraram na implantação de

infra-estrutura, no fortalecimento da economia e no incentivo ao desenvolvimento

industrial. Neste período foram criados a Companhia Siderúrgica Nacional, A

USIMINAS, a Petrobras, a Eletrobrás e o BNDE, entre outros. Todos estes

investimentos estavam relacionados à indústria de bens de produção, que por sua vez

sustentaria o desenvolvimento dos demais ramos industriais.

No final do governo de Getúlio Vargas, em 1954, aquele Brasil de 1930, rural, agrário e

fragmentado politicamente tinha se alterado profundamente. Em 1954 a idéia de nação

brasileira havia sido construída sobre um país que se tornava industrial, urbano e com

poder centralizado.

Em 1956, o Programa de Metas de Juscelino Kubitschek provocou uma nova e

importante transformação na economia brasileira, privilegiando o desenvolvimento

econômico principalmente através da industrialização, e impulsionando o setor privado

nacional e estrangeiro. No que toca a produção do espaço, ele investiu na construção de

rodovias nacionais, buscando a integração territorial do país e a articulação inter-

regional através das vias de circulação, além da construção de Brasília que abordaremos

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 61

de forma mais detalhada adiante, mas que forjou o mercado interno brasileiro e

representou um avanço da ocupação territorial em direção ao interior do Brasil. A partir

do Programa de Metas as rodovias se tornaram importante instrumento, senão o

principal, no processo de consolidação da integração do interior do Brasil.

“A construção de estradas rodoviárias nas décadas de 1940 e 1950 visaram

impulsionar a imprescindível incorporação ao mercado nacional das

demais regiões brasileiras à região Sudeste desenvolvida. Regiões aquelas

que teriam importante papel como fornecedoras de mão-de-obra e

consumidoras e produtos manufaturados dos centros industrializados

[...]”25

Os efeitos da implantação do Programa de Metas ultrapassaram qualquer outro plano de

integração já implantado. Ele foi um plano de expansão industrial brasileira dentro do

subsistema capitalista, ou seja, associado ao capital externo. Dentre seus efeitos está o

acelerado processo de urbanização, que elevou o índice populacional urbano de 36,2%

em 1950 para 44,6% em 1960.26

SCHIFFER (1989) destaca, no entanto, que se por um lado as diretrizes do Programa de

Metas “induziram o aceleramento do processo de unificação do mercado nacional com

25 SCHIFFER, Sueli T. Ramos. 1999. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. P.73-110. In: DEAK, C., SCHIFFER, S. T. R., (orgs.), O processo de urbanização no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. p.87. 26 SCHIFFER, Sueli T. Ramos. 1999. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. P.73-110. In: DEAK, C., SCHIFFER, S. T. R., (orgs.), O processo de urbanização no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. p.96.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 62

vistas a viabilizar a expansão da industrialização e, por outro, conduziram este processo

de modo a restringi-lo, gerando uma acumulação entravada”27.

Isso ocorreu, entre outros motivos, porque o incentivo à industrialização brasileira

ocorrido no governo de Juscelino não significava o desenvolvimento da indústria

nacional. Pelo contrário, diferentemente do modelo nacionalista de Vargas – baseado no

capital nacional, o desenvolvimento da indústria brasileira durante os anos J.K. foi

marcado pela presença do capital internacional, o que consolidou uma economia

dependente do sistema internacional.

“O que é essencial para a compreensão desse governo e da sua política

econômica, é que se adotou, então, uma estratégia política de

desenvolvimento que acabou por consolidar e expandir o capitalismo

dependente; ou associado, segundo a perspectiva de cada governo da

época. Assim, o que distinguiria as políticas econômicas dos governos de

Getúlio Vargas (1951-1954) e Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-

1960) seria o seguinte: teria havido uma transição (casual ou deliberada,

conforme o nível em que se desenvolve a análise) de uma política destinada

a criar um sistema capitalista nacional para uma política orientada para o

desenvolvimento econômico dependente.”28

27 SCHIFFER, Sueli. 1989. As políticas nacionais e a transformação do espaço paulista 1955 – 1980. Tese de doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1989. p.30. 28 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1971. p. 149-150

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 63

Após um período de crise durante o governo de Goulart, quando as diretrizes políticas

não chegaram a ser implantadas, o golpe militar de 1964 deu início a um novo e intenso

processo de centralização das ações do Estado através do planejamento central, o que

consequentemente levou a um também intenso processo de burocratização. As políticas

implantadas pelo governo que se instaurou, tendo Castello Branco em seu comando,

interferiram em todos os setores do sistema econômico brasileiro, no sentido de

recolocação da elite brasileira no sistema capitalista, especialmente através da

associação às empresas privadas estrangeiras.

Com a implantação do PAEG – Programa de Ação Econômica do Governo, elaborado

em 1964, houve a intensificação da ação do Estado no conjunto da economia do país, a

partir do que foram reformuladas as condições de reprodução da produção e da força de

trabalho, atendendo às necessidades do processo capitalista.

A partir da implantação do PAEG teve início o processo de modernização conservadora

da atividade agrícola, organizado sobre a grande propriedade produtora de matéria-prima

para exportação ou para o setor industrial. Esta modernização da atividade agrícola

promoveu o processo de assalariamento do trabalhador rural e a instituição do crédito

rural, que desestruturaram o tradicional processo de produção agrícola e geraram o

exército de reserva de mão-de-obra rural e urbano, localizado próximo às áreas urbanas.

Apesar de não ter sido implantado, o Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e

Social (1967-1976) tem importância para nosso trabalho especialmente pelo destaque

dado à integração nacional, principal objetivo da política econômico-territorial do

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 64

Estado brasileiro, e que seria incorporado nos próximos planos. Além da meta da

integração nacional suas diretrizes priorizavam também o crescimento da indústria de

base e a implantação de infra-estrutura nas áreas de energia, transportes e comunicações,

com o objetivo de criação de um mercado nacional unificado através da integração das

diversas regiões do país através da rede rodoviária.

Seguindo basicamente a política anterior, o Programa Estratégico de Desenvolvimento,

elaborado em 1968, já durante o governo de Costa e Silva (1967-1969), priorizou

investimentos nas áreas de produção agrícola e infra-estrutura de transporte, energia e

telecomunicações. Com relação à política industrial, assim como Castello Branco, Costa

e Silva privilegiou o desenvolvimento industrial da empresa privada, nacional e

multinacional.

