Esperanças Do Passado

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Luiz Gonzaga Belluzzo Lua Nova, São Paulo, 66: 57-67, 2006 57 ESPERANÇAS DO PASSADO 1 Luiz Gonzaga Belluzo “Nós somos herdeiros, o que não quer dizer que possuímos ou recebemos isto ou aquilo, ou que possamos enriquecer com a herança. Mas o ser daquilo que somos é já, em seu começo, uma herança. Não importa se nós a desejamos, saibamos dela ou não. Hölderlin considerava a linguagem o mais perigoso dos bens. Mas ela foi entregue ao homem para que ele dê o testemunho de haver herdado o que ele é. A herança jamais é uma doação, mas uma tarefa.” (Jacques Derrida – Spectres de Marx ) Sou um filho do mundo que nasce no pós-guerra, da São Paulo da Ciranda de Pedra, de nossa querida Lígia Fagundes Telles e do Brasil que arfava entre a euforia da vitória das democracias e as esperanças do desenvolvimentismo. Já antes do término da Segunda Guerra Mundial, o projeto hegemônico dos vencedores, os Estados Unidos, foi 1. Texto baseado no discurso em que o autor recebeu o Prêmio Juca Pato – Intelec- tual do Ano de 2005, da União Brasileira dos Escritores.

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Esperança do PassadoLuiz Gonzaga BelluzzoLua Nova, São Paulo 66: 205-214, 2006O autor analisa os rumos das políticas econômicas desde o segundo pós-guerra

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    ESPERANAS DO PASSADO1

    Luiz Gonzaga Belluzo

    Ns somos herdeiros, o que no quer dizer que possumos

    ou recebemos isto ou aquilo, ou que possamos enriquecer

    com a herana. Mas o ser daquilo que somos j, em seu

    comeo, uma herana. No importa se ns a desejamos,

    saibamos dela ou no. Hlderlin considerava a linguagem

    o mais perigoso dos bens. Mas ela foi entregue ao homem

    para que ele d o testemunho de haver herdado o que ele .

    A herana jamais uma doao, mas uma tarefa.

    (Jacques Derrida Spectres de Marx ) Sou um lho do mundo que nasce no ps-guerra, da So Paulo da Ciranda de Pedra, de nossa querida Lgia Fagundes Telles e do Brasil que arfava entre a euforia da vitria das democracias e as esperanas do desenvolvimentismo.

    J antes do trmino da Segunda Guerra Mundial, o projeto hegemnico dos vencedores, os Estados Unidos, foi

    1. Texto baseado no discurso em que o autor recebeu o Prmio Juca Pato Intelec-tual do Ano de 2005, da Unio Brasileira dos Escritores.

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    desenhado com o propsito de eliminar os fatores polticos e econmicos que levaram s duas conagraes globais. A instabilidade econmica e as rivalidades interimperialistas entre o nal do sculo XIX e a Segunda Guerra Mundial foram devastadoras do ponto de vista econmico, social, moral e poltico. Terminado o conito, as foras vitoriosas, democrticas e antifascistas, trataram de criar instituies destinadas a impedir a repetio da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potncias e da economia destravada.

    S o maniquesmo tpico da Guerra Fria se atreveria a negar que as foras sociais e o imaginrio poltico predomi-nantes no New Deal tinham uma viso progressista acerca do papel a ser exercido pelos Estados Unidos. Em claro anta-gonismo com as prticas das velhas potncias, os Estados Unidos tomando em conta o seu auto-interesse de forma esclarecida se empenharam na reconstruo europia e apoiaram as lutas pela descolonizao.

    O que se observou, a partir de ento, foi um ensaio apenas um ensaio de uma nova ordem internacional com aspiraes de garantir os direitos do homem e do cidado, os princpios da democracia e da legalidade internacional. Isto ocorreu, verdade, num ambiente de tenso perma-nente entre as duas superpotncias e de competio entre os seus sistemas de vida. Ao mesmo tempo, cresciam a inter-dependncia e a rivalidade econmica entre a Europa oci-dental, os Estados Unidos e o Japo, assim como se acelera-ram os processos de desenvolvimento em meio sucesso de crises polticas e golpes de Estado na periferia.

    O desenvolvimentismo preciso que se diga com nfase no foi uma inveno idiossincrtica de pases ex-ticos. Foi, antes de tudo, uma resposta aos desaos e opor-tunidades criadas pela Grande Depresso dos anos 30 e seu ambiente internacional catastrco. Os projetos nacionais de desenvolvimento e industrializao na periferia nasce-

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    ram no mesmo bero que produziu o keynesianismo nos pases centrais. Uma reao contra as misrias e as desgra-as produzidas pelo capitalismo dos anos 20.

