Estado de Natureza Contato Social Hobbes Locke e Rousseau

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Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil na filosofia de Hobbes, Locke e Rousseau Marilena Chauí (profª de filosofia na USP e autora de vários livros) (Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 220-223) JUSNATURALISMO Formas da doutrina do direito natural O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural", ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado [direito positivo]. Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O jusnaturalismo é por isso uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, aquele estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também elas com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, especifica, portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. Todas partilham, porém, da idéia comum de um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, diante de cujo poder fixam um limite intransponível: as normas jurídicas e a atividade política dos Estados, das sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como este for concebido, são consideradas pelas doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo nessa condição ser desobedecidas pelos cidadãos. Jusnaturalismo antigo e Jusnaturalismo medieval A figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles, converte-se como que num símbolo disso: ela se recusa a obedecer as ordens do rei, porque julga

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Estado de Natureza, contrato social,

Estado Civil na filosofia de Hobbes, Locke e Rousseau

Marilena Chauí (profª de filosofia na USP e autora de vários livros)

(Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 220-223)

JUSNATURALISMO

Formas da doutrina do direito natural

O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural", ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado [direito positivo]. Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de

conflito, é ele que deve prevalecer. O jusnaturalismo é por isso uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, aquele estabelecido pelo

Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões

fundamentais, também elas com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de

uma lei ditada pela razão, especifica, portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. Todas partilham, porém, da idéia comum de um sistema

de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, diante de cujo poder fixam um limite intransponível: as normas jurídicas e a atividade política dos

Estados, das sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como este for concebido, são consideradas pelas doutrinas

jusnaturalistas como ilegítimas, podendo nessa condição ser desobedecidas pelos cidadãos.

 

Jusnaturalismo antigo e Jusnaturalismo medieval

A figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles, converte-se como que num símbolo disso: ela se recusa a obedecer as ordens do rei, porque julga que, sendo

ordens da autoridade política, não se podem sobrepor àquelas outras que são eternas, às ordens dos deuses. A afirmação da existência de algo "justo por natureza" que se

contrapõe ao "justo por lei" é depois completada por vários sofistas, que já desde então entendem o "justo por natureza" de diversas maneiras, com conseqüências políticas

diferentes em cada caso. Conhecemos a sua doutrina sobre este ponto, sobretudo pela divulgação que Cícero

dela fez em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval e nas primeiras doutrinas

jusnaturalistas modernas. Numa célebre passagem do seu livro De Republica, Cícero defende a existência de uma lei "verdadeira", conforme a razão, imutável e eterna, que

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não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a própria natureza humana. Reproduzido e aceito por um dos padres da Igreja,

Lactâncio, este excerto influenciou poderosamente o pensamento cristão de cultura latina, que, tal como já havia feito o de cultura grega no século III, acolheu a idéia de um direito natural ditado pela razão. Isto, porém, suscitou entre os padres da Igreja graves problemas de ordem teológica, tanto por causa da dificuldade de explicar a

coexistência de uma lei natural com uma lei revelada, quanto porque a aceitação da existência de uma lei moral, autônoma no homem, punha em causa a necessidade da

graça. Estas dificuldades afligiram, sobretudo o pensamento de Santo Agostinho, que, em épocas diferentes, assumiu a tal respeito atitudes muito diversas.

É característica do pensamento medieval a aceitação indiscriminada do jusnaturalismo em todas as suas versões, sem consciência da recíproca incompatibilidade existente

entre elas. Ao lado da versão naturalista de Ulpiano e da versão racionalista de Cícero [bem como da que se devia a uma má interpretação de um diálogo tardio de Platão, de uma justiça imanente a todo universo como princípio da sua harmonia], a Idade Média desenvolveu a doutrina de um direito natural que se identificava com a lei revelada por

Deus a Moisés e com o Evangelho. Esta foi, sobretudo obra de Graciano e dos seus comentaristas.

Quem pôs fim a esta confusão de idéias foi São Tomás de Aquino [século XIII], que entendeu como "lei natural" aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus,

governante do universo, que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto racional... Tomado tradicional, ele foi e ainda é, embora não tenha sido nunca

declarado pela Igreja matéria de fé, o centro da doutrina moral e jurídico-politica católica. Contudo, dentro da teologia da Idade Média tardia, ele foi asperamente

impugnado pelas correntes voluntaristas, que tiveram seu maior expoente em Guilherme de Ockham [século XIV]. Para estas correntes, o direito natural é, sem

dúvida, ditado pela razão, mas a razão não é senão o meio que notifica ao homem a vontade de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o direito natural com base no

seu arbítrio; uma tese que foi reassumida e desenvolvida, no inicio, pela Reforma protestante.

