ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY … · Deus justo na narrativa profética...
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Departamento de Teologia
ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY
HILLESUM A EMMANUEL LÉVINAS
Introdução
O presente texto se vale do pensamento do filósofo judeu franco-lituano
Emmanuel Lévinas e sua reflexão sobre a alteridade, o reconhecimento e a
responsabilidade. A partir de categorias propostas por Lévinas, o texto abordará
questões como ética, violência e memória. Aqui se pretende discutir a importância da
memória enquanto fonte, recurso “acessado” que fundamenta uma postura ética ou uma
quebra desta. O artigo vai transitar por este diálogo de perceber a memória com este
lugar de resistência e provocação, mas também a destruição da memória como recurso
de violência para eliminação do outro, não apenas na negação do reconhecimento, mas a
própria negação da possibilidade deste reconhecimento. Valer-se á portanto, de um
diálogo com importantes autores contemporâneos que tornaram a memória, de algum
modo, uma categoria relevante. Neste sentido, o trabalho atravessou a reflexão de
Lévinas com diálogos com Johan Baptist Metz, Walter Benjamin, Hannah, Primo Levi,
Anne Frank, entre outras e outros.
Para tanto, vale-se também da experiência da curta, mas intensa, vida da jovem
holandesa Etty Hillesum com sua vivência de solidariedade em um dos momentos mais
obscuros do século XX. Vem Etty Hillesum e preenche um momento de trevas da
humanidade com uma luz de esperança e justiça. Quando pensa consigo mesma que por
trás de um soldado alemão há um “rosto” que também sofre, ela transcende a relação
individualizada objetivante e recorre, talvez, a memória, tanto de um tempo pré-
hitlerista quanto a um tempo em que ela não viveu, mas que se sentiu impactada, que é
o Deus presente no Novo Testamento, o Cristo que a inspirava, a solidariedade de um
Deus justo na narrativa profética veterotestamentária. Por fim, todo texto intenciona
dialogar com o hoje, iluminando práticas (e políticas também) ameaçadoras da
destruição da memória, a “deportação” de um outro para o esquecimento da, e na,
sociedade.
Memória, Justiça e Poder
Uma boa maneira de começar esta conversa seria permitindo que memória e
fidelidade conversassem de maneira convergente. Poderíamos falar de uma “ética da
memória”? Talvez, Neste sentido, a ética não é “valorada” a partir de uma norma
extrínseca, que a ela deveria então normatizar, mas sim pela fidelidade à memória que
se preserva. A memória seria então o fundamento real capaz de nortear o agir, capaz de
retirar das ações, pensamentos e posicionamentos, a mecanicidade da resposta a um
conjunto de normas. A memória daria uma espécie de lastro situacional, não sendo ela
mesma a situação ou o lugar aonde se vai, mas sendo o recurso de acesso a este. A
fidelidade a memória é a fidelidade a um tempo que gerou o aprendizado, ponto
referencial a partir de onde se escolhe como canalizar a experiência proporcionada pelo
aprendizado. Vingança? Inclinação ao Perdão? Resistência? Lembrar para impedir a
repetição?
Vemos, por exemplo, a força que tem o apelo à memória no livro do
Deuteronômio. Parece que, à revelia do Decálogo, a exortação feita por YHWH aponta
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para uma forma de gratidão ao relacionamento que Ele estabeleceu com o povo
caminhante no deserto, já liberto da servidão no Egito. Uma gratidão que deveria ser
materializada na maneira como o Outro seria tratado. Porque no fim, é disso que se
trata: como nossa memória nos condiciona e influencia nossas ações para nos colocar
diante do outro. Em Êxodo 3, 7-8, temos a passagem referencial, em que YHWH se
dirige ao povo sofrido. Ele vê a miséria do povo, Ele ouve o grito, Ele desce para
libertar. Essa espécie de Kenose veterotestamentária, em que YHWH se solidariza com
o sofrimento de um povo e vai até ele, vira um marco. Tudo o que vem depois como
regra, normatiza a vida social e “litúrgica” do povo, mas é a fidelidade a essa memória,
a este momento que estará no cerne desta relação. Por isto então:
Amanhã, quando o teu filho te perguntar: “Que são estes testemunhos
e estatutos e normas que Iahweh nosso Deus nos ordenou?”, dirás ao
teu filho: “Nós éramos escravos do Faraó no Egito, mas Iahweh nos
fez sair do Egito com mão forte”. (Dt 6, 20-21)
Agora, o povo mostra sua fidelidade ao seu Deus, na medida em que honra,
não perde de vista, este ponto de referência. Veja, por exemplo, que após o sétimo ano
de serviço, se um escravo quisesse partir, o hebreu deveria deixá-lo partir, mas não sem
nada, não de “mãos vazias”. Era preciso provê-lo do que fosse necessário para que ele
pudesse reconstruir a sua vida, de maneira autônoma e com dignidade. E por que razão
isto deveria ser feito, se não havia qualquer prescrição “legal” que justificasse isso?
Porque a memória lhe mostraria que “foste escravo na terra do Egito, e que YHWH, teu
Deus, te resgatou” (Dt 15, 12-15). Aqui entra em evidência a força do verbo hebraico
zachar, que significa “lembrar”, “recordar”. Mas, aqui, não é pura e simplesmente
lembrar, mas uma lembrança que exige, por conta disso, uma fidelidade, um
compromisso ao que a memória reporta. Quando o Deuteronômio introduz o zachar
como exigência de YHWH, ele o introduz com a força de rememorar o povo a tradição
do êxodo (que inclui também, evidentemente, desade a opressão e injustiça que
sofreram no Egito, até o percurso no deserto).
