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ESQUIZOANLISE: CLNICA E SUBJETIVIDADE
Sandra Loureno CORRA 1
[ ... ] e mais importante do que o pensamento "aquilo que faz pensar.
(DELEUZE, 1987, p. 30)
Porque se chamavam homens tambm se chamavam sonhos e sonhos no
envelhecem. (L Borges)
Resumo: Este artigo pretende pensar a subjetividade como processo constitudo
por mltiplas linhas de possibilidades de existncia, tpicas do devir, que pela
experimentao pode produzir processos de singularizao. A esquizoanlise
recusa qualquer lgica binria, dualstica ou identitria da noo de subjetividade,
compreendendo que esses aspectos correspondem a um domnio histrico
filosfico especfico. O processo analtico ser afirmado em sua potncia
revolucionria e criadora, pois a esquizoanlise, ao proceder com a anlise do
inconsciente, nada espera encontrar em termos de prefigurao do desejo.
Palavras-chave: Clnica. Esquizoanlise. Subjetividade. Singularidade.
A esquizoanlise, criada por Deleuze e Guattari, prope pensar a
clnica a partir de suas possibilidades de agenciamentos2, pois acredita em sua
I Mestre em Psicologia pela USP de Ribeiro Preto - Docente da FAC-FEA (Araatuba/
SP). E-mail: [email protected]
2 Esto para alm da noo de estrutura, ao englobarem elementos de toda ordem material,
social, biolgica etc.
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capacidade de operar transfonnaes para alm das fonnas institudas. Isto no
significa ignor-las, pelo contrrio, a esquizoanlise trabalha conhecendo esses
modos de subjetiva03 institudos. Para Guattari, a clnica deve operar na ordem
das micropolticas, sabendo que os aspectos da macropoltica sempre estaro
presentes e passveis de transfonnao. No mbito clnico, estaramos muito
mais na ordem esttica do que na ordem interpretativa. Neste sentido, so
fundamentais os seguintes questionamentos que envolvem a prtica clnica: Que
tipos de agenciamentos podem ser construdos? E que viso de sujeito penneia
esta prtica?
As respostas para estas questes tm incio com a aposta que se
faz na contribuio da esquizoanlise para o plano clnico, que j se configura
com uma certa noo de sujeito que se pretende desconstruir, produzido a partir
de perspectivas identitrias, causalistas, em que a natureza de sua essncia est
dada, faltando apenas um modo de investigao mais preciso que desvende
seus mistrios mais profundos. Para tanto, busca-se romper com as interpretaes
fundamentadas emprincpios psicolgicos e demasiadamente "humanos". Deleuze
e Guattari (2004a, p. 114), comentando Nietzsche, afinnam que no se est
diante de pessoas, mas de foras e quereres: "Sabe-se que, em Nietzsche, a
teoria do homem superior uma crtica que se prope denunciar a mistificao
mais profunda ou perigosa do humanismo".
A clnica se faz necessria a partir do momento em que se acredita
em um fazer clnico fundamentado na diferena e no emprincpios do idntico.
Nesta nova proposta clnica no se busca um eu, um indivduo ou seus conflitos
3 Diz respeito aos processos pelos quais um modo de subjetividade produzido, sendo radicalmente oposto idia de indivduo, sendo o indivduo um dos modos de subjetivao possvel de um determinado momento histrico. So as relaes constitudas no e pelo registro social. Guattari relacionou particularmente esses processos aos modos capitalsticos de produo social.
34 Avesso do Avesso, vA, n.4, p. 33 ~ 51, novo 2006
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edipianos, por exemplo. Trata-se de uma noo de clnica no comprometida
com figuras familialistas. No se buscam encontrar os elos perdidos de um tempo
passado estruturado miticamente. A clnica, ento, passa a ser lugar da diferena,
do novo, do intempestiv04 No haveria histria para se remontar, nem umconflito
para se superar, nem muito menos uma memria para se resgatar.
A tarefa da esquizoanlise desfazer incansavelmente
os egos e seus pressupostos, libertar as singularidades
pr-pessoais que eles encerram e recalcam, fazer
escorrer os fluxos que eles seriam capazes de emitir, de
receber ou de interceptar, estabelecer sempre mais
finamente as esquizas e os cortes, bem acima das
condies de identidade, montar as mquinas desejantes
que recortam cada um e o agrupam com outros.