Em 1967 teve início o período conhecido como ‘milagre econômico’, marcado por um

processo de acelerado crescimento econômico e de expansão industrial, que levou ao

aumento da produção industrial, o crescimento do nível de emprego, o aumento das

exportações, o crescimento da renda per capita, a redução da inflação e o aumento da

arrecadação.

No auge do período do milagre econômico, o Plano de Metas e Bases de Ação do

Governo (1970-1973), elaborado no governo de Médici e centrado na manutenção do

status quo, sistematizou mais de duzentos projetos prioritários que deveriam ser

realizados no período de 1970-1973. Alguns destes projetos estavam diretamente

relacionados à Amazônia a partir da integração nacional, da transferência de excedentes

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 65

populacionais, da expansão da fronteira agrícola e da modernização deste setor. Dentre

os muitos programas, o PIN e PROTERRA foram desenhados especialmente com o

propósito de ocupação da Amazônia29.

O I Plano Nacional de Desenvolvimento – I PND, elaborado em 1971, reforçava a

estratégia de expansão dos setores econômicos e as políticas territoriais. O tripé no qual

estava baseado era: desenvolvimento econômico, integração nacional e justiça social.

Tomava partido da dimensão continental do país e pretendia incluir regiões menos

desenvolvidas no processo de desenvolvimento nacional, expandindo desta maneira a

fronteira econômica e consequentemente o mercado nacional.

Com relação ao sistema de circulação, caracterizado pelo sistema rodoviário,

SCHIFFER (1999) afirma que a ampliação da rede nacional de rodovias era uma

condicionante do processo de integração nacional que ocorrera a partir de São Paulo. Ela

demonstra, a partir dos mapas a seguir, que o processo de penetração do espaço nacional

ocorrido no período de 1955 – 1975, se deu a partir de São Paulo, com o objetivo de

alargar o mercado consumidor brasileiro, que por sua vez, era condicionante do processo

de desenvolvimento da produção industrial, baseada no modo de produção extensivo.

“Interligar o pólo industrial paulista às demais regiões visava, em primeira

instância, alargar o mercado consumidor potencial dos produtos

industrializados, além de propiciar a drenagem de mão-de-obra

(qualificada ou não) e capitais dessas regiões para investimentos de maior

29 Os programas PIN e PROTERRA serão abordados de forma mais detalhada no item 2.2.3 deste capítulo.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 66

rentabilidade nos novos empreendimentos de tecnologia avançada e

produtividade superior.”30

Mapa 3.0 – Principais rodovias pavimentadas - 1955

*Fonte: SCHIFFER, S. R. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. 1999. p.92.

30 SCHIFFER, Sueli T. Ramos. 1999. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. P.73-110. In: DEAK, C., SCHIFFER, S. T. R., (orgs.), O processo de urbanização no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. p.91

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 67

Mapa 4.0 – Principais rodovias pavimentadas - 1964

*Fonte: SCHIFFER, S. R. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. 1999. p.93.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 68

Mapa 5.0 – Principais rodovias pavimentadas - 1975

*Fonte: SCHIFFER, S. R. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. 1999. p.105.

O auge do processo de desenvolvimento que o Brasil estava vivendo aconteceu em

1973. A partir deste ano, a taxa de inflação - que viveu um processo de queda até este

momento, voltou a crescer e a tendência ascendente da inflação alcançou a taxa média

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 69

de 60% no período de 1974 a 1981, contra 19,5% entre 1967 e 1973. Desta maneira o

ano de 1973 marcou o início do processo de desaceleração do crescimento brasileiro.

Apesar dos sinais de desaceleração, o II Plano Nacional de Desenvolvimento - II PND,

elaborado em 1974, sob o governo Geisel, “concebe o Brasil como um país em processo

de desenvolvimento. A crise mundial [...]o teria atingido em meio a este processo

[...]impondo uma correção de rota” 31. Esta correção de rota não interferiu no objetivo de

construir uma moderna economia industrial inserida no sistema capitalista internacional.

A política de desenvolvimento proposta pelo II PND favorecia a acumulação

desimpedida baseada na expansão do mercado interno. Este plano pretendia ajustar a

economia brasileira à nova realidade mundial; consolidar uma economia moderna,

criando e adaptando tecnologia; implantar nova etapa de integração nacional; e

implantar uma estratégia de desenvolvimento social visando eliminar os focos de

pobreza.

Nele teve destaque a política dos pólos de desenvolvimento integrado e a política de

desenvolvimento urbano, que deveriam consolidar alguns centros urbanos e torna-los

pólos dinâmicos da economia regional, buscando minimizar as desigualdades regionais e

promover a urbanização em áreas onde este processo era considerado fraco. Em outras

palavras, a estratégia era expandir o mercado interno nacional.

31 CASTRO, A.B. & SOUZA, F.E.P. 1985. A economia brasileira em marcha forçada. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1985. p.31.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 70

Mapa 6.0 - Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – II PND

*Fonte: BRASIL, Presidência. II Plano Nacional de Desenvolvimento. 1974.

No entanto, a partir de 1976 diminui o ritmo das obras propostas pelo II PND.

BRESSER (1986) chega a afirmar que este plano era inviável já a partir deste ano.

Afirmação da qual CASTRO (1985) discorda, alegando que a estratégia do II PND

“permitiu a sustentação de uma elevada taxa de crescimento até o final da década dos

70. Além disto, por haver deslanchado transformações que se revelaram irreversíveis,

sua influência projetou-se sobre o governo instalado em março de 1979”32

32 CASTRO, A.B. & SOUZA, F.E.P. 1985. A economia brasileira em marcha forçada. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1985. p.46.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 71

Fato é que, durante os últimos anos da década de 70, o crescimento da economia ainda

que em processo de desaceleração, levou ao crescimento dos empréstimos realizados

pelo Brasil, o que se transformou na principal restrição ao desenvolvimento econômico

do país a partir de então.

Apesar da crise econômica, ainda foi elaborado o III Plano Nacional de

Desenvolvimento, pelo governo do presidente Figueiredo em 1980. Na prática, ele não

foi implantado, encerrando o ciclo dos planos de desenvolvimento e da centralização do

governo brasileiro. Na verdade, a maior importância deste plano, a partir do ponto de

vista que nos interessa neste trabalho, foi o surgimento do tema do meio ambiente e das

questões de preservação ambiental. Foi a partir do III PND, ainda em meados da década

de 80, que ocorreram as primeiras demarcações de reservas extrativistas na Amazônia.

