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Luis Fernando Guimarães Zen ESTADO E DEMOCRACIA A PARTIR DOS LIVROS DIDÁTICOS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA E OSPB NA DÉCADA DE 1970 Cascavel 2008

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Luis Fernando Guimarães Zen

ESTADO E DEMOCRACIA A PARTIR DOS LIVROS DIDÁTICOS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA E OSPB NA DÉCADA DE 1970

Cascavel 2008

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Luis Fernando Guimarães Zen

ESTADO E DEMOCRACIA A PARTIR DOS LIVROS DIDÁTICOS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA E OSPB NA DÉCADA DE 1970

Monografia de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-graduação em História da Educação Brasileira realizado pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Orientadora: Aparecida Darc de Souza

Cascavel 2008

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Aos meus pais e a todos os meus amigos.

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Índice

Apresentação: ................................................................................05 I Capítulo: O Conceito de Democracia e Estado .............................................10 II Capítulo: A Democracia e o Livro Didático .................................................22 Conclusão: .....................................................................................39 Bibliografia: ...................................................................................41

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APRESENTAÇÃO

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa desenvolvida junto ao Programa

de Pós Graduação Lato Sensu em História da Educação Brasileira, promovido pela

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). O curso teve início em 2006 e

visava desenvolver estudos sobre a educação no Brasil, desde a era dos descobrimentos

até os dias de hoje.

Na definição do tema da monografia, bem como de seu objeto, levei em

consideração a proposta do programa. Porém, busquei articula-la com as discussões que

estava fazendo na construção do projeto de Mestrado em História. O projeto foi

desenvolvido com o objetivo de estudar o processo da transição do regime militar

instalado em 1964 para o regime democrático consolidado ao longo da década de 1980.

Neste sentido, defini-me por desenvolver um estudo sobre o modo como os livros

didáticos, adotados nas escolas da região do oeste do Paraná, durante o período da

ditadura militar, apresentavam os conceitos de Estado e Democracia. A partir dessa

proposta de pesquisa eu pude articular os estudos sobre educação feitos na

especialização com a pesquisa histórica das dinâmicas políticas que caracterizaram o

período da ditadura militar.

A escolha do livro didático como objeto e como fonte da pesquisa está

relacionada ao fato de ele ainda ser um dos principais suportes do trabalho do professor,

principalmente das escolas públicas. Além disso, o livro didático acaba tornando-se o

grande e, em muitos casos, o único referencial para a reprodução do conhecimento para

a maioria dos alunos e quando não, para muitos professores. A partir desse ponto de

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vista, penso ser importante que a prática da docência esteja aliada a uma reflexão

contínua do papel e do significado dos conteúdos dos livros didáticos, bem como de sua

função na formação e construção da visão de mundo dos alunos.

Tomar o livro didático utilizado na região do oeste do Paraná no contexto da

ditadura militar como objeto de investigação, significa a possibilidade de analisar a

matéria prima dos instrumentos de convencimento ideológico que garantiram que

gerações como a minha tenham crescido ouvindo dos nossos pais que: “Bom era no

tempo dos militares”.

Nesta perspectiva, o objetivo desta pesquisa é desenvolver a análise dos livros

didáticos caminhando na direção de perceber as características ideológicas do texto e,

portanto, ver em que medida o discurso destes livros sobre a natureza do Estado e o

significado da democracia contribuíram ou não para sustentar, legitimar e justificar o

regime militar.

Inicialmente, pretendia analisar livros didáticos de História, mas ao pesquisar

junto a Biblioteca Pública Municipal não havia muitos livros didáticos publicados no

período da ditadura militar. Entre os poucos livros encontrado, todos foram publicados a

partir da década de 1970. Isso comprometeu a possibilidade de analisar somente livros

de História, pois a partir da década de 1970, a estrutura do ensino do país foi

reformulada. O governo militar, através da lei 5.692/711, promoveu mudanças na grade

curricular do ensino fundamental e médio, substituindo as disciplinas de História e

Geografia pela disciplina de Estudos Sociais. Nesse contexto, a História passou a dividir

espaço também com as disciplinas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e

Política Brasileira (OSPB).

1 ROMANELLI, Otaiza de Oliveira. História da Educação Brasileira, RJ. Vozes, 1978. Ela se refere as mudanças na grade curricular através da lei 5.692/71, que substituía as disciplinas de História e Geografia pela disciplina de Estudos Sociais, essa medida foi adotada para o 1ºgrau, no segundo grau as duas disciplinas continuaram existindo, mas passaram a dividir espaço com Organização Social e Política Brasileira.