(DELEUZE; GUAITARI, 1976, p. 460)
possvel que, no exerccio clnico, movimentos de
desterritorializa05, juntamente com o surgimento de novos territrios, sejam
produzidos em sua absoluta imanncia, sem que se perca de vista a fora e a
especificidade deste exerccio. O que a psicanlise iniciou deve ser perseguido
em sua forma estratgica, ampliando seus espectros de transformao social.
4 Sobre esta noo, Deleuze e Guattari (2002b, p. 95), apoiados em Nietzsche, definiram: "[ ... ] o intempestivo, outro nome para a hecceidade, o devir, a inocncia do devir (isto , o esquecimento contra a memria, a geografia contra a histria, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescncia)". Estas idias sero definidas mais adiante. 5 So movimentos que desfazem territrios delimitados, lugares familiares pertinentes aos processos de subjetivao de uma determinada condio social, econmCa, cognitiva etc. Esto sempre acompanhados dos processos de reterritorializao. Os processos de territorializao, desterritorializao e reterritorializao caminham juntos e esto presentes em todos os momentos histricos da humanidade.
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Inclusive, o prprio Guattari (1987, p. 166) acreditava no processo analtico
pela natureza desse processo, ou seja, ele pode se constituir como lugar de
passagem, de visita a outras paragens, sendo o prprio movimento nmade, to
necessrio tarefa do viver.
No h como investigar a subjetividade na clnica sem que esta no
se coloque na interface com outros domnios do conhecimento, domnios
compostos por diversas linhas que:
[ ... ] vm ora da arte, ora da poltica, ora da filosofia, ora
de outro domnio qualquer que esteja em processo de
nomadizao, transmutando-se em devir, sendo
minoritrio, rompendo-se enquanto totalidade,
abandonando seus sujeitos-objetos disciplinados em prol
da criao. (PASSOS; BARROS, 2000, p. 78)
Passos e Barros (2000) referem-se ao projeto transdisciplinat' de
clnica, onde o analista, alm de criar "intercessores", ou seja, novos elementos
para as eventuais desterritorializaes, provocando passagens de um territrio a
outro, ele mesmo, o analista, se faz um intercessor. Por clnica transdisciplinar os
autores entendem um certo tipo de plano, onde ocorrem constantes ressonncias
entre sistemas de toda ordem.
No se trata de abandonar o movimento criador de cada
disciplina, mas de fabricar intercessores, fazer srie,
agenciar, interferir. Frente s fices preestabelecidas,
6 A proposta transdisciplinar pretende romper com as barreiras dos especialismos e dos territrios fechados para alcanar uma conjugao global entre os saberes, indo muito mais alm de uma dimenso dialgica.
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opor o discurso que se faz com os intercessores. No
uma verdade a ser preservada e/ou descoberta, mas
que dever ser criada a cada novo domnio. Os
intercessores se fazem, ento, em tomo dos movimentos,
esta a aliana possvel de ser construda quando falamos
de transdisciplinaridade, quando falamos de clnica.
(PASSOS; BARROS, 2000, p. 77)
Trata-se de produzir e manter uma tenso constante entre os
processos de subjetivao molares e moleculares, at porque impossvel
qualquer prtica sem tais comprometimentos, ainda que no explcitos. Portanto,
este plano clnico no o plano das universalidades, nem muito menos das
constncias, mas um plano sempre instvel- o plano do devir?, o que toma
possvel os processos de criao, ou de singulariza08
7 Este conceito no se reduz idia de imitao, nem muito menos a qualquer modelo. Ele diz respeito economia do desejo que opera no real e nos processos de desterritorializao. Nunca se deixa de ser algo para ser outra coisa como o caso das identificaes ou imitaes.
Os fluxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de que possam ser ou no rebatidos sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificaes. Assim um indivduo, etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires mltiplos e, aparentemente, contraditrios: devir-feminino que coexiste com um devir-criana um devir-animal, um devir-invisvel etc (GUATIAR! e ROLNIK, 2005, p. 382).