A partir de meados da década de 80 houve um declínio absoluto dos investimentos e até

mesmo a paralisação e abandono dos projetos em implantação. Houve também o

processo de descentralização do Estado brasileiro. Até mesmo Golbery do Couto e Silva,

defensor da centralização do Estado por quase três décadas, agora sugeria a

descentralização sistemática do governo, transferindo aos Estados e municípios parte das

ações até então implantadas e controladas pelo governo federal.

“Ao terminar, abruptamente, em 1981, o longo e intenso período de

crescimento, datado de meados de 1967, a economia brasileira, com escalas

e estruturas profundamente alteradas – e colhendo os frutos da safra de

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 72

projetos integrantes da estratégia de 74 -, encontrava-se em plena mutação.

Emergia, em síntese, uma nova estrutura, cujas relações com o exterior

diferem enormemente do anteriormente estabelecido – e explicam, no

fundamental, as mudanças apontadas.”33

Se do ponto de vista das relações econômicas o período 1930-1980 foi marcado por

movimentos oscilatórios provocados pelo processo de acumulação entravada no Brasil, o

processo de produção do espaço refletir justamente estas oscilações. Apesar dos muitos

investimentos ocorridos no período, entre eles a expansão da infra-estrutura energética, a

implantação de rodovias e a criação de municípios, o processo de integração territorial e

de alargamento do mercado nacional, o processo de produção do espaço nacional não

envolveu o território brasileiro de maneira homogênea, refletindo justamente o processo

de acumulação entravada no Brasil.

SCHIFFER (1999) explica como isto ocorre da seguinte maneira:

“as desigualdades na distribuição espacial das atividades produtivas e da

renda, mais do que heranças coloniais, fazem parte da própria acumulação

capitalista além de particularmente constituírem instrumentos auxiliares

para o controle do desenvolvimento das forças produtivas internas como

forma de manutenção da classe dominante”34.

33 CASTRO, A.B. & SOUZA, F.E.P. 1985. A economia brasileira em marcha forçada. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1985. p.14. 34 SCHIFFER, Sueli T. Ramos. 1999. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. P.73-110. In: DEAK, C., SCHIFFER, S. T. R., (orgs.), O processo de urbanização no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. p.101.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 73

Em outras palavras, o processo de integração nacional baseado nos planos de

desenvolvimento que marcou majoritariamente o período aqui abordado, faz parte do

movimento cíclico da história brasileira, onde os mecanismos aplicados induzem ou

retardam o processo de acumulação. Estes movimentos, de avanços e retrocessos,

provocados pela reimposição de crises econômicas, que perpetuam o processo de

acumulação entravada no Brasil, se organizam em função da manutenção do status quo e

a partir da intervenção nos diversos setores da estrutura brasileira, dentre eles no

processo de produção do espaço, que está diretamente relacionado à formação do

mercado nacional.

“Nas crises provocadas quer por uma restrição da balança de pagamentos,

quer pelo excessivo fortalecimento da produção nacional no período

antecedente [...], as forças a favor e contra a manutenção do status quo

entram em conflito aberto. Tais crises atravessam a história brasileira em

uma sucessão aparentemente infindável desde a transmigração da corte de

D. João (1808), de geração em geração, dando a aparência de uma

‘sociedade sem história’ onde se aplicaria o adágio ‘plus ça change, plus

c’est na même chose’, na colocação de Florestan Fernandes. [...] De fato, o

que é o mesmo nessas crises é que elas foram sempre resolvidas a favor da

reimposição da primazia da expatriação de excedente sobre a

acumulação.”35

35 DEÁK, Csaba. 1999. Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80. In: DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. EDUSP. São Paulo, 1999. p.34.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 74

Um dos resultados deste processo é a diferenciação dentro do espaço nacional, que

reflete justamente o processo de produção do espaço nacional e o modo de produção

vigente.

Por outro lado, o processo de unificação do mercado nacional baseado na expansão

desimpedida da forma-mercadoria e no processo da acumulação entravada, foi concluído

até o final da década de 70. A partir de então, exauriu-se o estágio extensivo, o que deu

origem a um momento de crise que já dura duas décadas.

“A exaustão do estágio extensivo no Brasil implica a exaustão da

acumulação entravada, e a crise precisa ser resolvida mediante um embate

entre as forças sociais: seja, por um lado, a favor da manutenção da

primazia da expatriação de excedente – e da sociedade de elite – que, no

entanto, implica agora a anulação, e não mais o mero retardamento da

acumulação, vale dizer, da própria reprodução ampliada; seja, por outro

lado, a favor do princípio da acumulação com a passagem para o estágio

de acumulação intensiva, que implica, por sua vez, a anulação da

expatriação de excedente – e a transformação da sociedade que nela se

sustenta.”36

36 DEÁK, Csaba. 1999. Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80. In: DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. EDUSP. São Paulo, 1999. p. 38.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 75

2.2.2 – A geopolítica na produção do espaço brasileiro

As concepções geopolíticas são elementos importantes no processo de produção do

espaço brasileiro, no período de 1930 a 1980. Elas estiveram presentes nas estratégias de

integração territorial, nas políticas implantadas nas faixas de fronteiras, nas estratégias

relacionadas à defesa do território e da soberania nacionais, nas políticas orientadas às

porções menos povoadas do território brasileiro, entre outras. As estratégias geopolíticas

inspiraram a ocupação e integração de porções do território brasileiro, tornando-se parte

do processo de produção do espaço brasileiro.

A geopolítica não inspirou apenas as estratégias das políticas brasileiras, ela foi também

instrumento ideológico no processo de produção do espaço nacional, especialmente

através do discurso em defesa da integração nacional, que sustentou a execução das

políticas que produziram o espaço nacional. Por outro lado, temas centrais da

geopolítica, como a defesa do território e da soberania nacional, demandavam que o

espaço nacional fosse produzido, constituindo assim as condições necessárias à defesa

do território nacional.

Assim, a produção do espaço nacional foi sustentada pelo discurso da integração

nacional, enquanto a defesa do território e da soberania se apoiou justamente sobre as

condições criadas pelo espaço produzido a partir do discurso da integração nacional.

Neste processo a geopolítica foi ideologia fundamental.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 76

São duas as principais variáveis que marcaram a produção do espaço nacional quando

este estava diretamente relacionado às questões geopolíticas: a produção do espaço com

vistas à constituição do mercado interno e a produção do espaço com vistas à criação das

condições necessárias à defesa do território e soberania nacionais.