    A onda desenvolvimentista e a experincia keynesiana tiveram o seu apogeu nas trs dcadas que sucederam o m da Segunda Guerra. O clima poltico e social estava saturado da idia de que era possvel adotar estratgias nacionais e inter-nacionais de crescimento, industrializao e avano social.

    Depois de trinta anos de progresso material, reduo das desigualdades nos pases centrais e altas taxas de cresci-mento na Amrica Latina e na sia emergente, a crise dos anos 70 foi entendida como uma advertncia e uma reco-mendao: era preciso dar adeus a tudo aquilo. O mal a poltica. O intervencionismo do Estado, o poder dos sindi-catos, o controle pblico da nana, os obstculos ao livre movimento de capitais.

    O conto de fadas da globalizao acenava com o m da histria: as questes essenciais relativas s formas de con-vivncia e ao regime de produo em escala mundial esta-riam resolvidas com a generalizao da democracia liberal e da economia de mercado. No haveria mais sentido na discusso de questes anacrnicas, como as da pertinncia cvica, laica e republicana, sentimento desenvolvido a partir do nascimento do Estado-Nao e consolidado com o Esta-do do Bem-Estar Social.

    Um jornalista do Guardian, habitual cronista das reunies do World Economic Forum, resumiu em um pargrafo as dife-renas entre o esprito das pocas, entre as reunies de Bret-ton Woods e Durbaton Oaks e os encontros peridicos de Davos, onde os poderes do mundo imaginam cuidar do des-tino dos homens: Clement Atlee, Ernest Bevin e Roosevelt acreditavam nos mercados administrados e no controle do capitalismo... por isso as Conferncias de Bretton Woods e de Durbaton Oaks no foram patrocinadas pela Coca-Cola. As reunies de Roosevelt no tinham o apoio do J. P. Morgan,

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    cujos funcionrios, alis, tratavam de recortar as fotos do presidente americano, para evitar acidentes, caso o patro resolvesse ler os jornais.

    O sonho do m da histria e da cidadania sem frontei-ras transformou-se no pesadelo em que todos so vtimas provveis do embate entre o desespero dos que no tm rosto porque no tm ptria e uma estrutura de poder global que se pretende absoluta, encarnada no rosto da ptria hegemnica.

    A dominao ps-moderna pretende desconhecer a soberania dos estados nacionais, sem que isso signique a criao de instncias integradoras no mbito internacional. Muito ao contrrio: o avano do intervencionismo unilate-ral provoca a desintegrao dos fruns multilaterais. A pol-tica norte-americana faz unilateralmente as intervenes preventivas ou corretivas, segundo a conjuntura. Sem regras gerais auto-aplicveis e sem considerao pelas regras dos organismos internacionais que eles mesmos ajudaram a criar, o intervencionismo preventivo norte-americano expandiu como nunca o seu poder global.

    A supremacia apoiada na superioridade das armas e no despotismo da economia desregulada dispensa as media-es da ordem jurdica e no quer ou no precisa compre-ender nada. A busca humana e libertadora da compreenso tende a esmaecer quando prevalece a lgica da cacetada. A estratgia de Bush e da nova direita fundamentalista, segundo o lsofo Slavo Zizek, bloquear as possibilidades libertadoras da sociedade americana: No estou dizendo que Bush vai usar o pretexto da ameaa terrorista para ins-taurar uma meia ditadura militar. No! Isso ser feito de forma imperceptvel, mediante regras no escritas. Algum poderia imaginar a tortura como um tpico legtimo trs ou quatro anos atrs? Minha maior preocupao esta revolu-o suave, essa imperceptvel mudana nas normas sociais, nas regras no escritas sobre o que aceitvel ou no.

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    impossvel no temer que Adorno e Horkheimer tives-sem razes para sustentar a terrvel suspeita: o mundo em que tentamos sobreviver uma prova diria da degenerao da razo ocidental, transformada em mero instrumento dos mtodos de domnio e conquista. No vejo como a razo instrumental e tecnocrtica, encarnada na economia esta obra-prima do que h de pior na metafsica ocidental pos-sa empreender a crtica de sua prpria grande narrativa.