Da mesma maneira, o direito do estrangeiro e do órfão deveria ser assegurado.
Mais do que isso, ele não deveria ser tocado, pervertido, maculado. Estrangeiros, órfãos
e viúvas, categorias de fragilidade que YHWH fazia questão de manter em evidência e
alvo permanente do cuidado e da preocupação do povo hebreu.
Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão, nem tomarás como
penhor a roupa da viúva. Recorda que foste escravo na terra do Egito,
e que Iahweh teu Deus de lá te resgatou. É por isso que eu te ordeno
agir deste modo. (Dt 24,17-18)
Por que seria essa verdadeira insistência na observação e no cumprimento desta
ação? “Escreve isso para memória em um livro”, diz YHWH a Moisés na narrativa
contida em Êxodo 17, 14. É a memória como este “articulador de justiça”.
Assim entende também Paul Ricoeur. “Somos devedores de parte do que
somos aos que nos precederam”, diz ele em seu clássico “A memória, a história, o
esquecimento”. E completa, “O dever de memória não se limita a guardar o rastro
material”1. No “dever de memória” está então o compromisso e a fidelidade para com o
que o legado da memória evoca. O próprio Ricoeur vai chamar a atenção para o fato de
que a expressão “Deus de nossos pais”, tão presente nos escritos veterotestamentários, é
1 RICOEUR, Paul, A memória, a história, o esquecimento, Campinas-SP, Editora Unicamp, 2007, pág. 101
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capaz de testemunhar o caráter histórico da revelação bíblica2. Não é uma narrativa
etérea, desencarnada. Tal revelação perpassa a história, se impregna dos fatos que
marcam a vivência experiencial, sensível, na terra por onde passa. Talvez por isso
Ricoeur concorde que o dever de memória é o “dever de fazer justiça”. Justiça que não é
“garantida” pela heteronomia da lei, mas a partir da autonomia que guarda a memória e
é fiel a ela.
Tal referencial está presente em vários marcos na história contemporânea, e a
América Latina a conheceu na versão, por exemplo, de uma ditadura militar que se
espalhou como um câncer pelo continente. Poucos países se livraram desta dor, que
marcou a memória de seus cidadãos. Com profunda reflexão sobre a memória, a
historiadora chilena Graciela Rubio nos instrui:
(...) En el caso particular de nuestras sociedades latinoamericanas, las
ultimas experiencias dictatoriales del Cono Sur, han generado una
apelación a las memorias de la represión y muerte dadas las
características nunca antes vistas de los sistemas totalitários que se
apoderaron del poder asumiendo los dictados de la doctrina de
Seguridad Nacional3.
No Chile, a “Comisión de Verdad y Reconciliación” equivalem a “Comissão
da Verdade” no Brasil. Ambas as comissões são esforços de seus respectivos governos
de ter na memória um marco referencial para lidar com o período de trevas que foi a
ditadura militar em seus países. São apenas dois exemplos, duas citações, de um rastro
de morte e de dor e tortura que percorreu toda a América Latina e deixou profundas
feridas. Em todos estes casos, é a fidelidade a memória que permite “acessar” o estrago
do passado, para “moldar” uma atualidade mais segura. É talvez um aprendizado com a
relação que os judeus ao redor do mundo criaram com a memória da Shoah
(Holocausto). Os judeus não se permitem esquecer.
Isso para lembrar como a destruição da memória, pode ser também uma das
mais implacáveis formas de violência. Evidentemente, ela não é apenas a destruição da
permanência, mas também a destruição da continuidade e a interdição da citação. Por
isso talvez o apelo à memória seja capaz de subverter as construções do passado feitas
por aqueles que destroem a memória do vencido, do oprimido. E aqui estão juntos
Walter Benjamin, Perre Nora e também Emmanuel Lévinas. Para Benjamin, há de se
tratar da “reconstrução redentora do passado”, a Bild der Erlösung4. Para Nora, são “os
lugares de memória”, enquanto para Lévinas, comprometer a destruição da memória
está associada ao mais alto grau de violência que destrói a subjetividade, o
reconhecimento do outro e, junto, a possibilidade deste reconhecimento em qualquer
momento.
Cito aqui, como ilustração, a reflexão feita por Lévinas em seu “Quatro
leituras talmúdicas”, onde ele nos lembra a história protagonizada pelo rei Davi,
narrada em 2Samuel, no capítulo 21. Ali ele reconta a história em que Israel vive três
anos consecutivos de fome, e Davi ao consultar a Deus a razão de tal mal, recebe Dele
como resposta: “Há sangue em Saul e na sua família, porque ele levou à morte os
2 RICOEUR, Paul, A memória, a história, o esquecimento, Campinas-SP, Editora Unicamp, 2007, pág. 410
3 VELÁSQUEZ, Alejo Vargas (coord.), Seguridad en democracia: un reto a la violencia en América Latina,
Buenons Aires, CLACSO, 2010, pág. 316 4 LÖWY, Michael, Redenção e utopia: judaísmo libertário na Europa Central, São Paulo, Companhia das
Letras, 1989, pág. 56
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gibeonitas”. Davi procura os gibeonitas, eles dizem o que aconteceu e exigem vingança,
punindo com morte os descendentes de Saul. Mas o foco de Lévinas está não nessa
vingança, mas no fato de que a fome em Israel só chega ao fim quando Davi dá aos
filhos de Rispa (ou Resfa) um enterro digno. Os corpos de Armoni e Meribaal, haviam
sido deixados expostos, e Rispa não saiu de lá por dias, sol e chuva, zelou por eles. Davi
teve de reparar seu desprezo, sair da impessoalidade do seu poder, para encarar o rosto
de Rispa e lhe atender o desejo.