Sob este ponto de vista, a integração nacional nada mais era do que a retórica que

sustentava o processo de produção do espaço nacional. Por um lado a homogeneização

do espaço acontecia em resposta a um momento de expansão da atividade produtiva, que

demandava a constituição do mercado interno nacional como condicionante da expansão

da atividade industrial.

“O alargamento do mercado interno exige como pré-requisitos a

implantação das condições de homogeneização do espaço, como infra-

estruturas básicas, de modo a permitir a livre circulação de mercadorias,

capital e trabalho.”37

Por outro lado, a produção e homogeneização do espaço nacional respondiam às

necessidades de defesa do território. Neste ponto as políticas para a integração nacional

estavam relacionadas também ao ponto de vista militar, especialmente a partir da década

de 50, quando alguns dos principais expoentes do pensamento geopolítico brasileiro

eram militares provenientes da Escola Superior de Guerra – ESG38.

20 SCHIFFER, Sueli T. Ramos. 1999. São Paulo como pólo dominante do mercado unificado nacional. P.73-110. In: DEAK, C., SCHIFFER, S. T. R., (orgs.), O processo de urbanização no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. p.107 38 Criada em 1949, a Escola Superior de Guerra foi responsável pela doutrina fundamentada na aplicação do poder nacional. Destacava entre seus temas principais a segurança e a soberania nacional.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 77

Como conseqüência, a abordagem de alguns temas relacionados à ocupação e integração

nacional foi fortemente marcada pelo viés militar, especialmente quando estavam

relacionados à soberania nacional, já que a ESG concebia a soberania como um dos

elementos essenciais do Estado.

“[a soberania é] o imperativo de manter intangível a nação, assegurando a

faculdade de autodeterminação e a sua convivência com as demais nações

em termos de igualdade de direitos e oportunidades.”39

Apesar da freqüente identificação das teorias geopolíticas com as pretensões

expansionistas do Estado nazista alemão, os principais elaboradores brasileiros das

décadas de 50 e 60 defendiam que, a concepção geopolítica brasileira, não adotava as

concepções expansionistas ou de dominação alemãs. Defendiam que no Brasil existia

uma posição “mais flexível e realista, dos que vêem na geopolítica a percepção, o exame

e o aproveitamento das influências que a geografia oferece ao destino e ao governo dos

povos”40. Retórica ou não, SILVA (1967) definia a geopolítica como “o planejamento

da política de segurança de um Estado, em termos de seus fatores geográficos”41.

O que podemos afirmar aqui é que os principais formuladores do assunto no Brasil o

fizeram a partir da ótica de intervenção do Estado e se concentraram sobre temas

39 DREYFUSS, René Armand, A noção de soberania da Escola Superior de Guerra, p.166. In: OLIVEIRA, E. R. Militares: pensamento e ação política.. Editora Papirus, Campinas, 1987. 40 FRANCO, Afonso Arinos de Melo, 1966, Nota Introdutória. In: COUTO e SILVA, GOLBERY. 1967. Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Editora José Olympio. Rio de Janeiro, 1981.p.xiii. 41 COUTO e SILVA, GOLBERY. 1967. Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Editora José Olympio. Rio de Janeiro, 1981. p. 32.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 78

relacionados às estratégias militares de defesa nacional42. Entre estes temas estavam: a

integração nacional através das vias de circulação; a ocupação territorial de áreas de

baixa densidade populacional como condição de defesa territorial; a função da

localização da capital federal na integração do território nacional; o papel brasileiro no

continente sul-americano; a urbanização como instrumento de desenvolvimento e de

ocupação territorial; as fronteiras como instrumento de consolidação da soberania

brasileira.

No que diz respeito à relação entre as questões amazônicas e as teorias geopolíticas, sua

extensão territorial, as características de sua ocupação territorial e sua posição em

relação às fronteiras brasileiras, são os temas mais destacados. No entanto, a partir da

década de 60, o centro do debate em relação à Amazônia era a defesa de que sua grande

extensão territorial só se configuraria em vantagem política e econômica se estivesse

ocupada e povoada de maneira estratégica e duradoura.

Para atingir esta estratégia eram fundamentais a ocupação da extensão territorial

amazônica, inclusive suas faixas de fronteiras; a implantação de vias de comunicação

terrestres e fluviais, estabelecendo uma rede de comunicação; a implantação de núcleos

populacionais. Ou seja, era necessária a intervenção do Estado brasileiro no sentido de

produção e homogeneização do espaço nacional, o que nas palavras do discurso

dominante significava dizer que, com relação à Amazônia, a integração nacional era

fundamental.

42 Entre os principais pensadores geopolíticos brasileiros, que elaboraram longamente sobre o tema e influenciaram ou participaram ativamente de um ou mais governos até o final do governo militar brasileiro, estão: o general Travassos e Everardo Backheuser, principais formuladores da década de 30; o general Golbery do Couto e Silva na década de 50; e o general Carlos da Meira Mattos na década de 70.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 79

Ao relacionarmos o processo de produção do espaço nacional à Amazônia não podemos

deixar de mencionar a importância da mudança da capital federal para Brasília. Na

verdade, a proposta de mudança da capital datava do momento da Independência

brasileira, e parte dos argumentos que sustentavam esta primeira proposta esteve

presente nas demais defesas, principalmente aqueles relacionados às estratégias

territoriais. Apesar de só ter ocorrido um século e meio depois, este foi um dos passos

mais importantes no sentido de ocupação e integração do território brasileiro, e marcou a

forma como o Estado brasileiro atuou no processo de produção do espaço nacional43.