8 Os processos de singularizao esto no centro de interesse da esquizoanlise, afinal, singularizar afirmar a potncia, o sentido positivo da ruptura, a criao de outros modos de existncia pela experimentao. Esses processos so os nicos capazes de romper com os modos de subjetivao capitalsticos. Trata-se de uma verdadeira lgica dos devires lgica das multiplicidades que esto sempre colocando em xeque qualquer tentativa de eternidade pelas universalizaes.
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Pensar a clnica sob a perspectiva de Deleuze e Guattari , sem
dvida alguma, permitir-se a novos modos de semiotizao que requerem
movimentos de fluxos de toda natureza, sem, no entanto, cair em um campo
clnico indiferenciado, apesar de todas as perturbaes que a perspectiva desses
dois pensadores provoca em certas familiaridades do pensamento.
De acordo com Rolnik (2000), a esquizoanlise vem ocupando um
espao significativo de interesse nos mbitos da clnica psicanaltica institucional
e nos acadmicos, sobretudo entre aqueles que procuram desenvolver uma
dimenso crtica da clnica. Considerando que para esquizoanlise a
subjetividade sofre modulaes ao longo da histria e que uma das ltimas
invenes do homem moderno foi a subjetividade centrada no indivduo, pode
se supor, ento, a possibilidade de criar formas heterogneas e singulares
totalmente diferentes dos regimes identitrios desses ltimos tempos.
neste sentido que a esquizoanlise pode ser pensada como
resistncia aos modelos individualizantes da subjetividade que a normalizaram
atravs de tcnicas de conhecimento, controle e poder. A resistncia traz o novo
e provoca efeitos de toda sorte. Mas, como operacionalizar, ou melhor, como
fazer uso de uma mquina (esquizoanlise) que no possui "manual de instruo?"
Como se permitir, no exerccio clnico, a experincia do devir, sem cair no rtulo
da "loucura ultrapassada" da dcada de 60? Ou de ainda viver "sem leno e
sem documento?" Ou ser identificado como "bicho-grilo?" Ou talvez, ainda pior,
como parte da categoria de profissionais que no fazem a menor diferena por
no apresentarem um caminho til, metodologicamente cientfico, que d conta
dos transtornos psquicos?
Estes questionamentos retratam algumas das idias que aparecem
com freqncia diante da proposta esquizoanaltica de clnica, manifestadas nas
faculdades de psicologia, ou no prprio campo de trabalho "interdisciplinar".
Como respond-los sem, necessariamente, usar recursos dos tempos da ditadura,
ou da "gerao do desbunde" tal como Cazuza se autodenominou afirmando
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que, "pra mudar alguma coisa a gente teve que gritar, se drogar, ir pra rua
enfrentar a nossa prpria fraqueza"?
Para que a clnica no respire e inspire esse tipo de ar contaminado
da explorao pela dominao da subjetividade, necessrio que ela, com sua
principal arma, o processo analtico, se transforme em mquina de guerra9 Para
tanto, as idias dos autores aqui investigadas servem como ferramentas de forte
potncia, se propagadas enquanto tais, antes mesmo de serem capturadas na
mquina alienante das estratgias capitalistas. A esquizoanlist( corre esse perigo
se for compreendida como um novo modelo estruturante dos procedimentos
clnicos, como um novo idealismo a ser seguido. Neste sentido, pode-se afIrmar
que a esquizoanlise no tem um territrio definido, j que sua proposta
exatamente levar as linhas para mais longe, pois "somente quando um fluxo
desterritorializado ele consegue fazer sua conjugao com outros fluxos, que
desterritorializam por sua vez e vice e versa." (DELEUZE e PARNET, 1998, p.
63)
Na esquizoanlise no se representa nada, engendra-se e percorre
se.