    O implacvel crtico ingls Terry Eagleton descreve o atual estado de coisas no mundo como um processo em que a diferenciao de atitudes, estilos, modos de ser e de gover-nar so to semelhantes entre si que, anal de contas, no h qualquer diferena entre eles. Eagleton constata que, no capitalismo globalizado, as leis de movimento do conjun-to vo se tornando mais abstratas e constrangedoras e, ao mesmo tempo, as pretenses particularistas e individualis-tas tornam-se grotescamente inadas, ameaando lanar a sociedade na violncia e no caos.

    As lideranas renovadas da periferia, por exemplo, tiveram os seus dias de glria. Hoje o que vemos so cad-veres boiando na enxurrada da globalizao. Quanto mais crdula a adeso s torrentes da mercantilizao universal, mais rasa a poa dgua em que terminam por se afogar os clones de estadistas.

    Os governantes, auto-intitulados progressistas acuados pelos favores da alta nana tratam de cortar os direitos sociais e econmicos de seus cidados enquanto celebram a ecincia dos mercados. Sob o pretexto de enfrentar o corporativismo e a resistncia dos direitos adquiridos, os serviais da globalizao propem o retorno aos padres primitivos nas relaes entre o capital e o trabalho. No satisfeitos, advogam o encolhimento do sistema de prote-o social criado para impedir a desgraa dos mais fracos, o sofrimento do homem comum atormentado, dia sim, dia no, pelas peripcias dos mercados.

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    Esses so os princpios que vm conduzindo as refor-mas, tanto as dos pases desenvolvidos quanto as mimetiza-das por governantes de pases perifricos. Julgam, com estes programas, estar comprando o ingresso para o clube dos ricos. Esto, na verdade, trocando a sade, a educao do povo e o sossego dos velhos por miragens.

    Ao se pronunciar sobre a experincia do perodo desen-volvimentista, um ex-presidente do Banco Central chegou a proclamar em entrevista revista Veja que aqueles tem-pos foram 40 anos de burrice. Assim prolatada esta irre-corrvel sentena condenatria reverbera a pobreza da teo-ria econmica dominante, que, j disse, se transformou na lha mais dileta e degenerada da metafsica ocidental, no seu pressuroso anseio de eliminar as diferenas no modo de ser e de existir dos pases e dos cidados.

    Era, ento, arriscado para no dizer quase proibido apenas sugerir que o prolongado desle de burrice, a-nal, livrou o Brasil e os brasileiros da dependncia do mode-lo primrio-exportador (alm do bicho-de-p e da hemopti-se) e forjou uma importante economia urbana e industrial no chamado Terceiro Mundo.

    O ethos desenvolvimentista foi construdo pela interao entre as camadas empresariais nascentes, o estamento buro-crtico-militar e algumas lideranas intelectuais e o proleta-riado em formao. Havia a percepo de que o objetivo de aproximar o pas das formas de produo e de convivncia no poderia ser alcanado no mbito da velha e destroada diviso internacional do trabalho e nem mesmo mediante a simples operao das foras naturais do mercado.

    O projeto de industrializao foi sendo construdo atra-vs de alianas polticas, regionais e de classe que atraram os interesses mais retrgrados e reacionrios para o bloco hegemnico. Na posteridade da Segunda Guerra Mundial, a expanso do internacionalismo capitalista comandada pelos EUA e a polarizao da Guerra Fria colocaram novos

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    desaos ao avano da agenda desenvolvimentista. Quem se habituou a repetir, sem qualquer senso crtico, que o Brasil perseguiu um modelo autrquico, uma economia fecha-da, falsica os fatos: a industrializao brasileira foi acom-panhada de uma profunda internacionalizao da estrutura produtiva econmica.

    Ningum est disposto a sustentar que tudo foi uma maravilha. A distribuio de renda um desastre. Os nveis de pobreza so vergonhosos. A desproteo da populao diante das incertezas da vida e das andanas da economia so constrangedoras. Pois foi luz desta realidade pro-duzida pela resistncia dos enclaves reacionrios ao avano social que, nos anos 90, o cosmopolitismo liberal se lanou aventura da desconstruo da idia de nao. Para tanto se embrenhou nos misteres de ocultar e negar a existncia de hierarquias e dominao nas relaes internacionais, de exaltar as virtudes regeneradoras da concorrncia, de estig-matizar a coordenao do Estado.

    Na onda de louvao das virtudes do mundo globaliza-do e de exaltao do mercado, a rejeio ao nacional no s atingiu os nveis mais profundos das almas dos nativos ricos, mas tambm conseguiu angariar novos adeptos.

