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SSIÊ

INTRODUÇÃO

Dos múltiplos discursos sobre as relaçõesinternacionais – como conjunto de narrativas e ide-ologias construídas que denotam uma visão demundo e reflexionam, de modo parcial ouabrangente, sobre a realidade social internacional– decorrem teorias explicativas sobre a políticamundial, seus atores, organizações, regimes, rela-ções de poder e processos decisórios (Fairclough,1995; Maclean, 2000). O discurso geopolítico emilitar, por exemplo, enfatiza projeções estratégi-cas e indagações de natureza conspiratória, sobres-saindo-se em contextos de autoritarismo políticono plano doméstico dos países ou em momentoshistóricos de conflito real ou potencial entre paí-ses (o caso da Guerra Fria). No caso do Brasil, odiscurso militar da Escola Superior de Guerra dosanos 60 e 70 implementou um projeto internacio-nal de Estado fundado na segurança nacional, nadefesa do país e na preservação da integridadeterritorial. Já o discurso diplomático descrevendoas relações internacionais como apanágio da má-quina burocrática estatal – tem ressaltado o Estado

como ator monopolizador da representação legíti-ma do interesse nacional nas negociações interna-cionais. Ambos os discursos descrevem a políticainternacional como resultante de relações entre di-ferentes comunidades políticas autônomas (orga-nizadas sob a forma de Estados nacionais), quebuscam impor o poder soberano umas sobre asoutras. Nos dois casos, a concepção e o entendi-mento sobre o que são e devem ser as relações in-ternacionais ocorrem em um espaço mundial mar-cado por relações anárquicas (estado de natureza,princípio da auto-ajuda e ausência de uma sobera-nia supranacional), pela homogeneidade dos ato-res internacionais (Estado com visão estratégica emaximização utilitarista dos interesses) e por umciclo de equilíbrio e repetição da relação entre na-ções (equilíbrio do poder, guerra como contingên-cia normal das relações de poder). Guerra e diplo-macia têm sido, por conseguinte, as duas faces dosistema internacional: o militar (uso da força) e odiplomata (negociação) constituem-se em figurascomplementares na defesa do interesse nacionalno concerto das nações (Aron, 1986; Morgenthau,2003; Nogueira; Messari, 2005).

ESPAÇO MUNDIAL E ORDEM POLÍTICA CONTEMPORÂNEA:uma agenda de pesquisa para um novo sentido da

internacionalização

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Já o discurso midiático sobre as relações in-ternacionais tende a pôr em relevo o papel dassimbologias e das idéias na construção do imaginá-rio da globalização, a partir da função central queassumem as redes informacionais e comunicacionaisna transmissão instantânea e sem mediações defatos relacionados a guerras, protestos de rua, mas-sacres e crises humanitárias, bem como desastresecológicos. A mídia global corporativa (e, em me-nor grau, a mídia alternativa e independente) ace-lera a circulação de informações sobre as diferen-tes realidades locais, podendo, porém, engendrar,ao mesmo tempo, simulacros em torno da aproxi-mação dos diferentes habitantes da “aldeia global”no seio de democracias cibernéticas (Zizek, 2003).

Finalmente, o discurso militante (por exem-plo, no âmbito do Fórum Social Mundial) traz àbaila as novas bandeiras dos movimentos e orga-nizações, assim como a demanda por democrati-zação dos processos decisórios e de participaçãode novos atores, também produzindo inteligênciae denúncia sobre a política mundial contemporâ-nea, reprodutora de desigualdades e injustiças (umaproblemática democrática) na distribuição de bense condições materiais e na política de reconheci-mento do outro (cultura, raça, gênero). Esses doisúltimos discursos são pouco integrados pela teo-ria das relações internacionais. A produção acadê-mica, nesse campo, encontra-se, ainda hoje, asso-ciada de modo bastante conservador quase exclu-sivamente aos dois primeiros discursos referidosanteriormente.

É evidente que, no momento histórico atual,ainda bastante marcado pela concepção neoliberaldos mercados globais auto-reguláveis, a aberturado campo teórico-metodológico das relações inter-nacionais a outros discursos e visões de mundopode incorrer no risco de corroborar teses deminoração do papel do Estado na governança glo-bal.1 Para as correntes liberal-idealistas, o aspecto

fundamental na teoria das relações internacionaisé, em última instância, o bem-estar do indivíduo;os meios para sustentá-lo são, respectivamente, olivre-comércio, a democracia e as instituições in-ternacionais (Doyle, 1986). O Estado seria, paraessa corrente, um mal necessário, sempre voltadopara proteger os interesses do indivíduo, porémjamais para oprimi-los. No entanto, a problemáti-ca construção da democracia no “governo do mun-do” não pode negligenciar os perigos de umagovernança global contra o Estado e as repercus-sões teóricas que daí advêm (Hermet, 2005). Comoassinala Kazancigil (2002), a governança global temsido pensada e praticada como uma forma de fazerpolítica sem políticos; entretanto, uma vez que nãohá instituições verdadeiramente representativas noplano internacional e que a democracia se encontraainda alicerçada – tanto institucional quantoterritorialmente – dentro dos limites nacionais, per-manece aberta a questão: como instaurar umagovernança mundial que incorpore a política de-mocrática? Foi justamente nessa armadilha que caí-ram algumas construções teóricas sobre umagovernança mundial fundada na não-conflitualidadee no consensualismo mágico entre os atores inter-nacionais, sobretudo nos anos 1990 (Milani; Arturi;Solinis, 2002).

Neste artigo, procura-se integrar um duplodesafio: em primeiro lugar, assumir a necessidadede ampliação dos discursos vigentes sobre o espa-ço mundial e, concomitantemente, contornar vi-sões despolitizadoras da política mundial. Admi-te-se, contrariamente ao que pressupunha o realis-mo clássico, a existência e a influência de atoresna política internacional que não se restringem ex-clusivamente aos Estados nacionais (Faro de Cas-tro, 2001). O ambiente e as regras internacionaismodificam-se graças à diversificação dos centrosde poder, à emergência de uma agenda política (emalguns aspectos) mais descentralizada e menos

1 A Comissão das Nações Unidas sobre a Governança Glo-bal, em seu relatório Our Global Neighborhood (1994),definiu a governança global como um modo de gestãodas interdependências, um dispositivo pluralista quepermita à comunidade internacional resolver os proble-mas comuns que enfrenta e possibilite à economia in-ternacional ultrapassar as contradições que ela própria

engendra. São inúmeras as publicações sobre este tema,mas, para uma revisão crítica da literatura, recomen-dam-se os números 155 (1998) e 170 (2001) daInternational Social Science Journal da UNESCO (dis-poníveis em vários idiomas e, em espanhol, no websiteda UNESCO).

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hierarquizada, criando, assim, as condições de atu-ação dos novos atores mundiais, especialmentemultilaterais e não-estatais, que interagem por meiode redes transnacionais. Claro está que, do pontode vista teórico e metodológico, analisar e compre-ender os fenômenos políticos em dimensãomundial constitui grande desafio para as ciênciassociais contemporâneas, principalmente ao preten-der-se afiliar a presente proposta à perspectiva crí-tica da sociologia política das relações internacio-nais (Badie, 1995; Cox; Sinclair, 1996; Smouts,2004), problematizando-as como sistema social esistema-mundo (Beaud et al., 1999; Wallerstein,1984, 2004).

O segundo desafio diz respeito à necessida-de de renovar o sentido da internacionalização,agora dentro de um campo interdisciplinar, resga-tando a importância dinâmica na política mundi-al, analisando as relações sistema-ator e acompa-nhando as mudanças do seu tempo. Se, antes, asRelações Internacionais, como mono-disciplina,desenvolveram-se, sobretudo, no seio da ciênciapolítica (quase como um subcampo científico),propõe-se, agora, um diálogo interdisciplinar maisprofícuo também com a sociologia, a economia, afilosofia, a história, os estudos culturais e a geo-grafia. Se, antes, os temas mais freqüentes, no es-tudo das relações internacionais, eram estratégia esegurança internacional, guerra e paz, dependên-cia e interdependência, cooperação e conflito, or-dem e desordem, os desafios hoje postos ao cam-po interdisciplinar das relações internacionais di-zem menos respeito a tais dicotomias e mais à ne-cessidade de se desenvolver uma perspectivasistêmica integradora dos diversos pluralismos(como sistema-mundo, e não na visão cibernéticae funcionalista de sistemas).2 Isso sem confundiro estudo da política internacional com uma dou-trina e integrando temas a uma perspectiva demo-crática para a governança global, relativos a desi-gualdade e diferença, gênero, justiça social, ética,

desenvolvimento e meio ambiente no plano dasrelações internacionais (Maclean, 2000). Esse de-safio se coloca a partir da importância de se consi-derar a política mundial como o conjunto das rela-ções sociais que atravessam as fronteiras do nacio-nal e que se estabelecem entre as diversas socieda-des.3 Por conseguinte, neste artigo, desenvolvemosuma proposta de agenda de pesquisas nesse cam-po renovado do espaço mundial e da ordem polí-tica contemporânea em torno de três eixos funda-mentais: os ideários, o sistema-mundo e, finalmen-te, os sujeitos e a ação política.