Lévinas, recoreendo a narrativa talmúdica, diz que o próprio Davi disse a si
mesmo na sua reflexão: “A infelicidade não depende dos costumes; deve haver uma
falta política, uma injustiça que não depende de pessoas particulares”5. Esta injustiça
que não depende de pessoas particulares e não é contra pessoas particulares, é, talvez,
esta destruição do outro não apenas como um inimigo que se faz pessoal, mas como um
inimigo que disputa existência, memória, ocupação, lugar.
Recentemente, reportagem de um importante jornal brasileiro, de São Paulo,
publicou que, só em São Paulo, houve mais de 3.000 mortos enterrados como
indigentes, mesmo as pessoas possuindo algum tipo de identificação quando morreram.
Pura burocracia. O Rio de Janeiro teve mais de 6.000 desaparecidos entre 2012 e 2013,
onde o caso do pedreiro Amarildo de Souza tornou-se o mais famoso, pois desapareceu
pelas mãos do estado, sob a expansão de sua força, a indiferença ao apelo do rosto
anônimo de um simples pedreiro. Cotidianamente, os relatos de mortes de vítimas da
violência nas periferias das capitais, invariavelmente possui roteiros semelhantes de
desaparecidos, jovens mortos, homens e mulheres sem nome e sem rostos, números em
estatísticas de aumento da violência.
Memória e Holocoausto: lembranças para um legado contemporâneo.
Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando a noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão
que morre por um sim ou por um não
pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar
vazios os olhos, frio o ventre,
5 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, 57
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como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-na aos seus filhos.6
É com este lindo e provocante texto poético que o escritor italiano Primo Levi
abre seu clássico livro “É isto um homem?”. Livro que se tornara um referencial na
memória e no resgate, daqueles que sobreviveram, das reflexões fruto das lembranças
dolorosas do período nazista, para judeus presos e deportados para os campos de
extermínio e de concentração. É conhecido o fato de que Primo Levi fora preso com 650
judeus detidos e fora um dos únicos três sobreviventes aos meses de horror em meio ao
regime hitlerista. As memórias de Levi somam-se a de tantos famosos como Anne
Frank e Etty Hillesum, e a de tantos anônimos, mas que passaram pelos mesmos
horrores. Aqui é o recurso da memória que se torna uma espécie de divisor de águas,
para fundamentar sem dúvida novas formas de comportamento. Já falamos de forma
resumida do Holocausto, a Shoá vivida pelos judeus.
Segundo Ariel Finguerman7, o termo “holocausto” deriva da palavra hebraica
“olá”, um tipo de oferenda a Deus, que era, evidentemente, queimada. A palavra
“holocausto” chega a nós a partir da tradução da Bíblia hebraica para a o grego, na
Septuaginta, onde a palavra “olá” foi traduzida, segundo Finguerman, de forma acertada
como “holokaustos”, que é a junção das palavras holos (inteiro) e kaustos (queimado).
Mas o próprio autor coloca uma questão, que foi o grande centro do debate entre os
pensadores judeus: “Se os judeus foram um sacrifício queimado, implicitamente os
nazistas seriam uma espécie de sacerdotes, envolvidos numa missão divina. Também
implica que existiu algum pecado do povo judeu que motivou o massacre”8. Daí então
que surge a preferência por um termo alternativo, que é a Shoá. Tal termo, Finguerman
nos diz que seu significado, ao falar de destruição total que acomete um indivíduo ou o
coletivo de forma repentina e inesperada, provocando o choque, seria muito mais
coerente com a maneira como os judeus olham para sua situação como vítimas do
nazismo.
Sendo assim, o que Primo Levi consegue com sua memória, quando do
lançamento de “É isto um homem” é fortalecer, através da memória de um sobrevivente,
que o todo o horror vivenciado no holocausto deveria ter algum tipo de “valor
instrumental” para as gerações futuras, como um aviso do que jamais deveria se repetir.
Por outro lado é um exercício em nome da preservação da memória.
(...) O livro já nasceu nos dias do Campo. A necessidade de contar
“aos outros”, de tornar “os outros” participantes, alcançou entre nós,
6 LEVI, Primo, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pág. 9
7 FINGUERMAN, Ariel. A Teologia do Holocausto: como os pensadores judeus e cristãos explicaram
Auschwitz, São Paulo, Paulus, 2012 8 Idem, pág. 12
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antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento,
até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro
foi escrito para satisfazer esta necessidade em primeiro lugar,
portanto, com a finalidade de libertação interior. (...) Acho
desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de
imaginação.9
Com destaque para a afirmação de que é “desnecessário acrescentar que
nenhum episódio foi fruto de imaginação”, e sim, verdadeira e pura memória,
balizadora de uma reflexão às condições tais que o um ser humano foi submetido.
O impacto do Holocausto na vida dos judeus gerou evidentemente muita
reflexão, interpretações, e, claro, releituras de uma tragédia que aponta não apenas para
um grupo humano específico mas aponta ameaças para toda a humanidade no sentido
do risco de sua ampliação e de um possível “sequestro da realidade” pela mesma
ideologia avassaladora. Entre as muitas “explicações” que dessem algum sentido ao
holocausto, uma das abordagens presentes na releitura, sempre dialogando com a
própria narrativa bíblica é do Deus que resolve ocultar a sua face. É o ocultamento da
face de Deus, que deixa o povo veterotestamentário à mercê de seus inimigos, sujeitos
às piores e mais humilhantes derrotas. O termo, em hebraico “Hester Panim”, faz
referência aos versículos 17 e 18 do capítulo 31 do livro de Deuteronômio10
, e tem o
próprio YWHW expondo o que aconteceria mediante a quebra de aliança do povo com
ele. Mas, segundo Finguerman, também está presente uma atitude de ocultamento da
face de Deus que parece não ter motivo aparente11
, o que causaria o espanto, o conflito,
a dúvida e angústias ao povo. Tal embate entre YHWH e o seu povo, ou o seu servo que
se julga fiel, está presente, por exemplo, de maneira explícita, no Salmos 44,25, em que
o salmista diz: “Por que escondes tua face, esquecendo nossa opressão e miséria”12
.
