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1 Espaços Afro-indígenas no mapa Brasilia qua parte paret Belgis Bartira Ferraz/Scott Allen/Ricardo Piqueras/José Luis Ruiz-Peinado A escolha do mapa mural O mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis vem sendo estudado por especialistas de vários campos da história e da geografia como uma das obras financiadas pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) das mais avançadas para sua época. Comemorando, em 2012, os 365 anos da sua primeira publicação, realizada em 1647, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco e da Universitat de Barcelona reuniram-se para uma investigação sobre os espaços com presença de indígenas, de africanos e de mestiços nele representados. Neste trabalho, os textos e os desenhos contidos no mapa serviram como base para a realização das interpretações históricas sobre os territórios colonizados e os não colonizados, isto é, os contíguos aos já dominados pelos europeus, apresentados neste mapa como espaços indígenas com presença de africanos e de mestiços colocados fora do controle colonial português. Utilizando um conjunto de documentos históricos constituídos por mapas, informes e cartas indígenas produzidos no período colonial foi possível dialogar como o mapa como uma 'linguagem' viva, base para a pesquisa histórica e social sobre o contato entre natureza, europeus, indígenas e africanos ocorrido durante a conquista e a ocupação holandesa do Brasil no século XVII. Mapa que registra mudanças e continuidades na cartografia holandesa e na paisagem colonial brasileira, onde diferentes ações ocorridas nos espaços coloniais podem ser acompanhadas. Temas novos envolvendo colonização, escravidão, monoculturas, expedições e conquista foram inseridos por Margrave em seus registros cartográficos durante esta época de ouro para as ciências e as artes desenvolvidas nos Países Baixos (Matsura, 2011: 330). O Brasilia qua parte paret Belgis confirma esta afirmação ainda por ser um

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Espaços Afro-indígenas no mapa Brasilia qua parte paret Belgis

Bartira Ferraz/Scott Allen/Ricardo Piqueras/José Luis Ruiz-Peinado

A escolha do mapa mural

O mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis vem sendo estudado por

especialistas de vários campos da história e da geografia como uma das obras

financiadas pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) das mais avançadas

para sua época. Comemorando, em 2012, os 365 anos da sua primeira

publicação, realizada em 1647, pesquisadores da Universidade Federal de

Pernambuco e da Universitat de Barcelona reuniram-se para uma investigação

sobre os espaços com presença de indígenas, de africanos e de mestiços nele

representados. Neste trabalho, os textos e os desenhos contidos no mapa

serviram como base para a realização das interpretações históricas sobre os

territórios colonizados e os não colonizados, isto é, os contíguos aos já

dominados pelos europeus, apresentados neste mapa como espaços indígenas

com presença de africanos e de mestiços colocados fora do controle colonial

português.

Utilizando um conjunto de documentos históricos constituídos por mapas,

informes e cartas indígenas produzidos no período colonial foi possível

dialogar como o mapa como uma 'linguagem' viva, base para a pesquisa

histórica e social sobre o contato entre natureza, europeus, indígenas e africanos

ocorrido durante a conquista e a ocupação holandesa do Brasil no século XVII.

Mapa que registra mudanças e continuidades na cartografia holandesa e na

paisagem colonial brasileira, onde diferentes ações ocorridas nos espaços

coloniais podem ser acompanhadas. Temas novos envolvendo colonização,

escravidão, monoculturas, expedições e conquista foram inseridos por

Margrave em seus registros cartográficos durante esta época de ouro para as

ciências e as artes desenvolvidas nos Países Baixos (Matsura, 2011: 330). O

Brasilia qua parte paret Belgis confirma esta afirmação ainda por ser um

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documento cartográfico importante no que ele apresenta como espaços nativos

e de escravos fugitivos do sistema colonial. A localização desses espaços nas

diferentes áreas do litoral ao Sertão pode ser a mais representativa e talvez,

única da costa do Nordeste do Brasil, do século XVII, quanto à localização da

área do quilombo dos Palmares.

Durante o período colonial, os interesses por mapas geopolíticos e planos

urbanos sobre diferentes regiões da América estavam, sobretudo, relacionados

a aspectos políticos enredados às fronteiras econômicas estabelecidas a partir

da expansão marítima de estados e reinos europeus modernos. Portanto, rotas

de navegação, mercadorias, contatos entre diferentes regiões e assentamentos

populacionais são alguns dos temas encontrados na cartografia produzida.

A costa Nordeste do Brasil foi a primeira região das Americas a receber um

grupo de cientistas financiado pela WIC, para desenvolver pesquisas em

diferentes campos da geografia, da cartografia, da botânica, da astronomia, do

desenho, da pintura, da medicina, entre outros. As atividades ocorridas neste

período tiveram apoio no comércio atlântico o que permitiu a Johanes de Laet,

geógrafo e diretor da WIC, a edição de alguns estudos como os de Willen Piso

e Georg Marcgrave na obra Historia Rerum Naturalius Brasiliae (Historia

Natural do Brasil), datada de 1648.

Sobre o duplo enfoque comercial e científico da WIC, Cabral de Mello afirma

terem os neerlandeses os recursos financeiros tanto para a ocupação do

Nordeste do Brasil como para o financiamento de importante

desenvolvimento cartográfico, iniciado no século XVI. Textos holandeses e

portugueses, mapas e descrições pormenorizadas da costa, estudos

econômicos das plantações de açúcar e o custo das invasões, foram alguns dos

aspectos financiados que passaram a ser enfocados por uma ampla e variada

documentação histórica produzida no século XVII (Cabral de Mello, 2010).

Incluem-se entre estes documentos as cartas e os relatos de indígenas escritos

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em tupinambá, holandês e português assim como documentos assinados por

mestiços e afrodescendentes.1

Em Portugal, desde o início do século XVI, documentação e cartografia vieram

a ser produzidas, mas foi na Holanda, a partir de 1580, que uma cartografia

mais detalhada sobre a América passou a ser desenvolvida. No final do século

XVI, Willem Janszoon Blaeu (1571-1638) cria, com base na projeção de

Mercator, um padrão que será seguido nos mapas sobre as Índias Ocidentais

da época, posteriormente, também utilizado por Georg Marcgrave, Johan de

Laet e Jean Blaeu, entre outros cartógrafos. A demanda por esse gênero de

imagem leva da cidade de Antuérpia para Amsterdam a liderança das

publicações de mapas, relatos de viagens e textos científicos. Ainda que os

grandes cartógrafos e cosmógrafos das monarquias ibéricas se encontrassem

em Lisboa, Sevilla e, depois da independência dos Países Baixos, em

Antuérpia e Amsterdam, os novos conhecimentos cartográficos também

passaram a ser impressos em outras partes do mundo incorporando

conhecimentos de culturas e indivíduos em contato. 2 Um exemplo é o Atlas

Universal de Fernão Vaz Dourado, feito em Goa. Fernão, um mestiço de

português com uma indiana, autor das 17 cartas náuticas reunidas neste atlas

é considerado, hoje, um dos melhores cosmógrafos do Renascimento.

(Gruzinski, 2010: 214-215).

1 Sobre o tema pode ser mencionada uma série de artigos e textos produzidos desde o século XX, como o de Pedro Souto Maior, o de Teodoro Sampaio, o de Hullswyck, e o de Bartira Ferraz Barbosa. Os documentos citados que se encontram arquivados no Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa e no Arquivo da Companhia das Índias Ocidentais em Haia, Holanda. 2 A produção de mapas impressos em Amsterdam com financiamento da Companhia das Índias Ocidentais inclui o de De Laet, a Novus Orbis publicada em Francês, em 1640, tinha a missão de colocar resumidamente os espaços holandeses entre os continentes do globo; o mapa mural gravado em 1646 por Joan Blaeu (embora só publicado no ano seguinte), continha levantamento e desenho cartográfico de Georg Marcgrave de 1643 com vinhetas de paisagens sobre o Brasil, atribuídas a Frans Post; o primeiro mapa sobre o litoral brasileiro publicado pela WIC em 1632, intitulado Caerte vande Custe van Brasiijl é atribuido ao capitao Geleijn van Stapels e trata sobre o litoral entre o rio Formoso e o Rio Grande do Norte. Também fazem parte dele 4 desenhos sobre parte da costa perfilada e aquarelada. Stapels compõe o mapa a partir de antigas informações e medições próprias. Outros mapas foram posteriormente impressos no livro publicado por Caspar Barleus, e os do Atlas de Vingboons (c. 1665), todos revelam avanços técnicos representativos do domínio geopolítico sobre a região do Nordeste do Brasil conquistada. Grande parte da documentação original e de cópias guardadas na Holanda passou a ser divulgada através do atlas De Oude WIC, 1621 – 1674, publicado, em 2011, na Holanda (Storms, 2011).