IDEÁRIOS: tensões contínuas de poder,valores e conteúdos de referência na políti-ca mundial

Cox e Sinclair (1996), ao lembrarem que aordem internacional não é imutável, afirmam queo sistema de Estados está em constante mudança.Inspirados em Gramsci, propõem três níveis deanálise da política internacional: a dimensão verti-cal da relação entre Estados (países que dominame os que são dominados); as distintas relações en-tre Estado e sociedade civil no mundo; e a dinâmi-ca do processo produtivo. Pensam o sistema mun-dial de forma próxima à de Strange (1988), associ-ando idéias (cultura, normas sociais, visões demundo), instituições (formais e não-formais) e ca-pacidades materiais (capacidades produtivas,tecnologias, capacidades de destruição, armamen-tos). Para Strange (1988), a estrutura do conheci-mento das relações internacionais se constitui combase em idéias, saberes, ideologias e nos canaispor meio dos quais tais fluxos são veiculados. Trata-se de um campo da política internacional dificil-mente mensurável e bastante difuso, cuja expres-são é tanto negativa (esconder as descobertas, apro-

2 Reconhece-se que uma teoria sistêmica sobre as relaçõesinternacionais pode apresentar desafios na compreen-são da política mundial contemporânea, uma vez queexiste sempre o risco de privilegiar-se ou a agência ou aestrutura na análise.

3 Fala-se aqui em atravessar as fronteiras do nacional, afim de evitar uma concepção estritamente física da fron-teira entre os Estados na caracterização da política mun-dial. O genocídio em Ruanda, os massacres étnico-religi-osos na Bósnia-Herzegovina, assim como a proteção deflorestas tropicais são problemas de política mundial,ainda que se situem estritamente dentro das fronteirasfísicas dos Estados.

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priar-se dos inventos, excluir o outro, subtrairculturas) quanto positiva (transferir conhecimen-tos, cooperar cientificamente) – embora a primeiramodalidade tenda a ser majoritária.

Um exemplo de estrutura de conhecimen-tos que moldou toda uma civilização foi a cristan-dade (christianitas) na Idade Média: a salvação eter-na – utilizada como instrumento de legitimação dapotência da Igreja – permitia o controle sobre osmeios de comunicação (o Index publicava a listadas obras proibidas, o latim como lingua franca esagrada), as finanças (influência sobre as noções epráticas do crédito e da usura) e a segurança (con-cepção de guerra justa e santa). Desde os Tratadosde Westfália (1648), quando o Papado perde o po-der de arbitragem sobre os poderes soberanos dosEstados em formação, marcando o nascimento dosistema interestatal,4 a cristandade foi perdendosua condição de principal referência da estruturade conhecimentos, reduzindo sua capacidadeunificadora e produtora de valores universais. Osurgimento de novas religiões, os fluxos culturais,as ideologias, as redes de comunicação, científicase técnicas, elementos associados à crise mais re-cente do intergovernamentalismo e à aceleração dosprocessos de globalização – de que trataremos aseguir – ocupam um lugar de proeminência nasrelações internacionais contemporâneas.

A crença quase fanática nos mercados glo-bais substitui, hoje, os conhecimentos trazidos pelacristandade, e são implantadas novas estruturasde poder em apoio aos processos de globalização(agências internacionais, cartilhas e receituários).Os fluxos econômicos e financeiros produzemnovos aspectos do ideário contemporâneo; consti-tuem substrato essencial para atores individuais ecoletivos, produzindo nexos de interesse e identi-dade entre o indivíduo e o sistema, entre o local eo global. Ademais, tais fluxos se baseiam em umtipo de opressão menos visível (e, talvez por issomesmo, mais eficaz) e de caráter simbólico, quemolda estruturas de pensamento e ação em boaparte das sociedades contemporâneas. Esses as-pectos do ideário são assimilados pelos atores indi-viduais e coletivos sob a forma de comportamen-tos, costumes, atividades quotidianas, regras e nor-mas (o habitus de Bourdieu) e estratégias de ação.

O poder que os ideários da atual ordemmundial conferem aos atores internacionais resul-ta mormente de uma dinâmica de coesão, aproxi-mação e atração em torno de ideais gerais e co-muns – o que não impede que persistam dinâmi-cas particulares individuais ou coletivas. A rele-vância internacional do papel desempenhado, porexemplo, pelos cientistas e ideólogos da ecologiapolítica decorre da novidade que representam seusdiscursos e das fontes de descontentamento a quefazem eco diante da degradação e dos resultadosnefastos das chamadas “conquistas” tecnológicasda sociedade industrial. Da mesma forma, o exer-cício da potência estatal no cenário internacionalnão depende exclusivamente de seu poderio mili-tar, mas igualmente da capacidade de sedução queexerce sobre seus aliados (soft power, também cha-mado cooptive power). Ou ainda, como afirma Nye(1990), de sua capacidade de moldar e determinarestruturas da economia política mundial por meioda influência difusa que exerce sobre consumido-res, investidores, acionistas, empresas, bancos,organizações midiáticas (relational power, tambémchamado de structural power). Os ideários são,assim, recursos de poder intangíveis, tais como opoder de convencimento, a convergência de prin-

4 Para muitos autores, a Paz de Westfália consagrou otriunfo do Estado como forma privilegiada de organiza-ção política das sociedades, baseando-se em três aspec-tos fundamentais na compreensão da ordem interestatalaté, pelo menos, o final da Guerra Fria e a aceleração dosprocessos de globalização dos anos 1980. Dois dessesaspectos dizem respeito à soberania externa: rex estimpertuor en regno suo, ou seja, nenhum Estado reco-nhece forma de autoridade superior à sua, e todo Estadoreconhece qualquer outro Estado como seu semelhan-te. O terceiro aspecto constitutivo da Paz de Westfáliaconcerne ao equilíbrio de potências, isto é, nenhum Es-tado pode dispor de forças e poderes que lhe permitamimpor-se ao conjunto dos outros Estados, fazendo comque todos se esforcem para que nenhum Estado sejahegemônico. Ver, a esse respeito, Krasner, 1995/96, p.115-151. Note-se, porém, que alguns historiadores ques-tionam as afirmações de Stephen Krasner e tentam der-rubar os mitos fundadores sobre a ruptura que os Trata-dos de Westfália teriam representado no século XVII:Andreas Osiander, por exemplo, afirma que a noção desoberania, no seu sentido contemporâneo, não se en-contrava consolidada e que não seria pertinente consi-derar os Tratados de 1648 como o fundamento políticoda soberania nacional no sistema interestatal. VerOsiander, 2001, p. 251-287.

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cípios e a formação de consensos bastante próxi-mos do conceito gramsciano de hegemonia comque trabalham alguns internacionalistas: Cox (1993)lembra que hegemonia é bem mais que uma meraimposição de visão de mundo, porquanto ela en-gendra um novo senso comum que faz sentido tan-to para os integrantes quanto para os membros ex-ternos da aliança dominante de forças sociais.

Para avançar um pouco mais sobre a ampli-tude e pluralização dos elementos que orientam aargumentação do campo das relações internacio-nais, considera-se que a ordem política contempo-rânea, derivada da estrutura de conhecimentos –o que aqui se designa de ideários –, baseia-se me-nos em uma lógica de poder coercitivo e obrigató-rio, e muito mais na construção de consensos plu-

rais voltados para a convergência de princípios deação. O campo dos ideários é plural por natureza.Ainda que a hegemonia, hoje, esteja orientada nosentido dos mercados globais, isso não impede,por exemplo, que se desenvolvam solidariedadesmúltiplas e novas formas de subordinação políti-ca criadas em torno de comunidades ideológicasde caráter emancipatório, comunidades religiosas,identitárias, ecológicas ou culturais. O fundamen-to dos ideários e o modo como eles estruturam asrelações internacionais têm suas origens na existên-cia de princípios compartilhados e no reconheci-mento de seu papel para indivíduos, sociedades einstituições. Tais princípios podem ser hegemô-nicos, ou tornarem-se contra-hegemônicos.

Os ideários são, pois, um campo majorita-riamente imaterial do sistema-mundo contempo-râneo, que influenciam fortemente as relações depoder entre os atores internacionais, por constitu-írem-se em um domínio do entendimento e doscritérios normativos das próprias relações interna-cionais. Sua natureza imaterial não implica, con-tudo, uma desconexão das condições materiais docapitalismo. Eles são diretamente influenciados,na sua evolução, pela percepção das contingênci-as materiais e mantêm relação de interdependênciacom as ações político-institucionais e as estratégi-as econômicas e tecnológicas, donde sua impor-tância na construção de um novo sentido dainternacionalização. O diagrama da Figura 1 ex-pressa essa idéia.

A configuração de ideários defronta-se cons-tantemente com os obstáculos criados por uma tra-dição originada na formação do pensamento mo-derno racional – o da ordem hierárquica dos ele-mentos que estruturam o real, uma hierarquia en-tre o econômico, o político e o cultural, tal comona tradição marxiana e estruturalista nas ciênciassociais, caracterizando uma dicotomização entreobjetividade e subjetividade no conhecimento –aspecto que este artigo discute a seguir.

