Estado Autocrático

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1 O ESTADO AUTOCRÁTICO DO SÉCULO XX 1 Jorge Reis Novais (tópicos de apoio às aulas teóricas da turma B de Direito Constitucional I do ano lectivo de 2012/2013) O Estado social e democrático de Direito não foi, no século XX, a única alternativa proposta ao modelo de Estado liberal entretanto entrado em crise. É que, enquanto o Estado social de Direito se pretendia na mesma linha de continuidade dos grandes princípios caracterizadores do Estado de Direito liberal, surgiram então outras propostas que punham radical e globalmente em causa esses princípios e, consequentemente, a própria ideia de Estado de Direito. Essas novas propostas de organização política da sociedade contestavam, não apenas o legado liberal, como também o próprio quadro de vida política democrática. Com base nessa comum rejeição dos princípios do Estado de Direito —quer liberal, quer democrático e social—, é possível agrupar as novas propostas sob a designação genérica de Estado autocrático do século XX, mas sem que essa designação genérica obscureça as diferenças profundas que entre si manifestavam. Assim, a diversidade de fins prosseguida justifica a subdistinção entre Estado autocrático de matriz revolucionária anticapitalista e Estado autocrático de matriz conservadora. Estes tipos históricos de Estado têm em comum, dada a sua natureza autocrática, a mesma atitude desvalorizadora da Constituição e do Direito enquanto limites do Poder. Apesar de situado cronologicamente na fase constitucional do Estado, no Estado autocrático do século XX a Constituição perde o anterior carácter material que lhe conferira o 1 Para um tratamento desenvolvido desta parte da matéria, cf. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, págs. 127-178

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    O ESTADO AUTOCRTICO DO SCULO XX1

    Jorge Reis Novais

    (tpicos de apoio s aulas tericas da turma B de Direito Constitucional I do ano

    lectivo de 2012/2013)

    O Estado social e democrtico de Direito no foi, no sculo XX, a nica alternativa

    proposta ao modelo de Estado liberal entretanto entrado em crise. que, enquanto o Estado

    social de Direito se pretendia na mesma linha de continuidade dos grandes princpios

    caracterizadores do Estado de Direito liberal, surgiram ento outras propostas que punham

    radical e globalmente em causa esses princpios e, consequentemente, a prpria ideia de

    Estado de Direito.

    Essas novas propostas de organizao poltica da sociedade contestavam, no apenas

    o legado liberal, como tambm o prprio quadro de vida poltica democrtica. Com base

    nessa comum rejeio dos princpios do Estado de Direito quer liberal, quer democrtico

    e social, possvel agrupar as novas propostas sob a designao genrica de Estado

    autocrtico do sculo XX, mas sem que essa designao genrica obscurea as diferenas

    profundas que entre si manifestavam.

    Assim, a diversidade de fins prosseguida justifica a subdistino entre Estado

    autocrtico de matriz revolucionria anticapitalista e Estado autocrtico de matriz

    conservadora.

    Estes tipos histricos de Estado tm em comum, dada a sua natureza autocrtica, a

    mesma atitude desvalorizadora da Constituio e do Direito enquanto limites do Poder.

    Apesar de situado cronologicamente na fase constitucional do Estado, no Estado autocrtico

    do sculo XX a Constituio perde o anterior carcter material que lhe conferira o

    1 Para um tratamento desenvolvido desta parte da matria, cf. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, pgs. 127-178

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    liberalismo, ou seja, deixa de ser um estatuto jurdico consagrador dos direitos fundamentais

    e da diviso de poderes.

    No sculo XX todo o Estado tem uma Constituio, mas esta abre-se agora a uma

    pluralidade de possveis contedos, no constituindo necessariamente uma limitao

    jurdica global dos detentores do Poder. No Estado autocrtico, a Constituio rebaixada

    ao nvel de instrumento de legitimao formal do exerccio de qualquer tipo de Poder, que

    manipula o contedo da Constituio a seu bel-prazer ou, pura e simplesmente, faz dela

    letra-morta.

    1. O Estado autocrtico de matriz revolucionria anticapitalista

    Consideramos aqui como modelo deste tipo de Estado a experincia desenvolvida na

    Rssia sovitica aps a Revoluo de 1917, quer por ter sido durante muito tempo a nica

    experincia deste tipo, quer por ter constitudo um Estado de grande solidez e estabilidade

    at praticamente ao finais dos anos 80, quer, sobretudo, por se ter convertido, terica e

    politicamente, num verdadeiro modelo e guia para muitas outras experincias que

    posteriormente se desenvolveram em vrias partes do globo e que, no essencial,

    reproduziram as caractersticas fundamentais do modelo de Estado sovitico.