Desta mesma maneira, Auschwitz tornou-se também uma desconfortável
memória e referencial para o ocidente. Mas para os judeus em particular, exigiu uma
verdadeira reviravolta, num esforço de (re)pensar a própria Teologia e (re)pensar “de
que Deus” estavam falando e “com que Deus” estavam contando. Mas uma virada
importante foi considerar a historicidade da própria vida, a história onde a vida se dá,
onde os fatos se dão e se impõem com conflitos, embates e lutas permanentes, em que
homens e mulheres se deparam com sua sobrevivência e trajetória que contempla
conquistas, vitórias, permanências, mas também instabilidades, fatalidade e riscos.
Auschwitz estava no campo do risco e da fatalidade, mais do que pelo ocultamento da
face de Deus, mas tanto pelo próprio rumo da história. Nesta condição se faz pertinente
a incômoda provocação de Johann Baptist Metz:
Há um Deus, ao qual se pode adorar dando as costas a semelhante
catástrofe? E pode uma teologia, digna de tal nome, seguir,
impassível, mediante esta catástrofe, continuar falando no poder de
9 LEVI, Primo, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pág. 8
10 “Sim, naquele dia eu lhes ocultarei completamente a minha face, por causa de todo o mal que ele tiver
feito, voltando-se para outros deuses.” Deuternômio 31,18 11
FINGUERMAN, Ariel. A Teologia do Holocausto: como os pensadores judeus e cristãos explicaram Auschwitz, São Paulo, Paulus, 2012, pág. 39 12
Também no Salmos 13,2b diz: “Até quando esconderás de mim a tua face?”
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Deus e do homem, como se diante de um desastre como esse não teria
de verificar a inocência presumida de nossas palavras humanas?13
Em “Memoria Passionis”, Metz gasta grande parte de sua escrita para refletir
exatamente sobre essa perspectiva de Deus que não pode ser pensado, indiferente a
história, ao sofrimento, ás catástrofes que se aplacam sobre as vidas humanas. Não por
acaso, a primeira parte desta importante obra pode ser traduzida como “Em meio aos
sofrimentos e histórias das catástrofes do nosso tempo”, e o parágrafo primeiro segue
com o título “Memória de Deus na história do sofrimento no nosso mundo”. O
sofrimento, a catástrofe, as lutas, não são partes distintas ou casos isolados na trajetória
humana, mas parte constitutiva inclusive. A proposta de Metz nos ajuda a compreender
a memória como este registro capaz de orientar, nortear rumos a partir de seu acesso. A
memória neste caso suscita mais perguntas do que oferece respostas. Suas perguntas
como que “cogita” respostas, provoca para onde se deve seguir.
Etty Hillesum, a jovem holandesa que contraria as expectativas de seu tempo
ao não se eximir de enfrentar o temor da Guerra, da opressão e do Holocausto, ainda
que não tivesse sua dimensão total, parece ter compreendido pela via de Metz. Seus
diários nos dão conta de uma jovem destemida que não gastou seu tempo direcionando
seu questionamento para Deus, mas refletindo sobre a própria humanidade, parecia
compreender que sofrimento, conflito e perdão estavam entre os dilemas humanos a
serem resolvidos entre nós mesmos. Escreve ela em seu diário:
E Deus não tem que nos prestar conta pelo insensato dano que
causamos uns aos outros. Nós temos que prestar contas a Ele! Já morri
mil mortes em mil campos de concentração. Tenho conhecimento de
tudo e não fico amedrontada pelas últimas notícias. De uma forma ou
de outra, sei de tudo. E mesmo assim acho a vida bela e cheia de
significação. O tempo todo14
.
De maneira que parece as vezes paradoxal e indiferente, a fala de Hillesum
demonstra sobretudo sua força interior, que lhe permitia transitar pelo mundo de horror
sem mascará-lo, sem negar a sua dor, mas não se omitindo diante do desafio de encará-
lo, não permitindo que ele pautasse sua vida, mas impondo sobre o horror sua
resistência. Nessa força mística, ela permitia-se inspirar sua memória com o que estava
para além do conflito. “Meu último tesouro são as aves do céu e os lírios dos campos
em Mateus 6:33”, dizia ela, em pleno 1942. Suas orações e espiritualidade pareciam
intangíveis em meio à Guerra. Mas não de uma maneira alienada e hostil.
A isto Metz chamaria de “a mística do sofrimento em razão de Deus”15
. Ele
identifica tal mística nas tradições orantes sobretudo em Jó, nos Salmos, em
Lamentações e nos livros Proféticos. É uma linguagem de sofrimento e crise, que não
colore o mundo e ao mesmo tempo não o nega ou dele se esconde. Também diante deste
mundo não se entrega “passivamente”. Olha pra ele, este olhar, este “enfrentamento”
suscita perguntas, ao invés de especular “respostas consoladoras”. Linguagem e
13 METZ, Johann Baptist, Memoria Passionis: ein provozierendes Gedächtnis in pluralistischer Gesellschaft, Freiburg im Breisgau, Herder, 2011, pág. 38
14 HILLESUM, Etty, Uma vida interrompida: os diários de Etty Hillesum, Rio de Janeiro, Editora Record,
1981, pág. 154 15
METZ, Johann Baptist, Memoria Passionis: ein provozierendes Gedächtnis in pluralistischer Gesellschaft, Freiburg im Breisgau, Herder, 2011, pág. 24
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perguntas nascem do fato de se estar em máximo perigo16
. Torna-se, para Metz, a
“apaixonada pergunta (leidenschaftliche Rückfrage)” dirigida a Deus, cheia então de
tensa expectativa17
. Para Metz, está presente na mística de Jesus, na medida em que “o
grito de Jesus na cruz, é o grito deste abandonado por Deus, que nunca, por sua vez,
havia abandonado o seu Deus”18
.
