Espectro e Glicemia

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Apostila Bioquímica Médica ICS – UFBA Professor-substituto Noélio de Jesus Menezes Filho Equilíbrio ácido-básico A manutenção do pH é fundamental para que algumas reações fisiológicas ocorram. Vamos fazer uma breve revisão sobre o pH. O que é pH – é a concentração de íons H em moles/L de uma substância. Esta concentração é normalmente baixa nos líquidos biológicos. É expressa pela fórmula = − +. Lembre sempre que omitimos a base do logaritmo ele estará na base 10. Para entendermos melhor usaremos a água como exemplo. As moléculas da água estão constantemente reagindo entre si íons hidroxônio ou hidrônio H 3 O+ e hidroxila OH, ou seja, se dissociando e sofrendo uma auto-ionização, só que a água é um eletrólito muito fraco, portanto, ela ioniza muito pouco, mas estabelece o equilíbrio segundo a fórmula abaixo: H 2 O+ H 2 O H 3 O + + OH - Todo equilíbrio apresenta sua constante de equilíbrio, que é expresso da seguinte forma: = +− = +− = 1,810 Isto é observado a uma temperatura de 25 o C. Note que na segunda equação o [H 3 O] foi substituído po apenas [H+], esse artificio é utilizado para simplificarmos a equação da Constante de Equilíbrio (K eq ). A concentração de H 2 O, em água pura é uma constante a Kw, (W=Water, água em inglês) e igual a 1000/18 (Litro/MM), ou seja, 55,5M, então teremos: + − = = 1,8 10 55,5 = 1,01 10 , então o produto iônico da agua será: H 2 O H + + OH - = 10 -14 , isso indica que para cada litro de água existem 10 -7 moles de H + e 10 -7 moles de OH - .

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Equilíbrio ácido-básico

A manutenção do pH é fundamental para que algumas reações

fisiológicas ocorram. Vamos fazer uma breve revisão sobre o pH.

O que é pH – é a concentração de íons H em moles/L de uma substância.

Esta concentração é normalmente baixa nos líquidos biológicos. É expressa

pela fórmula �� = −����� +. Lembre sempre que omitimos a base do

logaritmo ele estará na base 10.

Para entendermos melhor usaremos a água como exemplo. As moléculas

da água estão constantemente reagindo entre si íons hidroxônio ou hidrônio

H3O+ e hidroxila OH, ou seja, se dissociando e sofrendo uma auto-ionização,

só que a água é um eletrólito muito fraco, portanto, ela ioniza muito pouco, mas

estabelece o equilíbrio segundo a fórmula abaixo:

H2O+ H2O H3O+ + OH-

Todo equilíbrio apresenta sua constante de equilíbrio, que é

expresso da seguinte forma:

�� =���� +���−

����=

�� +���−

����= 1,8�10����

Isto é observado a uma temperatura de 25oC. Note que na segunda

equação o [H3O] foi substituído po apenas [H+], esse artificio é utilizado para

simplificarmos a equação da Constante de Equilíbrio (Keq). A concentração de

H2O, em água pura é uma constante a Kw, (W=Water, água em inglês) e igual

a 1000/18 (Litro/MM), ou seja, 55,5M, então teremos:

�� +��� − = �� = 1,8 � 10���� � 55,5 = 1,01 � 10���, então o produto

iônico da agua será:

H2O H+ + OH-= 10-14, isso indica que para cada litro de água

existem 10-7 moles de H+ e 10-7 moles de OH-.

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A abreviatura pH significa potencial hidrogeniônico e é definido como o

logaritmo negativo da concentração molar de íons hidrogênio, ou seja:

pH = ���1

�ℎ+= −����H+

Observe como o pH é uma função logarítmica, a variação de uma unidade

de pH representa uma variação de 10X na concentração de íons de hidrogênio,

outra coisa lembre que H+ + OH-= 10-14, então:

−��� �� + − ����OH + = −���(1,01 � 10���)=14, ou ainda, pH+pOH = 14.

Soluções ácidas

[H+] > [OH], então

[H+] > 10-7

Logo: log[H+] > -7 . (-1)

-log[H+] < 7

Portanto pH< 7

Soluções básicas

[H+] < [OH], então

[H+] < 107

Logo:

log[H+] < -7 . (-1)è -log[H+] > 7

Portanto pH> 7

Soluções neutras

[H+] = [OH-] = 10-7

pH = -log10-7

Portanto pH = 7

Assim, se soluções a 25 ºc tem pH variando de 0 até um valor inferior a 7

será uma solução ácida, se o pH for um valor superior a 7 e inferior a 14 a

solução será uma base e se a solução tiver um ph de 7 a solução será neutra.

Quando o valor da concentração molar hidrogeniônica da solução: [H+] for

grande o valor do pH será pequeno e se o valor do pH for pequeno o valor da

concentração hdrogeniônica : [H+ ] será grande.

Com base na constante de equilíbrio da água escrevemos as constantes

de equilíbrio das outras substâncias, por exemplo:

HA H+ + A, e sua expressão de equilíbrio seria: -

�# =�$%�&�

�$&, e assim como descrito acima.

Agora pense -�# =�$%�&�

�$& = ��+ = �#

�$&

�&�, se tomarmos todos esses

números pelos Logaritmo negativos teremos:

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-−����� + = −����# − ����$&

�&�, como –Log[H+] = pH, então �� = ��# +

����&�

�$&, note que a última parte para torna-se positiva invertemos numeradores

e denominadores da equação. Esta equação é chamada de equação de

Henderson-Hasselbalch. O valor de PKa mensura a força de um ácido, quanto

menor for mais forte será o ácido.

Note que �� = ��# + ����'�(�)�*+, *� -,ó/+01 (&)

�4+5*+, *� -,ó/+01 ($&). Podemos também

mensurar a força de bases fracas, para tanto utilizamos o pKa do ácido

conjugado, exemplo, se amônia (NH3) fosse dissolvida em água (H2O),

teríamos:

NH3 + H20 NH4 + OH-

aqui teríamos o íon amônio (NH4+) � o ácido conjugado da amônia (NH3)

e, portanto teremos: �6 = �78��20 =�:$�%�;$�

�:$�

Ou, �6 =�:$�%�<�

�:$��$%, rearranjando será

�<�

�<)=

�:$��$%

�:$�%= �#

Portanto Ka = Kw/Kb em logaritmos teremos -Log Kw = -Log Ka – Log Kb ∴ -Log(10-14) = pKa+pKb, ou pKa+pKb = 14

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Biomoléculas

São compostos de carbono com grande variedade de grupos funcionais.

Do ponto de vista químico, os seres vivos estão organizados em torno do

carbono que contribui em mais da metade do peso seco das células. As

reações orgânicas podem ser ordenadas de duas formas: pelo tipo de reação e

pela forma como ocorre. Pelo tipo da reação existem 4 formas sejam por

adição, eliminação, substituição e rearranjo.

As reações de adição ocorrem quando dois reagentes se unem formado

um único produto. A + B ���� C.

As reações de eliminação ocorrem quando um reagente se divide em dois

produtos. A ���� B + C.

As reações de substituição ocorrem quando dois reagentes trocam partes

de suas moléculas para formar dois produtos. A – B + C –D ���� A-C + B-D.

As reações de rearranjo acontecem quando um reagente passa por uma

reorganização de suas ligações e átomos e forma um produto isômero. A ���� B.

O carbono pode formar ligações simples e duplas com átomos de

oxigênio e nitrogênio e simples com átomos de hidrogênio. O carbono possui a

capacidade de formar quatro ligações simples estáveis com outros átomos de

carbono. Dois átomos de carbono podem compartilhar dois ou três pares de

elétrons e formar ligações duplas ou triplas. Quando ligado a outros formam um

tetraedro cujos ângulos têm aproximadamente 109,5º. Átomos de carbono

covalentemente ligados em biomoléculas podem formar cadeias lineares,

ramificadas e estruturas cíclicas. Muitas das biomoléculas são consideradas

hidrocarbonetos. Exemplos dessas biomoléculas são álcoois e ácidos

carboxílicos. Muitas dessas moléculas são poli funcionais, contendo dois ou

mais tipos de grupos funcionais, cada qual com suas características químicas

próprias.

As células humanas são constituídas de água, sais minerais e moléculas

orgânicas. Certas moléculas orgânicas são complexas e características do ser

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vivo, possuem elevado peso molecular (macromoléculas). Estas moléculas são

divididas em quatro grupos: Proteínas, Glicídios, Lipídios e ácidos nucleicos.

Esses grupos de moléculas são constituídos respectivamente de

Aminoácidos, Oses, ácidos graxos e Nucleotídeos.

Os aminoácidos (AA) são formados ao mesmo tempo por uma função

amina (-NH2 – básica) e uma função carboxila (-COOH - ácida) e são

classificados como AA constituintes das proteínas, que são subdivididos em

incorporáveis (numero de 20) e os que se originam de modificação das

proteínas após sua síntese (modificação pós-traducional), e os AA do

metabolismo intermediário (muitos).

A estrutura geral dos AA constituintes das proteínas é:

NH2

R CH COOH �Carbono α

Dos vinte AA 19 têm esta formação geral, a exceção é a prolina que a

função amina está comprometida na formação de um ciclo.

H2C CH2

H2C CHCOOH �Carbono α

N

H

Com estruturas anfóteras, ou seja, possuem ao mesmo tempo uma

função amina e carboxílica os AA possuem curvas de titulação características.

A titulação ácido-base envolve a adição ou a remoção gradual de prótons.

A figura abaixo representa a curva de titulação da glicina, um AA de

estrutura acíclica linear com cadeia lateral apolar, cujo R (radical) é um

hidrogenio.