Do ponto de vista da estratégia geopolítica, a mudança da capital federal para Brasília

foi analisada de diversas formas: como plataforma para a ocupação amazônica; como

instrumento de tamponamento das vias de penetração, garantindo a inviolabilidade das

fronteiras; como elemento que neutralizaria os efeitos centrífugos das três principais

bacias brasileiras; como instrumento de reorientação da rede circulatória nacional; como

elemento centralizador do governo e do poder do Estado; como centro de propulsão do

43 A primeira proposta de mudança da capital datava de 1821, quando José Bonifácio destacou a necessidade de ‘fundação de uma cidade central no interior do país’, de onde partiriam estradas para as diversas províncias e portos, levando adiante a ‘auto-conquista’ e ‘auto-colonização’ do território brasileiro. Dois anos mais tarde Bonifácio batizou-a como Brasília. De maneira geral, as propostas do século XIX apresentavam Brasília como o agente civilizador do planalto central brasileiro, como prenunciadora de um desenvolvimento invertido, no qual a capital centralizada criaria a civilização no interior do país. O elemento central desta proposta não era apenas o fato de fundar uma nova capital, mas de fazê-lo no centro do território, em área quase desabitada, invertendo o sentido da ocupação econômico-territorial do país, que se concentrava na faixa litorânea. Em 1891 a Assembléia Constituinte fixou ‘o imperativo da construção da nova capital no planalto central’, mas a concretização da transferência da capital só ocorreu no início da década de 60, num contexto de incentivo à industrialização, de apologia às ideologias desenvolvimentistas e de constituição do mercado nacional, sob o governo Juscelino Kubitschek. Com a construção de Brasília forjou-se um mercado nacional unificado, fruto da industrialização e de uma maior intervenção do Estado no planejamento e na economia. Foi um amplo movimento de centralização e racionalização capitalista do Estado brasileiro.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 80

desenvolvimento econômico brasileiro, entre outras. Tudo somado, a construção de

Brasília configurou o heartland44 brasileiro.

Respeitados os argumentos geopolíticos, a construção de Brasília forjou, também, um

mercado nacional unificado, fruto da industrialização e de uma maior intervenção do

Estado no planejamento e na economia.

No que diz respeito à Amazônia, o deslocamento da capital federal foi elemento

importante no processo de sua integração territorial.

“[Com a inauguração de Brasília], aproximavam-se da Amazônia o

cérebro e o coração do Brasil. O centro das grandes decisões nacionais

deslocava-se para perto daquele corpo inarticulado, de 5 milhões de

quilômetros quadrados.”45

O passo seguinte, a partir da ocupação efetiva e do desenvolvimento econômico do

heartland central, seria a impulsão de uma nova onda de povoamento em direção ao

interior, ao norte e ao noroeste. Esta meta geopolítica foi definida por SILVA (1967) da

seguinte maneira:

“2ª fase – impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a

partir da plataforma central, de modo a integrar a península centro-oeste 44 O conceito de Heartland foi desenvolvido por Mackinder, geógrafo inglês que designou ‘heartland’ como o espaço central de um continente ou o coração continental, ao analisar a estruturação territorial da Rússia. Heartland seria o coração geopolítico da World island, o pólo de poder continental. 45 MATTOS, Carlos de M. 1980. Uma geopolítica pan-amazônica. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro. 1980. p.72.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 81

no todo ecumênico [sic] brasileiro; e, 3ª fase - inundar de civilização a

Hiléia Amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base

no centro-oeste, em ação coordenada com a progressão leste-oeste”46

A partir da construção de Brasília e dos quase 6.000km de rodovias47 que a interligavam

às demais porções do território brasileiro, o olhar geopolítico sobre a região amazônica

se concentrou sobre duas questões centrais: sua ocupação territorial através de vias de

circulação e de núcleos urbanos.

Estas questões estiveram em posição de destaque também no âmbito nacional,

especialmente a partir do golpe de Estado que instituiu o governo militar em 1964. A

partir deste momento a implantação de infra-estrutura, especialmente de transportes e

comunicações, ganhou novo impulso. Também os processos de urbanização em escala,

disseminados pelo território nacional, foram tratados como uma forma de consolidar a

ocupação territorial e a integração nacional. Associados, o sistema de circulação e de

núcleos urbanos deveriam homogeneizar o espaço nacional constituindo o mercado

interno brasileiro.

Esta concepção cabia também à Amazônia, onde a implantação de rodovias que ligavam

a região norte ao centro-sul do Brasil foi prioridade. No entanto devemos salientar que

neste caso, a intervenção do Estado no processo de produção do espaço, apesar de fazer

46 COUTO e SILVA, GOLBERY. 1967. Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Editora José Olympio. Rio de Janeiro, 1981. p. 131-132. 47 Concomitante à construção de Brasília, foram implantados quase 6.000 km de estradas federais que ligavam o centro às regiões norte, nordeste, centro, sul e oeste do Brasil. Eram as rodovias Belém-Brasília, Acre-Brasília, Fortaleza-Brasília, Belo Horizonte-Brasília e Goiânia-Brasília (ver mapa Principais Rodovias Pavimentadas 1955/ 1964/ 1975, no item 2.2.1 deste capítulo).

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 82

uso dos mesmos instrumentos, estava também relacionada às questões de defesa do

território e soberania nacionais, especialmente nas faixas de fronteiras.

Devido a sua vasta extensão territorial, à dispersão de sua ocupação territorial, à

característica extrativista de suas atividades produtivas e, principalmente, a sua

localização estratégica em relação às fronteiras, a defesa do território e da soberania

nacionais são elementos fundamentais no contexto amazônico. A vulnerabilidade do

território amazônico, conferida pelas características acima, era justamente o motivo que

colocava a defesa da soberania como um dos elementos centrais das políticas que

orientavam sua ocupação e integração territorial.

Acontece que os instrumentos empregados para o alcance das condições de defesa

territorial são os mesmos utilizados no processo de constituição do mercado interno, ou

seja, os sistemas de comunicação e transporte, a rede de núcleos urbanos, entre outros.

Assim, a produção do espaço com vistas à defesa da soberania nacional produz também

a homogeneização do espaço necessária à produção capitalista. No entanto isso não

significa dizer que, constituído os elementos de defesa territorial necessariamente estará

também constituído o mercado interno.

No caso da Amazônia, as características desses processos estão sujeitas às

peculiaridades locais, principalmente àquelas relacionadas à densidade populacional e a

localização territorial em relação às fronteiras. Desta forma, além de expandir o mercado

nacional, embora isso também ocorra na medida em que se dá o processo de

homogeneização do espaço nacional, a produção do espaço na Amazônia, no período de

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 83

1930 a 1980, esteve pautada também pelas questões de defesa e soberania nacionais,

especialmente com relação às áreas pouco povoadas situadas nas faixas de fronteiras.

“É um ato de soberania planejarmos a ocupação e potencialização de

nosso imenso território.”48

2.2.3 – A integração da região amazônica ao espaço nacional

Como acabamos de mencionar, no caso da Amazônia o processo de produção do espaço

nacional, representado na defesa da integração nacional, estava fortemente relacionado

às questões de defesa e soberania nacionais, especialmente no ponto que diz respeito as

suas fronteiras.