Origem do Jusnaturalismo moderno

Na realidade, a doutrina tomista da lei natural não fazia senão repetir, embora inserindo-a em moldes teológicos, a doutrina estóico-ciceroniana da lei "verdadeira"

enquanto racional. Foi justamente em polêmica com o voluntarismo das alas extremas do calvinismo que

nasceu a doutrina usualmente considerada como origem do jusnaturalismo moderno, a doutrina do holandês Hugo Grotius [Huig de Groot], enunciada no De jure belli ac

pacis, de 1625.No século XVII, a obra de Gtotius, graças também à sua atualidade como tratado

sistemático de direito internacional e à fama que, como tal, obteve em toda a Europa, difundiu com grande eficácia a idéia de um direito "natural", ou seja, "não sobrenatural", um direito que tinha a sua fonte exclusiva de validade na sua conformidade com a razão humana. Este conceito do direito natural influiu

profundamente na difusão 'da idéia da necessidade de lhe adequar o direito positivo e a constituição política dos Estados, bem como a da legitimidade da desobediência e dá resistência às leis e constituições que não se lhe adaptassem. Aliás, esta tendência se

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desenvolveu também à margem da influência direta do jusnaturalismo inspirado por Grotius ou dele derivado e, tendo se encontrado na Inglaterra 'com a antiga tradição constitucionalista do país, que já havia estabelecido limitações ao poder real, achou uma forma precisa nos Dois Tratados sobre o Governo Civil de Locke, escritos em

tomo de 1680 e publicados em 1690. Além disso, o jusnaturalismo do século XVII, tanto quanto o fora para Grotius,foi também de grande importância, como fundamento

teórico, para o direito internacional: quase todos os tratados de direito internacional daquele tempo têm por título: Do direito natural e das gentes.

Características do jusnaturalismo moderno

É Precisamente devido a esta sua característica que o jusnaturalismo moderno, isto é, o jusnaturalismo dos séculos XVII e molda profundamente as doutrinas políticas de

tendência individualista e liberal, expondo com firmeza a necessidade do respeito por parte da autoridade política daqueles que são declarados direitos inatos do indivíduo.

O próprio Estado é considerado pelo jusnaturalismo moderno mais como obra voluntária dos indivíduos do que como instituição necessária por natureza, que era o

que ensinava a maior parte das doutrinas clássicas e medievais. Em algumas doutrinas jusnaturalistas modernas, o individualismo é levado até o ponto de se consideras a própria sociedade como efeito de um contrato entre os indivíduos; o

contrato social se desdobraria assim em dois momentos, pacto de união e pacto de sujeição. Mas isto' é mais raro do que comumente se crê, porque, também entre os

jusnaturalistas modernos, o estado de natureza é geralmente representado como uma forma de sociedade; mas uma sociedade tão precária e incerta que se torna

conveniente sair dessa situação para fazer surgir uma instituição jurídico-política organizada.

Direitos inatos, estado de natureza e contrato social, conquanto diversamente entendidos pelos vários escritores, são os conceitos característicos do jusnaturalismo

moderno; acham-se de tal modo presentes em todas as doutrinas do direito natural dos séculos XVII e XVIII, que se pode falar [na verdade, impropriamente] de uma "escola do direito natural". Isto permitiu que muitos reservassem a expressão jusnaturalismo

para as doutrinas desse período histórico. E foi isto também que criou a opinião errônea de que idéia do direito natural nasceu e foi cultivada apenas a partir deste

período, nomeadamente desde Grotius em diante. O ideal jusnaturalista do século XVIII teve assim enormes resultados políticos: foi na

doutrina do direito natural que se inspirou, conquanto confluíssem também outros elementos históricos e doutrinários, oriundos, sobretudo da tradição constitucionalista inglesa - a Declaração da Independência dos estados Unidos da América [1776], onde se afirma que todos os homens são possuidores de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade; e é de caráter genuinamente jusnaturalista

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [1789] que constituiu um dos primeiros atos da Revolução Francesa e onde se proclamam igualmente como "direitos

naturais", dentre outros, a liberdade, a igualdade e a propriedade.