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NH2

H CH COOH� Glicina (Gli ou Gly, ou simplesmente G)

A figura mostra a curva da forma diprótica de titulação da glicina a 0,1 M

a 25º C. os retângulos indicam regiões de maior potencial tamponante. No

ponto médio do primeiro estágio da titulação, no qual o grupo –COOH perde

seu próton estão presentes equimolares da espécie doadora de próton (+H3N –

CH2-COOH) e da aceptora de próton (+H3N –CH2-COO). Em uma titulação o

ponto de inflexão é alcançado quando o pH é igual ao pKa do grupo protonado

que esta sendo titulado. No exemplo da glicina o pH no ponto médio é 2,34 no

seu grupo –COOH - pKa. No segundo momento há a remoção do próton do

grupo NH2, neste ponto o pH é igual a 9,60. A titulação da glicina é completada

em um pH em torno de 12. O Ponto Isoelétrico, compreende o pH no qual a

molécula de aminoácidoapresenta igual número de cargas positivas e

negativas. O AA é eletricamente neutro, formando um íon dipolar ou zwitterion.

O cálculo do pI baseia-se nas formas de dissociação do aminoácido utilizando

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os pK anterior e posterior à formaisoelétrica do aminoácido. Ou seja, No pH

5,9, equidistante das duas zonas de tamponamento, há um grande predomínio

da forma isoelétrica, caracterizando o ponto isoelétrico (pI) da glicina.

Explico melhor:

A titulação1 de um aminoácido pode ser feita a partir de aminoácido

totalmente protonado, utilizando a solução de NaOH conforme os seguintes

termos:

H H H R C COOH OH- R C COO- OH- R C COO- pK1 pK2 NH3

+ NH3+ NH2

( +1 ) ( 0 ) ( -1 )

A forma dipolar do aminoácido tem carga total nula. Quando colocada sob

a ação de um campo elétrico não migra para polo algum. O pH onde existe

esta forma é conhecido como ponto isoelétrico. Para calcularmos o ponto

isoelétrico (pI), basta acharmos a média aritmética dos dois pKs, um anterior e

outro posterior à sua existência. Outra informação importante possível de ser

apreendida na curva de titulação de um AA é a relação entre sua liquida e o pH

da solução. No exemplo da glicina, no pH 5,67, o ponto de inflexão entre os

dois estágios de sua curva de titulação, a glicina, está presente

predominantemente em sua forma dipolar, completamente ionizada, mas sem

carga elétrica liquida (figura acima). O ponto no qual a carga elétrica é igual a

zero é chamado de ponto ou pH isoelétrico ou pI. Acima deste ponto a carga

elétrica é negativa e abaixo deste ponto sua carga é positiva.

Todos os AA, exceto a glicina, possuem um carbono assimétrico, ou seja,

um carbono ligado a quatro substituintes diferentes e, portanto, formas

enantiômeras, (imagens como as vistas em um espelho) estas duas diferentes

formas são designados como pelas letras L e D. Exemplo L-lisina e D-lisina. Os

AA das proteínas humanas e na maioria dos animais são todos da série L. Os

1Técnica para análise química quantitativa com o objetivo de, determinar a concentração de um reagente conhecido. O método consiste em reagir completamente um volume conhecido de uma amostra com um volume determinado de um reagente, ou solução padrão, de natureza e concentração conhecida.

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AA da série D podem ser encontrados em alguns animais, como invertebrados

marinhos da dieta humana, por exemplo. Foram observados quantidades em

torno de 1% aproximadamente, no entanto, esses alimentos após serem

aquecidos ou armazenados em meio alcalinos podem apresentar até 25% de

certos AA da série D, como a cisteína e o aspartato. Esses AA, uma vez

ingeridos, podem dificultar ou inviabilizar a ação de enzimas proteolíticas sobre

proteínas alimentares, diminuindo assim sua digestibilidade2. Embora quando

no lúmen intestinal podem ser absorvidos ou, mas comumente serem

eliminados pela urina, ou também pode sofrer a ação de duas enzimas a D-

aminoácido oxidase ou D-aspartato oxidase encontradas nos peroxissomos

das células hepáticas e renais.

CURIOSIDADE: O cérebro humano contém D-aspartato, D-serina e

traços de D-alanina.

As proteínas são macromoléculas formadas por inúmeros AA unidos entre

si por ligações peptídicas ou amida. Essa ligação se dá pelo grupamento amida

de um AA e grupo carboxílico do outro AA.

2 Coeficiente de absorção de um nutriente, sendo em geral expresso como porcentagem do que foi retido em relação ao que foi ingerido.

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Estas ligações ocorrem por desidratação, ou seja, perda de uma molécula

de água, sendo, portanto, caracterizada por ser formada por resíduos de AA.

Os AA podem unir-se formando um dímero, trimero ou polímero, designamos o

termo peptídeo para um número pequeno de AA encadeados. O termo

polipeptídio designa um numero de AA encadeados menor que 50 e maior do

que 40 AA, Para cadeias com número maior do que 50 AA; é utilizado o termo

proteína.

As proteínas são classificadas como fibrosas ou globulares, de acordo

com sua forma tridimensional. As proteínas fibrosas são cadeias de

polipeptídeos organizados lado a lado em filamentos longos. São duras e

insolúveis em água e têm, principalmente, a função estrutural.

O colágeno é um exemplo de uma proteína fibrosa.

O outro grupo de proteínas são as chamadas globulares. Essas proteínas

são normalmente enroladas em formas esféricas e em geral são solúveis em

água e apresentam até quatro níveis estruturais diferentes, sejam: estrutura

primária; estrutura secundária, terciária e quaternária.

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A estrutura primária de uma proteína é simplesmente a sequencia de AA

que a compõe.

A estrutura secundária define como os segmentos dos AA se orientam no

plano regular de dobramento. Essa estrutura é dividida, basicamente, em

hélice-α e a folha β-pregueada. A estrutura em hélice-α é um formato helicoidal.

Nessa estrutura são comumente encontrados os AA Met e Glu e pouca Gli e

Pro.

A estrutura folha β-pregueada, representado abaixo por setas, é

estendida e não enrolada, e as ligações de hidrogenio ocorrem entre os

resíduos de AA das cadeias adjacentes. Essas cadeias vizinhas podem ocorrer

na mesma direção (paralela) ou em direções opostas (antiparalela) mais

comumente encontradas nas proteínas.Nessa estrutura são comumente

encontrados os AA Val e Ile e pouca Asp e Pro.

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A estrutura das proteínas é mantida por um certo número de ligações ou

interações, algumas das quais não são covalentes, como:

As pontes de hidrogenio encontradas nas ligações peptídicas, (exceto a

encontrada no grupo NH da prolina) e ocorrem entre o oxigênio de uma

carboxila e o hidrogenio da função amida de outro AA. Essas ligações

associam as cadeias laterais de AA polares (Ser, Ter,Tir, Gln e Asn).

H

O................

H O

Essas pontes de hidrogenio são ligações fracas e instáveis (se fazem de

se desfazem muito rapidamente). Entretanto em uma proteína existem um

grande número dessas ligações, sendo muitoimportante para a manutenção na

estabilidade estrutural das proteínas. Outro grupo de ligações são as

chamadas pontes de Van der Waals que são também ligações fracas e se

classificam em dipolo-dipolo e dipolo instantâneo-dipolo induzido e cujas forças

de atração ou repulsão entre as moléculas, ou entre grupos dentro da mesma

molécula se dão devido à formação de ligação ou a interação eletrostática de

íons ou grupos iônicos uns com os outros ou com moléculas neutras. E estão

também presentes em grande número nas proteínas.

Nas proteínas também são encontradas interações eletrostáticas

estabelecidas entre as funções ácidas e básicas das cadeias laterais de AA ou

entre duas funções ácidas e é intermediada por um íon metálico como o cálcio,

por exemplo. Estas interações são muito sensíveis a variações de pH. Além

disso, nas proteínas são encontradas ligações hidrofóbicas entre moléculas de

AA apolares.

Nas proteínas também são encontradas ligações covalentes, que são

ligações fortes embora pouco numerosas. A mais comum dessas ligações é a

ponte de dissulfeto, estabelecida entre duas cisteínas.

As moléculas das proteínas fibrosas têm uma forma alongada e se

associam formando fibras. As estruturas alongadas, tais como os microtúbulos

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e filamentos de actina são formados de longos agregados de proteínas

globulares, embora não sejam proteínas globulares. Proteínas como a miosina,

a tropomiosina (ambas musculares), o fibrinogênio (proteína plasmática da

coagulação) e as queratinas α (proteínas do cabelo e da pele) são formadas de

hélices α que se entremeiam formando uma estrutura conhecida como super-

hélice.

Os AA apolares garantem a coesão das hélices, e os AA polares

posicionam-se no exterior da super-hélice.

A estrutura terciária das proteínas descreve o seu dobramento, ou seja,

descreve como a molécula inteira da proteína se enrola em uma forma

tridimensional. Assim que são sintetizadas, as proteínas adotam sua estrutura

terciária final. Este processo é chamado de enovelamento das proteínas e é

inteiramente controlado pela sua estrutura primária (sequência de AA) e

responde à força dos radicais hidrófobos da fase aquosa, ocultando-os no

interior da proteína. Este processo aproxima os AA uns dos outros na

sequência, podendo, por exemplo, formar o centro ativo de uma enzima. A

primeira etapa do enovelamento é a formação de estruturas secundárias e se

orientam em um padrão regular, graças à presença de determinadas proteínas

tutoras denominadas chaperonas. As proteínas HSP, ou proteínas de choque

térmico auxiliam na passagem das proteínas pelas membranas.

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As enzimas são proteínas especializadas em catalisar reações biológicas,

ou seja, aumentam a velocidade de uma reação química sem interferir no

processo, e apresentam extraordinária especificidade e poder catalítico.

Algumas enzimas, tais como ribonucleases, quimiotripsina e tripsina, são

constituídas apenas de aminoácidos. Entretanto, outras proteínas, além de AA,

contêm outros componentes de origem orgânica e/ou inorgânica e são

denominadas de proteínas conjugadas. A peroxidase e a catalase são

exemplos de enzimas com estrutura conjugada e que apresentam porfirina

férrica como co-fator. Um número expressivo de enzimas tem apenas uma

cadeia polipeptídica simples, por exemplo, ribonuclease, tripsina, pepsina e

algumas α amilases, algumas, no entanto, são compostas por mais de uma

cadeia peptídica, como, por exemplo, a lactato-desidrogenase formada por

quatro cadeias polipeptídicas.