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Os mapas e os textos que se fizeram sobre essas relações interétnicas focavam

principalmente as áreas coloniais conquistadas e seus contornos, onde viviam

populações nativas ainda em liberdade. Sobre esta periferia dos espaços

coloniais, portugueses, castelhanos e holandeses aproveitaram dos saberes

nativos recolhidos por informações orais e por imagens nas quais eram

representados os espaços socioculturais e as toponímias de maneira própria e

suscetível a serem compreendidas por públicos europeus. Sem os lançados,

pombeiros ou tangomaus,3 com vivências na costa da África, ou sem os

chamados „lenguas ou línguas‟, nativos conhecedores de vários idiomas

existentes na América espanhola e na portuguesa, qualquer indagação teria

fracassado (Gruzinski, 2010: 241). Os detalhes das informações contidas no

mapa mural de Marcgrave apontam para uma fundamental participação de

indígenas, cafuzos, caboclos e africanos como intérpretes, intermediários,

colaboradores, informantes locais e testemunhas oculares.

Apesar de utilizar aspectos gerais encontrados na cartografia europeia da

época, o mapa Brasilia qua parte paret Belgis reúne, de maneira original e com

mais complexidade e quantidade de informações, temas envolvendo distintas

culturas em espaços do mundo colonial e o ainda não colonizado, localizados

no Nordeste do Brasil, no século XVII. Seu poder de comunicação chama

atenção quanto ao uso de símbolos e paisagens que seguem ideais de ordem,

riqueza, beleza e sentimentos. Ideias que parecem seguir propositalmente uma

ordem de importância. Traduzindo seu título colocado em latim temos uma

3 Lançados: inicialmente foram degredados portugueses lançados pela borda dos barcos para entrar em contato com os povos africanos da costa da Guiné. Os sobreviventes chegaram a criar redes comerciais entre os europeus e os diferentes reinos africanos. Posteriormente tratados como mestiços de portugueses com africanas dedicados ao comercio no interior de continente. Pombeiro: termo da língua quimbundo que significa negociante ou emissário que atravessa o sertão comerciando. Também alude a una classe muito importante de comerciantes que controlavam o comercio de escravos em Angola (Thomas 1997: 166 e Blackburn 1997: 176). Os Tangomãos eram portugueses que falavam línguas africanas, tinham contatos com os povos do interior e intermediavam entre comerciantes e chefes locais. Podiam residir no interior e tinham certo prestigio na costa africana, centrando seus trabalhos na reunião de escravos para a exportação. Foram acusados por religiosos católicos e autoridades portuguesas de terem "origem judaica" e de viver como os "negros" (Lobo 1991: 67).

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primeira explicação sobre o que mais importa comunicar neste mapa mural, ou

seja: a parte do Brasil que cabia aos Países Baixos. Título que, portanto, nos dá a

entender tratar-se de mapa que reúne vários interesses envolvendo grupos do e

no Brasil e nos Países Baixos.

Uma segunda questão recai sobre o possível ano em que o mapa foi gravado

(1646) e o ano de sua publicação em 1647, por Joan Blaeu, envolvendo a

inclusão de um número significativo de ilustrações atribuídas a Frans Post e a

Albert Ekhout. As datas coincidem com o final do período do governo de João

Maurício de Nassau no Brasil e com a publicação de outras duas obras: a de

Gaspar van Baerle (1584-1648), ou Gaspar Barleus, como veio a ser conhecido

no Brasil, intitulada O Brasil Holandês sob o Conde João Maurício de Nassau, com

primeira edição no ano de 1647 (Barleus, 2005); e a obra Historia Rerum

Naturalius Brasiliae de Piso e Marcgrave, publicada em 1648, cuja edição foi

subvencionada por Nassau. As três obras citadas merecem destaque pelas

informações inéditas sobre o Nordeste brasileiro produzidas no século XVII e

pelos conteúdos artísticos e científicos nelas registrados. O conjunto de

informações sobre a fauna, a flora e os nativos de um Brasil até então pouco

divulgado e conhecido pelos Países Baixos ainda causa impacto quando

comparado a outros registros do período colonial e parecem acompanhar de

forma especial os interesses dos investimentos coloniais.

Quanto ao sentido geral encontrado em mapas do século XVII, o mapa mural

de Marcgrave inclui, como de costume para a época, elementos cartográficos,

paisagísticos, heráldicos, etnográficos, zoo-botânicos, geopolíticos e textuais

dados em um mesmo documento. O que o difere dos demais é o esforço da

justaposição ou colagem de diversas imagens com paisagens mais detalhadas e

ricas em elementos etnográficos nativos e em relação à localização de aldeias

indígenas, engenhos, caminhos, portos, currais, salinas e missões, entre outros

elementos. Trata-se de um mapa mural extraordinário pelo conjunto de

detalhes inseridos em nove pranchas com um pequeno mapa de Joan Bleau na

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parte inferior com o título Maritima Brasiliae Universae e o mapa de

Marcgrave ocupando a maior parte das pranchas que o compõe. A Joan Bleau

foi confiada a primeira edição do mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis

impressa em 1647. O número de edições impressas no século XVII demonstra

ter sido esta uma obra de relevância também para a sua época. Por outro lado,

seus diferentes gravadores nos fazem pensar em como o campo da cartografia

crescera junto com a profissionalização das oficinas de impressões existentes

nos Países Baixos. Um dos gravadores do mapa mural pode ter sido Jan

Brosterhuitzen, responsável pelas gravuras dos trabalhos de Frans Post para o

livro de Barleus (Corrêa do Lago, 2009: 413- 415). Nas diferentes edições do

Brasilia qua parte paret Belgis os desenhos das vinhetas foram atribuídos a

Frans Post tendo em vista a semelhança aos assinados por ele na obra de

Barleus. Um mapa, portanto, que inovava pelo conteúdo e inclusão de trabalhos

artísticos apoiados por Nassau e pela WIC e que dava início à divulgação das

primeiras experiências artísticas no Brasil.

As várias edições do mapa apresentam pequenas diferenças quanto às

adaptações, ao tamanho e às costuras dos desenhos de Frans Post. Na edição de

1659, o formato segue o mesmo conjunto de nove pranchas apenas mudando o

tamanho da prancha para 159 x 115 cm, somando no total 5,10 metros de

largura por 3,95 metros de altura e na versão de 1664, editada por Clemendt de

Jonghe, por exemplo, as nove pranchas mediam 121 x 160 cm cada uma

(Bibliothèque Nationale de France). Todas as edições exibem título, Notularum

Explicatio, guirlandas e escudos iguais. O que há de diferente entre elas são

algumas modificações nos detalhes existentes nas gravuras das paisagens e a

subtração de detalhes completos em outras, o que aponte para hipóteses como a

de que os gravadores foram pouco cuidadosos em copiar o original, a de que

foram subtraídos detalhes etnográficos nas ilustrações por falta de interesse em

divulgar estas informações, ou mesmo a de que sua missão era a de divulgar os

espaços geográficos controlados. Os desenhos com paisagens atribuídos a Frans

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Post compuseram cinco cenas, todas elas referindo-se ao mundo sócio cultural

colonial envolvendo população escrava africana, índios livres em diferentes

situações, trabalho escravo em engenho de açúcar e na casa de produção de

farinha de mandioca. As cenas incluem ainda índios saindo para guerra,

indígenas tapuias praticando o canibalismo, pescadores negros e animais em

meio à flora.

O mapa está recheado de termos e textos explicativos em mais de quatro

línguas como latim, português, tupinambá e holandês. Os termos das línguas

indígenas carecem de estudo mais aprofundado para verificar sua origem,

adaptação e entendimento. Embora a mistura das línguas no primeiro momento

nos leve a refletir sobre a complexidade dos espaços culturais tratados, a escrita

no mapa espelha as políticas defendidas por estrategistas da República das

Províncias Unidas dos Países Baixos. Principalmente, quanto aos resultados da

expansão do império marítimo batavo para o Atlântico, apresentando portos,

rotas comerciais e terras que possibilitaram a construção de espaços coloniais.