    A nova rejeio mais profunda porque, de forma devastadora, erodiu os sentimentos de pertinncia mesma comunidade de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciao e (des)identicao em relao aos outros, ou seja, massa de pobres e miserveis que infesta o pas. E essa (des)identicao vem assumindo cada vez mais as feies de um individualismo agressivo e anti-republicano.

    A rejeio tambm foi mais ampla porque essas formas de conscincia social contaminaram vastas camadas das clas-ses mdias: desde os novos proprietrios, passando pelos quadros tcnicos intermedirios at chegar aos executivos assalariados e nova intelectualidade formada em universi-dades estrangeiras ou mesmo em escolas locais que se esme-

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    ram em reproduzir os valores do individualismo agressivo. Isto para no falar do papel avassalador da mdia.

    Tais expectativas e anseios no so desvios psicolgicos de grupos ou indivduos, mas deitam razes profundas na estrutura socioeconmica e, portanto, na secular inclinao a reproduzir a desigualdade. As classes cosmopolitas sob a retrica de um primeiro-mundismo abstrato e, no raro, vulgar tm sido ecientes na reproduo do apartheid social e impiedosas na crtica do projeto nacional. O cosmo-politismo das classes endinheiradas revela, ademais, o seu carter parasitrio, amparado na dolarizao e na nan-ceirizao da riqueza e da renda dos estratos superiores, o que condena a economia aos suplcios de uma moderniza-o restrita e intermitente, com seu squito de destruio de empregos e excluso social.

    A dimenso individualista e anti-republicana destas formas de vida e de conscincia, aliada decadncia eco-nmica engendrada pelo rentismo perifrico, desgua na anomia social e na impotncia do Estado, cada vez mais inabilitado para o cumprimento de suas funes essen-ciais: garantir a segurana dos cidados e promover a uni-versalizao das polticas pblicas de sade, educao e previdncia.

    Muitos teimam em desconhecer que a liberdade moder-na dos indivduos movidos pela cobia e pelo medo s sobreviver se a fora coercitiva e legal do Estado puder ser exercida em sua plenitude. Ao contrrio do que imaginam, a sano legal deve se apresentar claramente como uma ameaa iminente aos transgressores da lei. O no cumpri-mento dessa funo o primeiro passo para a reinstaurao da guerra privada e, provavelmente, para o aparecimento de alguma forma de despotismo extralegal.

    Aqui no Brasil esto presentes todos os sintomas de eroso da soberania do Estado. Alm de despojado com requintes do monoplio da violncia, o Estado brasileiro

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    vem sendo atacado nas outras prerrogativas essenciais: a de cobrar impostos e a de administrar a moeda.

    No nova a descoberta de que a abertura nanceira e o endividamento em moeda estrangeira podem fazer mal sade das economias de moeda fraca. Mas, nas beiradas do mundo, os senhores no perdem a chance de fazer a Amri-ca deglutir a carne macia e deixar os ossos para os gentios.

    Os colunistas da moda e outros fora dela conseguiram bons empregos e at algum prestgio tentando afanosa-mente reproduzir as opinies e os pontos de vista dos seus senhores, sejam eles quais forem, daqui ou de fora. Em algum momento, eles entoaram loas para as patranhas eco-nmicas. Os que ainda tm reservas de pudor, para no ale-gar amnsia sbita, depois da derrocada parecem acometi-dos de uma modalidade bastante cmoda de esquizofrenia: dividiram racionalmente seus ressentimentos entre a fria e a autocomplacncia.

    A fria lanaram contra a poltica incompetente e cor-rupta, incorrigvel no mister de fabricar consensos populis-tas e de gastar acima de seus meios. A autocomplacncia os sabiches reservaram, como sempre, para seus prprios erros, avaliaes, aconselhamentos e previses grotescas. Tudo pago em moeda forte.

    Isso prova que Descartes foi generoso no Discurso do Mtodo, quando imaginou imprudentemente que ningum aspira mais bom senso do que possui.

    verdade que o cogito no seria capaz de vislumbrar que de suas entranhas fosse expelida, no nal do sculo XX, a Economics, este monstrum vel prodigium da metafsica ociden-tal, matraqueada nos tristes tpicos. O mau universalismo gera o pssimo particularismo como a banda podre de si mesmo. Na verso ps-moderna e globalizada, a dialtica iluminista do universal e do particular se torna sosticada-mente cruel. Sua especialidade o jogo do ilusionismo em que as subjetividades supostamente esclarecidas ou ilumi-

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    nadas so reduzidas a meras objetivaes de processos que no controlam.