Para orientar a discussão dessa questão emtorno do objetivo aqui proposto, de um novo sen-tido para a internacionalização, é preciso abordara produção das categorias de análise. Para a teoriacrítica contemporânea nas ciências humanas, e na

Ideários(forças sociais)

DiscursosEstratégias econômicas

e tecnológicasAções políticase institucionais

Figura 1

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teoria política em particular, o conhecimento de-manda uma descentralização dos referenciais deanálise; isso significa uma reestruturação do co-nhecimento e da percepção dos indivíduos emrelação ao seu entendimento sobre as atividadeshumanas, de como se organizam, os significados eprodutos que delas resultam. A crítica às perspec-tivas utilitarista e estruturalista, que influenciaramlongamente os paradigmas teóricos nos diferentescampos da teoria social, remete hoje a uma visãomais relativa e pluralista dos fundamentos da teo-ria; desdobra-se a idéia weberiana de que a produ-ção do conhecimento tem um caráter relacional e éinfluenciada pela cultura do ambiente social ondese produz. Logo, o conhecimento é percebido comouma construção social sobre a própria sociedade;ele expressa a multiplicidade de condutas (objeti-vas e subjetivas) dos indivíduos, das coletivida-des e o grau de desenvolvimento das instituições.Ele necessariamente retrata as diversas categoriasque organizam o mundo social: geração, gênero,raça, etnia, culturas particulares, tradições herda-das, bio-ambientes diferenciados, local-global, na-ção e internacionalização, entre outros. A socieda-de, ela mesma, não é mais apreendida como umatotalidade dotada de equilíbrio e homogeneidade,com padrões históricos de reprodução de experi-ências de desenvolvimento baseados em explica-ções e justificativas deterministas e monocausais(como visto pelo funcionalismo ou pelo marxis-mo). A teoria crítica hoje busca a pluralidade daslógicas que formam as diversas faces do social edos diferentes processos de desenvolvimento emudança no âmbito das relações entre nações e doespaço político em que as trocas materiais e sim-bólicas se dão por meio da internacionalização.Consideram-se, a seguir, quatro contribuições teó-ricas possíveis a respeito da esfera pública, funda-mentais para o entendimento da ordem políticacontemporânea: a de Jürgen Habermas, NancyFraser, Chantal Mouffe e, finalmente, Joan Scott.

Primeiramente, Habermas (1992) apresentao conhecimento sobre a sociedade como produtode uma política deliberativa, capaz de preservar apluralidade dos sistemas sociais e dos processos

de decisão, valorizando a formação de diversossistemas de produção de consensos políticos naestruturação de uma democracia mais discursiva,dialógica. Destarte, isso permite a reformulação doentendimento da esfera pública; em seus estudosmais recentes, ele refuta a análise que separa radi-calmente o Estado e a sociedade civil, afirmandoque a política os torna profundamente imbricados.Para ele, o discurso político encontra-se dissemi-nado por meio da ação comunicativa em todos osâmbitos da sociedade; esse discurso incorpora di-ferenças, oposições, conflitos e convergências,transcrevendo o que há na sociedade e tambémdirecionando a ação. Em decorrência, Habermas(1995) justifica que a teoria do discurso é capaz deconjugar os direitos fundamentais e plurais comos princípios do Estado de Direito (universal), asaber, um argumento que integra o pluralismo po-lítico com a institucionalização dos pressupostoscomunicativos na democracia. As implicações dessaquestão sobre uma reformulação da esfera públicae das relações entre Estado e sociedade civil é queinfluenciam consideravelmente o próprio enten-dimento sobre as diferentes escalas da política (lo-cal-global, nacional-internacional, nacional-transnacional) em um mundo globalizado. Diálo-gos, negociações, consensos e sistemas políticossão redefinidos a partir de novas fronteiras e no-vos mecanismos de representação e decisão.

Ampliando ainda mais a noção da esferapública, Fraser (1992) afirma que não é possívelconsiderar – em uma sociedade estratificada, plu-ral, multicultural e deliberativa – que haja umaúnica esfera pública de participação e debate. Quan-do uma sociedade busca ampliar a igualdade, ajustiça e as condições de sua realização, ela só podeser entendida como constituída por umapluralidade de arenas públicas, onde grupos comvalores diversos e discursos distintos se fazempresentes. Para a autora, como conseqüência lógi-ca desse argumento, uma sociedade deve conteruma multiplicidade de públicos (espaços e atores).Aliás, o próprio conceito de público pressupõe apluralidade de perspectivas entre os que dele par-ticipam, permitindo diferenças e antagonismos em

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vez de situações que se fecham em um bloco deopinião único e opressivo. Uma vida pública éexatamente essa dimensão de ser parte de situa-ções diferenciadas, preservando a individualida-de ou diluindo-se no coletivo conforme o sentidode uma posição ou luta, o que permite a opinião ea contestação como formas de interação política.Essa abordagem requer uma redefinição do senti-do do que é privado de forma diferente do seusentido burguês (o individual, o doméstico, ex-cluindo-se qualquer dimensão pública). Para tan-to, considera que o self e a autodeterminação po-dem se situar publicamente e ocupar espaço, e aindapermitir o engajamento político ou a inserção emcoletividade. O coletivo, nessa situação, é defini-do pela prática discursiva da contestação.

Os problemas que a internacionalização dapolítica evoca hoje podem se apoiar nessa linhade raciocínio, isto é, o espaço-mundo, do qual par-ticipam nações com diversas especificidades emrelação ao desenvolvimento capitalista, deve con-templar diversas escalas de espaço público, comdiversos tipos de públicos-nação. Nesse espaçotransnacional, uma comunidade nacional (com seucaráter individual) pode lutar por seus interessescom autodeterminação e, ao mesmo tempo, parti-cipar de formas coletivas de organização e repre-sentação nos organismos, blocos e articulaçõespolíticas da política internacional, principalmenteaquela que versa sobre questões de justiça, direitoshumanos e trocas mais equânimes. Isto é, concebera pluralização do espaço público é abrir um campodialógico bem distinto daquele que, para a políticainternacional, se restringe à diplomacia, estratégiase defesa, como também aos alinhamentos políticosque hierarquizam o poder no espaço-mundo.

Em um outro extremo da teoria crítica emdefesa da não centralidade das referências analíti-cas das ciências sociais e da ciência política, pode-se apontar a posição de Mouffe (1992): a autoraafirma que a crítica ao universalismo, humanismoe racionalismo, encontrada nos autores pós-estru-turalistas e pós-modernistas, não é suficiente. Ar-gumenta a favor de uma abordagem anti-essencialista, para elaborar um projeto de demo-

cracia radical5 que consiga articular as lutas contradiversas formas de opressão na sociedade de hoje,ocupando, assim, espaços vazios de significadose identidades que possam subverter as formas deopressão existentes. Metodologicamente, afirmaque, para entender conflitos, é preciso partir dopressuposto de que não há dados fixos ou a priorisobre o conteúdo dos elementos teóricos que orga-nizam o sentido da política e as identidades desujeitos coletivos (movimentos sociais, comunida-des nacionais, redes transnacionais, entre outros).Significados e identidades se constituem no pro-cesso de luta, naquilo que a autora chama de umprocesso dialético de não-fixação ou fixação desentido para as categorias do pensamento, e queacompanha as dinâmicas de convergência da açãocapazes de produzir os significantes da luta soci-al. Acrescenta que a multiplicidade de posiçõesocupadas pelos indivíduos na sociedade (classe,raça, gênero, nação, nós-eles, entre outros) e asformas de subjugação e poder que daí resultamsão construídas por meio de diversos discursosque apresentam deslocamentos contínuos de sig-nificados e sobredeterminações, criando o que elachama de uma identidade contingente e transitó-ria. As contribuições desse argumento para umsentido renovado da internacionalização – mutatismutandis a visão mais radical da autora – dizemrespeito à relevância do caráter discursivo da polí-tica na delimitação de identidades (blocos de na-ções), na configuração de problemas (o que é umcomércio internacional justo, como resolver lutasinterétnicas) e na negociação (como organizar osespaços deliberativos da política internacional).

Afinal, se a constituição dos referenciais deanálise ocupa um papel tão central nos debatessobre como orientar o entendimento do mundosocial e político, é exatamente porque eles explicitamvalores e conteúdos acerca das assimetrias ou de-sigualdades e as conseqüentes injustiças na orga-nização e no desenvolvimento da vida em socie-dade. Dito de outra forma, os referenciais de análi-

5 Para a autora, trata-se de um projeto que responde a umapolítica feminista contra a opressão de gênero.

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se, conforme a perspectiva aqui adotada, permi-tem desconstruir os sentidos das diferentes for-mas de opressão e subjugação (entre grupos, clas-ses ou nações), em diferentes momentos da histó-ria, e revelar como essas formas foram inculcadasnas próprias representações conceituais sobre a po-lítica. Tanto que, na tradição clássica, as categoriasdo conhecimento aparecem como se fossem partede uma evolução natural do real. Isso é claramentepercebido nas formas de representação relativas araça, gênero, classe e ordem política mundial nahistoriografia, nas ciências sociais e no estudo dasrelações internacionais – daí a importância da crí-tica à teoria clássica.