Seria preciso opor dois tipos de cincias, ou de procedi
mentos cientficos: um que consiste em 'reproduzir', o
outro que consiste em 'seguir'. Um seria de reprodu
o, de iterao e reiterao; o outro, de itinerao, se
ria o conjunto das cincias itinerantes, ambulantes. Re
duz-se com demasiada facilidade a itinerao a uma
9 Segundo Deleuze e Guattari a mquina de guerra no tem a guerra como objeto, sendo uma noo muito prxima noo de linha de fuga, onde est presente um agendamento social que nunca se fecha em uma interioridade, mas constitudo pelos movimentos nmades (ZOURABICHVILI, 2004, p. 66)
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condio da tcnica, ou da aplicao e da verificao
da cincia. Mas isto no assim: seguir no o mes
mo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reprodu
zir. (DELEUZE; GUATfARI, 2002c, p. 39)
No h dvida de que Deleuze e Guattari so cones de um tempo
de beligerncia dos anos 60, marcados pelos movmentos dos anos contraculturas,
quando a forma de luta se manfestava, sobretudo, por uma posio anti. Vive
se um outro momento que requer modulaes coerentes com este novo plano
de consistncia. Pelbart (2004, p. 19), investigando as transformaes do
tempolO, afirma:
H aqui urna topologia que lembra a Deleuze o que os
matemticos chamam de 'a transformao do padeiro'.
Dois pontos, por mais prximos que estejam num
quadrado, resultaro distantes ao cabo de algumas
transformaes em que o quadrado estirado em
retngulo, dividido em duas metades, formando
novamente um quadrado etc. assim que um
acontecimento constantemente remanejado na 'massa
do tempo' , corno um ponto a assinalado que se divide
em dois, fragmentando-se, distendendo-se, conforme o
lenol de passado em que jogado, ou no qual nos
colocamos, abrindo-se a urna variao infinita.
10 Pelbart (2004, p. 19) investiga uma outra dinmica do tempo, o tempo como massa modulvel, onde "uma perptua mistura vai tornar prximo o que estava afastado e longnquo o que era prximo, num tempo no cronolgico".
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Ainda que a questo do tempo no possa ser discutida mais ampla
mente neste artigo, ela perpassa, de um modo ou de outro, todos os
questionamentos apresentados at aquLlsto porque, mesmo com as modulaes
operadas, no de um tempo cronolgico a que se est reportando, mas de um
tempo do devir em oposio ao tempo arborescente II , hierarquizado e
genealgico.
Contrariamente histria, o devir no se pensa em
termos de passado e futuro. Um devir-revolucionrio
permanece indiferente s questes de um futuro e de
um passado da revoluo; ele passa entre dois. Todo
devir um bloco de coexistncia. (DELEUZE;
GUATTARI, 2002b, p. 89)
A resistncia aparece onde os imperialismos reinam, e ela tem sempre
a mesma natureza: desestabilizar a hegemonia. Portanto, mesmo que os tempos
sejam outros, importante ressaltar que no se pode situar-se num tempo linear
da histria. Trata-se de combater as perspectivas dominantes de subjetividade,
que no s ignoram os processos de singularizao, como os rechaa, e isto em
qualquer momento da histria.
Como Pelbart (2004) afirma, os remanejamentos so feitos, e o
que parece longnquo se torna prximo e vice-versa. E sempre de um certo
lugar que se reporta ao passado. Nem Deleuze nem Guattari negligenciaram
estas "crticas temporais", inclusive, distinguiram o momento do "OAnti-dipo"
11 Os sistemas arborescentes esto presentes em um certo tipo de imagem do pensamento que obedecem a uma ordem hierrquica "que comportam centros de significncia e de subjetivao, autmalos centrais como memrias organizadas" (DELEUZE e GUAITAR!. 2000, p. 26). Tais sistemas se contrapem noo de rizoma.
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do trabalho realizado em "Mil Plats".
Do mesmo modo, pode-se pensar a questo do tempo na clnica
que, de acordo com as idias esquizoanalticas, no se prende ao princpio
cronolgico de passado, presente e futuro. Tal como a arte, na viso deleuziana,
a clnica no obedece ao tempo organizado, estratificado, pois no haveria "um
passado a descobrir, mas a inventar segundo o dobramento a que estar
submetido e que o ir situar num feixe de relaes insuspeitado." (PELBART,
2004, p.19)
Se forem novos tempos, como fazer uso das idias de Deleuze e
Guattari no plano clnico? evidente que os aspectos histricos e os
agenciamentos so diferentes, mas s o fato de se ter esta compreenso jjustifica
as contribuies desses dois pensadores. sempre de uma lgica dos fluxos
que um acontecimento produzido. E quando se trata de mquina e de devir,
tambm a questo temporal linear colocada de lado.