    Esta experincia surgiu originariamente inspirada na teoria elaborada por Karl Marx

    no sculo XIX, nomeadamente na crtica marxista do sistema capitalista e num programa de

    transformao revolucionria da sociedade.

    Visando a instaurao de uma sociedade comunista, este projecto assentava, em

    termos de organizao econmica, na socializao dos meios de produo e, a nvel da

    organizao poltica do Estado, propunha-se instaurar um Estado transitrio de ditadura

    revolucionria do proletariado como primeiro acto de um processo de imediato e

    progressivo desaparecimento do Estado at ao advento final de uma sociedade sem classes e

    sem Estado a sociedade comunista.

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    Porm, os paradoxos da histria fizeram com que a primeira revoluo inspirada

    nestes ideais visse a luz em condies totalmente diferentes daquelas para as quais os

    clssicos do marxismo haviam projectado a revoluo proletria.

    Enquanto Marx e Engels pensaram a revoluo anticapitalista para os pases

    capitalistas desenvolvidos, onde a revoluo industrial teria feito do proletariado uma classe

    maioritria e politicamente preparada para assumir os destinos da sociedade, aquilo que na

    realidade se verificou que a revoluo russa (como, de resto, todas as que nela se

    inspiraram) surgiu num pas economicamente atrasado, com um proletariado dbil e

    sobretudo onde o Partido revolucionrio, vitorioso pela fora das armas, s dispunha do

    apoio de uma minoria da populao (no auge da sua fora, em 1918, o Partido bolchevique

    j no poder, futuro partido comunista, no obtivera mais que 25% dos votos para a

    Assembleia Constituinte).

    Perante estas dificuldades, e a partir do momento em que o Partido comunista decide

    conservar o Poder a todo o custo e em termos de exclusividade, vai operar-se, sob a gide de

    Lnine, uma adaptao da teoria marxista s condies da sociedade russa que produzir as

    maiores consequncias no plano das concepes e da prtica acerca da organizao do

    Estado e das relaes que este mantm com os cidados.

    Pontos mais marcantes da nova teoria (o chamado "marxismo-leninismo") so agora

    os seguintes. Considera-se que durante toda uma fase de transio, sucessivamente

    prorrogada, o Estado sovitico, longe de desaparecer, teria ainda de se reforar e expandir-

    se e mesmo de o fazer de forma desmesurada. A projectada 'socializao dos meios de

    produo' agora substituda pela 'estatizao dos meios de produo', o que significa que,

    na prtica, no so os colectivos de trabalhadores ou as organizaes sociais que detm a

    posse e a gesto dos meios de produo como se previa na teoria originria, mas

    antes o aparelho de Estado quem controla todo o aparelho produtivo. As instituies tpicas

    da democracia representativa, agora designadas como democracia formal ou democracia

    burguesa, so suprimidas. O pluralismo poltico dos tempos iniciais da Revoluo d lugar

    institucionalizao de um regime de partido nico; este partido nico controla e dirige

    todas as organizaes sociais, sindicais, e todo o aparelho de Estado, verificando-se a

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    completa identificao Partido/Estado e o controlo absoluto e exclusivo da vida poltica por

    parte desse partido.

    Por ltimo, desenvolve-se uma teoria igualmente inovadora no que respeita posio

    do Estado sovitico relativamente aos direitos fundamentais dos cidados.

    Com efeito, o Estado sovitico rejeita qualquer ideia de limitao jurdica dos seus

    poderes. Pretendendo ser e proclamando-se como um Estado dos trabalhadores, controlado

    e dirigido por toda a populao trabalhadora, a ideia do reconhecimento de direitos

    fundamentais contra o Estado era logicamente excluda, pois ningum precisa de direitos

    contra si prprio.

    A concepo sovitica dos direitos fundamentais caracteriza-se e isso a distingue

    radicalmente da concepo prpria de Estado de Direito por condicionar e funcionalizar a

    possibilidade do exerccio de direitos e liberdades fundamentais aos interesses do regime

    definidos a cada momento pelo partido nico: os direitos fundamentais s so reconhecidos

    na condio de no serem exercidos margem ou contra o poder institudo. Significa isto

    que, por exemplo, se reconhecia a liberdade de expresso, de associao, de imprensa, mas

    s na condio de no serem exercidas contra as orientaes e finalidades do partido nico.