Finalmente, para Scott (1988), essa críticabusca realizar o que ela chama de uma ruptura dafixidez do sentido das categorias de análise.6 Estu-dar a ordem política contemporânea demanda bus-car informação e pesquisar as continuidades edescontinuidades que surgem na produção de di-agnósticos e explicações sobre os sentidos atribu-ídos aos fenômenos sociais (e seu caráter interna-cional e transnacional). A noção de experiênciasocial muito contribui para um estudo dessa natu-reza. Para Scott (1988), é na ocorrência dos fatos ena experiência vivida que os significados adqui-rem sentido para os indivíduos, permitindo com-preender os acontecimentos no seu mundo maispróximo ou mesmo distante. Essa questão é fun-damental para analisar tensões e conflitos, tantoem termos de oposições binárias (patrão versus tra-balhador, país central versus país periférico) comode conflitos plurais (mulher + negra + pobre, oupaís pobre + tribal + de capitalismo periférico),assim como suas implicações para o entendimen-to do poder, da participação e da capacidade dedecidir e influenciar os acontecimentos nas dife-rentes escalas da política. A política, portanto, pre-cisa apoiar-se em referenciais de análise que per-mitam captar as diferenças e a diversidade a partirdo significado que as relações sociais adquirem,bem como de suas implicações políticas. Ao mes-mo tempo, os símbolos culturais disponíveis (em

termos do capital cultural ou do capital social rela-tivo à cultura política) e a teoria já normatizada(que enquadra as interpretações sobre o real) sãoimportantes recursos do intelecto integrados aoestudo crítico da ordem política e das possibilida-des de ação dos sujeitos participantes.

Como afirma Scott (1988), pode-se escrevera história dos sujeitos entendendo que as categori-as que os descrevem e classificam são construtoscujos significados se formam nas experiências vi-vidas; não são significados transcendentes, ou seja,eles não existem para além da ação dos sujeitos.Em paralelo à análise da autora, pode-se dizer queas relações políticas internacionais não devem serentendidas a partir de modelos fixos sobre os sis-temas que as organizam, mas sim a partir de seusideários como projetos a serem realizados. São osideários que dão consistência ao caráter plural dapolítica internacional hoje. Sobre esse aspecto,Wendt (apud Nogueira; Messari, 2005) afirma quea anarquia não possui apenas uma lógica monolíticade conflito e competição; pelo contrário, ela podereverter-se tanto em dinâmicas de conflito quantode cooperação, dependendo do que os Estadosquiserem fazer dela.

Três são os novos valores e conteúdos dereferência política constitutivos do ideário da or-dem mundial contemporânea que merecerão des-taque: a solidariedade, o pluralismo e o princípiode responsabilidade. Em primeiro lugar, a ordempolítica contemporânea é marcada pelo crescimentoexponencial de novas expressões de solidarieda-de, bastante diferenciadas da idéia de solidarieda-de territorializada e fixada no espaço nacionalmoderno. Contrapondo-se ao ideal do nacionalis-mo e à idéia de subordinação cidadã nacional –vetores que são alicerces fundamentais da ordemintergovernamental –, as solidariedadestransnacionais incluem relações de ajuda mútua ede confiança entre grupos e indivíduos (por ra-zões ideológicas, humanitárias, ambientais e de-mocráticas) que se expressam, se justificam e seconformam além das fronteiras do Estado nacio-nal. Interessante notar que a vitalidade das naçõese dos nacionalismos – elementos essenciais das6 Tal como a de gênero, que é o foco de estudo da autora.

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relações internacionais nos séculos dezenove evinte – não dão sinais claros de arrefecimento nocontexto da globalização atual; como lembraDelannoi (1999), a interdependência, a moderni-zação política e a abertura dos mercados convivemcom ações de (re)afirmação do nacional na econo-mia (protecionismo, autarcia) e na política (confli-tos infranacionais, reivindicações territoriais).

As solidariedades transnacionais, que as-sumem formas positivas (no campo humanitário)e negativas (nas redes criminosas), são inseparáveisdas dinâmicas de aproximação entre as socieda-des européias nos primórdios do século dezenove.O chamado Concerto Europeu de Nações, esboço decooperação interestatal multilateral, pode ser vistocomo o início do processo de institucionalização dassolidariedades no Velho Continente, da mesmaforma que devem ser lembrados o movimento emtorno da abolição da escravidão e a associação in-ternacional dos trabalhadores (a Primeira Interna-cional Comunista, de 1864). Tais exemplos evi-denciam que a solidariedade é uma forma de açãocoletiva que depende diretamente das condiçõessociais de aproximação dos sujeitos individuais ecoletivos. Da mesma maneira que a autoridade, acompetição ou o conflito, a solidariedade éindissociável de um determinado estado social. Aaproximação entre indivíduos na sociedade e en-tre as diferentes sociedades (a “densidade dinâmi-ca” de Durkheim) propicia acercamento material econvergências no campo moral. A experiência, aslições do passado, o aprendizado, a consciênciade viver junto em um mundo onde as conexõesinternacionais são altamente facilitadas são fatoresda dimensão cognitiva da interação que estão nabase das solidariedades transnacionais. Não é aglobalização que favorece o desenvolvimento demovimentos de solidariedade transnacional, massão seus efeitos sociais que criam as condições eas possibilidades (Devin, 2004).7

No caso dos movimentos sociaistransnacionais, por exemplo, é relevante notar queo senso de contestação expresso por uma consci-ência crítica não busca formas simplificadas ouexcludentes de identidades (ou trabalhadora oumulher). A ação coletiva promove o desenvolvi-mento de elementos de solidariedade que integramatores, condições sociais e movimentos (organiza-ções), combinando valores morais e atitudes ori-entadas. Nesse caso, é no campo das solidarieda-des que afinidades são reconhecidas e conflitosnegociados (interna e externamente), abarcandopluralidade, diversidade e diferenciação. É devi-do a essa dinâmica contínua entre integração econflito que a ação política direta é muito presenteem eventos transnacionais, sem a pré-condição depropor soluções políticas ou institucionalizadas(Milani e Laniado, 2006). A solidariedade delineia,aqui, os campos de produção da contestação e doconfronto relacionados à distribuição e ao reco-nhecimento, como mencionado anteriormente.Funciona como uma unidade estruturante de es-tratégias para mudar situações e contextos. Logo, édiferente da forma como o conceito foi abordadopela sociologia clássica, que afirmou a solidarieda-de como o eixo da coesão e do entendimento dasociedade como uma totalidade, baseada em laçossociais de longa duração, com um efeitodeterminante do sistema sobre o ator (Laniado,2001). Nos arranjos complexos da ação coletivatransnacional, as novas solidariedades são conti-nuamente trazidas à tona por protestos e vontadede mudanças; elas produzem laços sociais de reci-procidade de curta duração relacionados com ofluido e transitório caráter das relações estabelecidasatravés de redes e eventos pontuais. No entanto,as novas solidariedades dos movimentos sociaistransnacionais dão um ímpeto para a efetiva difu-são de significados (valores, identidades, contes-tação) e a definição de objetivos (estar lá, exporbandeiras de luta, exigir participação), tal como os

7 Devin (2004) afirma que, na tradição do direito romano,a noção de solidariedade correspondia a uma relação emque todas as partes envolvidas respondiam por algo demodo comum; tratava-se de uma forma de responsabili-dade que mantinha os indivíduos in solidum, comparti-lhando obrigações solidárias. A acepção contemporâneada solidariedade é menos exigente: sob modalidades di-

ferenciadas (assistência, expertise, lobby, protesto, com-bate), a solidariedade designa uma relação em que pesso-as e (ou) grupos intercambiam, com base na reciprocida-de (mas nem sempre), recursos particulares.

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movimentos transnacionais têm sido capazes defazer até agora (Milani; Laniado, 2006).

O segundo aspecto a abordar para o estudodo papel dos ideários na ordem mundial é o dopluralismo das bandeiras e símbolos nacontemporaneidade. Os símbolos são a linguageme a compreensão em si mesma, fundindo a repre-sentação da vida social, a evolução e emancipaçãodas culturas e os significados recebidos econstruídos para homens e mulheres. Como umavisão de mundo muito complexa e retratando osdados complexos da realidade, os elementos sim-bólicos constituem um eixo de análise fundamen-tal para entender a estrutura de conhecimentos naordem política contemporânea. Eles expressamcomo os atores sentem e agem em seu próprio modode se apropriar de pontos de vista conflitivos ouconvergentes sobre questões sociais (feitos de va-lores, experiências e objetividade), e que se en-contram na base mesma da controvérsia. Por umlado, eles se materializam por meio de sinais (lin-guagem e outros), produção (material ou não), in-formação e atitudes que estão presentes no ato daparticipação (em todos os setores da vida huma-na); eles também se materializam em conhecimen-to recebido e produzido, na interação através dacomunicação (diálogo, debate, controvérsia), nosobjetivos definidos e em proposições (produção,governo, educação, entre outros). Por outro lado,os elementos simbólicos constituem sempre oenquadramento do conteúdo significativo de umaépoca; eles representam as questões (política, guer-ra, produção, ciência, cultura) que largamentemobilizam a sociedade e seus setores, destacandoos fatores que melhor representam as aspiraçõesde uma coletividade, que podem ser progressistasou conservadoras (Milani; Laniado, 2006).