Notularum Explicatio

No quadro da legenda geral chamado “Notularum Explicatio”, situado na parte

central inferior do mapa, Marcgrave incorpora toda uma série de itens que nos

permitem uma leitura do mapa em sua parte terrestre, dada em função dos

diversos interesses geoeconômicos que se refletem no contexto das rotas

marítimas. O quadro oferece nomenclaturas escritas em português e em tupi,

com sua respectiva correspondência em latim, língua culta e de prestígio

utilizada na cartografia europeia moderna. A leitura em três idiomas incluindo

uma língua nativa do Brasil indica que o público ao qual se dirigia este mapa,

que por suas características murais a ser exposto em ocasiões especiais, deveria

ser curioso e erudito por dominar o latim. A possível razão da utilização do

português e não do holandês no quadro geral seria a vinculação da WIC e de

Maurício de Nassau com os interesses econômicos portugueses durante etapa

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na qual se tenta atrair os luso-brasileiros de Pernambuco para consolidar e

rentabilizar o território ocupado.

Um total de 16 itens com seus respectivos símbolos gráficos, exceto o termo

“caminho”, que não tem símbolo, foi relacionado a dois temas principais: a

geografia humana e a geografia econômica dos territórios ocupados pelos

holandeses.

Em relação à geografia humana, primeiro tema, se pretende mostrar a ocupação

do espaço colonial europeu com presença africana e indígena relacionando estes

locais aos com povoações indígenas existentes nas aldea das Indias e aldea das

Tapijya. Chama atenção a utilização do termo genérico Indiarum como conceito

aplicado aos grupos Tupinambás das zonas colonizadas em contraposição às

Aldeas das Tapijya como espaços povoados fora do marco colonial. A diferença

deve-se ao uso de distintos termos em latim: Domus Indiarum, em quanto a casa

ou fogo fixo dos índios do tronco Tupi já integrados no mundo colonial e

Domicilium Tapijyurum como sede/domicílio de indígenas do tronco Macro-Jê,

Cariri e outras línguas não classificadas, localizados no interior e mais

distanciados do controle colonial. A informação Lugar des povoado ou Domicilia

deserta indica aldeias anteriormente ocupadas por grupos que podem ter sido

reduzidos às missões, podem ter sido escravizados, podem ter sido deslocados

por descimentos ou que, ante a pressão portuguesa ou holandesa, abandonaram

suas aldeias por zonas de refúgio no interior. Por outro lado, os estragos que

causariam as epidemias que assolaram os territórios indígenas nos sertões

poderiam explicar alguns despovoamentos nestas e noutras áreas.

Assim, sobre a geografia envolvendo povoamento e presenças humanas

aparecem os seguintes termos:

Português Latim Inglês

Villa ou cidade………….Urbs vel civitas Town or village

Povaçáo…………………Pagus vel vicus Settlement

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Fortaleza………………..Fortalittum Fort

Aldea das Indias………..Domus Indiarum „Indian‟ Village

Aldea das Tapijya………Domicilium Tapijyurum „Tapuya‟ Village

Igreia……………………Ecclesia Church or chapel

Caza…………………….Domus House

Lugar des povoado……..Domicilia deserta Abandoned

Sobre a perspectiva da geografia econômica o mapa apresenta os espaços dos

engenhos açucareiros, os espaços com rebanhos em currais e outros recursos

como o da água das fontes, das salinas para a indústria do sal holandesa, e o

das rotas de comunicação por vias terrestres e por vias fluviais. Rotas que

ligavam vários pontos geográficos e, por isso, fundamentais para a

rentabilidade econômica dos ditos espaços produtivos que aparecem nos

termos seguintes:

Português Latim Inglês

Curral Stabula diversarum bestiarum

Corral

Caminho Via Road, path

Engº dagoa cum Igreia

Ingenio, vel Mola - Sacchari quoe vi aquaru rotatur

Water-powered sugar mill with Church

Engº dagoa sem Igreia

Idem sine ecclesia Water-powered sugar mill without Church

Engº d bois cum Igreia

Ingenio, Seu Mola Sacchari quoe vi animaliu circumagitur

Animal-powered sugar mill with/without Church

Engº d bois sem Igreia

Idem sine ecclesia Animal-powered sugar mill without Church

Salinas Salinae Saltworks

Fonte, olhe dagoa/Canzaba

Fons Spring

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Entre os espaços de produção de açúcar mencionados no mapa, foram

diferenciados os engenhos com igreja dos sem igreja indicando, portanto,

construções arquitetônicas voltadas para cultos e para a representação do poder

religioso. Há ainda um claro interesse em diferenciar os engenhos açucareiros

movidos por água (hidráulicos), chamados Reais, com tecnologia mais

avançada e que davam maior rentabilidade, dos que utilizavam ainda força

animal (bois).

O termo curral usado na legenda relaciona diferentes espaços com a exploração

e utilização estratégica do gado para os objetivos colonizadores como: fonte de

alimentação, indústria do couro, transporte de cargas e como força animal nos

engenhos. O curral representava também um duplo avanço da colonização, pois

ao ocupar espaços interiores fronteiriços através dos estábulos abertos, ao

mesmo tempo, exercia uma constante pressão sobre as populações indígenas

localizadas nos sertões.

Ainda encontra-se neste quadro geral dois termos que fazem referência a

diferentes tipos de paisagens com maior ou menor densidade de vegetação

representando no mapa distintas zonas: a campina e o mato.

Portugués Latim Inglês

Campina Campi Meadow,

grasslands

Mato Silvae Forest, woods

No mapa as áreas com campina correspondem às planícies com poucas árvores

localizadas próximas ao litoral ou aos rios principais, onde, existem zonas de

assentamento e de comunicação entre elas por caminhos e rios. Já o mato ou

silvae representa a mata atlântica, mais espessa e localizada em zonas litorâneas

muitas vezes impenetráveis que serviram como áreas de reservas florestais e

também como áreas de refúgio para indígenas e negros em fuga.

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Quais são os interesses que se refletem no mapa? A quem interessa fazer

constar sobre o que há ou não há nos territórios do Brasil holandês?

Definitivamente, o quadro terminológico expressa as realidades humanas e

econômicas que interagiam no espaço do Brasil holandês nesta época. O mapa

serve como documento para confirmar espaços de ocupação política, econômica

e territorial, onde o controle europeu, populações indígenas colonizadas ou

hostis (Tupinambá/Tapuias) e os espaços econômicos ocidentais

(engenhos/fazendas) acabam por configurar a realidade colonial do Brasilia

Qua Pare Paret Belgis que os holandeses querem mostrar ao mundo.

Além de suas qualidades técnicas e suas dimensões, ele difere dos mapas do

seu tempo pelas informações precisas que sugerem refletir detalhes sobre a

presença de nativos, mestiços e africanos nas estratégias econômicas, políticas e

militares desenvolvidas no período colonial e nas ações de pesquisas científicas

voltadas ao controle do territorial colonial e suas comunicações. Sobre a

presença desses grupos incluem-se as aldeias, suas comunicações por via dos

caminhos indígenas para missões, engenhos, currais, cacimbas, com destaque

para os usados pelos terços de Felipe Camarão e de Henrique Dias em ataques e

defesas dos territórios do Nordeste do Brasil e os usados pelas expedições

científicas realizadas pelo próprio Marcgrave.

As diferentes visões no mapa mural

A cartografia de Marcgrave pode ser interpretada por várias aproximações em

relação a sua visão sobre o mundo colonial atlântico luso-holandês. Uma delas é

a aproximação oferecida através de paisagens realizadas por Frans Post sobre

espaços e ações ocorridas em terra e em mar ilustrados em vinhetas inseridas no

mapa Brasilia qua parte paret Belgis. Sobre os territórios conquistados pelos

holandês no Nordeste do Brasil, o mapa apresenta duas concepções distintas no

sentido do litoral para o interior. Esta bipolaridade permite ver o litoral com um

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olhar de cima apontando para combates navais ocorridos ao longo da costa,

topônimos referentes aos acidentes geográficos e às construções coloniais

distribuídas na costa e regiões da Mata Atlântica; em outra perspectiva em voo

de pássaro o mapa apresenta vinhetas colocadas em espaços deixados em

branco que correspondem ao interior e regiões que compreendem, hoje, o

Agreste e o Sertão nordestino.