Jürgen Moltmann segue Metz nesta reflexão, e, com ele, esta mística do
sofrimento em razão de Deus aproxima o Cristo do sofrimento cotidiano, dos riscos que
ameaçam a vida fragilizada. Neste sentido, quando Jesus lembra estes corpos nus,
carentes de vestes – as vestes não são suas roupas, são seus cuidados, seu corpo que
(re)veste outros corpos – ele se reporta à ele mesmo. Para Moltmann, a gente só entende
a diferença da morte de Jesus das outras cruzes na história do sofrimento humano
quando vemos seu abandono por parte de Deus e Pai. “Jesus”, diz Moltmann, “morreu
em singular abandono da parte de Deus”19
. É a força de uma contradição que nos agride.
Todos os dias, a vida nua destes corpos violados pela pobreza e pela negação do
reconhecimento pede socorro. Um drama que transita entre a esperança e o abandono,
como o Jesus crucificado vivencia. Nas palavras de Moltmann:
Com as palavras “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
fica evidente que não é apenas a existência de Jesus que está em jogo,
mas a sua existência teológica, toda sua anunciação de Deus. Por isso,
em última análise, o que está em jogo com seu abandono é a divindade
de seu Deus e a paternidade de seu Pai, que Jesus apresentou à
humanidade.20
Para que serviria, ou que papel desempenharia então esta mística do sofrimento
em razão de Deus? Metz discorda que o Evangelho seja uma forma de “caminho
catalisador”, que ajude a pessoa a pura e simplesmente encontrar-se a si mesma.
Também discorda que tal mística visa acrescentar à nossa experiência cotidiana do
sofrimento uma experiência mística do sofrimento, mas, sobretudo, para “evitar que tal
experiência do sofrimento derive na desesperança, para não permitir que cai no
esquecimento”21
. Seria o esquecimento a derrota da memória.
O que faz Primo Levi com “É isto um homem”, ainda que Deus não esteja
presente nem citado em sua memória, é marcar, a partir do sofrimento, um lugar. São
vários os seus questionamentos sobre o que ele mesmo conhecia da condição humana e
da capacidade humana, tanto de suportar o sofrimento, quanto de imputar sobre o outro,
e outros todo tipo de sofrimento e formas de dominação e eliminação. Diz ele a certa
altura:
Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não
tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem.
(...) Chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível22
16
Idem. 17
Idem. 18
Idem. 19
MOLTMANN, Jürgen, O Deus crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, Santo André-SP, Academia Cristã, 2014, pág. 192 20
Idem, pág. 194 21
METZ, Johann Baptist, Memoria Passionis: ein provozierendes Gedächtnis in pluralistischer Gesellschaft, Freiburg im Breisgau, Herder, 2011, pág. 25 22
LEVI, Primo, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pág. 32
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Levi é o emblemático de uma grande quantidade de sobreviventes, cujas
memórias registradas foram necessárias para que, não apenas Deus, mas o homem e a
humanidade fossem revistos, a partir do problema Holocausto. Mas não apenas ele.
Apesar da diferença do nível de descrição, o famoso diário da menina alemã, radicada
na Holanda, Anne Frank, também revela e registra as angústias de quem narrou o
mundo e a dor da humanidade a partir de um esconderijo. A Leidensgechichte (história
do sofrimento) descrito via o olhar infantil e sobrevivência, por dois anos, em um
mundo que pouco passava de quatro paredes.
Às vezes, os canhões disparam a noite, entre uma e quatro horas. Eu
nunca percebo antes de acontecer, mas de repente me vejo de pé ao
lado da cama, por puro costume. Há vezes em que estou tendo um
sonho tão profundo, que só quando o sonho termina percebo que os
tiros terminaram e continuei quieta no quarto23
.
A memória de Levi, de Frank, de Hillesum e de tantos outros e outras que
experimentaram o sofrimento da Guerra e conviveram com a dureza do nazismo e a
realidade do Holocausto é forma um legado referencial para que, concordando com
Metz, tanto não se caia no esquecimento, quanto estejamos perdidos na desesperança.
Neste sentido é que talvez “violentar a memória” do outro, seria imputar sobre não
apenas a destruição, mas o desaparecimento, a perda da identidade e relevância que há
com a história, a realidade, o contexto, o direito a construir narrativas. Comumente, a
história nos é contada a partir de um olhar e uma perspectiva que muitas vezes venceu a
“batalha hermenêutica”, tomou o “direito do dito”.