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A leitura inicial dos livros me levou a perceber que as discussões em torno de

temas como Estado e Democracia estavam mais presentes nos livros de OSPB e

Educação Moral e Cívica do que nos livros de Estudos Sociais. Essas disciplinas tinham

por objetivo politizar os alunos, mas politizar de modo a informá-los sobre conceitos e,

portanto, de educá-los para garantir um comportamento político adequado à ordem

social estabelecida. A idéia da Educação Moral e Cívica era formar o cidadão para agir

na sociedade, mas acima de tudo, formar um cidadão que levasse consigo seu papel na

sociedade. Logo na introdução do livro Educação Moral e Cívica, de Edilia Coelho

Garcia, publicado em 1971 pela Editora Didática Irradiante S/A, a autora afirmava esse

propósito da disciplina:

Pareceu-nos que se desejamos dar à Educação Moral e Cívica uma roupagem nova e, principalmente, se desejamos torna-la uma atividade atraente para os nossos jovens, precisamos liga-la à vida de todo o dia, mostrando aos nossos alunos que estamos procurando ensinar-lhes algo que utilizem, que acontece, que faz parte do seu dia-a-dia. É de forma global que devem ser dadas lições de vida. (Garcia, 1971, 11)

Diante dessa primeira impressão optei por desenvolver a análise dos livros

didáticos de Educação Moral e Cívica e OSPB. Entre os livros encontrados no

Laboratório de Ensino de História da UNIOESTE, foram selecionados dois volumes,

dirigidos ao ensino fundamental e médio, publicados entre o início e meados dos anos

de 1970. Essa seleção foi em grande medida determinada pelas limitações do acervo da

Biblioteca Pública Municipal e pela intenção de acompanhar os livros didáticos

utilizados durante a década de 1970, uma fase da ditadura militar caracterizada, ao

mesmo tempo, pelo recrudescimento da repressão no início da década e pela introdução

de uma política de distensão ao seu final.

O primeiro o livro é Educação Moral e Cívica, de Edilia Coelho Garcia,

publicado em 1971 e voltado para o público do então 2º grau. A segunda obra

selecionada nessa pesquisa foi publicada em 1975, escrita por Umberto A. de Medeiros,

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OSPB – Organização Social e Política Brasileira, destinada ao público do então 1º

grau.

A data de edição do livro de Edilia Coelho corresponde, justamente, ao período

em que a estrutura do ensino do país estava sendo reformulada, essa reformulação

começa logo depois da chamada “crise universitária de 1968.” Depois da crise foram

firmados os acordos entre o Ministério da Educação Brasileiro, o MEC, e a Agency for

International Development (AID), chamados acordos MEC-USAID.2 Segundo

Romanelli, o acordo de cooperação entre as duas secretarias visava reorganizar a

estrutura do ensino no Brasil. O resultado dessa cooperação foi à lei 5692/71 já citada

anteriormente e que reestruturava o ensino no Brasil. O primeiro livro analisado foi

editado no mesmo ano da reformulação da lei, 1971.

O segundo foi editado em 1975, período que o governo militar já estava

considerando a hipótese de uma abertura política, embora o próprio governo militar já

considerasse a necessidade de abertura, essa discussão não está presente no livro.

Para desenvolver a proposta de análise dos conceitos de Estado e Democracia

nos livros didáticos, tornou-se necessário delimitar os caminhos de reflexão teóricos

acumulados sobre tais conceitos. Desse modo, a discussão bibliográfica em torno desses

dois conceitos se constitui em um capítulo. Essa discussão é importante no sentido de

apoiar o trabalho de análise dos discursos apresentados nos livros didáticos. A partir

dessas leituras é possível reconhecer as concepções teóricas e ideológicas defendidas

pelos autores dos livros didáticos.

No segundo capítulo, está desenvolvida a análise do modo como os livros

didáticos de Educação Moral e Cívica e OSPB apresentavam os conceitos de Estado e

Democracia. Essa análise teve como objetivo perceber as características do discurso

2 ROMANELLI, Otaiza de Oliveira. História da Educação Brasileira, RJ. Vozes, 1978. p. 179

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apresentado nos livros analisados e, em que medida esse discurso favorecia a

manutenção da ordem estabelecida pela ditadura militar. Como esses livros operavam os

conceitos de Estado e Democracia de modo a legitimar um governo caracteristicamente

autoritário? Essa abordagem parte do pressuposto que o livro didático pode ser um

veículo de reprodução da ideologia e do modelo político e econômico adotado pelo país

naquele momento.

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I - O Conceito de Democracia e Estado

Nas últimas décadas a historiografia brasileira tem depositado uma atenção

especial ao estudo de questões políticas, compreendidas como mecanismos que

possibilitam interpretar com um certo grau de relevância as relações individuais e

coletivas ocorridas no âmbito do processo de formação social do país. A História

Política vem merecendo, inclusive, um papel de destaque nos estudos direcionados à

melhor compreensão das questões históricas e sociais.