As vinhetas de Frans Post sobre espaços socioeconômicos representados por

Marcgrave formam várias cenas, cinco delas enfocam aspectos da vida entre os

nativos, sendo quatro sobre usos e costumes de tapuias e uma referente a um

terço de índios saindo para guerra. Uma única cena é dedicada a um grupo de

negros pescando. Outras três vinhetas tratam sobre um engenho real, um

engenho de farinha e uma missão de índios incluindo aspectos de arquitetura e

de ações desenvolvidas na produção do açúcar, da farinha e dos espaços para

trabalhos religiosos nas missões.

Os espaços urbanos assinalados por símbolos no mapa não receberam vinhetas

nem desenhos especiais como os realizados por Frans Post para o livro de

Barleus. As vilas do litoral, os engenhos e os portos aparecem em número

menor que a soma de aldeias com missões, aldeias tapuias e aldeias da costa. As

aldeias da costa aparecem também em maior número que as casas de

moradores espalhadas pelo litoral e ribeiras de rios e riachos pelo interior o que

denota uma importância maior dada ao mundo agrícola, rural, nativo ou de

populações mestiças.

Em seu mapa mural, Marcgrave assinala também várias expedições científicas e

militares; uma delas se destaca, por se tratar de uma expedição militar

comandada por Felipe Camarão e Henrique Dias. Camarão, um nativo potiguar

e com patente de Governador dos Índios de Pernambuco liderava um terço

armado de índios e o liberto Henrique Dias liderava um terço de negros, ambos

estavam envolvidos na luta contra os holandeses e quilombolas. Nesta

expedição, eles voltavam para Bahia após a perda de Pernambuco para os

holandeses, partindo com eles pelas mesmas trilhas o resto das tropas luso-

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brasileiras. Os espaços do interior das capitanias de Sergipe, Pernambuco,

Itamaracá, Paraíba e a do Rio Grande do Norte apresentados no mapa

aparecem controlados por grupos armados de tapuias assinalados pelas

vinhetas de Post.

Negros em liberdade podem ser associados a uma tapera, assinalada pelo termo

“Tapera de Angola”. Certamente um espaço baseado em alianças com diferentes

grupos indígenas instalados em aldeias fora do controle colonial. Negros,

também, foram registrados em vinhetas pescando, festejando e trabalhando em

engenho de açúcar e em outro de farinha como bem ilustrado por Post para nos

aproximar dos detalhes que incluem gestos, usos e vestimentas. Negros

possivelmente estariam trabalhando também nos currais do litoral e interior do

Agreste e do Sertão como confirma a crônica de padre Martinho de Nantes, um

missionário franciscano que teve índios de suas aldeias envolvidos em conflitos

localizadas no médio rio São Francisco com vaqueiros negros e mestiços dos

senhores da Casa da Torre.

Os espaços nas fronteiras entre as áreas de produção colonial e as áreas tapuias

apresentam elementos culturais híbridos, veja-se a cena de caça ao gado nos

sertões representando o aproveitamento da criação solta sem os cuidados do

vaqueiro pelos nativos. Também, observam-se as embarcações indígenas

utilizadas por negros em atividades de pesca no interior e embarcações nativas

colocadas no litoral como sinais de trocas de tecnologia e conhecimentos.

Nas vinhetas sobre os espaços indígenas ainda sem o controle colonial pelos

sertões aparecem cenas de lutas, rituais com canibalismo e redes em campina

para o descanso de um grupo de homens e mulheres tapuias. As crianças

indígenas aparecem em número pequeno e as crianças de escravos negros não

constam nas ilustrações de Post para o mapa, certamente, pelo não interesse na

no tema sobre reprodução da mão de obra escrava nas Américas. Portanto, à

típica cena da família cristã não foi dada importância. Comidas e bebidas são

levadas em cestos, panelas e cabaças como demonstram as cenas sobre os

nativos pelos sertões.

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As armas indígenas parecem pouco amedrontadoras, nenhum destaque foi

dado ao mundo da defesa ou sobre os ataques de tapuias ao mundo colonial do

litoral, como se eles estivessem nas fronteiras coloniais representando uma

ameaça. A luta entre os portugueses e holandeses só aparece no mar e em

pontos ao longo do litoral. Nas guerras pelo domínio da região em destaque, os

caminhos indígenas assinalados indicam ter sido detalhe importante a ser

conhecido. O citado “Caminho de Camarão”, por exemplo, forma uma rota entre

pontos de povoamento indígena, engenhos, fontes de água, missões e currais.

Nas vinhetas e na cartografia são destacadas redes de informações que

acompanhavam as rotas internas entre os diferentes assentamentos

populacionais incluindo, neste mapa, uma área de negros e índios livres

vivendo no interior indicado pelo local chamado de “Tapera de Angola”. Como

mencionado anteriormente, seria este um dos pontos da rede de grande

interesse para o sistema colonial tanto português quanto holandês. Ressaltado,

portanto, como uma área de fuga de escravos africanos e indígenas para os

territórios pertencentes aos sertões da capitania de Pernambuco.4 Buscando

explicação sobre a utilização e localização do termo “Tapera de Angola”,

chegamos à conclusão de que sua localização no mapa indica lugar que

corresponde a uma área de fronteira marcada por escrita registrada

verticalmente. Como hipótese, a leitura sugere que esta escrita seria utilizada

como área do espaço controlado por africanos e indígenas, neste caso o velho

Palmares descrito pelos holandeses. (Falta trecho de fonte sobre Palmares Velho

página 170)

4 Chama a atenção a utilização do genérico “Indiarum” como concepto aplicado aos grupos Tupinambá da costa colonizada, em contraposição as Aldeias das Tapujas como espaços povoados fora ainda do marco colonial. A diferença e levada aos termos em latino: “Domus Indiarum”, a casa/morada fixa dos índios Tupinambá reduzidos e “Domicilium Tapijyurum” como sede/domicilio dos itinerantes Tapuias do interior. A etiqueta de “Lugar despovoado” o “Domicilia deserta” indicaria zonas o aldeias anteriormente ocupadas por grupos que, o acabaram sendo reduzidos as aldeias missionares o, grupos que, ante a pressão portuguesa u holandesa, tem fugido pra as áreas de refúgio nos interiores, lembrando-nos, dos estragos das epidêmicas que assolaram o território e que poderiam explicar alguns despovoamentos.

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Sobre o termo Angola encontramos uma referência na documentação

portuguesa do século XVII, na qual, em São Tomé e Príncipe, aparecem revoltas

de escravos e formação de um importante quilombo que chamado de “Angola

do Pico”. Vale salientar que nestas ilhas ocorreram as primeiras experiências

com engenhos de açúcar e trabalho escravo africano do Atlântico, associado a

eles as primeiras fugas e revoltas de escravos. Citando parte do texto do

documento: “...escaparam a maior parte dos ditos escravos, e fizeram a sua aldeia num

Pico. E foram-se multiplicando de tal sorte, que, sem receio, com armas de flechas,

destruíram muitos engenhos, e no mesmo ano [1574] [...]. Desbaratando-os os soldados

e apelidando a vitória, desanimaram os negros Angola do Pico”.

Mais tarde, em 1599, o termo volta a aparecer em documento: “Não bastando,

para emenda, os incêndios passados como também não só o levantamento dos Angolas

do Pico” (Pinto, 2006: 71-78). Em terras pernambucanas o termo “Tapera de

Angola” pode ter sido usado para relacionar escravos africanos refugiados em

antigo assentamento indígena denominado Tapera. A localização deste termo no

mapa corresponde com indicação da área do quilombo abandonado do

Palmares Velho que foi encontrado e descrito pelo capitão holandês Blaer, em

1645. Em documentos portugueses escritos durante a segunda metade do século

XVII, utilizou-se o termo “Angola Janga”, que significa pequena Angola, em

referência ao quilombo de Palmares. Nenhuma vinheta representa um

quilombo ou o de Palmares Velho, mas há uma em que Frans Post retrata uma

aldeia com missão.

Na vinheta referente à aldeia indígena com casas e capela de uma missão, a

exemplo das jesuíticas existentes nessa época, um terço indígena marcha

armado para a guerra. Destacam-se nesta saída, também, a presença de

mulheres e crianças carregando utensílios e mantimentos. A cena inclui um

índio entre os guerreiros levando a bandeira tricolor com as insígnias da WIC.