Memória e resistência
Mas tudo fora deixado sob a chuva: as chibatas com chumbos, as
correias de couro duro, a forca (na verdade mais impressionante que
um grande mastro) e o bastão recurvado que se metia na garganta dos
que tentavam engolir a língua, e o grande balde de água do mar em
que os marinheiros mergulhavam a cabeça quando subiam sufocados
das profundezas do porão, e o ferro para marcar a fogo, garfo
implacável para aqueles que recusavam o pão mofado ou os biscoitos
regados a salmoura, e a rede pela qual eram descidos os escravos, a
cada mês, no grande banho de mar: rede para protegê-los dos tubarões
ou a tentação de morrer.24
Em estilo de novela ficcional, o livro “O quarto século”, do escritor antilhano
(nascido na pequena Martinica) Édouard Glissant, é também forte narrativa de outra
marcante violência à memória, consequentemente, à existência e à preservação, na
história da humanidade: a escravidão negra. A narrativa de Glissant nos conduz pelos
diálogos e pelas vidas de papa Longoué, descendente de uma linhagem negra rebelde,
insubmissa, guerreira, e o jovem Mathieu, um Béluse, outra vertente negra, trazido
como gado para as Antilhas, negros para servirem submissos, os serviços domésticos,
para o puro uso, dóceis aos seus senhores. Nesta relação, aproximação e diálogos cheios
de conflitos, acompanhamos paralelas histórias de extermínio, de dominação, de
violência, ilustração ficcional que reporta a mais dura verdade vivenciada pelos negros 23
FRANK, Anne, O diário de Anne Frank, Rio de Janeiro, BestBolso, 2012, pág. 132-133 24
GLISSANT, Édouard, O quarto século, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1986, pág. 28
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africanos trazidos para as colônias nas Américas. Lirismo e contação na mais honrosa
tradição africana aportam, neste romance, criatividade e crueza de relatos que
referenciam as torturas da captura e da opressão negra, como quando Longoué diz que
na verdade ele queria engolir sua própria língua (prática comum de suicídio entre os
negros que preferiam a morte ao regime de escravidão), pois era demais para suportar, e
que após dois dias e três noites na podridão, era preciso morrer25
.
Com a captura e escravidão do negro africano, está também a destruição de sua
memória e, principalmente, do esquecimento no imaginário coletivo da sociedade
ocidental do seu sofrimento na mesma proporção de espanto, comoção e mobilização
que envolveu, por exemplo o Holocausto. E, de fato, toda a história da opressão,
escravidão e domínio da população negra ao longo da história, não seria absolutamente
a mesma sem a conivência (e participação) da Igreja. Na história das colonizações, para
aliviar o peso da escravidão, os negros vencidos, capturados no continente africano,
precisavam ser batizados ao serem jogados nas embarcações que os levariam aos
destinos coloniais. Aqui está a humanização condicionante do cristianismo europeu: os
negros escravizados só eram reconhecidos como humanos, e, portanto, com alguma
possibilidade de serem ao menos considerados como tal (mesmo para escravizar)
mediante a condição de terem recebido devidamente o que Tomás de Aquino cunhou de
res sacramentum do Batismo, ou seja, a santificação, a inserção na realidade do reino de
Deus. O batismo, neste caso, garantiria para o negro capturado um lugar ao céu lá em
cima, ao morrer, enquanto ele experimentava o inferno aqui em baixo, em vida. Como
bem disse Louis Sala-Molins, ao analisar o Code Noir (Código Negro, leis que regiam o
regime escravagista nas colônias francesas e influenciou tantas outras de outras
metrópoles), o negro era canonicamente um homem e juridicamente uma mercadoria26
.
No Brasil, por exemplo, já no século XIX, o Rio de Janeiro tem a maior
população escrava urbana das Américas. Essa perturbação fará o Brasil adotar o que a
perspectiva liberal tem de mais “valioso” para a gestão da sociedade: a política penal
como instrumento de controle social. Portanto percebe-se que, aqui, a abolição da
escravidão em 1888 é precedida do nascimento do primeiro Código Penal do Império
em 1830, como que já preparando o caminho para conter a manutenção da ordem na
cidade, e é aprofundada logo em seguida com o novo Código, em 1890, onde o corpo
negro é personagem central, alvo maior do controle, da repressão e da punição que
marca a gestão pública.
Enquanto resistiam, da forma possível, contra a escravidão a que eram
submetidos e lutavam por suas vidas, os negros no continente americano, vindos do
continente africano, iam vendo também sua memória sendo apagada junto com o valor
de suas vidas e humanidade. Por séculos, a contribuição do povo africano, em todos os
âmbitos da vida social ficou completamente invisibilizada, desconhecida e restrita ao
universo do primitivo e do exotismo.
Neste sentido, é apagado da memória histórica ocidental, por exemplo, o que
hoje se reconhece como genocídio do povo herero e nama, habitantes do território da
Namíbia. O massacre aconteceu entre 1904 e 1908, e é tido como uma espécie de ensaio
dos recursos de extermínio utilizados pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda
Guerra Mundial. Há inclusive uma carta escrita pelo próprio general Lothar Von Trotha,
25
Idem, pág. 139 26
FIGUEIREDO, Eurídice, Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana, Niterói-RJ, EdUFF, 1998, pág. 15
Departamento de Teologia
dando uma ordem explícita de extermínio para toda a população herera e nama
residentes no território de colônia alemã. Para o extermínio do povo pertencente ao
território, os alemães utilizaram, entre outras artimanhas, o envenenamento de poços, o
que permitiu matar dezenas de milhares daquele povo negro. Também é na Namíbia que
se tem notícia das primeiras experiências do que mais tarde seriam oficialmente os
“campos de concentração”. Hereros e namas já eram povos negros colonizados por
holandeses protestantes, e, desta forma, eram em sua maioria alfabetizados, as vezes em
mais de um idioma, além do afrikâner, que se tornou uma espécie de “holandês local”.
Em meio à colonização sócio-cultural protestante e a investida de extermínio
total pelas mãos de Trotha, fato é que a memória negra africana, herera e nama foi tão
violentada quanto os corpos do povo. Cai então a história do sofrimento (voltamos ao
conceito da Leidensgeschichte de Metz) do povo da Namíbia no esquecimento, deixa de
existir.