    Ora, estas concepes, que comearam por ser expresso de necessidades e

    dificuldades conjunturais, acabaram por ser teorizadas como elementos estruturais

    indispensveis ao novo tipo de Estado sovitico, vindo a obter consagrao constitucional e

    a ser sistematizadas no que veio a ser designado por 'teoria marxista-leninista do Direito e

    do Estado'. Nessa qualidade foram recebidas e adoptadas como modelo de um novo tipo

    histrico de Estado que marcou a histria do sculo XX e que, no essencial, veio a ser

    reproduzido contemporaneamente noutras latitudes, desde a Europa de Leste, Amrica,

    sia e frica.

    2. O Estado autocrtico de matriz conservadora

    Na Europa do sculo XX no apenas o Estado de tipo sovitico que se apresenta

    como alternativa ao Estado de Direito. Entre as duas Guerras Mundiais, emerge uma nova

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    corrente de pensamento conservador, caracterizado por ser radicalmente antiliberal,

    antidemocrtico, mas tambm no menos anti-socialista e anticomunista.

    Frontalmente oposta ideia da luta de classes, ao internacionalismo, ao movimento

    operrio independente e ao sindicalismo livre, esta corrente considerava a sociedade

    democrtica e liberal como incapaz de resistir ameaa sovitica. Para os novos

    conservadores, a defesa dos valores que no seu entender caracterizavam o legado essencial

    da sociedade ocidental s podia ser feita atravs de um Estado forte erguido sobre os

    destroos do Estado de Direito liberal.

    Para tanto fazia-se o culto dos valores conservadores, da autoridade, da superioridade

    nacional ou rcica, do expansionismo e, recusando a sujeio aos mecanismos da escolha e

    eleio democrticas, confiavam-se as esperanas de regenerao social e poltica ao papel

    providencial das elites nacionais ou ao pretenso gnio providencial de um s indivduo

    predestinado a incarnar o esprito da Nao ou do Povo.

    Este seria o indefinido corpo ideolgico que, de algum modo, informou as

    experincias polticas autocrticas que, a partir da Itlia fascista de Mussolini (de 1922 a

    1943), se sucederam na Europa entre as duas guerras (Alemanha nazi de 1933 a 1945,

    Portugal salazarista de 1926/1933 a 1974, Espanha franquista de 1939 at aos anos setenta,

    Grcia, Polnia, Hungria, Turquia).

    Em sntese, e com as adaptaes devidas sua transplantao para outras latitudes e

    outros contextos culturais, tnicos ou religiosos, possvel delinear um conjunto de valores

    e instituies que permitem, no sculo XX, a autonomizao do modelo de Estado

    autocrtico conservador.

    , assim, possvel destacar um corpo comum de princpios e formas de organizao

    que tendem sistematicamente a ser reproduzidos sempre que tal projecto adquire expresso

    e sucesso poltico.

    Embora a expresso mais exacerbada destes princpios se encontre nos Estados

    totalitrios fascista italiano e nazi germnico dos anos 20 e 30, na base da organizao

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    poltica de qualquer experincia deste tipo est a atribuio ao Poder de uma autoridade

    plena e ilimitada.

    No s no se reconhecem aos indivduos direitos e liberdades contra o Poder, como

    no se concebem quaisquer fins ou actividades particulares a que o Estado seja alheio; o

    Estado assume a conformao do essencial das relaes sociais, trate-se de relaes

    culturais, econmicas, laborais ou sindicais. Em ltima anlise, pessoa humana s era

    reconhecido valor de sujeito e pessoa jurdica atravs e medida da sua integrao no

    Estado ou nos corpos sociais intermdios.

    Proclama-se o carcter dogmtico do Estado esteja ele identificado com uma

    ideologia, uma religio, uma raa ou uma comunidade nacional e rejeita-se qualquer

    expresso de dissidncia poltica ou ideolgica ou das minorias sociais, tnicas ou

    religiosas.

    No plano estritamente poltico, verifica-se a rejeio absoluta do pluralismo e dos

    mecanismos e instituies democrticas representativas e, particularmente, a negao da

    possibilidade de existncia de uma oposio legtima (poltica ou to s doutrinria); a

    transformao do partido nico, quando existe, numa entidade pblica confundida com o

    Estado; a centralizao e concentrao do exerccio do Poder e do controlo sobre o aparelho

    de Estado num grupo reduzido ou mesmo numa nica pessoa, o ditador (caso de Mussolini,

    na Itlia, Hitler, na Alemanha, Salazar, em Portugal ou Franco, na Espanha).