LEMBRE: A ribozima é uma molécula de RNA que catalisa uma reação

química, sem, no entanto, ser uma proteína, portanto nem toda enzima é uma

proteína.

As enzimas são classificadas em:

1. Oxidoredutases Reações de oxidação-redução ou transferência de elétrons – Desidrogenases e Oxidases;

2. Transferases Transferem grupos funcionais como amina, fosfato, acil, carboxil – Quinases e Transaminases;

3. Hidrolases Reações de hidrólise de ligação covalente – Peptidases; 4. Liases Catalisam a quebra de ligações covalentes e a remoção de

moléculas de água, amônia e gás carbônico – Dehidratases e Descarboxilases;

5. Isomerases Reações de interconversão entre isômeros óticos ou geométricos - Epimerases;

6. Ligases Catalisam reações de formação de novas moléculas a partir da ligação entre duas pré-existentes, com gasto de energia - Sintetases.

A cinética enzimática é a parte da Enzimologia que estuda a velocidade

das reações enzimáticas bem como os fatores que a influenciam. Como os

mecanismos da ação enzimática:

• a) Enzima como catalisador - diminuir a energia de ativação. A enzima se

liga a uma molécula de substrato em uma região específica denominada sítio

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de ligação. Esta região é um encaixe que apresenta um lado envolvido por

cadeias de aminoácidos que ajudam a ligar o substrato, e o outro lado desta

cadeia age na catálise;

• b) Inibição Enzimática - Uma molécula apresenta estrutura semelhante ao

substrato da enzima que se liga para realizar a catálise.

1. Inibição Reversível -

1.1. Competitiva - ela poderá aceitar esta molécula no seu local de

ligação, mas não pode levar ao processo catalítico, pois

ocupando o sítio ativo do substrato correto. Portanto o inibidor

compete pelo mesmo local do substrato.

1.2. Não Competitiva - Ocorre quando um molécula ou íon pode se

ligar em um segundo local na superfície enzimática (não no

sítio ativo). Isto pode distorcer a enzima tornando o processo

catalítico ineficiente. O inibidor não competitivo pode ser uma

molécula que não se assemelha com o substrato, mas

apresenta uma grande afinidade com a enzima. É o

mecanismo inverso do inibidor competitivo, porque inibe a

ligação do complexo ES e não da enzima livre.

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c. Inibição Irreversível - Algumas substâncias se ligam covalentemente às

enzimas deixando-as inativas. Na maioria dos casos a substância reage

com o grupo funcional no sítio ativo bloqueando o local do substrato,

deixando a enzima cataliticamente inativa. Inibidores irreversíveis podem

ser extremamente seletivos, pois são semelhantes ao substrato. São

muito utilizados como resíduos, os quais apresentam grupos de átomos

que se configuram semelhantemente ao estado de transição que se

ligam ao substrato.

d. Co-fatores - Alguns tipos de processos biológicos, apenas a cadeia

protéica não é suficiente, por isso a proteína requer uma molécula

denominada cofator a qual pode ser uma pequena molécula orgânica,

denominada coenzima ou um íon metálico. Os cofatores são geralmente

estáveis em temperatura alta. A catálise ativa enzima-cofator é

denominada holoenzima, quando o cofator é removido, se mantém a

proteína, a qual é catabolicamente inativa e é denominada apoenzima.

Um dos fatores que afetam a velocidade de uma reação catalisada por

uma enzima purificada é a concentração do substrato [S] presente. O estudo

dos efeitos da concentração de substrato é complicado pelo fato de a [S] variar

durante o curso de uma reação à medida que o substrato é convertido em

produto. Uma forma de simplificar este problema é medir a velocidade inicial

(V0) da reação. Em um experimento cinético a [S] é sempre muito maior que a

concentração da enzima [E], e se o tempo de reação é suficientemente curto,

as mudanças da [S] serão negligenciáveis, podendo ser considerada como

uma constante.

Enzima + Substrato [EnzimaSsubstrato] Enzima + Produto

O efeito provocado em V0 pela variação da [S], quando a concentração

de enzima é mantida constante. Em concentrações pequenas do substrato, V0

aumenta quase linearmente com os aumentos de [S]. Em concentrações

maiores de substrato V0 aumenta por incrementos menores em respostas aos

aumentos da [S]. Finalmente, é alcançado um ponto acima do qual ocorrem

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apenas aumentos insignificantes em V0, mesmo diante de aumentos em [S],

sendo este ponto chamado de velocidade máxima (Vmáx). A constante de

Michaelis-Menten (Km) é uma constante dinâmica, ou de pseudoequilíbrio, que

expressa à relação entre as concentrações reais no estado estacionário ao

invés de concentrações no equilíbrio.

Uma relação numérica importante emerge da Equação de Michaelis-

Menten no caso especial quando V0 é exatamente metade de Vmáx. Então:

Km = �@ → B0 =1

2BCá�

O Km é equivalente à concentração de substrato na qual V0 é igual à

metade de Vmáx, e indica a “afinidade” de uma enzima pelo seu substrato.

Quanto menor for o valor de Km, maior será a afinidade da enzima pelo

substrato.

A equação abaixo apresenta esta relação.

DE =Vmáx�S

Km + �S

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Espectrofotometria

A palavra espectrofotometria designa um método deanálise baseado em

medidas de absorção de radiação eletromagnética. Esta técnica está restrita a

uma pequena região de comprimento de onda da radiação eletromagnética,

que corresponde à luz visível ou ultravioleta: é a faixa entre aproximadamente

200 e 700 nm. �LEMBRE: 1nanômetro = 10−9 m, 700 nm = 0,7 µm.

Ao atingir uma substância a radiação luminosa pode sofrer: Reflexão,

refração, espalhamento ou ser absorvida pelo material.

Disso resulta que somente uma parte da radiação incidente é transmitida

através do material, esta relação é chamada de transmitância e é definida pela

fórmula: I = J/LEE.

O processo de absorção observado é molecular. Lembreoátomo possui

níveis de energia, de igual modo a moléculaos níveis de energia moleculares

são quantizados ocupados peloselétrons dos átomos destas moléculas. Por

outro lado, a radiação carrega energia, sendo que o valor dessa

energiadepende do comprimento de onda da radiação. A absorção da

radiação se dá quando a energia queela transporta é igual à diferença entre

dois níveis de energia da molécula; nessa situação, a energia daradiação é

transferida para a molécula e ocorre a chamada absorção de radiação.

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Como moléculas de substâncias diferentes têm diferentes níveis

moleculares de energia,ocorre que cada substância absorve a radiaçãode

maneira própria. Ou seja, os comprimentosde onda que uma substância

absorve é característica da sua estrutura molecular e os dados referentes à

intensidade de luz absorvidos, em funçãodos comprimentos de onda da

radiação estabelece uma curva chamada espectro de absorção. O importante

é que cada substância tem umespectro característico e, desse modo, se

queremos identificar um material desconhecido, poderemosfazê-lo a partir de

sua curva de absorção, comparada com curvas de substâncias conhecidas.

Uma vez conhecido o espectro de absorção da substância podemos

determinar emque quantidade essa substância se apresenta em uma solução

analisada, ou melhor, sua concentração. A fração de luz incidente absorvida

por uma solução a um dado comprimento de onda está relacionada à

espessura da camada envolvida na absorção de luz e à concentração da

substância que absorve a luz.

A fonte de luz ao emiti-la, o faz em um amplo espectro, quando o filtro

(monocromador � um filtro com uma das cores do espectro).

Violeta – faixa do comprimento de ondas entre - 380-440 nm Azul – faixa do comprimento de ondas entre - 440-485 nm Verde – faixa do comprimento de ondas entre - 500-565 nm Amarelo – faixa do comprimento de ondas entre - 565-590 nm Laranja – faixa do comprimento de ondas entre - 590-625 nm Vermelho – faixa do comprimento de ondas entre - 625-740 nm

Page 19: Espectro e Glicemia

Apostila Bioquímica Médica ICS – UFBA

Professor-substituto Noélio de Jesus Menezes Filho

A fração de luz incidente e a transmitida estão relacionadas na lei de

Lambert-Beer, onde a razão ���MN

M�= ϵcl, onde ϵ = é o coeficiente de extinção

molar, c = é a concentração da substância e l= é o comprimento do caminho da

luz absorvida.

Vamos entender isso:

A intensidade da luz incidente é I0: ao longo do percurso diminui A

progressivamente em sua intensidade, ficando ao final apenas a I1 a qual

chamamos de TRANSMITÂNCIA (T) que é usualmente expressa em

porcentagem, e, portanto uma relação igual a: O =P�

PN. Entretanto do ponto de

vista matemático é mais vantajoso utilizarmos números mais precisos, para

tanto fazemos uma transformação da TRANSMITÂNCIA para o logaritmo. Esta

relação é chamada de ABSORBÂNCIA (A) e é definida como o logaritmo

negativo da T, ou seja, Q = − log O. Este uso da ABSORBÂNCIA é mais

adequado, pois, nela existe uma relação linear entre a substância absorvente e

sua concentração.

EXEMPLO

Imaginemos que você incida uma luz sobre uma sequencia de filtros com

a capacidade de reter 20% da luz incidente, então seria:

Page 20: Espectro e Glicemia

Apostila Bioquímica Médica ICS – UFBA

Professor-substituto Noélio de Jesus Menezes Filho

Filtro 0 1 2 3 4 5 6 7

Transmitância 100,00 80,00 64,00 51,20 40,96 32,77 26,21 20,97

Absorbância 2 1,90309 1,80618 1,70927 1,61236 1,51545 1,41854 1,32163

Log da transmitância (%) 100 95,1545 90,309 85,4635 80,618 75,7725 70,927 66,0815

TRANSMITÂNCIA (%) LOG DA TRANSMITÂNCIA

Note que ao transformamos os valores para Log obtemos a linearização

do gráfico, pois os números estarão mais próximos.