O que diferencia o papel dos símbolos hojena constituição da ordem mundial é, fundamen-talmente, seu caráter plural, sua multiplicidade epermanente capacidade criativa de renovação – emcontraposição ao caráter unitário e monolítico dasbandeiras e símbolos (classe, nação). Uma agendade pesquisa sobre a ordem política e a ordem mun-dial situa o papel do pluralismo na análise crítica.

Pode-se dizer que as teorias (assim como as ideo-logias para a direita ou esquerda) que dominaramo século vinte influenciaram reflexivamente a cons-ciência política coletiva e possibilitaram organizaros ideários de igualdade e justiça centrados nosbinômios de individualismo e mercado ou luta declasses e revolução; são eles que dominaram oimaginário social e influenciaram diretamente asconcepções sobre a ordem política mundial e sobreprojetos de mudanças. A ruptura dos paradigmascentralizadores e das categorias fixas de represen-tação dos processos históricos nas últimas déca-das forma um campo de crítica e inovação no pen-samento social contemporâneo sobre a interna-cionalização. Afinal, idéias e representações retra-tam processos geracionais através do tempo emrelação a sujeitos na história – sua estratificação,seus modos de pensar projetos e orientações e oseu agir social. Os atributos geracionais dessasentidades do real são produtos de categorias soci-almente construídas, que formam conjuntos perti-nentes a uma época; portanto, não são definitivos,permitindo a crítica e a renovação.

Sociologicamente, geração é uma categoriarelacional que se realiza no cotidiano e na históriaatravés da experiência; como todo produto de re-lações objetivas na história, ela expressa diferen-ças, identidades, hierarquias provisórias entre in-divíduos e grupos. Além de idade e de um inter-valo de tempo, geração designa um coletivo damesma idade situado em determinada época e tem-po social (Motta, 2005). No sentido aqui intencio-nado, a noção de geração diz respeito a um con-junto de idéias e categorias do pensamento querepresenta justamente o pensamento sistematiza-do de coletividades (por consenso ou confronto)sobre questões que certamente interessam aos seusmembros: modos de agir e pensar sobre si mes-mos e sobre os outros, reconhecimento e statusque situam os indivíduos no seu meio (posição,lugar e tempo), poder que perpassa todo nível derelação social. É o arco geracional das idéias quepermite entender a dinâmica dialética na produ-ção de um novo sentido para as categorias sociais,as quais possibilitam explicar os fenômenos e os

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acontecimentos da ordem política internacional.Essa dimensão é muito importante para se

entender melhor o processo histórico das açõescoletivas contemporâneas, as mudanças que per-correram (demandas, classes, identidades afirma-tivas, localismo) e as suas características mais atu-ais (fragmentação, fluidez, identidades plurais,transnacionalismo). Há as experiências vividas quemarcaram as diversas gerações de ação coletiva:movimentos sociais revolucionários, movimentossociais reivindicatórios, novos movimentos soci-ais, movimentos transnacionais. Dessa forma, en-tender a dimensão geracional das ações coletivaspolíticas hoje é definir um marco diferenciador quepermite mudanças no próprio sentido das relaçõesinternacionais e das políticas que elas abrangem.Em geral, a política, na atualidade, incorpora nãosomente a sociedade civil, redefinindo aestruturação da esfera pública, como afirma a tesehabermasiana, mas integra definitivamente o coti-diano (heterogêneo e de trocas intensas) e a histó-ria no sentido atribuído por Heller (1989), conju-gando, de forma concomitante, o particular e o maisgeral, a regularidade e o espontâneo, verdadesinstitucionalizadas e juízos provisórios.

A política, o poder e os valores simbólicos,na democracia, são referidos segundo a tradiçãorepublicana, a idéia do bem comum. Ainda queessa noção da modernidade corresponda a umavisão unitária do social, ela ainda tem forte sus-tentação no imaginário coletivo – apesar dadescentralização do político e dos paradigmas doconhecimento já mencionados. No entanto, o prin-cípio do bem comum não tem logrado prover res-postas para as assimetrias e desigualdades encon-tradas em larga escala na maioria das sociedades,mesmo as que sustentam regimes e governos de-mocráticos. Em um mundo cada vez mais interna-cionalizado, os princípios de igualdade, justiça eparticipação formam campos de convergência eorientam o sentido do bem comum dentro e foradas comunidades nacionais. São princípios sujei-tos a vários níveis de interpretação. Nas experiên-cias democráticas, integram-se com o grau de de-senvolvimento das forças produtivas de países e

blocos regionais, delimitando continuamente a re-lação entre o cidadão, a coletividade mais próximae os outros, expressando tensões contínuas dopoder e de lutas hegemônicas e simbólicas. Para-doxalmente, esses princípios possibilitam a críti-ca em relação à sua insuficiência, implicando umdéficit de realização democrática recorrente em tem-pos de globalização.

O princípio de responsabilidade é o tercei-ro e último destaque quanto ao papel dos valoresde referência na política mundial contemporânea.Ele se contrapõe ao da soberania, que, na acepçãoclássica de Jean Bodin, significa, por um lado, queo Estado não reconhece em seu território outraautoridade superior à sua (monopólio da violên-cia legítima e da sanção jurídica) e, de outro, quetodos os Estados são iguais à luz do direito inter-nacional (igualdade soberana). A soberania nacio-nal é “o poder absoluto e perpétuo de uma Repú-blica” (Bodin apud Barros, 2001, p. 11); ela é aexpressão da potência coletiva da nação da qual oEstado é o depositário e o garantidor supremo; éfonte única da lei civil, indivisível e instânciadecisória final (Barros, 2001). A soberania é o fun-damento do papel desempenhado pelo Estadocomo gladiador nas relações internacionais, sem-pre em oposição aos outros Estados; nesse senti-do, Tilly (1996) lembra que o war-making serviude base e constituiu o próprio state-making. Ouseja, a soberania nacional é um dos elementostipificadores do power politics baseado em milita-rismo, armamentismo, lógica de potência e sepa-ração total entre política e moral. O princípio dasoberania serviu historicamente a diferentes pro-jetos políticos, confundindo-se com a própria his-tória dos Estados.8

No entanto, como assinalam autores comoBadie (2000) e Ruggie (1993), a soberania territorial

8 Prestou-se aos interesses das metrópoles coloniais, afim de contrapor toda ingerência em assuntos domésti-cos. Brejnev, líder da então União Soviética, utilizou-sedo argumento da soberania limitada para invadir aTchecoslováquia em 1968, alegando ser legítima todaintervenção armada nos países do Pacto de Varsóvia cujasoberania estivesse sob ameaça capitalista. Em nome dasoberania, a França se opôs ao direito de vigilância dacomunidade internacional durante a guerra na Argélia,la Guerre sans nom...

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não é contemporaneamente contestada pelos flu-xos transnacionais? O Estado, ao aderir aos pro-cessos de construção de espaços regionais deintegração, não estaria cedendo partes de sua so-berania? Como fazer uma gestão dos bens comunsplanetários sem comprometer a soberania nacio-nal? Já que vivemos em um mundo cada vez maisinterdependente, como justificamos a recusa emassumir a responsabilidade pelos danos sofridospor pessoas que vivem em outros países? Quaissão os argumentos que julgamos válidos para ne-gar o acesso ao mercado de trabalho de imigrantesoriundos das regiões mais pobres do planeta? Te-mos o direito de restringir a autonomia cultural deminorias estrangeiras que vivem em nosso país?Existe uma obrigação de ajudar populações em si-tuação de miséria em certas regiões do planeta? Oque fazer diante das violações de direitos huma-nos em outros países?

Tais questionamentos evidenciam que, namodernidade avançada, hipermodernidade ou pós-modernidade (terminologia que, aliás, é objeto depolêmica e debate entre diferentes tradições teóri-cas), o Estado entra em competição com novasdemandas sociais e que a noção de soberania totaldeve ser abandonada em favor de outra concepção– uma soberania condicionada aos princípios daética na política, da justiça e da dignidade huma-na. Isso porque, como um dos valores de referên-cia da ordem mundial, o sentido absoluto da sobe-rania excluiu muitos e foi bastante seletivo histori-camente. A esse respeito, Badie (1995) afirma queo princípio da inviolabilidade do território nacio-nal deve ser cotejado com a idéia de utilidade so-cial do respeito que inclui, integra e diferencia. Autilidade social do respeito, uma das dimensõescentrais do princípio de responsabilidade, temimplicações sobre a forma como concebemos oconviver juntos – um conviver culturalmente de-senvolvido em uma democracia pluralista e pres-supondo que o modo de viver dos outros é dignoe justificável (Douglas, 1995). É evidente que daídecorre a necessidade de pensar uma comunida-de política mais ampla, além das fronteiras do Es-tado-nação. Ou seja, a soberania segue sendo um

princípio ordenador das relações internacionais,mas perderia sua exclusividade em termos deregulação do sistema-mundo contemporâneo.