Foi contra isso que se “insurgiu” o movimento da Teologia Negra, surgida nos
Estados Unidos em fins da década de 60, puxada sobretudo pela influência do teólogo e
pastor, negro, metodista James H. Cone. Cone repensa toda a leitura teológica
compromissada com uma hermenêutica hegemônica, que ele não nega, mas considera
limitada para dialogar com a realidade dos negros americanos e sua história peculiar de
exploração, escravidão e o racismo corroborado pela segregação. Pensar, por exemplo,
que em 1962, o exército precisa escoltar a entrada do jovem negro James Meredith na
Universidade do Mississipi, para cumprir uma ordem da suprema corte, que acatou o
pedido do direito de ingressar naquela universidade. Para Cone, a teologia comunicada
pelos teólogos brancos americanos não veria nisso um fato relevante, ou não veria no
estado, por conta disso, a postura de um opressor que deveria ser enfrentado e
denunciado. Para eles, segundo Cone, era possível ignorar isso e seguir pregando
tranquilamente sobre outros temas “mais espirituais da Bíblia”.
Porque os teólogos brancos vivem numa sociedade que é
racista, a opressão do povo negro não ocupa um importante
item na agenda teológica deles (...). Porque os teólogos brancos
são bem alimentados e falam a favor de um povo que controla
os meios de produção, o problema da fome não é uma questão
teológica para eles. Essa é a razão pela qual eles gastam mais
tempo debatendo a relação entre o Jesus da história e o Cristo
da fé do que investigando as profundezas da ordem dada por
Jesus para alimentar os pobres.27
Em outras palavras, a narrativa bíblica branca, a hermenêutica empreendida
pelos brancos seria incapaz de abrir espaço para a memória do sofrimento em os negros
viveriam, num ambiente da segregação, mas também num ambiente de resistência. Em
1955 acontece o famoso caso em que Rosa Parks, negra do Alabama, se recusa a se
levantar para dar lugar a um branco, em um ônibus no centro Montgmonery. Por ter se
recusado, o ônibus é parado e a polícia é chamada para obrigar Rosa Parks a se levantar.
Por sua recusa, ela é presa.
O caso de Rosa Parks é o estopim de um verdadeiro movimento de resistência,
um grito de basta à política de segregação. Também inspira o histórico boicote dos
negros, em Montgmoery, que por mais de um ano, se recusaram a andar de ônibus na
cidade, o que causou uma forte pressão sobre o governo até a declaração de 27
CONE, James H. O Deus dos Oprimidos. São Paulo. Edições Paulinas. 1985. pág.62-63
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inconstitucionalidade da segregação no Estado. Mas os negros americanos possuía
também uma importante pertença religiosa. A grande maioria deles integravam
comunidades evangélicas, seu grande refúgio, lugar de acolhida e partilha do sofrimento
cotidiano do racismo e da segregação. No contexto em questão, as igrejas assumem de
vez a iniciativa e a luta dos negros nos Estados Unidos. Tendo como seu nome principal
e mais referencial o pastor batista Martin Luther King Jr. E elas eram majoritariamente
metodistas e batistas. Já que outras históricas como Presbiterianas e Luteranas ou
Anglicanas ainda tinham forte predomínio branco mesmo no sul, batistas e metodistas
agregaram a maior parte do povo negro, suas danças, seus cantos, o gospel e o blues
como trilha sonora de um período de lutas. Por isso elas eram, inclusive, “alvos das
bombas e das armas racistas”28
.
Desta forma então, ainda podemos perceber, num olhar daqui para trás, o
quanto a tentativa da destruição e da eliminação do outro, tende a usar como recurso ou
como consequência a destruição da memória. Cotidianamente, há não apenas de uma
tentativa de controle e contenção social, mas de silenciar a memória. Pobres e
periféricos, vão sendo não apenas silenciados, mas desconstruídos na existência de sua
memória e a contribuição da mesma para a sociedade. Aqui importa, sem dúvida, a
necessidade de se considerar o papel do discurso midiática, cuja força é usada inclusive
para não apenas silenciar as vozes e impor narrativas que se sobrepõem a memória,
como silenciar as tentativas de protagonismos narrativos. É preciso, portanto, insistir na
reflexão sobre o poder do discurso, que constrói sujeitos, objetivando o outro. Aqui,
atenção em destaque para os meios de comunicação, com a televisão e a mídia impressa
em particular. Como destaca a socióloga brasileira Vera Malaguti, os meios de
comunicação de massa são fundamentais para o exercício de poder de todo o sistema
penal29
. O medo e a insegurança vão criando personificações, sujeitos sem-rostos, que
tendem a “justificar”, segundo a própria Malaguti, a amputação deste ser coletivo do
corpo social.
Tal construção de estereótipos tende a potencializar a “fragmentação de
narrativas”, até que tal fragmentação impossibilite a reivindicação de uma memória, ou
desenvolvimento dela. Tal construção de estereótipos dita o tom, e sob a força do
estigma, determina-se quem deve ser esquecido e cuja história e vínculo social são
apagados. Uma espécie de “imanência sem lastro”. É o caso dos territórios onde a
imagem está associada (leia-se “construída”) à violência, à marginalidade e à droga.