0

20

40

60

80

100

0 1 2 3 4 5 6 7 8

-

20

40

60

80

100

0 2 4 6

Page 21: Espectro e Glicemia

379

Determinação das glicemias capilar e venosa comglicosímetro versus dosagem laboratorialda glicose plasmáticaDetermination of capillary blood glucose and venous blood glucose with a glucometer versus laboratory determination of venous plasma glucose

Caio Mauricio Mendes de Cordova1; Jéssyca Pereira Valle2; Celina Noriko Yamanaka3; Maurício Mendes de Cordova4

Introdução e objetivos: Diabetes mellitus (DM) é a mais importante patologia que envolve o pâncreas endócrino, sendo uma das principais causas de morbidade e mortalidade na população geral. O objetivo deste trabalho foi avaliar a determinação da glicemia em diferentes tipos de amostras e metodologias. Métodos: Utilizando um equipamento Accu-Check Advantage (Roche), foi avaliada a glicemia em amostras de sangue capilar (GCG) e de sangue venoso (GVG), e a dosagem da glicemia venosa em plasma (GVE) foi realizada por método enzimático de rotina. Resultados e conclusão: Foi observada boa correlação entre a GCG e a GVG (r = 0,8742). Entretanto, houve diferença significativa entre a GCG e a GVE (r = 0,6543) e entre a GVG e a GVE (r = 0,5038) (p < 0,001). Essa diferença é maior considerando-se apenas os pacientes normoglicêmicos. O fato de haver diferentes estudos com resultados conflitantes entre si não depende somente da marca ou série específica do glicosímetro, já que uma mesma marca pode apresentar resultados inconsistentes em diferentes estudos.

resumounitermosGlicemia

Diabetes mellitus

Automonitoramento da glicemia

Glicosímetros

Glicemia capilar

abstractIntroduction and objectives: Diabetes mellitus is the most important pathology that affects the endocrine pancreas and one of the main causes of morbidity and mortality among the general population. The aim of this work was to evaluate the correlation of blood glucose determination in different types of samples and methodologies. Methods: Using an Accu-Check Advantage glucometer (Roche), it was determined the blood glucose levels in capillary (CBG) and venous (VBG) samples, and plasma venous glucose was determined by routine enzymatic methodology (EVG). Results and conclusion: It was observed a good correlation between CBG and VBG (r = 0.8742). However, there was a significant difference between CBG and EVG (r = 0.6543) and between VBG and EVG (r = 0.5038) (p < 0.001). These differences are even more substantial considering only normoglycemic patients. The existence of different studies with inconsistent results does not depend only on the glucometer brand or its specific series, as the same device may present inconsistent results in different studies.

key wordsBlood glucose

Diabetes mellitus

Monitoring system

Glucometers

Capillary glycemia

J Bras Patol Med Lab • v. 45 • n. 5 • p. 379-384 • outubro 2009

1. Doutor; chefe do Departamento de Ciências Farmacêuticas da Universidade Regional de Blumenau (FURB).2. Bacharel em Farmácia pela FURB.3. Bacharel em Bioquímica pela FURB.4. Bacharel em Bioquímica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Primeira submissão em 22/08/09Última submissão em 12/09/09Aceito para publicação em 21/09/09Publicado em 20/10/09

artigo origiNaloriginal article

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Introdução

O diabetes mellitus (DM) é a mais importante patologia que envolve o pâncreas endócrino, sendo uma das principais causas de morbidade e mortalidade na população geral. Estima-se que no Brasil existam 5 milhões de indivíduos por-tadores de DM, dos quais metade desconhece o diagnóstico. Desse total, 90% são do tipo 2 (DM2), ou não-dependentes de insulina, 8% a 9% do tipo 1 (DM1), ou dependentes de insulina, de origem autoimune, e 1% a 2% portadores de diabetes secundário ou associado a outras síndromes(11).

No Brasil é elevada a incidência de complicações crônicas devido principalmente à existência de poucos programas de educação e de capacitação profissional em diabetes e de recursos escassos para prevenção e controle da moléstia. Ações conjuntas do Ministério da Saúde (MS) e da Socieda-de Brasileira de Diabetes (DBD) têm melhorado a situação nos últimos anos, mas ainda assim a morbimortalidade por diabetes é elevada(11).

A prevenção e o controle de DM são clinicamente factíveis por meio da identificação e do tratamento de indivíduos sob alto risco de desenvolver diabetes, de controle clínico daqueles já acometidos e de detecção e tratamento precoce das complicações. Um dos grupos sob risco de desenvolvi-mento de diabetes que tem recebido crescente atenção é o da tolerância diminuída à glicose, presente em 7,8% dos adultos de capitais brasileiras(5).

O monitoramento laboratorial dos níveis de glicose é extremamente importante para acompanhar o tratamento e prevenir as complicações de DM. Com a difusão dos apare-lhos para aferição da glicemia capilar pelo próprio paciente, frequentemente em seu próprio domicílio, têm surgido muitos questionamentos sobre as diferenças de resultados encontrados pelo paciente e aqueles determinados pelo la-boratório. A literatura internacional oferece dados conflitantes sobre avaliações de diferentes métodos.

Sendo o DM uma doença crônica, que requer alterações no estilo de vida, considerada problema de saúde pública prevalente em estado crescente, responsável por várias complicações, considera-se a importância desse estudo no sentido de ampliar os conhecimentos dos profissionais da saúde para a educação do paciente diabético com relação aos diferentes métodos de avaliação de dosagem da glicemia. Com o advento da monitoração dos níveis glicêmicos pelos próprios pacientes e o uso de glicosímetros, temos observado crescente questionamento por parte dos mesmos quanto aos resultados obtidos no laboratório, por requisição médica, da

dosagem da glicemia plasmática por métodos enzimáticos de rotina. Alguns pacientes chegam ao extremo de, no mo-mento da coleta do sangue venoso no laboratório, solicitar que uma gota seja colocada no seu glicosímetro particular para comparar os resultados posteriormente. Dada a falta de consenso sobre a validade da comparação entre esses três tipos de resultado de glicemia, o objetivo deste trabalho foi determinar sua correlação e discutir seu impacto no moni-toramento do paciente diabético.

Material e métodos

Pacientes

Neste estudo foram avaliados pacientes que procuraram o laboratório de análises clínicas do ambulatório universitário da Universidade Regional de Blumenau (FURB) de janeiro a agosto de 2009, com requisição médica para determinação da glicemia em jejum. Foram excluídos do estudo aqueles que não aceitaram fornecer uma amostra de sangue capi-lar adicional para a realização das análises. Analisaram-se amostras de 55 pacientes, sendo 37 do sexo feminino e 18 do masculino, com idades entre 18 e 79 anos.

Amostras

Foram obtidas amostras de sangue venoso por punção da veia basílica ou cubital média com seringa hipodérmica não reutilizável. Cerca de 3 ml de sangue foram colocados em tubo contendo fluoreto de sódio, para evitar o consu-mo da glicose, e homogeneizados. Em seguida, o tubo foi centrifugado por 5 minutos a 2.500 rpm para separação do plasma, que foi armazenado a 4oC. As dosagens da glicose nas amostras de plasma foram realizadas no mesmo dia da coleta. As amostras de sangue capilar foram obtidas por punção da polpa do dedo médio, com o uso de lanceta não reutilizável, após antissepsia da região com etanol a 70%. O sangue obtido no local da punção foi imediatamente aspirado pela fita reativa do glicosímetro.

Dosagem da glicose

A glicemia em jejum foi realizada primeiramente com a amostra de sangue capilar mediante o glicosímetro Accu-Check Advantage (Roche Diagnóstica Brasil). Da mesma forma, o sangue venoso homogeneizado obtido por veno-punção também foi utilizado para a determinação da glicose

CORDOVA, C. M. M. et al. Determinação das glicemias capilar e venosa com glicosímetro versus dosagem laboratorial da glicose plasmática • J Bras Patol Med Lab • v. 45 • n. 5• p. 379-384 • outubro 2009

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pelo glicosímetro. Por fim, o plasma obtido do sangue venoso após centrifugação foi usado para determinar a glicose por método enzimático colorimétrico com a enzima glicose oxidase (Biosystems, Barcelona, Espanha) em um equipamento BTS 310, de acordo com as especificações dos fabricantes. O laboratório apresenta certificação “Excelente” pelo Programa Nacional de Controle de Qualidade (PNCQ).

Avaliação dos métodos

Os dados obtidos foram tabulados de acordo com os três resultados possíveis: glicemia em sangue capilar com o glicosímetro (GCG), glicemia em sangue venoso com glicosímetro(GVG) e glicemia venosa em plasma com o método colorimétrico enzimático (GVE). Os dados foram ainda classificados em dois grupos: glicemia < 5,55 mmol/l (100 mg/dl) e glicemia ≥ 5,55 mmol/l, de acordo com o resultado obtido pela dosagem plasmática com o método colorimétrico. A comparação entre os métodos de dosagem da glicemia foi realizada de acordo com as recomendações do Clinical and Laboratory Standards Institute (CLSI)(10). Coeficientes de correlação, erro constante e erro propor-cional foram obtidos mediante a análise de regressão de Deming, e o gráfico de Bland-Altman foi construído com o auxílio dos programas Excel (Microsoft, EUA) e Analyze-it (UK). Os dados referentes a média, mediana, desvio padrão e significância estatística foram calculados com o auxílio do programa Excel, pelo teste t unicaudal com variância homoscedástica. Para determinar a imprecisão dos méto-dos foram analisadas 20 dosagens diárias consecutivas da glicose no soro controle interno no Programa Nacional de Controle de Qualidade para o cálculo do coeficiente de va-riação, pelo método enzimático colorimétrico. Para avaliar a imprecisão da determinação da glicose pelo glicosímetro, dada a indisponibilidade de um controle de glicose estável em sangue total, foram feitas 20 dosagens consecutivas, no mesmo dia, da glicose em uma amostra de sangue total obtida aleatoriamente no laboratório. Os limites recomen-dados de desempenho intralaboratorial são um coeficiente de variação (imprecisão) ≤ 3,3%, com um erro (bias) ≤ 2,5% e um erro total ≤ 7,9%(12).

resultados

Analisando os resultados dos pacientes obtidos pelas três diferentes metodologias, foi obtida uma média da GCG de 5,64 mmol/l com desvio padrão de 0,87 e me-

diana de 5,49 mmol/l. A GVG resultou numa média de 5,83 mmol/l, com desvio padrão de 0,76 e mediana de 5,72 mmol/l. Da mesma forma, a GVE apresentou média de 5,02 mmol/l com desvio padrão de 0,73 e mediana de 4,94 mmol/l (Tabela). Os coeficientes de variação da dosagem da glicose pelo método enzimático colo-rimétrico e pelo glicosímetro foram, respectivamente, 3,1% e 1,9%.