    A crise brasileira e, permita-me dizer, latino-america-na, no fruto da banalidade do mal, mas dos males da banalidade. No se trata apenas da histria de erros cras-sos e fundamentais de poltica econmica. Ela revela, em sua crueldade essencial, em sua desumanidade absoluta, at que ponto, no mundo contemporneo, a pretenso do domnio das coisas e do controle dos processos sociais tor-nou-se, ao mesmo tempo, ilusria nos resultados e poderosa nos mtodos.

    ilusria porque, quando entra em colapso a coorde-nao do mercado, o indivduo reduzido a um cogulo monetrio e desamparado da reciprocidade solidria do grupo, da classe social, sobretudo das instituies republi-canas s dispe da violncia mimtica que comanda os estgios primitivos da vida social.

    poderosa porque as normas impessoais da nana obstruem a ao da cidadania ao transmutar as iluses em necessidades e as necessidades em iluses.

    S o ronco surdo das ruas, a radicalizao da democra-cia e de seus procedimentos ser capaz de realizar o proje-to moderno da garantia de uma vida boa e decente para a maioria. Reformas que regenerem a supremacia dos proce-dimentos polticos e administrativos constitudos sombra do Estado moderno.

    O Estado territorial, centralmente administrado, foi uma fora estabilizadora no processo de desenvolvimento capita-lista. Esta formao, diz Habermas, assegurou o quadro necessrio para que o sistema capitalista se desenvolvesse escala mundial. O Estado Nacional constitui a infra-estrutura necessria para a administrao juridicamente disciplinada, garantindo ao mesmo tempo o espao negativo de liberdade para a ao coletiva e individual... Estado Nacional e democra-cia nascem como criaturas gmeas da Revoluo Francesa.

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    O que est em jogo o conito entre os dois processos de universalizao que se propagam desde o Iluminismo: a busca da igualdade entre os homens e os povos e a criao e acumulao da riqueza atravs da expanso mercantil.

    Encerro com a utopia reformista radical de John Maynard Keynes, inscrita no prtico da morada que o homem do sculo XX pretendeu construir:

    Estou espera, em dias no muito remotos, da maior

    mudana que j ocorreu no mbito material da vida, para

    os seres humanos no seu conjunto. Vejo-nos livres para

    voltar a alguns dos mais seguros e tradicionais princpios

    da religio e da virtude tradicional de que a avareza

    um vcio, a usura uma contraveno, o amor ao dinheiro

    algo detestvel... Valorizemos novamente os ns acima dos

    meios e preferiremos o bem ao til. Honraremos os que

    nos ensinam a passar virtuosamente e bem a hora e o dia,

    as pessoas agradveis capazes de ter um prazer direto nas

    coisas, os lrios do campo que no mourejam nem am.

    (John Maynard Keynes As Possibilidades Econmicas de Nossos

    Netos 1930)

    Luiz Gonzaga Belluzzo professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp

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    Resumos / Abstracts

    ESPERANAS DO PASSADO

    LUIZ GONZAGA BELLUZZOCom base no discurso em que foi agraciado com o Prmio Juca Pato para Intelectual do Ano (2005), o autor faz um retrospecto da Economia e Poltica mundiais que, com os ltimos dias da Segunda Guerra, deram ensejo, no plano internacional, a uma poltica progressista por parte das potncias vitoriosas na luta contra o nazi-fascismo e, no Bra-sil, ao perodo desenvolvimentista. O retrospecto lhe per-mite fazer um contraste com as polticas ultraliberais que, em dcadas mais recentes, ao mesmo tempo que interrom-peram aqueles experimentos de uma nova ordem interna-cional, passaram a lanar sombras sobre o futuro de pases como o Brasil.

    Palavras-chave: Economia e Poltica Internacionais do Ps-Guerra; Desenvolvimentismo no Brasil; Globalizao; Esta-do Nacional.

    HOPES FROM THE PASTBased on his speech for the Juca Pato Award to Intellectual of the Year (2005), the author reviews the world Economy and Politics which, following the last days of the Second World War, have launched a progressive period in both the international arena

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    Resumos / Abstracts

    and Brazil. The review is meant to call attention to the ultraliberal policies which, in more recent decades, have broken those experiments in a new international order at the same time that have shadowed the future of countries like Brazil.

    Keywords: Post War International Economy and Politics; Developmentism in Brazil; Globalization; Nation-State.