Trata-se ento de propor uma escuta apoiada no pensamento da
diferena, no qual a noo de subjetividade pensada. Est-se diante de um
novo olhar sobre a subjetividade que produz novos desafios e possibilidades na
clnica. De um modo geral, o trabalho analtico consistiria em escapar de todos
os reducionismos, criar linhas de fuga 12 capazes de produzir novas cartografias 13,
resistir aos confinamentos tericos que cegam os olhos de quem procura
compreender as construes dos universais e suas conseqncias no
comportamento humano. Barros (1994, p. 379) esclarece:
A estaria o trabalho que chamamos de analtico, aquele
12 A linha de fuga uma desterritorializao.
13 Cartografar no o mesmo que mapear. O primeiro, segundo os gegrafos, um
procedimento que se altera de acordo com as mudanas das paisagens, enquanto que o
segundo representa de modo esttico uma determinada configurao.
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que no nega a molaridade dos modos de funcionamen
to, mas pe a funcionar outros modos, inventa fugas,
penetra no plano molecular de constituio de outras
formas. O singular emergiria, assim, do coletivo
multiplicidade, as identidades seriam convidadas ao
mergulho na agitao das diferenas.
A clnica esquizoanaltica visa a favorecer a vida ( subjetividade),
que no cabe nos estratos (organismo, significncia, subjetivao), sem que se
perca um plano que, ao mesmo tempo em que existe, tambm precisa ser
construdo. Isto no significa que o processo analtico na esquizoanlise no
tenha nenhuma direo e, por isso, seja classificado como um trabalho
inconsistente e ilgico. Trata-se de uma outra perspectiva uma outra lgica
uma lgica mxima, mas que no reconduz razo ou ao exerccio de uma pura
recognio.
O pensador antes de tudo clnico, decifrador sensvel
e paciente dos regimes de signos produzidos pela
existncia, e segundo os quais ela se produz. Seu ofcio
construir os objetos lgicos capazes de dar conta dessa
produo e levar assim a questo crtica a seu mais alto
ponto de paradoxo [ ...] (ZOURABICHVILI, 2004, p.
107)
A mquina analtica louca sim, mas por refutar qualquer fundamento
transcendente, por buscar o inesperado de um encontro e por afirmar a lgica
das contradies e dos paradoxos. Est-se diante de um outro domnio que
comporta as snteses disjuntivas, ou seja, a positividade da coexistncia de
elementos que, aparentemente (na ordem molar das identidades), seriam
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classificados como excludentes. Aqui se afirma a diferena e no a negao.
Consideremos os pares vida-morte, pai-filho, homem
mulher: os tennos a s tm relao diferencial, a relao
primordial, ela que distribui os tennos entre os quais
se estabelece. Por conseguinte, a experincia do sentido
est no duplo percurso da distncia que os liga: no se
homem sem devir-mulher etc.; e ali onde a psicanlise
v uma doena, trata-se, ao contrrio, da aventura viva
do sentido ou do desejo sobre o 'corpo sem rgos'14,
da sade superior da criana, da histrica, do
esquizofrnico. (ZOURABICHVILI, 2004, p. 104)
A noo de multiplicidadel5 acompanha todo o raciocnio desta
nova lgica, onde as dualidades no so negadas, mas recolocadas em uma
outra ordem - ordem molar. O processo analtico, ento, produzido no plano
molecular, no qual as linhas de fuga so inventadas e novas cartografias percorridas.
Assim, no se buscam curas nem recuperao de algum estado por no se
considerarem estruturas preestabelecidas. por esta razo que no se podem
definir neuroses, perverses e esquizofrenias pelo destino das pulses, mas pelo
14 O termo CsO aparece em Antonin Artaud corno um corpo sem imagem, onde o organismo inimigo do corpo, ou seja, determinada estratificao do corpo. Trata-se de urna experincia onde o CsO a superfcie de toda maquinaria do desejo. Rompe-se com toda idia de organismo, de prefigurao do desejo ou de imagens humanizadas. Este conceito se ope muito mais idia de organismo do que de rgos, por estar o primeiro relacionado a um "funcionamento organizado dos rgos em que cada um est em seu lugar, destinado a um papel que o identifica." (ZOURABICHVILI, 2004, p. 32) 15 "Urna multiplicidade no tem nem sujeito, nem objeto, mas somente determinaes, grandezas, dimenses que no podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinao crescem ento com a multiplicidade)." (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 16)
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modo e espao que elas ocupam num determinado campo social.