Bem como pensar no grupo social associado ao universo da droga, como bem afirmou
Lola Anyar de Castro:
Os estereótipos, estreitamente vinculados aos fins da dominação
interna, tentem a associar imagens específicas de tipos de cidadãos na
rejeição visceral da droga. Assim, os estudantes contestadores, os
desempregados, os trabalhadores relapsos, todos os potenciais
portadores de valores políticos diferentes dos dominantes, constituem
imagens frequentemente vinculados ao vício e ao delito.30
Cria-se desta maneira um público específico cuja memória não importa, logo,
história e historicidade, a geschichte não interessa. E muito menos a história de seu 28
WILMORE, Gayraud S. e CONE, James H. Teologia Negra. São Paulo. Paulinas. 1986. pág.258 29 BATISTA, Vera Malaguti, O medo na cidade do Rio de Janeiro, dois tempos de uma história, Rio de
Janeiro, Revan, 2003, pg. 33
30 CASTRO, Lola Anyar de, Criminologia da libertação, Rio de Janeiro, Revan, 2005, pág. 176-177
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sofrimento importa. Corroborando Lola Anyar, mas direcionando a reflexão para a
realidade das favelas cariocas, os pesquisadores Maria Helena Moreira Alves e Philip
Evanson afirmam:
Na década de 1990, essas comunidades passaram a ser cada vez mais
identificadas com o crime e a violência, quase excluídas de qualquer
outra caracterização. A mídia retratava a violência da guerra entre as
facções ou com a polícia como se os homicídios e o tráfico fossem
endêmicos nas favelas. Em sua versão mais simplista, os meios de
comunicação construíam uma narrativa segundo a qual essas
comunidades estariam infestadas de criminosos e dominadas por
bandidos bem armados, em contraste com o restante da sociedade,
localizado na parte de baixo da cidade do Rio, que zelaria pelas leis31
.
Não é difícil compreender como tal abordagem impregna o imaginário
coletivo, fortalecendo o estigma que legitima não apenas a repressão cotidiana e o
controle social de um grupo e classe social específicos, mas também o “deslocamento”
deste mesmo grupo e desta mesma classe para a categoria do não reconhecimento, é a
negação da afirmação da periferia e do pobre como potência, como lugares de
construções de narrativas, “lugares de memória”, como nos diria Pierre Norat.
Para Vera Malaguti, esta tendência da construção e fortalecimento de estigmas
que encontra tão fácil adesão entre nós poderia ser explicada, entre outras razões, pela
herança jurídico-penal da inquisição ibérica, que sobrevive como uma das marcas de um
modelo de Estado que permanece forte e expressivo entre nós até os dias de hoje32
. E
talvez isso esteja no germe da nossa convivência “pacífica” e indiferente com
extermínios, violações, descasos e encarceramentos em grande escala, ações
empreendidas no cotidiano das periferias das grandes cidades, que ao fragmentarem
geo-espacialmente violências e violações, dificultam a visibilidade (“casos isolados”),
facilitam o esquecimento e a destruição da memória.
Da memória e da narrativa dos pobres
“O sentido da história, não é evidente em sua superfície. Para descobrir seu
sentido, é necessário explorar a profundidade dos eventos. Nos documentos deixados
por qualquer história sempre existem interesses que ocultam o sentido dos
acontecimentos”, diz o teólogo Jorge Pixley, em “A história de Israel a partir dos
pobres”33
. Entender que a compreensão da história não pode se resumir ao que está
dado, como acabado e consensual, e que, quase sempre, a história “oficial”. Assim
como propôs Pixley, em sua investigação pela perspectiva do pobre na Bíblia,
permanece necessário então perceber as narrativas que ajudem a reconhecer a história
contada a partir de baixo, dos marginalizados, silenciados, oprimidos e explorados da
terra, dos reinos, dos reis em meio à história de Israel.
31
ALVES, Maria Helena Moreira, Vivendo no fogo cruzado: moradores de favela, traficantes de droga, e violência policial no Rio de Janeiro, São Paulo, editora Unesp, 2013, pág. 23 32 BATISTA, Vera Malaguti, O medo na cidade do Rio de Janeiro, dois tempos de uma história, Rio de
Janeiro, Revan, 2003, pg. 124
33
PIXLEY, Jorge. A história de Israel a partir dos pobres. Petrópolis-RJ. Vozes. 1990, pág. 9
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É Deus quem escolhe se aproximar e toma a iniciativa de ir em direção a um
povo escravo. Gustavo Gutiérrez fala da experiência do Êxodo como uma experiência
fundacional para o povo hebreu. Segundo ele, “trata-se do abandono de uma situação
de escravidão, exploração e carências no Egito – país estrangeiro – com a partida,
através de um processo de libertação multifacial, rumo à liberdade, à justiça”34
. Carlos
Mesters vai mais além, ao nos lembrar que ainda no capítulo 2 do livro de Êxodo,
vemos que diante do peso da escravidão, o povo gritava. E foi este grito que chegou até
Deus. Mesters afirma que “a opressão era total, em todos os sentidos, mas ela se fazia
sentir mais agudamente no setor político e cultural”35
.
O que parece termos aqui? Um Deus que não permite que a memória do fraco
se acabe, seja destruída, transformada em nada até ser “reconstruída” a partir de outra
narrativa, estereotipada, estigmatizada, violentada, sem voz e sentidos próprios. No
embate entre memória e violência, devemos enfrentar a violência contra o outro,
também preservando a memória do outro.
34
GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber no próprio poço: itinerário espiritual de um povo. Petrópolis-RJ. Vozes. 1985, pág.84 35
MESTERS, Carlos. Palavra de Deus na história dos homens, volume I. Petrópolis-RJ. Vozes. 1984, pág.12
Departamento de Teologia
BIBLIOGRAFIA
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favela, traficantes de droga, e violência policial no Rio de Janeiro, São
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3. CASTRO, Lola Anyar de, Criminologia da libertação, Rio de Janeiro, Revan,
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4. CONE, James H. O Deus dos Oprimidos. São Paulo. Edições Paulinas. 1985
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Petrópolis-RJ. Vozes. 1984
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