SISTEMA-MUNDO: transnacionalismos ereticularidade na política contemporânea

Três aspectos fundamentais caracterizam osistema-mundo contemporâneo9: os processos deglobalização, a aceleração do desenvolvimento deatores e relações transnacionais10 e a dimensãoreticular de suas formas de organização. Aglobalização é um conceito bastante aberto em ter-mos dos elementos do seu conteúdo ou mesmo desua precisão em relação à sua aplicabilidade. ParaTherborn (2000), esse conceito inclui argumentosde natureza acadêmica, ideológica ou mesmomidiática e volta-se, quase sempre, para cinco fo-cos alternativos: 1) a intensificação da competiçãoeconômica; 2) uma percepção sócio-crítica de suasconseqüências sociais; 3) a impotência do Estadoface aos avanços de uma economia globalizada; 4)os fluxos transnacionais de cultura, e, por fim, 5)incorpora um discurso sobre ecologia planetária eseus ecossistemas. O impacto da globalização so-bre a conduta dos atores cria, hoje, uma diferenci-ação entre vencedores e perdedores, porquanto oespaço social dos indivíduos se torna demarcadopor dois ângulos: altera diretamente o seu lugarno sistema mundial e abre canais para a sua ‘circu-lação’ pelo resto do mundo. Oportunidades, co-nexões, informações, mobilidade, entre outros,subvertem os valores e códigos normativos típicosda modernização capitalista fundada no territóriodo Estado nacional. Para o autor, as elites econô-micas tendem, no geral, a ganhar, porque melho-

9 A noção de sistema-mundo é aqui tratada comoconstruto social, diretamente compatível com a pers-pectiva analítica relacional e que privilegia o “conheci-mento” como construção da realidade social.

10 As relações transnacionais são aqui definidas, seguindoRisse-Kappen (1995), como interações de caráter regulare contínuo através das fronteiras nacionais, quando pelomenos um dos atores envolvidos é um agente não-esta-tal ou cuja ação não se dá em nome de um governonacional ou de uma organização intergovernamental.

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ram sua situação nos negócios através do acesso aoportunidades, tecnologia internacional, interaçãoe apoio de organismos internacionais. No entanto,grupos econômicos não competitivos e tradiciona-listas, mais localizados em termos de valores e deestilos de vida, tendem a não acumular ganhoscom a globalização; sofrem mais a influência dasameaças do sistema econômico, insegurança e per-das acumuladas. Logo, a globalização descreve mo-dos de ser dos sistemas de forma diferenciada ecom impactos e efeitos também diferenciados emcontextos históricos específicos em todo o mundo.

Observando os processos da globalizaçãoem relação às possibilidades analíticas que ofere-cem, Bartelson (2000) orienta a discussão para osignificado e a funcionalidade do conceito. Para oautor, o termo é ambíguo, por vezes dotado deopacidade, gerando imprecisão nos debates sobreos seus limites e contornos. No geral, toma-se comoponto de partida que a teorização sobre aglobalização superaria as teorias centradas no po-der ou no Estado, produzindo uma aceitabilidadefactual sobre os fenômenos que descreve, comoprocessos que ocorrem em algum lugar ‘lá fora’ (outthere). Quais seriam os fundamentos da constitui-ção desse nível do ‘global’? Tal nível oferece algu-mas diretrizes analíticas já percorridas por outrasvertentes teóricas? Bartelson indica várias postu-ras a respeito dessa discussão. O termo pode en-globar a força da ideologia capitalista hoje, comopode fazer submergir os efeitos do próprio imperi-alismo cultural, dando-lhe uma feição deecumenismo cultural ou de fatalismo econômico,dissimulando as relações de poder transnacionaiscomo necessidades neutras do sistema mundial.Outras opiniões acentuam o caráter ambíguo daglobalização tanto naquilo que descreve como nosfatos que caracteriza, evidenciando mais um mo-mento histórico de profundas mudanças.

Bartelson (2000) sugere perseguir a evolu-ção do conceito para apreender o que ele tem sig-nificado e o que ele tem implicado ao longo de suautilização. Para tal, analisa o seu desenvolvimentoontológico, percebido como uma sucessão lógicade diferentes conotações que descrevem trajetóri-

as históricas em diferentes contextos teóricos.Como ponto de partida, assume que o próprioconceito não deve ser abordado como expressãode um processo de mudança já manifesto, masdeve ser entendido como um ‘veículo’ (um artefa-to teórico) para as mudanças que ele retrata comomanifestas, descrevendo tanto experiências comoexpectativas de ocorrências. Teoricamente, portan-to, teria o estatuto de um conceito intermediário,que possibilita mudanças teóricas nas teorias clás-sicas já estabelecidas. Desse modo, a globalizaçãodescreveria três dimensões da dinâmica dos siste-mas mundiais contemporâneos: transferência (in-tensificação das trocas), transformação (mudançasnos sistemas e nas identidades de suas unidadesconstitutivas) e transcendência (diluição das fron-teiras de inclusão ou exclusão).

A intensificação das trocas (transferênciaseconômicas ou simbólicas) é talvez o aspecto maisdifundido nas análises sobre a globalização e é ca-racterizada por um movimento de dentro para fora(inside out) das unidades participantes (Estados-nação). A segunda dimensão, a transformação, ca-racteriza uma dinâmica que ocorre por cima dasunidades dos sistemas, marcada pela interaçãoentre sistemas e setores; descreve um movimentomultidimensional de fora para dentro (outside in),em que definições econômicas e políticas são to-madas num jogo de intersecção que não se restrin-ge às unidades do sistema, relativizando a sobera-nia dos Estados-nação. Finalmente, a dimensão detranscendência da globalização, em última instân-cia, des-espacializa e des-temporaliza as práticashumanas, as condições de produção do conheci-mento, caracterizando uma dinâmica própria,irredutível a causas singulares do sistema ou desuas unidades; um mundo em que a relação dosobjetos é gradualmente dominada pelos seus sig-nos (informação, por exemplo) subvertendo a or-dem constituída dos Estados e da produção desua identidade, des-territorializando identidades,solidariedades e sistemas de autoridade. Isso afetaa própria estruturação da referência do Estado, danação, da soberania e da sociedade como um con-junto de normas, valores e culturas, herdados e

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reproduzidos e, paradoxalmente, continuamentemodificados.

Do ponto de vista adotado neste artigo, en-tende-se que a essa análise sistêmica da globa-lização é necessário incorporar as dimensões dasrelações de poder e dos conflitos aí envolvidos.A globalização não pode ser dissociada dos dile-mas do poder que engendra para as diferentes re-alidades nacionais (Ortiz, 1994); tampouco ela afastaconflitos existentes entre Estados e setores soci-ais, ou entre os ganhadores e perdedores, confli-tos esses constantemente revividos simbolicamentenas manifestações públicas contra as atividades dasdiversas agências internacionais. São as dimensõesdo poder e do conflito que permitem, constante-mente, reavaliar os aspectos qualitativos e extensi-vos da globalização, que têm acentuado as desi-gualdades sociais em vários recortes dos sistemas(emprego, distribuição da riqueza, educação e saú-de, migração, etc.). Diniz (2000) reafirma que asquestões de natureza política são indissociáveisdo entendimento do processo de reestruturaçãomundial da economia, pois o mesmo se viabilizaatravés de redes transnacionais de conexões atra-vés das quais se articulam os grupos e interessesinternos e externos, transcrevendo escolhas e açõesestratégicas de implementação de políticas de im-pactos transnacionais. Ou seja, o poder e os agen-tes são partes constitutivas das análises sobreglobalização que não devem ser desencarnadas dosseus atores.

Ademais, pode-se dizer que, se, por umlado, a globalização habilita Estados e setores a umengajamento mais intensificado nos sistemas detroca, por outro, ela constantemente restringe, poisimpõe uma seletividade. Guibernau (1997) afirmaque, do ponto de vista da cultura, a globalização éum fenômeno capacitante, mas também coerciti-vo; isto é, tanto expande as oportunidades ofereci-das pelas novas tecnologias como imprime dife-renciações de acesso a recursos por diferentes cul-turas. Quando confrontados com a questão nacio-nal (os diferentes nacionalismos), os processos deglobalização deparam-se com oposições entre tra-dição e valores manufaturados (sem raízes), iden-

tidade cultural de comunidades e identidade semconfiguração cultural específica, normas socialmen-te produzidas de interação social intensa e solida-riedade social em oposição a normas operacionaise de baixíssimo grau de interação entre indivídu-os, entre outros fatores. A relação entre identidadenacional e cultura demanda, pelo entendimentoda tradição histórica, consagrado sobre as evolu-ções sociais, continuidade no tempo e diferencia-ção dos outros, produzindo, assim, a matriz dossistemas sociais mais abrangentes.

O redirecionamento econômico global afetadiretamente a organização do sistema mundial, so-bretudo no que tange à emancipação cada vez maismarcante dos atores transnacionais. Por conseguin-te, as mudanças no nível do sistema-mundo dizemrespeito, também, à forma como se organizam e seposicionam os atores, movimentos, organizações.Nos anos 1950 e 1960, foram os funcionalistas (DavidMitrany, Ernst Haas) que, no seio da disciplinadas Relações Internacionais, iniciaram as reflexõessobre o papel das coalizões de interesses entre in-divíduos pertencentes a países diferentes (com per-cepções e necessidades comuns). Nos anos 1970,Keohane e Nye (1972) definiram as relaçõestransnacionais como o conjunto de contatos, coa-lizões e interações através das fronteiras nacionaisque não são controladas pelos ministérios respon-sáveis pela política exterior nos respectivos países;privilegiaram atores de natureza bastante variada,incluindo empresas multinacionais, movimentosrevolucionários, a Igreja Católica, sindicatos, redesde cientistas, transportes aéreos, entre outros.