Seria inexato guardar para as neuroses uma interpretao
edipiana, e reservar s psicoses uma explicao extra
edipiana. No h dois grupos, no h diferena de
natureza entre neuroses e psicoses. Porque de
qualquer maneira a produo desejante que
causa, causa ltima, seja das subverses psictcas que
quebram dipo ou o submergem, seja das ressonncias
neurticas que o constituem. (DELEUZE; GUATIARI,
1976,p.164)
Tudo depende do modo pelo qual cada um se posiciona diante dos
cdigos sociais. Especificamente, quanto esquizofrenia e neurose, parece
que o esquizofrnico no suporta a edipianizao enquanto o neurtico se deixa
edipianizar.
A esquizoanlise ao mesmo tempo uma anlise
transcendental e materialista. Ela crtica, no sentido
em que efetua a crtica de dipo, ou leva dipo at o
ponto de sua prpria autocrtica. Ela se prope a explorar
um inconsciente transcendental, em vez de metafsico;
material, em vez de ideolgico; esquizofrnico, em vez
de edipiano; no figurativo, em vez de imaginrio; real,
em vez de simblico; maquinstico, em vez de estrutural;
molecular, microfsico e microlgico, em vez de molar
ou gregrio; produtivo, em vez de expressivo. Trata-se
aqui de princpios prticos como direes da 'cura'.
(DELEUZE; GUATIARI, 1976, p. 143)
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H, pois, uma esquizofrenia que diz respeito ao fracasso de algum
que no suportou o regime existente, mas no encontrou sada, malogrou, assim
como o drogado pode se precipitar morte ou a uma repetio improdutiva por
querer desfazer os estratos apenas com a droga, por desestratificar muito rpido.
Da a prudncia, a arte de viver, de manter doses de estratificao que permitam
a experincia e a passagem para outros estados ou territrios. Perguntou-se a
Guattari, quando ele esteve no Brasil, sobre a idia de prudncia referida em
"Mil Plats". Esta pergunta diz respeito aos riscos do trabalho esquizoanaltico,
pois poderia levar a viagens l6 perigosas que desembocassem em territrios
improdutivos ou indiferenciados. Um trabalho que, mesmo muito criativo, no
levaria ningum a lugar algum. A resposta dada por Guattari muita clara e
simples:
Ento, ao invs de viagem, eu falaria, de um modo mais
prosaico, de processo. No existe, a meu ver, nvel
indiferenciado da subjetividade. A subjetividade est
sempre tomada em rizomas, em fluxos, em mquinas
etc.; ela sempre altamente diferenciada, sempre
processuaL Portanto, um empreendimento, digamos,
esquizoanaltico, um agenciamento criador, produtor de
sentido, produtor de atos, produtor de novas realidades,
algo que conjuga, associa, neutraliza, monta outros
processos. Mas os efeitos no so necessariamente
cumulativos. Processos podem se apoiar uns aos outros
para chegar em territrios mortos. infelizmente o que
16 A noo de viagem referida aquela tpica dos movimentos anticulturais - trip americana, "com todo o pano de fundo quase mstico que essa noo de viagem tomou, digamos, em toda a Nova Cultura." (GUATIARI e ROLNIK, 2005, p. 332)
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costuma acontecer muito, o que acontece
freqentemente, na economia conjugal, na economia
domstica. Duas pessoas esto envolvidas num processo
amoroso e esse processo acaba desembocando num
fechamento territorial, que neutraliza toda e qualquer
possibilidade de riqueza (inclusive o desejo sexual), todas
as aberturas. O mesmo pode acontecer com todos os
outros modos de processo de expresso. (GUAITARI;
ROLNIK, 2005, p. 332)
neste sentido que a clnica esquizoanaltica no pode ser pensada
como uma prtica espontanesta, ou o oposto, uma nova abordagem em clnica
com procedimentos metodolgicos fechados, uma nova identidade de
procedimentos. Trata-se de um exerccio clnico rizomticoJ7 Ele perigoso?