Avaliando a comparação dos resultados pelos diferen-tes métodos, observa-se que existe boa correlação entre a determinação da glicemia capilar pelo glicosímetro e a utilização de sangue venoso para o estabelecimento da glicemia no mesmo equipamento (r = 0,8742), com re-sultados muito próximos entre si (p > 0,05) (Figura 1A).

Entretanto, utilizando equipamentos diferentes, como na comparação entre a GVG e a GVE, observa-se correla-ção bastante pobre (r = 0,5038; p < 0,001) (Figura 1B). Da mesma forma, comparando-se a GCG, que pode ser obtida pelo próprio paciente, com a GVE, existe pouca correlação entre os dois resultados (r = 0,6543; p < 0,001) (Figura 1C).

O gráfico das diferenças de Bland-Altman demonstra a baixa correlação entre GCG e GVE, com um erro (bias) médio de -11,5% (-36,4 a +13,4% e intervalo de confian-ça [IC] de 95%), e entre GVG e GVE, com erro médio de -15,1% (-42,6 a +12,5% com IC de 95%). O erro médio da GVG em relação à GCG é de +3,6% (-11,7 a +18,9% com um intervalo de confiança de 95%) (Figura 2).

Essas diferenças são ainda mais evidentes separando-se os pacientes de acordo com o seu nível glicêmico no plasma pelo método enzimático, considerando uma gli-cemia normal (< 5,55 mol/l) ou alterada (≥ 5,55 mmol/l). Observou-se que as correlações entre a GVG e a GVE (r = 0,0304), entre a GCG e a GVG (r = 0,7473) e entre a GCG e a GVE (r = 0,2708) ficam ainda piores considerando-se apenas os indivíduos normoglicêmicos (p < 0,001).

Considerando apenas os pacientes com glicemia alte-rada (≥ 5,55 mmol/l), apesar de a pequena amostragem poder prejudicar o poder do teste estatístico, a correlação entre a GVG e a GVE melhora ligeiramente (r = 0,3617), embora ainda haja diferença significativa (p = 0,04), assim como na correlação entre a GCG e a GVE (r = 0,416). Nesse grupo de pacientes, a correlação entre a GCG e a GVG é bastante aceitável (r = 0,9572; p = 0,41). O gráfico dos resultados normalizados derivado da regressão de De-ming ilustra claramente que os valores normoglicêmicos se desviam mais do resultado “verdadeiro” estimado do que os valores hiperglicêmicos (Figura 3).

CORDOVA, C. M. M. et al. Determinação das glicemias capilar e venosa com glicosímetro versus dosagem laboratorial da glicose plasmática • J Bras Patol Med Lab • v. 45 • n. 5• p. 379-384 • outubro 2009

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Figura 2 – A: Gráfico das diferenças de Bland-Altman entre os resultados da GCG e da GVG; B: entre a GVG e a GVE: C: entre a GCG e a GVE

GCG: glicemia capilar determinada pelo glicosímetro; GVG: glicemia venosa determinada pelo glicosímetro; GVE: glicemia venosa determinada em plasma pelo método enzimático.

DiscussãoCom o advento da terapêutica capaz de trazer o controle

glicêmico para níveis de quase normoglicemia, as metas pretendidas para esse controle tornaram-se mais estritas. Dois experimentos clínicos de grande porte, em pacientes com diabete tipos 1 e 2, evidenciaram a importância do al-

cance dessas metas. O Diabetes Control and Complications Trial (DCCT) mostrou que o controle glicêmico estrito no DM1 reduz o desenvolvimento de retinopatia, nefropatia e, talvez, vasculopatia, comparativamente ao tratamento convencional. O United Kingdom Prospective Diabetes Study (UKPDS) demonstrou o mesmo em pacientes com DM2, enfatizando também a importância do tratamento da hipertensão e de outros fatores associados nesses casos(5). Além disso, entre os fatores de risco para o desenvolvimento

Figura 1 – A: Correlação pela análise de regressão de Deming entre os resultados da GCG e da GVG; B: entre a GVG e GVE; C: GCG e a GVE

GCG: glicemia capilar determinada pelo glicosímetro; GVG: glicemia venosa determinada pelo glicosímetro; GVE: glicemia venosa determinada em plasma pelo método enzimático.

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sentado um ganho significativo no controle da doença, especialmente quando fazem parte de um programa de saúde bem estruturado(13).

Entretanto, além de os pacientes frequentemente questionarem as diferenças de resultados obtidos com os glicosímetros e os resultados da glicemia plasmática determinados pelos laboratórios, os estudos disponíveis apresentam dados bastante conflitantes. Por exemplo, alguns autores(3) encontraram boa correlação entre a glicemia plasmática e a glicose capilar em dois tipos de glicosímetros, Optimum Xceed (r = 0,938) e One Touch Ultra (r = 0,911). Entretanto, de forma semelhante aos resultados encontrados em nosso estudo, a correlação foi pior para os pacientes normoglicêmicos. Em outro estudo, os resultados obtidos com Glucocard Memory 2 foram também comparáveis à glicemia plasmática(2). Utilizando um equipamento de série diferente, mas da mesma marca do fabricante utilizada em nosso estudo, outros autores observaram ótima correlação entre a glicemia capilar obtida com o glicosímetro Accu-Check Compact e a gli-cemia plasmática determinada por método enzimático (r = 0,9819)(4). Resultado semelhante foi encontrado com o mesmo equipamento por outro estudo no Brasil(9). Entre-tanto, como o primeiro grupo demonstrou, em pacientes graves o equipamento pode apresentar imprecisão signi-ficativa em relação à glicemia plasmática(4). Já em outro estudo, avaliando o glicosímetro Medisense Precision Plus (Abbott), foi encontrada diferença significativa quanto à glicemia plasmática(1).

Utilizando-se exatamente o mesmo aparelho avaliado em nosso estudo (Accu-Check Advantage, Roche) em pacientes neonatos, observou-se que os resultados da glicemia capilar são superestimados em relação à glicemia

Figura 3 – A: Gráfico dos resultados normalizados derivados da regressão de Deming entre os valores da GCG e da GVG; B: entre a GVG e a GVE; C: entre a GCG e GVE, considerando apenas os pacientes com glicemia alterada

GCG: glicemia capilar determinada pelo glicosímetro; GVG: glicemia venosa determinada pelo glicosímetro; GVE: glicemia venosa determinada em plasma pelo método enzimático.

das doenças cardiovasculares (DCVs) encontra-se o DM, que apresenta alta taxa de morbimortalidade e perda na qua-lidade de vida. Constitui, ainda, uma das principais causas de insuficiência renal, amputação de membros inferiores e cegueira(14).

Os avanços tecnológicos que permitiram o desenvolvi-mento de aparelhos para a avaliação remota da glicemia em sangue capilar, até pelo próprio paciente, têm repre-

Tabelaresultados obtidos na determinação da GCG, da GVG e da GVE

GCG (mmol/l)

GVG (mmol/l)

GVE (mmol/l)

Faixa de valores

3,89-8,77 4,38-8,33 3,77-6,88

Média 5,64 5,83 5,02Mediana 5,49 5,72 4,94Desvio padrão

0,87 0,76 0,73

GCG: glicemia capilar determinada pelo glicosímetro; GVG: glicemia venosa determinada pelo glicosímetro; GVE: glicemia venosa determinada em plasma pelo método enzimático.

CORDOVA, C. M. M. et al. Determinação das glicemias capilar e venosa com glicosímetro versus dosagem laboratorial da glicose plasmática • J Bras Patol Med Lab • v. 45 • n. 5• p. 379-384 • outubro 2009

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referências

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Endereço para correspondência

Caio M. M. de CordovaDepto. de Ciências Farmacêuticas da FURBRua São Paulo, 2.171 – Campus IIICEP 89030-000 – Blumenau-SCTel.: (47) 3321-7318e-mail: [email protected]

8. MELNIK, J.; POTTER, J. L. Variance in capillary and venous glucose levels during a glucose tolerance test. Am J Med Technol, v. 48, n. 6, p. 543-5, 1982.

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plasmática(7). Por outro lado, alguns autores não encontra-ram diferença significativa com esse mesmo glicosímetro em comparação com a glicemia plasmática, avaliando 20 amostras de pacientes submetidos a cirurgia cardíaca(6).

Como se pode perceber, o fato de haver diferentes estudos com resultados conflitantes entre si não depende somente da marca ou série específica do glicosímetro, posto que uma mesma marca pode apresentar resultados incon-sistentes em diferentes estudos. Normalmente, espera-se que os resultados da glicemia capilar sejam maiores que os da glicemia em plasma venoso(8). Isso se deve não só ao tempo requerido para que alterações na glicose venosa alcancem os níveis do sangue capilar, mas também ao tipo de amostra utilizado. Os glicosímetros são calibrados para a utilização de sangue total. Assim, o sangue total venoso

fornece resultados muito próximos aos do sangue total capilar, como observado em nossos resultados.

Entretanto, torna-se importante ressaltar que essas informações sobre a possível variabilidade de resultados de glicemia, quando se comparam os resultados da GCG com os da GVE fornecidos pelo laboratório, são frequen-temente desconhecidas pela população e, muitas vezes, pelos profissionais da saúde responsáveis pelo atendimento aos pacientes diabéticos. É vital que todos os envolvidos nesse processo tenham informações corretas e consisten-tes para orientar os pacientes e que, de preferência, cada laboratório possa avaliar o desempenho dos glicosímetros utilizados como testes remotos em unidades de terapia intensiva (UTIs), enfermarias, emergências, e outros locais sob sua responsabilidade.