Isso se deve ao fato de que antes de considerar a expansão do trabalho assalariado, do

mercado interno ou a integração da Amazônia ao espaço nacional, era necessário corrigir

algumas de suas características que conferiam vulnerabilidade a defesa, segurança e

soberania nacionais, especialmente nas faixas de fronteira. Algumas destas

características eram: a baixa densidade populacional, a rarefeita ocupação territorial e a

inexistência de uma rede de circulação que a integrasse.

48 MATTOS, Carlos de Meira. 1975. Brasil - geopolítica e destino. 2ª edição. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1979. p.112.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 84

Era necessário povoar o ‘vazio demográfico’ – segundo a SUDAM - incrementar sua

densidade populacional, estabelecer vias de comunicações que tirassem do isolamento

porções do território amazônico e finalmente consolidar a ocupação territorial através de

uma rede de núcleos urbanos e vias de circulação, o que constituiria as condições de

defesa da segurança e soberania brasileiras e também de expansão do mercado interno.

Este ponto de vista sobre a Amazônia estratégico sobre a região pode ser identificado a

partir da década de 30. Desde o início de seu governo Getúlio Vargas destacava a

necessidade de povoar a Amazônia através da produção agrícola, em detrimento da

atividade extrativista, que conferia caráter dispersivo à ocupação territorial.49.

“o problema capital da Amazônia consiste, porém, em transformar em

exploração sedentária a exploração nômade, a que até agora se tem

sujeitado as suas riquezas. Para isso é preciso povoa-la, colonizando-a, isto

é, fixando o homem ao solo.”50

Inspirado pelas concepções geopolíticas, Getúlio Vargas criou os territórios do Amapá,

Rio Branco (posteriormente Roraima), Guaporé (posteriormente Rondônia), Ponta-Porã

e Iguaçu, na década de 50. Os argumentos que sustentaram sua ação estavam baseados

justamente nas concepções geopolíticas de integridade nacional, na importância da ação

49 Na década de 40 a densidade populacional média na região norte era de 0,41 hab/km², enquanto a média brasileira era quase 5 hab/km² No Acre este índice era igual a 0,52 hab/km², no Pará era 0,77 hab/km² e no Amazonas era igual a 0,28 hab/km². Fonte: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Recenseamento Geral do Brasil - Acre 1940. Rio de Janeiro, 1950. 50 VARGAS, Getulio. A nova política brasileira. Voll. Discurso proferido em Belém, em 27 de agosto de 1933. Apud. MORALES, Lúcia Arrais. 1999. Vai e vem, vira e volta: as rotas dos soldados da borracha. Tese de doutorado. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1999. p.93.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 85

mais direta do governo sobre territórios fronteiriços e na necessidade de revitalização

destas áreas.

“a vivacidade da fronteira é bom indício da vitalidade do país. Raramente

uma nação em plena maturidade de energia estatal deixará entrar em

depreciação as suas fronteiras. Tornar ativos, em tais faixas, os postos de

fiscalização e os órgãos de defesa militar será o sensato objetivo dos

governos.”51

No que diz respeito à política de ocupação, Vargas adotou uma política de colonização

territorial baseada no assentamento para a produção agrícola, no sentido de uma marcha

para o oeste - que incluía Goiás, Mato Grosso e os Estados amazônicos. A principal

justificava desta política era o argumento da defesa da soberania nacional, apesar de

Vargas não negá-la como um elemento no processo de expansão das forças produtivas.

Durante a Segunda Guerra Mundial a demanda pela produção de borracha levou à

organização, por parte do Estado Novo, de movimentos migratórios do nordeste em

direção à Amazônia. Na verdade a retomada da atividade extrativista não coincidia com

a política de colonização anterior, no entanto este era um imperativo de guerra que

acabou envolvendo a criação de instituições para a promoção e organização da

migração, com vistas ao incremento da produção de borracha.

51 BACKHEUSER, Everardo. Curso de Geopolítica Geral e do Brasil. Gráfica Laemmert Limitada. Rio de Janeiro, 1948. p.158.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 86

Finda a guerra este movimento foi encerrado sem que tivesse alcançado seus objetivos

com relação à produção de borracha, apesar de ter promovido a migração de cerca de

35.000 nordestinos, apelidados como soldados da borracha52.

O olhar sobre a Amazônia ganhou um novo enfoque a partir de 1953, quando foi criada

a SPVEA – Superintendência para a Valorização da Amazônia. Apesar de conceber a

Amazônia como um vazio demográfico que deveria ser ocupado especialmente através

de pólos de produção agrícola, a SPVEA defendia também a superação da estrutura

produtiva amazônica, investindo em infra-estrutura elétrica e de transporte e financiando

o desenvolvimento de atividades industriais.

Sob o ponto de vista da SPVEA a Amazônia era o território para a expansão do mercado

nacional em formação. Coincidia com esta concepção o acelerado movimento de

industrialização e de constituição do mercado nacional promovido durante os anos do

governo de Juscelino Kubitschek.

No final da década de 50, a construção de Brasília e das rodovias que a interligavam ao

território brasileiro - especialmente a Belém-Brasília, se constituíram como o primeiro

passo no sentido de uma efetiva integração territorial da Amazônia ao espaço brasileiro.

Elas marcaram o início da reorientação do sentido dos fluxos na Amazônia, até então

caracterizados pelas características de sua rede fluvial, que os orientava em relação ao

oceano Atlântico, dando as costas ao território brasileiro.

52 O número de soldados da borracha, migrantes nordestino, é bastante impreciso, inclusive nos documentos oficiais. Alguns documentos mencionam cerca de 30.000 migrantes e outros chegam a 50.000. Para maiores detalhes, ver MORALES, Lúcia Arrais. 1999. Vai e vem, vira e volta: as rotas dos soldados da borracha. Tese de doutorado. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1999.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 87

“Com essa estrada, a Amazônia se tornava um pouco menos distante dos

maiores centros populacionais e, também, parecia mais integrada à

sociedade nacional.”53

A partir do golpe militar, em 1964, a Amazônia se transformou na nova fronteira

econômica brasileira. Assim a meta de ocupação territorial e de integração ao espaço

nacional ganharam impulso e forma. A Amazônia deveria ser ocupada na forma de

núcleos urbanos e de uma rede de comunicações e transporte.