A ruptura nos estudos sobre a transnaciona-lização de movimentos e organizações se dá com aaparição da obra de Rosenau em 1990: haveria ummundo multicentrado autônomo e em competiçãocom o mundo estadocêntrico, no qual ocorreminúmeras transformações de caráter micro-socio-lógico, fundamentais para entender os transna-cionalismos (enfraquecimento das lealdades naci-onais, retomada de identidades no nívelinfranacional, fragmentação comunitária, desenvol-vimento de diplomacias privadas). Os indivíduoscontemporâneos são, para Rosenau (1990), melhor

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informados e capacitados para pensar e agir sobrea política mundial (skillfull individuals); eles têmuma base de lealdade territorializada (são cidadãosde um Estado), mas desenvolvem múltiplas for-mas de subordinação social desterritorializadas(ecologistas, humanitárias, feministas, redes dedireitos humanos, etc.). Aqui, caberia um paralelocom o pensamento de Elias (1991): para o sociólogoalemão, a integração eventual de indivíduos a for-mas de organização social que ultrapassam as fron-teiras nacionais não deriva de convicções ou da boavontade individuais, mas traduzem uma configura-ção de cadeias de interdependência entre eles.

A literatura especializada tende a consagraras redes como forma de organização por excelên-cia dos transnacionalismos (Castells, 1998;Colonomos, 1995). Já em 1972, Burton (1972) pro-pôs o modelo da teia de aranha (cobweb model), afim de ilustrar as interações planetárias. O que nosanos 1970 parecia novidade será descrito porCastells (1998) como a nova morfologia social: asredes seriam, para ele, a nova morfologia das socie-dades contemporâneas, e a difusão das lógicasreticulares determina amplamente os processos deprodução, experiência, poder e cultura. A redecorresponderia a um conjunto de nós interconectadose interligados, que seguem objetivos comuns e sefortalecem mutuamente (reciprocidade, valor doelo), podendo multiplicar-se em novas unidades.São exemplos clássicos os mercados de bolsas devalores e suas centrais de serviços auxiliares narede de fluxos financeiros globais; também ilus-tram essa categoria de análise os campos de coca epapoula, os laboratórios clandestinos, os postosde armazenamento, de venda e comércio da redede narcotráfico. Há um aspecto importante a no-tar: qual seria o centro de poder da rede? ParaCastells (1998), as redes são flexíveis e regidas pormecanismos de auto-regulação, mas isso não sig-nifica que não haja nelas hierarquias. São funda-mentos e paradigmas das redes: a intencionalidade(declaração de intenções); valores e objetivos com-partilhados (objetivos e valores comuns queinterconectam ações e projetos); colaboração (trocaentre integrantes); multiliderança e horizontalidade

(autoridade com origem em muitas fontes);conectividade (costura dinâmica de muitos pon-tos); realimentação e informação (circulação nãolinear); descentralização (capilarização dos centros,autonomização dos nós); e dinamismo (flexibili-dade, estrutura plástica, adaptabilidade).

No caso das redes transnacionais, sãoconstruídos espaços políticos ampliados que trans-cendem as fronteiras do Estado-nação (Colonomos,1995). As redes transnacionais seriam formas deorganização social de baixa institucionalidade queassociam indivíduos e grupos em um raio de in-tercâmbios e obrigações recíprocas, cujas dinâmi-cas visam a desenvolver e consolidar ações coleti-vas nas esferas sociais, políticas e econômicas emescala transnacional. Às trocas e conexões – duaspalavras-chave da organização reticulares – devemser acrescentados, no caso das redes transnacionais,os seguintes aspectos: a-territorialidade e trans-es-cala (outro território), abertura (sem fronteira),multifuncionalidade, flexibilidade (conversão de umespaço a outro recursos, valores e logística) e adap-tabilidade (por exemplo, redes de solidariedade re-ligiosa que também prestam serviços de assistênciasocial e dão suporte a projetos políticos), relaçõesde poder (os nós da rede não são desprovidos deinteresse e paixão) (Colonomos, 1995).

Nessa abordagem, a escala transnacionalcorresponde, assim, a um continuum territorial dolocal ao global que redefine a identidade, a estraté-gia e os recursos das organizações-em-rede. Damesma forma que o capital transnacionalizado in-duz mudanças sistêmicas no regime de acumula-ção (que, gradativamente, passa de nacional e in-ternacional a um regime global de acumulação), asredes, organizações, movimentos e agentes da so-ciedade civil tendem a organizar-se e a constituir-se transnacionalmente. Ainda que haja diferençasquanto à ordem desejada, à qualidade da partici-pação democrática em ações coletivas e aos pro-cessos decisórios, as organizações da sociedadecivil que atuam na contestação ao sistema-mundoeconômico e político vigente definem um consen-so mínimo em suas plataformas de ação. Esse con-senso dá-se a partir da necessidade de articulação

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de interesses e objetivos de tantas organizações comperfis heterogêneos no plano mundial (Milani;Laniado, 2006). A clássica noção de laços fracosde Granovetter (1973) muito corrobora a compre-ensão do papel das redes transnacionais na ordempolítica contemporânea, uma vez que o comporta-mento dos indivíduos e dos grupos não pode serpensado exclusivamente em função dos “laços for-tes” (nação-pátria, instituições), que tendem a criarzonas de circulação fechada, mas sim em termos de“laços fracos”, que permitem a construção de pon-tes e passagens entre diferentes espaços de rela-ções sociais (meio ambiente, direitos humanos,solidariedade internacional, contestaçãoantiglobalização).11

Da natureza dessas redes transnacionais de-correm grandes dificuldades que têm as autorida-des governamentais e os regimes internacionais decontrolá-las, cooperar com elas ou de combater seusefeitos (por exemplo, no caso de redes criminosasde tráfico de armamentos, drogas, seres humanos).Redes de movimentos sociais transnacionais podemameaçar a segurança dos Estados nacionais(islamismo fundamentalista, por exemplo), consti-tuindo-se em fontes novas de conflitos inter-esta-tais; interagem com estruturas domésticas (institui-ções, relações Estado-sociedade, cultura política),têm acesso ao espaço público de debates e, em al-guns casos, impacto político na agenda de organi-zações intergovernamentais (Risse-Kappen, 1995;Devin, 2004). A globalização e os transnacionalismoscolocam em xeque, além da soberania e da autori-dade do Estado, a própria noção de território naci-onal: ele é contestado por identidades infranacionais,processos de integração regional, mas também pelodireito comunitário (Badie, 1995). É bem verdadeque ainda existem conflitos territoriais clássicos.12

Afinal de contas, o território é um dos componen-tes essenciais da realidade material do Estado na-cional e de sua soberania delimitada pelas frontei-ras. É no território que o Estado exerce sua juris-dição, e é por meio dele que as comunidades polí-ticas da modernidade se diferenciam. No entanto,o que os movimentos sociais transnacionais e asorganizações em rede revelam, de modo muito par-ticular, é a necessidade de re-contextualizar a polí-tica contemporânea, na qual o nítido recorte mo-derno entre política doméstica e política exterior,alta e baixa política (high politics e low politics),hard power e soft power, entre outras dicotomiasclássicas no estudo das relações internacionais,tende a relativizar-se e ser desconstruído (Milani;Laniado, 2006).

A EXPERIÊNCIA DOS SUJEITOS E ATRANSNACIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Para uma agenda de pesquisa sobre políticae ordem mundial em relação a um novo sentidoda internacionalização, toma-se como um dos ei-xos de análise a noção de experiência, uma noçãoque encontra suas raízes na tradição weberiana deação social. A presença do indivíduo na política éa expressão da conjugação da vida cotidiana, daexperiência no nível individual e coletivo e dareflexividade contínua entre agente, cultura e sis-temas. Como mencionado anteriormente, as práti-cas sociais são constituidoras dos sujeitos, de suasidentidades e dos valores que os tornam engajadosnos processos políticos no nível micro, meso oumacro (por analogia, local, nacional, internacional).Ademais, a experiência é também fonte de conhe-cimento e de consciência que os indivíduos ad-quirem sobre o que fazem, e por que agem e comoagem. Portanto, entender a ação política em dife-rentes escalas é também entender os acontecimen-tos da política (fatos, organizações e decisões) comoexperiência vivida pelos atores.

11 Mark Granovetter havia estabelecido quatro critérios paramedir a intensidade dos laços dentro de uma rede de rela-ções sociais: a duração da relação, a intensidade emocio-nal, a intimidade e a reciprocidade (Granovetter, 1973).Um quinto critério foi adicionado por Degenne e Forsé(1994): a pluralidade dos conteúdos do intercâmbio.