Sim, mas no por ser a improvisao de qualquer coisa, um "libere-se". Se
assim fosse, poder -se-iam temer os procedimentos estratificados, pois os regimes
despticos tambm trazem seus perigos de manipulao, de explorao, de mais
valia. O problema lidar com as rupturas, e estas so inevitveis. Elas so
sempre produzidas por processos moleculares, maleveis, destitudos de
implicaes meramente pessoais, psicolgicas, mas que tambm no ocorrem
em um profundo abismo da indiferenciao. Quando um novo agenciamento
produzido, tudo muda, da natureza dos processos rizomticos: em cada rizoma
ocorrem agenciamentos de naturezas, ou regimes distintos. As rupturas so
17 A noo de Rizoma definida em Mil Plafs (2000, p. 32-33). A noo surgiu da botnica, onde definido como um caule subterrneo responsvel pela produo de ramos areos com caractersticas de razes. Deleuze e Guattari ampliam a noo articulando-a a uma rede conectiva de vrios sentidos.
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irreversveis e no esto restritas a cadeias semiticas, ou seja, est-se falando
de planos18, de diferentes plats 19.
Mas, ao buscar novas possibilidades no plano clnico, correm-se alguns
riscos em decorrncia dos deslocamentos de sentidos provocados pelos rizomas
e suas linhas de fuga. Seria como um "ato-perigoso", tal qual alertou Foucault
em "As palavras e as coisas" (1999, p. 453):
Antes mesmo de prescrever, de esforar um futuro, de
dizer o que preciso fazer, antes mesmo de exortar ou
somente alertar, o pensamento, ao nvel de sua existncia,
desde sua forma mais matinal, , em si mesmo, uma
ao - um ato perigoso. Sade, Nietzsche, Artaud e
Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram
ignorar; mas certo tambm que Hegel, Marx e Freud
o sabiam.
Enfim, o que se pretende supor a subjetividade em sua relao com
o Fora20, encontrar novos ares na exterioridade, e no na interioridade, onde o
ar, por no circular, est envenenado e condenado, assim, morte.
A esquizoanlise ou a pragmtica no tem outro sentido:
18 Trata-se de um certo tipo de plano: o de imanncia. Tal plano difere do plano de referncia,
das organizaes, das idealidades transcendentais, pois so processos onde operam toda
ordem de fluxos em constantes mutaes e engendramentos.
19 "U m plat um pedao de imanncia. Cada CsO feito de plats. Cada CsO ele mesmo
um plat, que comunica com os outros plats sobre o plano de consistncia, ou imanncia.
um componente de passagem." (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 20)
20 Este conceito impe um contraponto radical com a noo de transcendncia, quando
mostra que a experincia no est submetida a representao. Trata-se de uma outra
ordem a da impessoalidade - no domnio das foras.
48 Avesso do Avesso, vA, nA, p.33 51, novo 2006
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faa rizoma, mas voc no sabe com o que voc pode
fazer rizoma, que haste subterrnea ir fazer
efetivamente rizoma, ou fazer devir, fazer populao no
teu deserto. Experimente. (DELEUZE; GUATTARI,
2002b,p.35)
Este o desafio da esquizoanlise: manter a prudncia e a suavidade
mesmo que enfrentando as batalhas e as resistncias dos modos cristalizados de
subjetivao.
Parece que Deleuze e Guattari concordam plenamente com
Fernando Pessoa quando afirma: navegar preciso, viver no preciso!!
CORRA, Sandra Loureno. Schizoanalysis: Clinic and Subjectivity. Avesso
do Avesso, Araatuba, v. 4, n. 4, p. 33 - 51, novo 2006.
Abstract: This article intends to ponder on the subjectivity as the process forrned
by multiple possibility lines ofexistence, typical ofcome to be, which, through
experiment, can produce singularizing processes. The schizoanalysis refutes any
binary logic, dualistic or related to identical, of the notion of subjectivity,
understanding that these aspects correspond to a specific historie - philosophical
dominium. The analytic process will be ascertained in its creative and revolutionary
potency, since the schizoanalysis does not expect to encounter any anticipation
of desire, when it proceeds with the analysis ofthe unconscious.
Key words: Clinic. Schizoanalysis. Subjectivity. Singularity.
Avesso do Avesso, v.4. nA, p. 33 51, nov. 2006 49
http:2002b,p.35
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