“enquanto o sistema econômico puder crescer de forma horizontal,

dilatando sua fronteira e integrando áreas que passariam a funcionar como

exportadoras de bens primários, ele [governo brasileiro] pode dar-se ao

luxo de postergar o desenvolvimento de regiões-problemas” 54.

Para atingir a integração e ocupação territorial pretendida foram implantadas rodovias,

programas de colonização baseados na ocupação territorial ao longo das rodovias em

implantação, pólos de produção agrícola, empreendimentos para produção agropecuária,

além de incentivos aos movimentos migratórios do nordeste com a finalidade de

colonização da Amazônia.

53 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1971. p.156. 54 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1971. p.254 e 255.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 88

Dentre os principais projetos implantados na Amazônia neste momento estão o PIN –

Programa de Integração Nacional e o PROTERRA – Programa de Redistribuição de

Terras e Estímulo à Agroindústria no Norte e Nordeste. Entre seus objetivos estavam o

assentamento de produtores agrícolas e a construção de rodovias, entre elas a

Transamazônica, a Perimetral Norte, a Cuiabá - Rio Branco e a Cuiabá-Santarém. O

PROTERRA tinha como diretriz a implantação de projetos agrícolas com sentido

empresarial, por outro lado, ele consolidou a ocupação territorial ao longo da faixa dos

100 km das rodovias implantadas.

Mapa 7.0 – PIN – Programa de Integração Nacional

Rodovias Transamazônica e Cuiabá Santarém

*Fonte: BRASIL, Presidência. I Plano Nacional de Desenvolvimento. 1971.

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Mapa 8.0 – Pólos de produção – organização racional do espaço

* Fonte: SUDAM. II Plano de Desenvolvimento da Amazônia. 1976

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 90

Mapa 9.0 – Rodovias projetadas no I PDA

* Fonte: SUDAM. I Plano de Desenvolvimento da Amazônia. 1971.

A partir de 1976 os investimentos nos projetos para a integração nacional diminuíram e

por fim foram abandonados nos primeiros anos da década de 80. A partir de então as

políticas com relação à Amazônia passaram a defender aspectos ecológicos e

conservacionistas, sem nenhuma menção à formação de mercado interno ou à defesa do

território brasileiro.

Desde o II PND, em 1974, um único projeto com ponto de vista de estratégia territorial

foi elaborado, foi o projeto Calha Norte, elaborado em 1985. O objetivo principal do

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 91

Calha Norte é a ocupação da faixa de fronteira norte e noroeste brasileira através de

núcleos urbanos e do incremento populacional, exatamente como ocorreu em Rondônia

e no Acre na década de 70. Ele incorpora os Estados do Amapá, Roraima e Amazonas, e

sugere inclusive a divisão do Estado do Amazonas em dois novos Estados. Apesar de

sua implantação estar praticamente abandonada, o projeto Calha Norte é interessante

porque reflete os princípios estratégicos na defesa dos territórios de fronteira, inclusive

sob o ponto de vista de estratégia militar.

Mapa 10.0 – Base do Projeto Calha Norte

* Fonte: Jornal Folha de São Paulo. 18/03/2001.

O processo de produção e homogeneização do espaço nacional, assim como do espaço

amazônico, não aconteceu de forma linear e desimpedida. Ele foi marcado pelo processo

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 92

de acumulação entravada, que ao induzir ou contrair o desenvolvimento da forças

produtivas balizou o processo de produção do espaço, configurando a homogeneização e

diferenciação do espaço nacional.

Apesar dos movimentos no sentido da unificação do mercado nacional terem alterado a

realidade amazônica no sentido de integrá-la ao espaço nacional, este processo não

chegou a conferir homogeneidade a esta região, em relação às demais porções do

território brasileiro, persistindo sua diferenciação dentro do espaço nacional.

Como exemplo, em 1970, quando a densidade populacional brasileira era superior a 11

hab/km², a média deste índice na região norte era de 1 hab/km², podendo chegar a 0,50

hab/km² em Rondônia, enquanto na região sudeste era de 43 hab/km². Também o índice

populacional urbano serve como exemplo, em 1970, quando a população urbana

brasileira representava 55% da população brasileira, a população urbana acreana

equivalia a 28% de sua população total55.

Respeitados os movimentos de avanço e retrocesso, e também as peculiaridades que

conferem a diferenciação da região amazônica em relação ao espaço brasileiro, de uma

maneira geral os projetos para a integração da Amazônia ao espaço nacional

organizaram o espaço amazônico a partir da dupla: núcleos urbanos e rede de circulação,

o que constituiu as condições necessárias para a defesa do território e também para a

expansão do mercado interno.

55 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 1971. Censo demográfico do Brasil - Acre. VIII Recenseamento Geral - 1970. Rio de Janeiro.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 93

Acontece que, frequentemente, este processo de produção do espaço estruturou Estados

e municípios sobre a estrutura institucional deles próprios, dependentes dos orçamentos

públicos e dos repasses e financiamentos do governo federal, salvo exceções56. Em parte

deles, como no caso do Acre, a principal base econômica é a própria instituição do

Estado, que é muitas vezes o principal empregador de uma população cada vez mais

urbana, a despeito de sua suposta vocação agrícola ou florestal.

“Se o crescimento econômico da Amazônia, nos últimos trinta e cinco anos

[1960 – 1995] tem um enigma, este enigma tem uma solução e a solução se

chama governo, setor público, empresas estatais, bancos oficiais de

fomento, superintendências de desenvolvimento.” 57

Por outro lado, também é preciso levar em conta a condição de fronteira dos Estados e

municípios amazônicos, o que obriga a consideração das estratégias de defesa territorial,

especialmente quando a área em questão é fracamente povoada. Nestas condições, as

estratégias de defesa territorial são fundamentais, uma vez que estas áreas estão sujeitas

às disputas com países vizinhos, expostas às atividades ilícitas como contrabando ou

tráfico de drogas e expostas até mesmo aos movimentos como os das FARC’s

colombianas, entre outros. Nestes casos, a estruturação espacial destas áreas ocorre a

partir de uma estratégia militar de defesa, a despeito de quaisquer outras condições,

inclusive econômicas, que possam envolver estes territórios. 56 Entre elas estão principalmente Manaus e Belém, centros onde o processo de assalariamento se deu a partir de atividades produtivas capitalistas, inclusive da atividade industrial. Embora não seja possível generalizar, alguns municípios menores, especialmente no Pará, também alcançaram maior desenvolvimento de atividades produtivas, especialmente daquelas relacionadas à extração mineral, às atividades em portos que escoam a produção mineral e até mesmo à atividade extrativista. 57 SUDAM/ FADE. Trinta e cinco anos de crescimento econômico na Amazônia: 1960/1995. Belém, 1997. p. 17.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 94

Diante deste contexto é possível afirmar que o processo de produção do espaço ocorrido

na Amazônia, no período de 1930 a 1980, serviu à consolidação da ocupação desta

região com o objetivo, num primeiro momento, de constituir as condições necessárias à

defesa do território e da soberania brasileira. Esta afirmação se aplica especialmente às

áreas caracterizadas por baixa densidade populacional e localizadas próximas à faixa de

fronteira, onde a produção do espaço está relacionada, antes de tudo, às estratégias de

defesa territorial.