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Na parte interior do mapa referente à capitania de Pernambuco também é

mostrada cena de um extenso espelho d‟água, onde homens pretos aparecem

pescando. Esta representação tem sido associada por diversos historiadores ao

famoso quilombo dos Palmares com as práticas de pesca para a sua

sobrevivência e atalaia como elemento defensivo de um possível ataque

inimigo. A cena, também, pode ser vista como uma das alternativas que tiveram

os holandeses para conseguir comida através da utilização de pescadores

escravos ou livres no sul da capitania de Pernambuco. Seguindo a tradição de

feitorias de peixe salgado, estes pescadores abasteciam o mercado do Recife

sitiado por luso-brasileiros. Nos documentos holandeses, Verdonch fala da

grande produção de peixe seco “que todo é trazido para Recife”. Mais tarde, em

1674, Pedro de Almeida informou aos oficias da Câmara que pretendia fazer

um ataque a Palmares e, para isso, necessitava de mantimentos, 300 alqueires

de farinha e todo o peixe que se fizesse com o fim de ajudar na entrada ao

quilombo (Curvelo, 2012: 54). A vinheta da cena com homens pretos pescando

não tem, portanto, uma relação com o quilombo por nela estarem apenas negros

pescando.

Uma imagem de uma atalaia também foi pintada por Albert Ekhout no quadro

com escrava africana em primeiro plano. Trata-se de uma obra sobre

aculturação e escravidão no Atlântico, em que figuram plantas, comidas,

vestimentas africanas e americanas e ao fundo do quadro aparece uma atalaia

colocada à beira-mar sendo usada por homens pretos. A escrava está referida

como mulher do Congo e no esboço desenhado pelo pintor ele a apresenta com

a marca N no peito esquerdo, dando a significar que era uma escrava de

Mauricio de Nassau (Parker, 2010: 158-159).

Paisagens Socioeconômicas

A franja costeira do Nordeste do Brasil havia sucedido São Tomé e Príncipe

como principal centro exportador de açúcar e a espetacular decolagem da

produção de cana no Brasil pode ser considerada como o início da revolução

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açucareira das Américas. Durante os séculos XVI e XVII, o Nordeste baseou sua

economia na produção e exportação de açúcar e o fenômeno açucareiro foi o

principal responsável pelo desenvolvimento do comércio escravista em grande

escala. (Klein, 1986: 43).

A tecnologia de produção de açúcar antes conhecida nas ilhas do Atlântico, da

Madeira até São Tome e Príncipe, chega a Pernambuco e a Paraíba no século

XVI e foi posteriormente aperfeiçoada pelos holandeses, aperfeiçoamento que

parece ter sido um dos principais focos utilizados por Post para a representação

da colonização e produção de açúcar controlada pelos holandeses, depois

implantada no Caribe, convertendo-se, posteriormente, em um referencial na

tecnologia açucareira.

O fato de situar o engenho próximo à área que correspondia à maior produção

açucareira, por exemplo, leva a concluir que e a paisagem de Post funcionava

como uma inclusão de marco visual na construção imagético-discursiva do

espaço geográfico. Nesta paisagem é possível ver o engenho em toda sua força

produtiva: a moagem da cana, o carro de boi sendo descarregado por escravos e

as fornalhas depurando o caldo para preparação do açúcar. Nesta vinheta as

cenas nos informam detalhes sobre a moenda de três cilindros movida à roda

d‟água e, a sua esquerda, mais detalhes sobre a construção da casa-grande e a

senzala.

O fato das pinturas a óleo de Frans Post sobre engenhos serem de engenhos

movidos à água não parece ser uma casualidade. Existe uma clara diferenciação

entre os engenhos movidos por água (hidráulicos) chamados Reais, com

tecnologia mais avançada para serem mais rentáveis, e os movidos por tração

animal (bois). Maiores ou menores, mais ricos ou mais pobres, ele pintou

engenhos movidos à água mostrando nos exemplos pintados as alternativas

tecnológicas da época para este tipo de engenho.

Nos desenhos e pinturas de Post sobre os engenhos no Brasil, índios e escravos

negros não só aparecem trabalhando, mas também em grupos conversando,

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trocando mercadorias e dançando. Certamente, trocas e relações que se davam

em caminhos, veredas e encruzilhadas onde eles geraram espaços afro-

indígenas. Por outro lado, os índios não foram retratados trabalhando na

produção do açúcar, mas figuram nos desenhos e quadros de Post

frequentemente nas estradas e caminhos que levavam aos engenhos indicando

que o artista deve tê-los visto enquanto eles se deslocavam entre as áreas

açucareiras levando cestos, mantimentos, produtos manufaturados e crianças

(Soares, 2009: 7). Caminhadas de um engenho a outro também devem ter sido

feitas pelo artista que pintou índios e índias, geralmente em grupos, vestidos

com panos de algodão em modelos diferente aos usados pelos negros por ele

retratados. Segundo Parker, para atrair a atenção do artista os índios deviam

existir em grande número no período em que ele esteve pintando em

Pernambuco (Parker, 2010: 151-167). No entanto, o que a pintura pode indicar é

que existiam mais índios livres que escravizados na produção açucareira, ou

que os holandeses haviam tomado o poder com ajuda dos nativos em troca de

sua liberdade e apoio.

Apesar da exploração do trabalho escravo indígena não aparecer em sua obra, a

do escravo africano foi retratada em quase todos os quadros com engenho e

produção de açúcar como temática. Nestes quadros, assim como no desenho

escolhido para o mapa mural de Marcgrave, os negros escravizados estão

trabalhando sem a sombra de ameaças e de castigos. Os maus tratos existentes

nas condições de trabalho e as relações com os administradores dos engenhos,

se retratados, dariam uma imagem negativa do pensamento calvinista do

trabalho, como se pode ler na descrição do próprio Mauricio de Nassau, feita

para uma exposição oferecida a Luis XIV da França. A descrição acompanhava

uma das 34 pinturas de Post e 8 de Eckhout que compuseram a exposição

levada pelo pintor Paul de Mily, encarregado da entrega das pinturas e de um

catálogo que as descrevia para serem expostas. Um dos quadros descritos por

Nassau não tinha título, mas estava marcado com as letras „GG‟ e vinha assim

descrito no texto guia: “Um engenho de açúcar pela levada, com os seus fornos

onde se cozinha o sumo da cana de que é feito o açúcar. À beira do forno, o fogo

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é tão ardente que os escravos negros preferem morrer, envenenando-se, que

suportar este calor. Os portugueses, para impedi-los de fugirem, cortam-lhes o

tendão.” (Cabral de Mello, 2010: 325-326). Através desta observação sobre o

quadro não há dúvidas, que esta foi uma das práticas de violência usadas por

colonizadores. No entanto, a violência atribuída aos índios nas cenas de

antropofagia foi uma estratégia ideológica para oferecer a boa imagem do

colonizador em detrimento da imagem sobre os autóctones neste período.

Noutra paisagem desenhada por Post e impressa no mapa mural de Marcgrave,

a farinha de mandioca ganha destaque como o produto nativo consumido por

todos os índios e que servia de sustento para quase todos os habitantes do

Brasil colonial holandês. Como mencionado nos escritos de Hamel, Bas e

Bullestraste, administradores da WIC, o alimento também era muito apreciado

pelos portugueses, nativos e mestiços que os holandeses chamavam brasilianos,

negros e outros europeus que viviam no interior. Durante a guerra entre

portugueses e holandeses a produção de farinha diminui implicando em um

forte aumento de seu preço no mercado do Recife. Nos territórios do Brasil

holandês senhores de engenhos, administradores e mercadores não conseguiam

a farinha necessária para alimentar escravos, tropas holandesas e população

livre em geral. Todos os problemas pela falta da farinha de mandioca e do trigo,

que não chegava regularmente para abastecer os mercados existentes neste

território, obrigou aos proprietários de terras a destinar parte de seus cultivos

anuais ao plantio de mandioca. Os senhores de engenhos, portanto, foram

obrigados a manter plantios de mandioca e sujeitos a inspeções por parte dos

agentes holandeses da colônia (Cabral de Mello, 2010: 294-295).