CORDOVA, C. M. M. et al. Determinação das glicemias capilar e venosa com glicosímetro versus dosagem laboratorial da glicose plasmática • J Bras Patol Med Lab • v. 45 • n. 5• p. 379-384 • outubro 2009

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541Arq Bras Endocrinol Metab vol 50 nº 3 Junho 2006

RESUMO

Este estudo prospectivo avaliou a dose mínima de sangue, precisão eexatidão da glicemia capilar obtidos em glicosímetro digital. Foramavaliados 108 portadores de diabetes mellitus tipo 1 (DM1), adoles-centes e adultos, de ambos os sexos, recrutados junto à Clínica de Dia-betes do Royal Victoria Hospital, McGill University, Canadá, durante 6meses. No monitoramento capilar, foi utilizado glicosímetro AccuChekCompact (Roche). Para o volume, testaram-se 6 amostras de sangue,em três glicosímetros, utilizando o desenho cross-over (432 leituras). Paraexatidão, comparou-se 100 amostras de sangue arterial e venoso, tes-tadas no glicosímetro e no laboratório. Para precisão, testou-se repeti-damente duas amostras de sangue venoso e soluções-controle. Osresultados demonstraram que o volume de 3,0 µL de sangue é suficientepara leitura reprodutível. Os resultados da glicemia venosa e capilarobtidos pelo glicosímetro e testadas no laboratório não apresentaramdiferença estatisticamente significativa (p > 0,05). Comparação dos va-lores de glicemia capilar medida pelo glicosímetro com glicemiavenosa e capilar medida no laboratório resultou em coeficientes de cor-relação de 0,9819 e 0,9842, respectivamente. Estes dados confirmam aalta exatidão e precisão do glicosímetro testado. O estabelecimento depunção digital de 3,0 µL pode ter impacto positivo na aderência aoautomonitoramento. (Arq Bras Endocrinol Metab 2006;50/3:541-549)

Descritores: Diabetes mellitus; Automonitoramento da glicemia; Gli-cosímetros; Glicemia capilar

ABSTRACT

Performance of Glucometer Used for Self-monitoring Blood Glycaemia inType 1 Diabetic Patients.This prospective study assessed the minimum volume of blood, the preci-sion and the accuracy of capillary glycaemia obtained with the use of adigital glucometer. A total of 108 diabetic individuals were enrolled,teenagers and adults of both genders, from the Diabetes Clinic of theRoyal Victoria Hospital, McGill University, Canada, in 6 months. Gly-caemia monitoring was performed using an AccuCheck Compact(Roche) glucometer. For the volume, 6 samples of blood were tested, ontree glucometers, using a crossover design (432 results). For accuracy, 100samples of venous and arterial blood, measured with the glucometerand on a clinical laboratory were compared. For precision, 2 samples ofvenous blood and solution controls were repeatedly tested. Resultsdemonstrated that a volume of 3.0 µL of capillary blood is sufficient forreproducible results. Measurements of venous and capillary glycaemiadid not differ statistically when obtained with the glucometer or from aclinical laboratory (p > 0.05). Comparison of capillary glycaemia mea-sured with the glucometer with venous and capillary glycaemiaobtained from the laboratory resulted in a correlation coefficient of0.9819 and 0.9842, respectively. These observations confirm the accura-cy and precision of the tested glucometer. The establishment of a mini-

perspectivas

Performance de Glicosímetro Utilizado noAutomonitoramento Glicêmico de Portadores de Diabetes Mellitus Tipo 1

Giane Sprada MiraLys Mary Bileski Candido

Jean François Yale

Programa de Pós Graduação emMedicina Interna e Departamento

de Nutrição (GSM, LMBC) daUniversidade Federal do Paraná,

Curitiba, PR, Brasil; e McGillUniversity (JFY), Montreal,

Canadá.

Recebido em 05/08/05Revisado em 13/12/05

Aceito em 13/03/06

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Análise de Performance de GlicosímetroMira, Candido & Yale

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mum digital punction of 3 µL may have positiveimpact upon the compliance to auto-monitoring rou-tines. (Arq Bras Endocrinol Metab 2006;50/3:541-549)

Keywords: Diabetes mellitus; Blood glucose monitor-ing system; Glucometers; Capillary glycemia

ODIABETES MELLITUS TIPO 1 (DM1) é umadoença crônica, caracterizada pelo comprometi-

mento do metabolismo da glicose, que ganhou statusde epidemia mundial tornando-se hoje um impor-tante e crescente problema de saúde pública (1,2). Ascomplicações decorrentes do controle glicêmico defi-ciente contribuem para redução da qualidade de vidado portador de diabetes. Assim, o tratamento mo-derno do DM está direcionado à prevenção das com-plicações crônicas pela doença, a fim de evitar maiorsofrimento ao paciente e custo mais elevado com otratamento. O tratamento multiprofissional, queinclui esquemas de insulina, monitorização capilar daglicose, contagem de carboidratos e planejamentodietético, e o envolvimento constante e harmoniosodo paciente com a equipe de saúde são fundamentaispara que as recomendações sejam seguidas e o trata-mento seja efetivo (3,4).

O automonitoramento da glicose é considera-do uma ferramenta importante para o controle doDM1. Amplos estudos, como o Diabetes Controland Complications Study (DCCT) e o UK Prospec-tive Diabetes Study (UKPDS), demonstraram oimpacto benéfico do autocontrole glicêmico comredução dos riscos de retinopatias, nefropatias e neu-ropatias (5-7).

A Associação Canadense de Diabetes publicou,em 1998, e revisou em 2001, as diretrizes clínicas parao acompanhamento do DM que prevê, entre outrasações, teste de hemoglobina glicosilada a cada 2 a 4meses e o automonitoramento da glicose com, nomínimo, 4 testes ao dia (8,9).

No Brasil, este hábito ainda não é uma constante,sendo uma das principais causas o alto custo com o apa-relho e fitas reagentes; deste modo, o tratamento pre-ventivo ainda não é praticado fora dos grandes centrosde atendimento ao portador de diabetes.

O avanço tecnológico dos glicosímetros vempermitindo a realização da glicemia capilar pelopróprio paciente no mínimo 3 vezes ao dia, sem anecessidade de recorrer ao laboratório. Porém, algunsfatores são determinantes na eficácia destes aparelhos,tais como o grau de dor, a facilidade do uso dos moni-tores e a fidedignidade dos resultados.

A freqüência e a constância da realização daglicemia capilar, também chamada glicemia em “pontado dedo”, é influenciada pelo desconforto causadopelo alto número de terminações nervosas presentesneste local (4). A dor constante e o aparecimento decalosidades nos dedos diminuem o número de testesrealizados ao longo do tempo, prejudicando o con-trole metabólico do DM (10). Alguns trabalhosrecentes apresentam sítios alternativos para glicemiacapilar com alto grau de aceitação, porém pouco uti-lizados (4).

Outro fator importante é a exatidão e a precisãodos resultados oferecidos pelos glicosímetros.Velazquez e Climent (2003) avaliaram a exatidão deglicosímetros em 40 pacientes diabéticos não hospita-lizados num serviço de saúde de Porto Rico. Os valo-res foram comparados aos obtidos por ensaio labora-torial. Testes estatísticos como análise descritiva e decorrelação e teste t revelaram que os resultados obtidospelos glicosímetros foram exatos; porém, os autoresalertam para o fato de que os pacientes devem recebertreinamento para o correto manuseio do equipamento(7), o que é corroborado pela literatura (11).

Vários são os fatores que podem alterar os resul-tados obtidos nestes aparelhos, como o volume daamostra de sangue e o manuseio incorreto, tanto dafita reagente quanto do próprio glicosímetro. Muitospacientes aprendem como utilizar o glicosímetro ape-nas pelas instruções do manual. Contudo, a AssociaçãoAmericana de Diabetes (ADA) recomenda que oautomonitoramento da glicemia, assim como outrosfatores, seja parte do programa de educação ao porta-dor de diabetes, e seja regularmente revisto para pre-venção de problemas causados por resultados glicêmi-cos incorretos (3).

Para avaliar a fidedignidade dos dados obtidoscom o uso de glicosímetros, este estudo avaliou, emuma população canadense, a exatidão e precisão dosresultados da glicemia capilar em “ponta de dedo”,assim como o volume mínimo de sangue necessáriopara se obter um resultado confiável. Estes dadosforam comparados aos obtidos através de análises emlaboratório clínico.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Foi realizado um estudo comparativo, prospectivo, empacientes portadores de DM1 atendidos no MetabolicDay Centre do Royal Victoria Hospital (RVH)(McGill University, Canadá). Não houve restriçãoquanto a sexo, idade ou duração do diabetes. O único

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critério de inclusão foi a concordância do paciente emse submeter a todos os testes solicitados. O projeto foiaprovado pelo comitê de ética do Royal Victoria Hos-pital, e os pacientes assinaram um termo de compro-misso livre e esclarecido.

No estudo foram avaliados: (i) o menor volumede sangue a ser empregado no glicosímetro para aobtenção de resultados confiáveis, e (ii) a precisão eexatidão dos resultados obtidos com o glicosímetro.

PopulaçãoNa avaliação da exatidão foram recrutados 122 porta-dores de DM1, adolescentes e adultos, por um perío-do de seis meses consecutivos. Os critérios parainclusão no estudo foram: paciente ser portador deDM1 e concordar em participar do estudo. Para 22pacientes, o resultado de pelo menos uma amostra desangue não estava disponível; estes pacientes foramexcluídos do estudo. Todo o grupo dos 100 pacientesrestantes, distribuído em 46 mulheres e 54 homens,foi testado para os parâmetros de glicemia capilar doglicosímetro (capmet), glicemia capilar do laboratório(caplab), glicemia venosa do glicosímetro (venmet) eglicemia venosa do laboratório (venlab).

Um paciente de cada sexo foi selecionado aoacaso, normoglicêmico ou não, para a avaliação daprecisão.

Para o teste de volume mínimo foram analisadasamostras de sangue de 6 pacientes (3 mulheres e 3homens) apresentando valores de glicemia entre 9 e 12mmol/l (normoglicêmicos).