O jusnaturalismo do século XIX

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A idéia de um sistema racional e universal de normas [que se harmonizava com as tendências da cultura iluminista, tendente à racionalização e à sistematização de todos os aspectos da realidade e excludente das contribuições da tradição e da história, bem como de tudo aquilo que não parecesse ditado pela razão] se opunha de modo gritante

à realidade da vida jurídica daquele tempo. Sentia-se, por isso, uma forte necessidade de reformas legislativas que dessem ao

direito principalmente certeza; o jusnaturalismo, com sua teoria de um direito absoluta e universalmente válido, porque ditado pela razão, era capaz de oferecer as bases

doutrinais para uma reforma racional da legislação. Com a promulgação dos códigos, principalmente do napoleônico, o jusnaturalismo

exauria a sua função no momento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transposto o direito racional para o código, não se via nem se admitia outro direito senão este. O

recurso a princípios ou normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo. Negou-se até, tirante o código austríaco de 1811, que se pudesse

recorrer ao direito natural em caso de lacuna do ordenamento jurídico positivo: triunfou o princípio característico do positivismo jurídico [ou seja, da posição oposta

ao jusnaturalismo] de que, para qualquer caso, se pode sempre encontrar solução dentro do ordenamento jurídico do Estado.

O jusnaturalismo veio a cair, assim, no decorrer do século XIX, em total descrédito. Sobreviveu apenas na sua forma católica, baseada na doutrina das leis de São Tomás

de Aquino, mas só no âmbito clerical, com uma finalidade conservadora e muitas vezes reacionária, servindo, sobretudo de instrumento de contestação da legitimidade do Estado liberal e constitucional. O adjetivo jusnaturalista é usado pelos juristas em sentido depreciativo, para indicas conceitos ou argumentos estranhos ao campo da juridicidade, não se entendendo mais por jurídico senão o que concerne ao direito

positivo.

O jusnaturalismo contemporâneo

O jusnaturalismo despontou de novo depois da 2a Guerra Mundial, como reação ao estatismo dos regimes totalitários. Em grande parte, o fenômeno se verificou ainda no

âmbito da cultura católica; mas também nos ambientes protestantes alemães e em medida bastante notável no mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo e, sobretudo como dique e limite ao poder do Estado. E típica a tal respeito a

posição tomada por um dos maiores juristas alemães, Radbruch. A forma em que hoje o jusnaturalismo parece ainda poder ter vitalidade é aquela em

que ele se aproxima das doutrinas sociológicas e "realistas" do direito. Estas doutrinas rejeitam o positivismo jurídico por causa do seu formalismo, ou seja, pelo mesmo

defeito que o historicismo romântico e idealista imputava ao jusnaturalismo. O jusnaturalismo tem hoje diante de si unia função, talvez arriscada, mas que pode ser fecunda. O problema dos fins e dos limites desta função abrange, todavia, o problema da relação entre o juiz e a lei e, conseqüentemente, também o problema das relações entre o poder legislativo e o poder judiciário, na medida em que admitir que o juiz

possa invocar um "direito natural", além de poder comprometer a certeza do direito, atribui aos órgãos judiciários o poder, em resumo, de criar o direito.

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O conceito de estado de natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do estado de natureza:

1. A concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou "o homem lobo do homem". Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;

2. A concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, pelo grito e pelo canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: "É meu". A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao estado de sociedade, que corresponde, agora, ao estado de natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.

O estado de natureza de Hobbes e o estado de sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para fazer cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.

A passagem do estado de natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.

Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – "Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu" – e a Lei Régia romana – "O poder é conferido ao soberano pelo povo" – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.

Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito á vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais forte e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes foram livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.

A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são

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livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro, e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.

Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.

A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e que possui um destino comum.

A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independente e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por uma ato voluntário, tornar-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana.

A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados. Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contatos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.).

Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta.

Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O fundamental não é o número dos governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens.

Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral, coletiva, livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil: aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania.

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Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.

John Locke e a teoria liberal – No pensamento político de Hobbes e de Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no estado de natureza (em Hobbes) e no estado de sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-la. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.

De fato, embora o capitalismo estivesse em via de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse uma legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realiza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.

Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.

Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?

Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto. Por todos esse motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.

O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural da propriedade.

Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.

O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez

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de acumulá-lo para adquirir propriedades, seja porque são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Se a função do estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?

A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da Independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século XX, com pensadores como Max Weber, dirá que a função do Estado é tríplice:

1. Por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;

2. Visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;

3. O Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.

Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.