12 A crise entre a Espanha e o Marrocos, em 2002, acercada ilha de Perejil (situada no estreito de Gibraltar a apro-ximadamente 200 metros da costa marroquina e uns 8km da cidade espanhola de Ceuta) ilustra bem a perma-nência de conflitos territoriais de tipo tradicional. Tro-

pas do Marrocos chegaram ao ilhote em 2002 e foramposteriormente retiradas pelos espanhóis. Não existenenhum acordo bilateral ou multilateral acerca de queEstado exerce a soberania sobre essa ilha.

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A experiência vivida torna compreensíveis,para os sujeitos, os mecanismos internos dos pro-cessos sociais, sejam eles relativos à integração,poder, controle ou opressão. A dimensão discursivada experiência (cultural, política e econômica,como argumentado anteriormente) é dada pela lin-guagem, valores, normas e simbologias diversasque estruturam significados e permitem captar acomplexidade e os aspectos contraditórios do real.Portanto, experiência, nesse sentido, não é maté-ria bruta ou um mero recorte empírico do real;constitui sujeitos por meio das representações dopensamento que organizam as categorias do en-tendimento e permitem as interações cognitivas dossignificados e dos seus referenciais, semprecontextualizados em situações históricas relacionais(Scott, 1992).

Esse é o sentido dado por muitas formas deação coletiva, tais como movimentos sociais, ma-nifestações, contestações que ocorrem tanto local-mente como no plano internacional, muitas vezesatribuindo sentidos transnacionais para causaspelas quais militam ou para identidades que pro-curam se expressar no cenário político mundialhoje. A noção de experiência como ação políticavivenciada pelos atores, portanto, propicia umoutro entendimento do caráter transnacional darelação entre atores, agências e espaços públicosplurais em arenas diversificadas, porquanto elapermite uma análise da articulação dos fatores queintegram os seus vários níveis. Ela também podeapresentar-se como uma consciência política ati-va, crítica e engajada – uma consciência que sofreinfluências do sistema político e o influencia, por-que mobiliza fatores subjetivos e objetivos.

Dubet (1994) observa que a sociologia polí-tica clássica se apoiou nas concepções de ordemsocial e processos de internalização das normaspelos atores, um modo de interação entre ator esistema por meio de vínculos que estruturam avida coletiva; assim a sociedade, nessa visão clás-sica, é representada como um organismo natural etotal. Para o autor, esse sentido de sociedade nãomais se sustenta em relação à análise crítica dateoria social e à crise dos paradigmas. Em contras-

te, para o autor, indivíduos e sociedade não for-mam entidades unificadas, dotadas de estruturashomogêneas. São heterogêneos nas formas deindividualização, socialização e integração. Para ele,a noção de experiência social designa condutasindividuais ou coletivas dominadas por umaheterogeneidade de princípios constitutivos e pe-las múltiplas atividades dos indivíduos por meiodas quais constroem um sentido para as suas prá-ticas, incluindo aqui um novo sentido que, paraeles, adquire o transnacional. É como se os atoresadotassem, simultaneamente, vários pontos de vis-ta – uma identidade formada de identificações su-cessivas, e em diferentes escalas (Dubet, 1994). Porexemplo, é disso que trata a luta constante de ato-res (dos mais diversos) no plano internacional porjustiça, maior equanimidade, direitos humanos eresponsabilidade compartida pelo meio ambiente.Conseqüentemente, para o autor, a construção daexperiência coletiva substitui a própria noção dealienação (típica da análise marxiana) no seio daanálise crítica. Mormente em sociedades de capi-talismo avançado (mas também nas outras), odistanciamento crítico entre ator e sistemas políti-cos, entre individualização e coletividade, torna-se mais acentuado e visível. As distintas desigual-dades e formas de despossessão que os atores dacontestação denunciam evocam condições de ex-clusão (mais que as de alienação) provocadas pelosistema de opressão e pela hegemonia da ordemmundial contemporânea.

Pensando a relação entre sujeito e políticade forma descentralizada, a categoria da experiên-cia permite uma contínua capacidade crítica refle-xiva na relação entre ator e sistemas políticos. Éuma noção teórica que pode se referir tanto a umcampo de subjetividade (um acontecimento inter-nacional distante que gera uma emoção forte, umarepresentação do vivido), como a um campocognitivo (uma atividade que envolve as categoriasdo conhecimento e da razão, tal como participar,debater e decidir em foros internacionais). A expe-riência social, mesmo individual, é sempre reco-nhecida, compartida e confirmada pelos outros,no âmbito das relações sociais, nas quais princípi-

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os, valores e normas, tão relevantes para o enten-dimento da política, são continuamente reavaliadose submetidos à justificação, mobilizando critérios(como igualdade, justiça e democracia) que dãosentido à experiência – uma conduta de altareflexividade (Dubet, 1994).

A análise da experiência em relação à açãosocial conjuga três lógicas diferenciadas que ligamo ator a cada escala política (local, nacional e mun-dial). Essas lógicas são intercomplementares e, aomesmo tempo, manifestam uma tensão entre elas,levantando a questão do poder, da legitimidade edo status no campo da luta política. As três lógicasda ação que formam a experiência, conforme Dubet(1994), e que subsidiam a presente análise sobre onovo sentido da internacionalização, sãointegração, estratégia e subjetivação. A integraçãoacentua a percepção de pertencimento (identida-de) a um grupo social; a estratégia evidencia a ne-cessidade de realizar os interesses (recursos e con-corrência) dos indivíduos na sociedade; asubjetivação (cultura, criatividade, engajamento,tensão) abre o campo da capacidade crítica do su-jeito em relação aos sistemas de dominação e pro-dução. Para o autor, as lógicas tripartites que for-mam a experiência social não têm hierarquias en-tre elas; ao contrário, cada uma constitui uma po-sição crítica em relação às outras duas. Portanto,as relações sociais na política, hoje, enfrentam iden-tidades, dinâmicas de poder e interesses estratégi-cos cada vez mais diversificados, múltiplos e en-tremeados entre si, envolvendo diferentes escalas(do local ao global) e manifestando-se em distintosespaços públicos da transnacionalidade.

Do ponto de vista do presente trabalho, con-sidera-se que as três dimensões lógicas da açãopolítica de Dubet (1994) são fundamentais paracompreender como os atores transnacionais cons-troem suas identidades e definem suas estratégias.No entanto, diferentemente do que argumenta oautor, a autonomia entre essas três dimensões serelativiza quando a política se move no âmbitomundial. Em função das condições sócio-históri-cas do poder no plano internacional (da nação,entre nações e no plano da hegemonia e/ou

prepotência de uma nação sobre outras), há ins-tâncias dos processos políticos mundiais que per-mitem identificar, freqüentemente, uma sobre-de-terminação do peso da economia e da tecnologia(mesmo que sujeita à competição e às negociaçõesinternacionais) e da força militar (ainda que sujei-ta às forças produtivas ou tecnológicas e aos acor-dos internacionais) sobre os outros elementos daexperiência social no espaço mundial.

CONCLUSÃO

Dois argumentos perpassam as análises aquidesenvolvidas e merecem destaque na conclusãodeste artigo. Primeiramente, procurou-se salientar,por meio da contribuição dos diversos autores, aimportância dos esforços contemporâneos dereconsideração intelectual do problema da políticae, por decorrência, da internacionalização. As re-lações internacionais, seus processos, atores e re-gimes não são objetos de análise que possam,hodiernamente, ser tratados exclusivamente emuma perspectiva teórica clássica. É por isso que adesnaturalização da concepção tradicional de po-lítica se torna fundamental no campo das relaçõesinternacionais: afinal de contas, os atores interna-cionais vivem em um mundo que eles mesmosconstroem, e o sistema-mundo não é preexistenteaos sujeitos. Trata-se, o próprio sistema-mundo,de um construto social em que os agentes e as es-truturas são co-constituídos. Como assinala Wendt(1999), é evidente que as causas materiais (produ-ção, tecnologia, armamento) são fundamentais naconstrução desse sistema, mas as idéias, os valo-res e as experiências dos sujeitos individuais ecoletivos são igualmente importantes para a com-preensão das ordens mundiais existentes e daspossíveis mudanças.

O segundo argumento fundamental para aconstrução de uma agenda de pesquisa renovadano campo da política mundial defende que trêssão os parâmetros de análise dessa política a se-rem aprofundados: a) os atores e as relaçõestransnacionais, bem como suas interações com o

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campo institucional e intergovernamental (influ-ência, conflito, cooperação, projetos); b) amultiplicidade dos espaços públicos e as relaçõesentre eles, assim como as distintas agendas e de-mandas políticas na conformação da ordem mun-dial; c) a experiência evidenciada nas distintas tra-jetórias dos sujeitos individuais e coletivos napolítica mundial, refletindo as formas biográficasque assumem algumas articulações entre atores interou transnacionais. Tais parâmetros podem apon-tar recursos teórico-metodológicos que ajudem asuperar as dicotomias clássicas de ordem versusdesordem, centro versus periferia, nacional versusinternacional, agente versus sistema político, dis-curso versus prática e reforçar a análise das múlti-plas e complexas continuidades, vinculações, rup-turas, mudanças, conflitos e cooperações no espa-ço mundial contemporâneo.

(Recebido para publicação em agosto 2006)(Aceito em setembro de 2006)

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