"A proteção do território é o objetivo principal da fronteira tanto na paz

como na guerra. [... é ] onde se exerce o controle de sua soberania"58.

Isto não significa dizer que não houve a integração da Amazônia ao mercado nacional,

ou que a produção do espaço ocorrida aí não tenha sido promovida também pelo

processo de unificação do mercado nacional. A expansão do mercado nacional ocorreu

na Amazônia de forma concomitante à constituição dos elementos de defesa do

território, como um resultado do processo de produção do espaço.

No entanto, a expansão do mercado nacional na Amazônia não ocorreu de forma

generalizada ou homogênea, e também não alcançou o território amazônico em sua

totalidade. No caso da Amazônia, a expansão do mercado nacional ficou marcada

também por sua estrutura econômica, baseada na instituição do Estado, o que se

configurou como um limitador à expansão desimpedida da forma-mercadoria. 58 MATTOS, Carlos de Meira. 1975. Brasil - geopolítica e destino. 2ª edição. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1979. p. 29.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 95

Além de sua peculiar característica econômica, a expansão do mercado interno na

Amazônia foi também marcada pelos movimentos de avanços e retrocessos que

caracterizam o modo de produção capitalista vigente, refletidos no espaço nacional pela

diferenciação e homogeneização deste espaço.

Somados, esta diferenciação do espaço amazônico reflete os antagonismos do modo de

produção vigente, marcado por movimentos de avanço e retrocesso que caracterizam o

processo da acumulação entravada no Brasil, e as características da economia

amazônica, frequentemente estruturada sobre a instituição do Estado.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 96

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“No Amazonas, como no Prata, o Império praticou uma política externa

voltada, essencialmente, para a construção do território brasileiro.

Singularmente, a ideologia e as percepções que acompanharam essa

política representavam uma negação do seu caráter real, envolvendo-a no

manto da suposta conservação de uma herança colonial. O Brasil,

procedendo assim, definia a si mesmo como à sombra de uma geografia

prévia, e conferia à sua diplomacia a missão sagrada de reiterar uma

legitimidade ancestral.”59

“diferenciação e homogeneização vão de par – uma particular localização

se diferencia de qualquer outra somente por ambas pertencerem ao mesmo

espaço, que é suficientemente homogêneo para incluir uma e outra – duas

localizações não pertencentes ao mesmo espaço não são diferentes: elas

não se comparam. Homogeneização e diferenciação formam a unidade

dialética do processo de produção do espaço.”60

“A percepção das diferenças historicamente tem conduzido a um empenho

de regionalização das ações. E, a pretexto de superar diferenças, perpetuá-

las; ao invés de empreender políticas de unificação do espaço, mantê-lo

59 MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p. 184. 60 DEÁK, Csaba. 1985. Rent theory and the price of urban land, King’s College. Phd thesis. Cambridge, 1985. p. 102-3.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia 97

fragmentado pela aplicação de intervenções estanques - ‘regionais’. O que

não deixa de ser, à sua maneira, uma política nacional.”61

“Assim o objetivo da constituição do Estado brasileiro ficou sendo o de

assegurar as condições da reprodução do status quo ante, isto é, da sociedade

colonial, organizada em função da produção colonial.”62

“O povoamento de novo tipo, inaugurado com as primeiras medidas

estatais para a região, entre as quais a criação da SPVEA, em 1953 e a

Belém –Brasília, em 1956, encontrou a Amazônia não muito diferente do

passado mais remoto. Terminado o ciclo da borracha ela estava entregue à

sua vida regional tradicional, suas muitas tribos indígenas ainda não

contatadas a atividade de subsistência complementada por um fraco

comércio intra-regional dos ‘caboclos’ ribeirinhos, [...] Esse era o quadro

que poderíamos chamar de típico, aquele que, basicamente, caracterizava

a vida regional tradicional amazônica.”63

“Isto significa, evidentemente, que o desenvolvimento da Amazônia seria

preferível ao do nordeste. [...] Enquanto o sistema econômico puder crescer

de forma horizontal, dilatando sua fronteira e integrando áreas que

61 MORI, Klára Kaiser. 1996. Brasil: urbanização e fronteiras. Tese de doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996. p. 152. 62 DEÁK, Csaba. 1999. Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80. In: DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. EDUSP. São Paulo, 1999. p.25. 63 COSTA, Wanderley Messias de. 1988. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. Contexto. São Paulo, 10ª edição, 2001. p.67.

Simone Martinoli Espaço nacioonal e Amazônia

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passariam a funcionar como exportadoras de bens primários, ele pode dar-

se ao luxo de postergar o desenvolvimento de regiões-problemas.”64

“fica claro, durante sua execução, que o objetivo central era a integração da

Amazônia (e secundariamente do Centro-oeste) à economia nacional.”65.

“A captura estratégica desse triângulo configuraria a meta principal tanto

do Brasil como da Argentina, os protagonistas da rivalidade principal no

cenário sul-americano. Tratava-se, do ponto de vista do Brasil, de reforçar

o pólo Santa Cruz, soldando-o à vertente atlântica e ao sistema de

comunicações amazônico, arrastando assim para a sua esfera de projeção

o coração continental. Nessa operação de captura, um papel decisivo

estaria reservado às redes ferroviárias e, em particular às estradas que

interligavam o oriente boliviano ao território brasileiro: a Madeira-

Mamoré e a Noroeste.”66

64 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1971. p.254-255. 65 COSTA, Wanderley Messias de. 1988. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. Contexto. São Paulo, 10ª edição, 2001. p.68. 66 MAGNOLI, Demétrio. 1997. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). Editora da Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 1997. p.274.