Nassau ditava uma série de determinações sobre a distribuição da farinha. Na

primeira delas, em cada comarca, se deveria declarar a extensão de terra que

cada um possuía com a finalidade de cobrar do proprietário a obrigação do

plantio, proporcionalmente a essa extensão (Barleus, 2005: 188). Dada a

importância adquirida para a alimentação, a farinha de mandioca passou a ser

um tema de sobrevivência a ser cuidado. Dela se beneficiaram também artistas

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e cientistas nas diferentes viagens realizadas pelo litoral e interior, como as

realizadas por Marcgrave e Frans Post. Talvez seja a razão de aparecer um

engenho de farinha no mapa, que pode ser visualizado com clara diferença

quando comparado ao engenho de açúcar, e que permite visão na direção oeste,

no vasto sertão do território. A casa de farinha pode ser vista ao lado da

plantação de mandioca, e o trabalho é realizado por escravos negros, com

tecnologia indígena e europeia. Não se utilizam raspadores manuais feitos da

cortiça de palmeiras, mas, sim a partir de uma roda dentada que permite

aumentar consideravelmente a produção, mesmo que esta resulte mais perigosa

para o escravo, que nesta vinheta é representado por negros.

Na vinheta sobre a casa de farinha tão pouco aparece o tipiti indígena para

espremer o caldo venenoso da mandioca; em lugar dele é utilizada uma prensa

hidráulica que permite obter uma produção maior. Por último, o forno de barro

é de uma dimensão importante para permitir tostar a farinha em grandes

quantidades a ser armazenada e distribuída. Este tipo de engenhos exigia que

as plantações de mandioca estivessem ao redor deles e que a coleta e o

transporte dos bulbos de mandioca correspondessem a um sistema diferente do

praticado nas aldeias indígenas que a produziam apenas para o sustento de

seus moradores.

Negros e europeus adaptam o paladar para a farinha de mandioca, um

alimento indígena desconhecido na África e na Europa até o século XVI. De

produto de subsistência de base tecnológica indígena passou a ser um produto

comercializado e exportado. O mapa ressalta a política de Nassau

implementada para suprir as necessidades alimentares do Brasil Holandês, mas

também podemos imaginar como o alimento vinha a ser transportado por

barcos negreiros em direção aos portos africanos, onde ali, esta farinha

elaborada pela mão escrava negra serviria para alimentar os africanos

capturados e embarcados rumo a América (Alencastro, 2000). As culturas da

cana e da mandioca coexistiram muitas vezes na mesma propriedade. A

produção do açúcar dependeu da produção de farinha para alimentar escravos

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e toda a população dos engenhos, vilas, aldeia e missões. Portanto, parte do

terreno produtor de cana de açúcar passou a ser revertido para a plantação de

mandioca realizada por escravos negros e não só por indígenas como antes.

A alimentação deste período também contava com as carnes como a de gado e

de porco. O termo “curral” se relaciona com a exportação e utilização

estratégica do gado para os objetivos dos colonizadores. Não só foi importante

como fonte de alimentação, indústria do couro, transporte de carga e força

animal nos engenhos, também representava uma frente da colonização,

ocupando espaços interiores fronteiriços e exercendo, ao mesmo tempo, uma

constante pressão (estábulos abertos) sobre as populações indígenas. Vejam-se

no mapa mural os futuros espaços a ocupar, onde, o gado é caçado por nativos

ainda livres da escravidão e das missões, localizados apenas no interior.

A implantação das fazendas de gado e sua reprodução pelo interior, no mapa

marcado como currais, abriram as portas para o extermínio de culturas nativas

que viviam dentro e fora das fronteiras agropecuárias do Nordeste. Pois a

introdução de escravos africanos nos currais assim com o de indígenas

ampliava as área de ocupação colonial e as formas de trabalho indígena nas

áreas das missões voltadas para a fabricação de fibras, cordas, linhas de pesca,

cerâmica ou para os serviços militares prestados ao sistema colonial pelos

sertões dos tapuyas.

Nos territórios mais distantes do litoral, uma cena aparece ilustrando o mapa

com um acampamento de indígenas desenhado por entre a mata com altas

colinas no fundo. A cena representa uma das paisagens „selvagens‟: onde a

vegetação predomina e a arquitetura desaparece. Os únicos sinais de presença

humana sugerem cenas de guerra entre diferentes grupos indígenas, a caça às

emas e o festim canibalesco. Imagens que criaram uma hierarquização dos

grupos étnicos que compunham a sociedade colonial no Brasil holandês e

evidenciaram uma visão neerlandesa a partir de um ranking de gradações que

iam da civilização à selvageria, passando pela barbárie, tendo a indumentária

como atributo de (in) civilidade para cada tipo étnico (Vieira, 2011: 14).

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Bárbaros e Canibais

Nus, bárbaros, selvagens e antropófagos em imagens e argumentos para a

conversão, escravidão e extermínio de indígenas, foram usadas por políticas

colonialistas. A terra fértil para as novas plantações e para pasto de rebanhos foi

tirada dos nativos por “guerras justas”. A produção de imagens de

antropófagos já vinha com os colonizadores e serviram de etiquetas para captar

a atenção de um público europeu ávido por notícias e descrições sobre as terras

americanas. Em todo caso, foi uma imagem que justificou e facilitou as tarefas

da conquista e colonização que levaram a cabo, portugueses, franceses ou

holandeses.

Quando, em 1549, o mercenário alemão Hans Staden foi capturado pelos

Tupinambá, durante a defesa da fortificação portuguesa de São Felipe, não

imaginava que, oito anos mais tarde, o relato de suas vivências, durante os nove

meses de cativeiro, se converteria em um êxito de vendas que veio a modelar a

opinião europeia sobre os indígenas brasileiros.

A partir dessa obra, gravuras e pinturas reinterpretando livremente a odisseia

de Staden de maneira exagerada tornaram-se comuns em outras, como as tão

conhecidas narrativas das viagens ao Brasil de Jean de Léry, onde são descritos

os costumes dos Tupinambá, ou as de Theodoro de Bry que representam a

visão gráfica Tupinambá mais difundida do final do século XVI até o final do

XVII. A obra do franciscano André Thevet intitulada As singularidades da França

Antártica, 1557, com suas 41 gravuras ajudou também a definir a imagem e a

visão do selvagem canibal da América. Em todos eles se representa e visualiza

sempre o lado mais selvagem e mórbido da antropofagia com cenas do

banquete do ato canibal, ocultadas as explicações rituais e religiosas presentes

da própria narração de Hans Staden.

O título da obra do alemão não poderia ser mais eloquente nem tendencioso na

hora de apresentar aos seus carrascos (captores) nativos: Verdadeira história e

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descrição de uma paisagem de selvagens, nus e ferozes comedores de gente no Novo

Mundo da América ( Warhaftige Historia und beschreibung eyner landtschafft der

Wilnen Nacketen Grimmigen Menschfresser Leuthen in der Newenwelt America

[1557].(Staden, 1983).

Canibalismo e ferocidade implicam resistência e justificam a aplicação do

conceito de “guerra justa” que tão bons resultados haviam dado já na América

espanhola durante a conquista. Conceito que suscitou a intervenção de teólogos

e juristas do nível de Francisco de Vitoria, de Francisco Suárez ou de Domingo

de Soto, vinculados à famosa Escuela de Salamanca. Da aplicação da “guerra

justa” deriva a escravidão indígena, consequência jurídica tão necessária para

pôr em marcha os espaços econômicos que portugueses e holandeses

desenvolveram no Nordeste do Brasil com constante necessidade de mão de

obra. A implantação dos engenhos de açúcar ou das fazendas agropecuárias

não se explica sem o controle da mão de obra e da utilização do trabalho

escravo.

Um século depois o Padre Cadornega, em sua História Geral das Guerras

Angolanas (1680), justificará o resgate de cativos das práticas caníbais dos

“barbaros” africanos e o tráfico de escravos até o Brasil. Segundo ele: “e com

estes resgates se evitam não haver tantos açougues de carne humana, e instruidos da Fé

de Nosso Senhor Jesus Cristo indo batizados e catequizados se embarcam para as partes

do Brasil ou para outras que têm uso católico” (Cadornega, 1972: 13-14).

É curioso observar como a ocupação territorial de grupos Tupi do litoral

haviam expulsado para o interior diferentes povos que denominaram de

Tapuyas/Tapuias, isto é, termo que os generalizaram como inimigos, em um

claro discurso de superioridade em relação a esses povos. O que parece ter sido

semelhante, no século XVI, quando portugueses contataram com nativos

Tupinambá, Caeté ou Potiguar do litoral e os classificaram todos como índios, e

neste caso como os índios da costa falantes da “língua geral”, bárbaros e

selvagens, portanto, inimigos dos que dão início ao domínio colonial.