GlicosímetroO glicosímetro testado neste estudo foi o AccuChekCompact, que possui um sistema de cartucho com 17fitas reagentes (método glicose oxidase) integrado aoaparelho, com decodificação automática, que é aciona-do por apenas um toque. O cartucho acionado liberaa fita reagente na posição exata para a aplicação da gotade sangue. O resultado é fornecido em 13 segundos e,com mais um toque, a fita é descartada. De acordocom o fabricante, este mecanismo diminui o manuseiodireto com a fita reagente, reduzindo o risco de errono momento do teste. O monitor armazena até 100registros glicêmicos com datas e horários e forneceuma média de 7 dias de resultados.

Volume de sangueNa primeira etapa foram avaliadas amostras de sanguevenoso de 6 pacientes portadores de DM1 (nor-moglicêmicos) atendidos na clínica de endocrinologiado Royal Victoria Hospital. Foram excluídos pacientes

que apresentaram valores glicêmicos fora dos pré-esta-belecidos, entre 9 e 12 mmol/L, medidos previamentepelo laboratório central. O sangue venoso foi colhidopor um técnico do laboratório do Metabolic Day Cen-tre. A amostra de sangue foi mantida no gelo até suautilização, sendo posteriormente enviado ao McGillNutrition Centre, onde foram aplicados os testes como glicosímetro. Quantidades variadas deste sangueforam obtidas utilizando uma pipeta medidora comvolumes específicos de 0,5, 1, 2, 3 e 5 microlitros, eaplicados nas fitas Softclik Select para a leitura daglicemias. Para fazer a leitura das diferentes amostraspipetadas foram utilizados três glicosímetros da marcaAccuChek Compact Meter – Roche Diagnostics.Foram testados todos os volumes acima citados, tendoa quantidade de 5 microlitros como padrão, seguidode dois outros valores menores subseqüentes, aplica-dos simultaneamente em 3 glicosímetros diferentes erepetidos em ordem reversa, como mostra o cross-overda tabela 1. Esta seqüência foi repetida uma vez paracada paciente. As amostras que apresentaram erro naleitura foram registradas da mesma maneira. Com estemodelo foram realizadas 432 leituras.

PrecisãoPara se avaliar a precisão dos resultados, foram utilizados3 glicosímetros (tabela 2) AccuChek Compact Meter –Roche Diagnostics, em duas situações. O primeiro testefoi com as duas amostras das soluções-controle (G1 eG2), que acompanham o glicosímetro, as quais foramtestadas 20 vezes em três diferentes glicosímetros. Osegundo teste teve o mesmo procedimento, porémforam utilizadas duas amostra de sangue venoso (emqualquer estado glicêmico), de 2 diferentes pacientesportadores de DM1 atendidos da Clínica deEndocrinologia durante sua consulta de rotina. Asamostras de sangue foram testadas 20 vezes nos mesmosglicosímetros em que foram lidos os padrões. Este pro-cedimento resultou em 60 leituras de glicemia para cadauma das amostras e controles testados. As sessentaleituras/amostra foram, então, utilizadas no cálculo damédia, o desvio-padrão e o coeficiente de variação(CV%) para estas amostras. As médias foram obtidasatravés de 20 repetições de cada lote de fita, totalizando60 análises por amostra de sangue ou solução controle.

Durante toda a etapa, os códigos dos gli-cosímetros, solução-controle e fitas foram registrados econferidos.

ExatidãoA terceira e última etapa deste estudo avaliou a exatidãodos resultados obtidos com o glicosímetro, comparan-

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do-os com os resultados do laboratório. Recrutaram-se100 indivíduos portadores de DM1 (em qualquer esta-do glicêmico) do Metabolic Day Centre (RVH),durante suas consultas de rotina. As coletas foram rea-lizadas por profissionais especializados, que faziam atomada simultânea de sangue venoso e capilar (atravésda coleta de sangue na falange distal do dedo médio damão direita ou teste da “picada do dedo”).

Uma parte do sangue venoso foi imediatamentetestada no glicosímetro AccuChek Compact, e o resul-tado foi registrado. Outra parte do sangue venoso foicoletada em um tubo de ensaio contendo fluoreto desódio e enviada para o laboratório geral do RVH paraanálise da glicose plasmática através do método da gli-cose oxidase. O sangue obtido pelo teste da “picada dodedo”, utilizando o lancetador SoftClix, grau três deperfuração, foi, da mesma forma, imediatamente testa-do no glicosímetro AccuChek Compact, e o resultadofoi registrado. Deste mesmo sítio, coletou-se umaamostra adicional num tudo capilar, que foi imediata-mente enviada ao laboratório geral para análise da gli-cemia. Esta amostra foi mantida no gelo até a sua cen-trifugação. Para a análise estatística, os resultados foramsubmetidos à análise de variância e adicionalmenteavaliados através de regressão linear para calcular o coe-ficiente de correlação entre os métodos, empregandosoftware Statistica (Statsoft). Valores de p≤ 0,05 foramconsiderados estatisticamente significantes.

RESULTADOS

Volume de sangueResultados de análise de dispersão indicam que 3microlitros de sangue é o volume mínimo necessáriopara avaliação correta da glicemia no glicosímetro

testado (figura 1). No entanto, a menor dispersãofoi obtida com 5 microlitros.

PrecisãoAs tabelas 3 e 4 descrevem o resultado das médias,desvios-padrão e coeficientes de variação de 60 testesrealizados com duas amostras de soro e duas soluções-padrão de glicose, respectivamente. A consistência dasmédias, refletida nos baixos valores de desvio-padrão ecoeficiente de variação, indica que elevada precisão foiencontrada para o glicosímetro testado, tanto para asamostras de soro quanto para as soluções controle.

ExatidãoNa tabela 5 podem ser verificados os resultados dasglicemias obtidos nas quatro situações testadas(glicemia em sangue venoso laboratório; glicemia emsangue venoso glicosímetro; glicemia em sangue capi-lar glicosímetro; glicemia em sangue capilar labo-ratório).

Não houve diferença estatisticamente significa-tiva (p > 0,05), calculada pelo teste de Tukey, entre osmétodos empregados e entre os valores para sanguevenoso e arterial (tabela 6). A análise de variância dosefeitos do método (p= 0,343155) e do tipo de sangue(venoso ou capilar, p= 0,390777) sobre as glicemiastambém não mostrou diferenças estatisticamente signi-ficativas entre os grupos testados.

A figura 2 apresenta gráficos obtidos por análisede regressão linear que demonstram a elevada corre-lação entre os resultados da glicemia medida simul-taneamente em sangue venoso e capilar através do gli-cosímetro e de ensaio laboratorial. Os resultados daglicemia venosa obtida pelos dois métodos, gli-cosímetro e laboratório, não apresentaram diferençaestatisticamente significativa (p > 0,05) e o coeficiente

Tabela 1. Cross-over para análise do volume de sangue.

Glicosímetro 1 2 3

Volume de sangue em microlitros (µL) 5,0 3,0 2,0

2,0 3,0 5,05,0 1,0 0,50,5 1,0 5,05,0 2,0 3,03,0 2,0 5,05,0 0,5 1,01,0 0,5 5,03,0 5,0 2,02,0 5,0 3,01,0 5,0 0,50,5 5,0 1,0

Tabela 2. Modelo para avaliação de precisão de glicosí-metros.

Paciente Glicosímetro Lote

1 1 11 2 21 3 32 1 12 2 22 3 3

Padrão Glicosímetro Lote

1 1 11 2 21 3 32 1 12 2 22 3 3

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Tabela 3. Análise de precisão de duas amostras de sangue venoso.

Amostra Lote de Fita Média Desvio-Padrão CV (%)(n= 20; mmol/l)

Sangue #1 1 9,98 0,18 1,802 9,61 0,17 1,763 10,0 0,17 1,69

Sangue #2 1 8,68 0,23 2,642 8,61 0,10 1,163 8,99 0,11 1,22

CV %= Coeficiente de variação.

Figura 1. Glicemia obtida com diferentes volumes desangue.

Tabela 4. Análise de precisão das 2 soluções-controle do glicosímetro testado.

Amostra Lote de Fita Média Desvio-Padrão CV (%)(n= 20; mmol/l)

Solução #1 1 2,46 0,12 4,872 2,52 0,14 5,503 2,50 0,08 3,20

Solução#2 1 9,09 0,53 5,832 9,02 0,33 3,653 9,06 0,47 5,18

CV %= Coeficiente de variação.

Tabela 5. Valores de glicose (mmol/l) de sangue venoso e capilar obtidos por análiselaboratorial e por glicosímetros.

Método Média (mmol/l) Desvio-Padrão CV (%)

Sangue capilar glicosímetro 8,89a 3,74 42,14Sangue capilar laboratório 9,56a 3,76 39,38Sangue venoso glicosímetro 8,88a 3,54 39,87Sangue venoso laboratório 8,93a 4,08 45,71

CV %= Coeficiente de variaçãoValores seguidos de mesmas letras não diferem estatisticamente (p > 0,05)

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de correlação (r2) foi de 0,9123. Quando se comparouo valor da glicemia venosa medida no laboratório coma glicemia capilar medida pelo glicosímetro, tambémnão se observou diferença significativa, e o coeficientede correlação (r2) foi de 0,9819. Coeficiente aindamais elevado foi observado quando se comparou aglicemia capilar medida no glicosímetro e no labo-ratório (r2= 0,9842).

DISCUSSÃO

Campanhas públicas de conscientização, associadas amétodos modernos de diagnóstico e tratamento doDM, têm resultado, ao longo das últimas décadas,tanto em aumento no número de casos diagnosticadosda doença quanto em aumento da expectativa de vidados pacientes. Estas situações levam, respectivamente,

Tabela 6. Valores de P para as variáveis da avaliação de exatidão dosglicosímetros.

VENMET VENLAB CAPMET CAPLAB

VENMET — 0,930798 0,979918 —VENLAB 0,930798 — — 0,252249CAPMET 0,979918 — — 0,20766CAPLAB — 0,20766 0,20766 —

As médias foram comparadas pelo teste de Tukey a 5% de significância.VENMET= glicemia em sangue venoso laboratório; VENCAP= glicemiaem sangue venoso glicosímetro; CAPMET= glicemia em sangue capilarglicosímetro; CAPLAB= glicemia em sangue capilar laboratório.