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Sobre os Caetés, por exemplo, foi decretado por parte da coroa portuguesa,

escravidão perpétua em 1562. Os motivos? Sua rebeldia ao contato e à

submissão colonial, além de uma constante prática canibal que havia de ser

extirpada. Os mesmos motivos que levaram aos castelhanos a acusar de hostis e

antropófagos aos caribes das Antilhas Menores com as mesmas consequências

imediatas, a escravidão. Por sorte de Staden, este não foi visto por seus

carrascos como um indivíduo de energia suficiente e “espírito” para ser

sacrificado e consumido ritualmente, assim seus “selvagens, nus, ferozes e

canibais” acabaram por livrarem-se do hospede inconveniente.

Quando os europeus conseguem estabelecer alianças e pactos com grupos da

costa utilizando-os como mão de obra em engenhos, fazendas e cidades, a

fronteira do espaço dito de nativos antropófagos e selvagens se traslada até o

interior dos tapuias.

O Tapuia do século XVII holandês, era o Caeté do XVI português. A ocupação

colonial utilizou sempre aqueles elementos das culturas indígenas que, reais ou

não, pois não se tem confirmação de que os Tapuias praticassem o canibalismo,

facilitavam as estratégias de dominação e de conquista de territórios a

“civilizar”. Por isso, no mapa de Marcgrave, os grupos Tupis do XVII, das

zonas de ocupação holandesa, já não são selvagens, mas são englobados na

categoria de índios (Aldea das Indias). Do outro lado, estão os Tapuias, sem

controle, livres e donos do sertão, que mantiveram uma identidade própria,

definida pelos europeus pela confrontação, ausência de vestimentas, de ordem,

de vontade de ceder e pelos vícios que vão justificar seu controle por parte dos

interesses políticos e econômicos europeus.

No mapa observamos como, apesar de suas atividades de caça tanto de emas

quanto do gado europeu que cobriam de sobra suas necessidades de aportes

proteicos, ao Tapuya é atribuída a festa canibal, atributo pelo qual quase

sempre foram invocados no imaginário europeu do século XVII. Seu mundo é o

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do “selvagem” e do enfrentamento constante em lutas interétnicas, onde o arco

e as flechas ou o tacape servem para atacar contrários e os preparar para o

festim e o prazer canibal. Seu espaço é o mato, a natureza indomada onde

transita com inteira liberdade para buscar seus recursos alimentícios.

Os Tapuyas foram livres até seu espaço passar a ser necessário para o avanço

colonial; o mesmo gado escapado dos currais, objeto de caça coletiva dos

Tapuias, foi a ponta de lança de um mundo colonial que começava a pressionar

seus territórios. Esta imagem no mapa de Marcgrave representa a interação

entre o mundo selvagem do sertão e o mundo ordenado da colônia. Em seu

nomadismo, os “bárbaros do sertão” resistem a ser índios, a ter domicílio fixo

Domus, o que quer dizer que não querem ser considerados parte de um mundo

alheio a seus interesses que só entende de trabalhos forçados, missões

religiosas, produtividade e aculturação.

Georg Marcgrave nos mostra definitivamente a formação de um mundo

colonial onde primam motivações econômicas e políticas que nada tem a ver

com as realidades nativas dos territórios originais. A visão de um mundo

europeu que exige na maioria das vezes a transformação radical das formas de

vida indígenas e sua entrada forçada na História Moderna da Europa através de

imagens estereotipadas e discursos de marcado caráter eurocêntrico.

Espaços afro-indígenas

Mas, o que move fundamentalmente esta pesquisa é a pergunta sobre o que

aparece no mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis indicando ou

envolvendo afro-indígenas dentro ou fora das rotas europeias e seus espaços

coloniais.

Informações sobre indígenas foram registrados desde o início do século XVI

através de mapas, manuscritos, iconografias e impressos que reuniam ideias e

imagens sobre aspectos da natureza e de populações autóctones voltadas aos

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interesses políticos e econômicos das metrópoles europeias. Distorcendo,

combinando e reconstruindo elementos da paisagem e de culturas indígenas

existentes no Brasil, no século XVI e no XVII, justificava-se o início da ocupação

e posterior colonização. Alianças entre chefes indígenas e donatários das

capitanias hereditárias, ataques aos índios não aliados e escravidão para os

sobreviventes, assim como, o auxílio de missões religiosas responsáveis pela

redução e submissão de populações nativas aliadas, muitas foram as formas de

relações interétnicas existentes, inclusive entre indígenas de grupos diferentes e

escravos africanos. Sobre indígenas, mestiços e negros, a ideia dada neste mapa

é a de existir espaços e territórios, onde o contato de culturas foi relevante.

Portanto, aparecem espaços geopolíticos com superposição de elementos

culturais indígenas, europeus e africanos. Incluem-se nestes espaços os contatos

entre culturas estando em jogo distintos grupos étnicos de três áreas do

atlântico: uma referente a duas regiões europeias, a da península ibérica e a das

províncias unidas dos países baixos, outra área referente às populações

indígenas do Nordeste brasileiro e, a terceira, a da costa ocidental e da área

centro africana.

A introdução de escravos africanos, a partir de 1530, significou contato entre

culturas tanto durante o trabalho da produção do açúcar quanto no dos currais

que alcançaram o interior dos sertões tapuias. Cada vez mais as fazendas, os

caminhos e as missões com a intervenção colonial, possibilitavam novas

paisagens com afro-indígenas. Na área representada no mapa, diferentes povos

africanos e indígenas envolvidos na produção colonial foram forçados a

deslocamentos caracterizando diásporas fora e dentro do Brasil. As diferentes

experiências foram amalgamadas na encruzilhada de múltiplas relações entre

os diversos povos africanos, povos indígenas e europeus que estiveram em

contato.

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Alguns escravos se aliaram em lutas contra os portugueses, aproveitando a

chegada dos holandeses a Pernambuco, oferecendo seus serviços militares: “com

arcos e flechas, antigas espadas espanholas, escudos redondos e armas de fogo, e

celebravam as vitórias sobre seus antigos proprietários com batucada e dança”, logo os

portugueses ofereciam a liberdade aos escravos que servissem contra os

holandeses (Gregor Aldenburg, 2004: 363). Eles também fizeram parte do novo

mundo que estavam construindo deixando palavras e termos linguísticos

usados para designar lugares e objetos. Participaram com suas práticas e seus

conhecimentos mágico-religiosos, tecnológicos e artísticos na intersecção com

povos indígenas e europeus no mundo colonial.

A coroa portuguesa, os donatários, os caciques e seus guerreiros indígenas,

negros escravos e quilombolas, holandeses e franceses faziam das lutas um

meio de controlar os espaços políticos e geográficos. As missões com padres

jesuítas e, posteriormente, as de outras ordens religiosas “apregoavam” a

entrada de escravos africanos para abastecer de mão de obra as suas fazendas e

missões como alternativa ao trabalho forçado dos indígenas. No Nordeste

brasileiro, também ocorreram missões de catequese calvinista, como as ativadas

com a ocupação holandesa a Pernambuco que visavam manter alianças com

indígenas, necessários na luta contra os portugueses (Vainfas, 2008: 49). Índios e

negros passaram a conviver também com a imposição do cristianismo, com

aulas de catecismo, de leitura e escrita, mas, sobretudo, ensinava-se aos nativos

a defender os territórios portugueses de seus inimigos e a atacar os territórios

indígenas e de quilombos a serem conquistados. Os nativos catequizados foram

utilizados em lutas guiados por um capitão de índios, que poderia ser o

superior da missão. Líderes indígenas, africanos e afrodescendentes foram

fundamentais para a manutenção das alianças. Seus conhecimentos poderiam

passar por vários campos como do geográfico às línguas e tipos de comunicação

em uso na época.

Várias foram as formas de submissão de negros e índios. Os africanos, por

exemplo, recebiam o “batismo” católico nas costas da África antes de partir

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para as Américas, mas com a salvação de sua alma vinha a escravidão do corpo.

Também os holandeses utilizaram o calvinismo para atrair a população negra,

para manter a servidão e submissão de escravos no Brasil holandês, para

afiançar as alianças políticas e econômicas com os reis africanos, mas, também,

para contar com eles nas guerras no Brasil e na África holandesa.