Figura 2. Correlação entre glicemia capilar e venosa obtida pelo glicosímetro e em laboratório.A = Regressão linear para valores de glicemia determinados em laboratório em sangue venoso (VENLAB) e emsangue venoso em glicosímetro (VENMET); B = Regressão linear para valores de glicemia determinados em la-boratório em sangue capilar (CAPLAB) e em sangue capilar em glicosímetro (CAPMET); C = Regressão linear paravalores de glicemia determinados em laboratório em sangue venoso (VENLAB) e em sangue capilar em gli-cosímetro (CAPMET).

A

B C

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ao aumento dos custos com tratamento do DM e suascomplicações, que têm sobrecarregado os serviços desaúde pública no mundo, e à necessidade de se garan-tir boa qualidade à sobrevida dos pacientes (8). Segun-do a Organização Mundial de Saúde (OMS), estraté-gias voltadas para a prevenção de hipertensão arterial,dislipidemias e hiperglicemia associada ao DM dimi-nuem em até 50% a incidência de internamentos porúlceras de membros inferiores ocasionadas por umpobre controle metabólico (12).

O DCCT (Diabetes Control and ComplicationTrial) envolveu 1.441 pacientes nos EUA e Canadá edemonstrou que, com o automonitoramento daglicemia, houve redução de 76% do risco de desen-volvimento de retinopatia primária e 54% de retardona progressão da retinopatia. A microalbuminúria foireduzida em 39% e a neuropatia clínica, em 60%. Estesresultados são utilizados hoje como base para a indi-cação de um cuidadoso controle glicêmico dospacientes portadores de diabetes, evitando ao máximo,através do automonitoramento da glicose, flutuaçõesglicêmicas graves (6).

Assim, a prevenção de complicações associadasao DM tem se tornado crucial no tratamento dadoença. Controle glicêmico diário, contagem de car-boidratos, prática de atividade física e consultas regu-lares ao serviço de saúde para receber treinamento emonitoramento freqüente são algumas ações conside-radas, hoje, indispensáveis no acompanhamento doportador de DM.

Está bem documentado na literatura científicaque a educação do portador de DM1 é uma das açõesmais importantes para o controle da doença e o retar-do no aparecimento de suas complicações crônicas (9).Os glicosímetros são ferramentas modernas de con-trole de glicemia, operados pelos próprios pacientes, ecom grande potencial de aplicação no auxílio da pre-venção das complicações do DM. Porém, a utilizaçãodos glicosímetros pode ser questionada em dois aspec-tos fundamentais: (i) a confiabilidade dos dados deglicemia obtidos, e (ii) a resistência do paciente àaderência ao procedimento, visto com freqüênciacomo desconfortável a ponto de se tornar inviável parao uso diário. De acordo com Ferraz e cols. (2004), ador associada ao procedimento de obtenção de sanguecapilar é fator limitante para o automonitoramento daglicemia, o que predispõe a um controle metabólicodeficiente e maior índice de complicações futuras (4).

Estudos anteriores já demonstraram bompotencial de utilização dos glicosímetros no monitora-mento metabólico do paciente diabético, desde quesua utilização seja simples (1) e que sejam utilizados

por indivíduos bem treinados (1,11). Porém, a con-stante evolução da tecnologia aplicada na construçãodos glicosímetros permite pressupor alterações nosparâmetros de qualidade destes equipamentos. Alémdisso, variáveis ligadas ao conforto do paciente quan-do da aplicação do treinamento recebido são freqüen-temente negligenciadas. Vemos, portanto, comoimportante a atualização dos dados de confiabilidadedos glicosímetros modernos, bem como o estabeleci-mento de rotina de uso destes equipamentos queincentivem o paciente a aderir à sua utilização.

Neste estudo, comparou-se a qualidade dosresultados obtidos com um glicosímetro de última ge-ração com aqueles obtidos no laboratório de análisesclínicas através de métodos considerados “padrão-ouro” para determinação de glicemia. Nossos dadosestão de acordo com estudos anteriores que mostramboa correlação entre valores de glicemia obtidos porambos os métodos (1,11). Na verdade, enquanto aanálise de performance de vários glicosímetros realiza-da com sangue total heparinizado detectou um coefi-ciente de variação de 5% para análise de precisão (1),nossos dados mostram uma precisão ainda maior, comcoeficiente de variação de 1,7% (tabela 4).

Kendall e cols. (2005) avaliaram 100 pacientescom diabetes tipo 1 e 2 que realizavam o automoni-toramento da glicemia. Os pacientes eram convidadosa fazer o próprio exame com o glicosímetro. A seguir,o teste era repetido por um profissional de saúde.Ambos os resultados foram comparados a exames la-boratoriais automatizados, através dos métodos da gli-cose oxidase e hexoquinase. Os coeficientes de corre-lação com os exames laboratoriais foram de 0,96 parao teste realizado pelo próprio paciente e 0,97 para oteste efetuado pelo profissional de saúde. Os autoresconcluíram que a educação do paciente é o elemento-chave para a exatidão dos resultados, uma vez que oestudo também demonstrou a exatidão e a facilidadede uso dos glicosímetros (11).

Neste estudo, detectamos elevada exatidão dosresultados de glicemia obtidos através dos glicosímetrosquando comparada com os testes-padrão de glicoseoxidase obtida pelo laboratório. Não foi observadadiferença estatística significativa entre os dois diferentesmétodos de avaliação da glicemia (p > 0,05). Este fatoestá de acordo com o estudo de Kendall e cols. (2005),o qual demonstrou que esta nova geração de gli-cosímetros apresenta elevada exatidão, aumentando osníveis de confiabilidade dos resultados (11).

Finalmente, nossos resultados sugerem proce-dimentos-padrão operacionais necessários para aobtenção de resultados confiáveis de glicemia através

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do uso de glicosímetros. O estabelecimento destesprocedimentos levou em conta a perspectiva dopaciente portador de diabetes, e visou à diminuição dodesconforto associado ao uso freqüente do equipa-mento.

No que se refere a fatores psicológicos quepodem exercer alguma função sobre o controle daglicemia, Maia & Araújo demonstram que grupos queapresentam baixa aceitação da doença apresentam umcontrole glicêmico inadequado. O grau de aceitaçãodo DM1 e as situações relacionadas à rotina do porta-dor de DM têm influência direta sobre os níveisglicêmicos (13). Portanto, os dados achados nesteestudo quanto ao volume da amostra de sangue a sercoletado colaboram para que se possa indicar umapunção digital menos profunda, tornando a glicemiaem “ponta de dedo” melhor aceita pelo paciente.

A constatação, neste estudo, de que 3,0 µL desangue capilar são suficientes para a obtenção de resul-tados reprodutíveis permite punções digitais menosprofundas e, conseqüentemente, menos dor associadaao procedimento. A adoção dos procedimentos aquidescritos tem potencial de reduzir a resistência dopaciente à aderência ao uso do glicosímetro, sem perdada qualidade das dosagens, e com grande impacto po-sitivo no controle das complicações do DM. Impor-tante destacar que o teste de volume mínimo foi rea-lizado em amostras normoglicêmicas. A extrapolaçãodos resultados aqui descritos para amostras hiper ouhipoglicêmicas depende de experimentos adicionais.Este critério teve sua justificativa no fato de que vo-lumes muito baixos de sangue (abaixo dos recomen-dados pelo fabricante do aparelho) resultam em va-lores glicêmicos também baixos, o que pode prejudicara leitura no aparelho.

É importante citar que novas tecnologias vêmsendo estudadas e utilizadas para o controle metabóli-co, como é o caso do CGMS (Continuous GlucoseMonitoring System), um método em que é possívelavaliar variações glicêmicas ao longo de 72 h con-tínuas. O CGMS é capaz de fornecer 288 leituras deglicose em 24 horas, 72 vezes mais dados que os sis-temas convencionais. Um sensor subcutâneo mede aglicose intersticial a cada 10 segundos, em uma taxaque varia de 40 mg/dl a 400 mg/dl, e os resultadossão armazenados pela média dos valores obtidos a cada5 minutos. Este teste apresenta alta acurácia e é uti-lizado principalmente na detecção de hipoglicemias ehiperglicemias não detectáveis pelos métodos conven-cionais, tornando a intervenção terapêutica mais eficaze reduzindo a glico-hemoglobina (A1c) (14). Porém,o teste de monitorização contínua da glicose (CGMS)

é um procedimento sugerido pelo médico a fim de seinvestigar um estado metabólico específico por umperíodo máximo de três dias consecutivos. Destemodo, entendemos que, apesar do CGMS ser deextrema importância para a conduta médica peranteseu paciente, a glicemia em “ponta de dedo” continuasendo o método mais utilizado no controle glicêmicodiário do portador de Diabetes.

Estudos como os do DirectNet Study Group(The Diabetes Research in Children Network), de 2005,realizado com 200 crianças portadoras de DM1, ondese comparou os resultados glicêmicos oferecidos pelométodo CGMS versus os resultados de 8 testes deglicemia capilar, demonstram que as médias dasglicemias medidas pelos 2 métodos foram similares(15). Apesar da vantagem do número de valoresglicêmicos obtidos pelo CGMS sobre a glicemia capi-lar, os dois métodos apresentaram resultados quaseidênticos, demonstrando que ambos podem serrecomendados ao paciente, dependendo da situação aser investigada.

Os resultados descritos neste estudo confirmamos glicosímetros modernos como ferramentas precisas econfiáveis de determinação de glicemia pelo própriopaciente, e sugerem que o estabelecimento de proce-dimentos-padrão de operação destes instrumentos,levando-se em consideração a perspectiva do paciente,pode minimizar o desconforto do usuário, aumentandoa probabilidade de adesão ao protocolo de automoni-toramento da glicemia. Em nosso entender, a combi-nação destes resultados proporciona uma visão maisclara dos glicosímetros como uma poderosa ferramentade controle das complicações associadas ao DM.

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Giane Sprada MiraRua Prof. Lothário Meissner 63280210-170 Curitiba, PR.E-mail: [email protected]