Saber como os índios e negros participaram neste processo com seus

conhecimentos e suas ações ou reações pode ser novo, mas imprescindível pra

compreender melhor o mundo colonial. Para os nativos não aliados e rebeldes

estava designada a morte ou a escravidão e a tomada de seus territórios; o

mesmo ocorreu aos quilombolas que, por não se subjugarem ao colonialismo

eram atacados por guerras justas nas quais os quilombolas voltavam como

escravos para engenhos, fazendas e indústrias (Perrone-Moisés, 1992: 115-132).

Acreditamos que se tratava de quilombos afro-indígenas, pois a busca pela

liberdade entre negros e índios escravizados e índios livres das missões levaram

muitos a formarem quilombos pelo Brasil setecentista, em lugares onde era

necessário manter estratégias de comunicação e de alianças com grupos nativos.

A historiografia sobre as elites europeias e o campo de análise para documentos

históricos produzidos por indígenas, mestiços e negros, quando da

transformação da paisagem dos seus territórios, vem a ser um desafio.

Fronteiras, aldeias indígenas, missões religiosas, mocambos, plantações,

colonos, guerras, escravidão, muitos foram os elementos responsáveis por esta

transformação nos antigos territórios dos nativos cariri, potiguar, tabajara,

caetés entre outros indígenas do Nordeste do Brasil. Mas, temos também que

incluir os territórios quilombolas dos palmarinos e outros, com minas, guinés,

entre outros africanos que nele conviveram. Portanto, afro-indígenas

extrapolaram os domínios coloniais criando e participando em mercados

informais por exemplo, de alimentos, cerâmicas e outros utensílios.

Por outro lado, ações diferentes ocorriam em espaços trabalhados por nativos e

africanos no litoral do Brasil, onde se vivia tempos de rotas mercantis e de

produção para os diferentes mercados internos e externos. No Brasil do século

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XVII, mais precisamente no litoral do Nordeste, o porto do Recife figurava

como o porto holandês mais importante para a saída do açúcar em direção às

refinarias localizadas nos Países Baixos. No porto, onde se armazenava o açúcar

bruto para exportação, estava uma sociedade composta pelas relações de

escravidão e de trabalho livre necessário ao funcionamento do porto, da

administração colonial e do comércio local. Como bem documentado por Jean

Blaeu, em gravura de 1643, feita para a WIC, a empresa com maior número de

ações comercias destinadas ao Atlântico português, o Recife passou a ser o

porto mais focado nos mapas e portulanos detalhados do período por ser o

porto de entrada para a capital do Brasil holandês. Porto utilizado pelos

portugueses e anteriormente pelos indígenas caetés, o local, está carregado de

histórias de sistemas de trocas, de rotas fluviais e marítimas e de conquistas.

O Nordeste aparece no mapa mural de Marcgrave refletindo os tempos de

Nassau e de seus cientistas e artistas, tempo no qual as obras, e esta em

particular, parecem querer resumir em quadros algumas das ações humanas em

cenas de convivências pacíficas. Nas paisagens desenhadas para o mapa de

Marcgrave as cenas de lutas estão restritas às batalhas navais e às guerras

tribais indígenas, esta última colocada fora das áreas produtoras de cana, nos

espaços ainda não conquistados. Nestas cenas, os índios aparecem como

selvagens e como antropófagos, organizados quando ligados à área de missões

e saindo para guerra formando terços militares. O mapa Brasilia qua parte paret

Belgis quer nos contar muitas histórias. Sua atração está na soma dos vários

elementos representados: nos desenhos figurativos, na cartografia geopolítica

da ocupação holandesa e nos textos e palavras soltas que integram

subconjuntos.

Os intermediários

O cartógrafo Hessel Gerritsz registra em sua coleção geográfica que os

apontamentos fornecidos a Kilian van Resenlaer, no ano de 1628, em

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Amsterdam, pelos nativos Gaspar Paraupaba do Ceará, 50 anos, André

Francisco do Ceará, com 32 anos, potiguar da Bahia da Traição, Antonio

Guirawassanay, Antonio Francisco e Luiz Gaspar, também da Bahia da Traição,

foram utilizados para a realização de mapas referentes ao Nordeste do Brasil

(Souto Maior, 1912: 26-61). Também acreditamos que Pedro Poty, aliado dos

holandeses como comandante das tropas indígenas da Paraíba e parente de

Felipe Camarão, o Capitão-Mor dos Índios do Brasil português, estaria entre os

nativos que dariam informações para a invasão holandesa realizada em 1630.

Ele estava na Bahia da Traição quando da passagem dos holandeses, após a

perda da guerra em Salvador da Bahia, e teria viajado para Holanda juntamente

com outros nativos. Localizados em Amsterdam e Leiden, ele e os outros

indígenas citados aprendem a falar e a escrever holandês, tornam-se

informantes, calvinistas, líderes nativos e estrategistas militares aliados aos

holandeses, quando da preparação e invasão à capitania de Pernambuco, em

1630. Além disso, eles passariam uma visão importante das relações entre

indígenas e do mundo colonial no qual participavam.

Durante o século XVII, muitos cartógrafos, como João Teixeira Albernaz, da

Casa da Índia e da Guiné, atuante entre 1602 a 1649, responsável por 400 cartas

náuticas e 19 atlas, assim como Hessel Gerritsz, Joan Blaeu, Joan Vingboons e

Georg Marcgrave, os últimos contratados pela WIC, teriam tido informações de

nativos para composições de topografia com localização de áreas indígenas.

Certo é que sem essas informações obtidas na África, Ásia, América ou na

Europa não se poderia ter chegado a tantos detalhes para se fazer as conquistas.

Para o desenho de mapas com a grande quantidade de topônimos indígenas e

afro-americanos, cartas e relatos de indígenas potiguares, produzidos a partir

da língua tupi e da escrita chamada "Língua Geral da Costa do Brasil" integram

documentos deste período. A participação nativa na produção documental e

seu conteúdo demonstram que houve uma importante captação do

conhecimento e poder de liderança indígena nas capitanias do Nordeste do

Brasil.

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O mapa de Marcgrave Brasilia qua parte paret Belgis faz referências aos

topônimos indígenas dos territórios colonizados com seus apoios e confirmam

que o conhecimento nativo da geografia foi importante para a construção de

uma nova paisagem e da cartografia histórica do período colonial. Mas, os

índios não foram os únicos, Domingos Fernandes Calabar, filho de Ângela

Álvares, indígena ou negra, com português desconhecido, participou de várias

expedições pelo sertão pernambucano acompanhando tropas portuguesas,

entre 1625 a 1630 (Cabral de Mello, 2010:138-141). Francisco Dias d‟Ávila em

uma entrada pelo sertão, na qual participou Calabar, obteve informações sobre

as trilhas e os caminhos essenciais usados pelos holandeses no Brasil, como

aparece nas informações do relatório de Walbeeck dado a WIC, em 1633

(Puntoni, 2000: 31).

Seus conhecimentos geográficos somavam-se aos das relações com escravos

envolvidos nas táticas de luta contra seus antigos donos e com o mundo

colonial português, para o qual se tornou “traidor” quando se aliou aos

holandeses. Capturado pelos portugueses, eles não o pouparam, o

desmembraram e penduraram, depois da entrega de Porto Calvo pelas tropas

holandesas. As importantes informações dadas pelos potiguares que viveram

por conta da WIC na Holanda, pelos judeus sefarditas envolvidos no tráfico de

escravos e nas plantações de açúcar na África, no Nordeste do Brasil e nos

Países Baixos, pelos espiões e, posteriormente, pelos desertores como o jesuíta

Manuel de Moraes, deram a base para a construção do mapa de Marcgrave.

Toda informação foi, por fim, reunida por estratégia da WIC e pelas mãos de

um importante geógrafo e diretor da mesma, Johan de Laet, editor deste mapa

mural.

As redes de informações eram vitais para a sobrevivência dos grupos nativos e

afro-americanos, como se constata no diário de viagem do capitão Blaer, chefe

da expedição holandesa contra Palmares em 1645: “…ainda mataram os nossos

brasilienses dois ou três negros no pântano vizinho; disseram ainda os negros

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pegados que o seu rei sabia da nossa chegada por ter sido avisado das Alagoas”

(Carneiro, 1988: 256).