Este trabalho busca desvincular-se de um paradigma tradicional, não mais

somente percebendo a História Política como a história dos grandes feitos, dos grandes

heróis, mas buscando entender a política com suas relações interdisciplinares como

observa Peter Burke “a oposição a muito estabelecida entre os historiadores políticos e

não políticos está finalmente se dissolvendo (...) em vez disso nos vemos preocupados

com o conhecimento social na política e com o elemento político na sociedade.”3 Ou

seja, há uma constatação cada vez maior de que a política não pode ser estudada

separadamente, isolada de todo o contexto social no qual está inserida e da sociedade na

qual foi produzida, inclusive verificando o interesse e ambição dos sujeitos integrantes e

integrados políticos.

Estudar a recente história política brasileira torna-se cada vez mais relevante,

tendo em vista que desde o processo de redemocratização do país o sufrágio universal é

visto como a única forma possível de elegermos nossos representantes e que através

deles passamos a ter voz e a sermos representados no cenário político nacional. Mas

3 BURKE, Peter (org). A Escrita da História: novas perspectivas. Ao longo de todo o livro, Burke e seus colaboradores escrevem sobre novas formas de abordagem histórica atreladas a utilização de novas fontes também. O olhar direcionado a política também teria sido modificado, perceberia cada vez mais a história política com fortes aproximações sociais, isso possibilitaria a realização de uma história com possibilidades de ser mais completa, não detendo-se apenas a critérios e conceitos econômicos.

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essa não é a única diferença entre democracia e ditadura, portanto, é importante fazer

uma análise mais aprofundada dessas formas de dominação por parte do Estado.

A idéia de democracia é muito antiga embora uma verdadeira democracia talvez

nunca tenha sido experimentada. Desde os gregos antigos ouve-se falar em democracia,

embora eles mesmos não tenham experimentado já que apenas uma pequena parte deles

tinha direito ao voto.

A atual democracia experimentada em muitos países se aproxima mais do

conceito de Thomas Hobbes sobre elegermos representantes. Hobbes parte do princípio

de que “todo o homem é mau por natureza” e de que vivemos uma “guerra que é de

todos os homens contra todos os homens.”

Ele justifica através desses dois conceitos que os homens não podem viver em

paz sem que haja um poder comum que esteja acima deles “por outro lado, os homens

não tiram prazer algum da companhia uns dos outros, quando não existe um poder

capaz de manter a todos em respeito.”4 Dessa forma, Hobbes contextualiza o surgimento

do Estado,

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças ao fruto da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. (HOBBES, 2004, 95)

Essa é a síntese do surgimento do Estado para Hobbes, ou seja, como um

mediador necessário para a convivência pacífica entre os homens que em comum

acordo passam o direito de serem governados por outros homens. O que resta saber é

em que momento histórico isso acontece, quando que os homens, em comum acordo,

4 HOBBES, Thomas. LEVIATÃ, São Paulo, Martin Claret, 2004, p.95

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resolvem passar o direito de serem governados para os outros homens, quem eram esses

homens e porquê que eles aceitaram essa tarefa tão árdua de governar outros homens.

Thomas Hobbes vivenciou o nascimento do liberalismo econômico, participou

ativamente da fundamentação de teorias econômicas e políticas que vieram a sustentar a

moderna sociedade capitalista, tanto no seu surgimento quanto na sua contínua

expansão. Ainda nos dias atuais convivemos com esse estigma que, talvez para o meio

em que Hobbes viveu fizesse muito sentido, já que estamos falando de um “cidadão”

que viveu entre a nobreza e a nascente burguesia do século XVI.

Que “os homens são maus por natureza” talvez fizesse muito sentido para a

sociedade em que Hobbes viveu, afinal, o nascimento da sociedade capitalista na

Europa foi marcado pela total “exploração do homem pelo homem”, como diria Marx.

Foi o período da introdução do trabalho assalariado, de extensas jornadas de trabalho,

da introdução do trabalho feminino e infantil, da separação entre o trabalhador e os

meios de produção. Com esse cenário, não fica difícil entender o comportamento “mau”

da natureza dos homens.

Já para alguns teóricos contemporâneos incumbidos de dar soluções às crises

sociais e econômicas geradas após a Segunda Guerra Mundial, o Estado serviu

novamente de intermediário para garantir os interesses dos países centrais do

capitalismo frente a expansão mundial do socialismo. Entre os intelectuais envolvidos

no processo de elaborar propostas de solução e apontar caminhos para o capitalismo no

pós Segunda Guerra, foi Frederik Hayek.

Hayek trata o socialismo como uma “grande utopia” e que se levado a cabo seria

o “Caminho da Servidão.” Ele alega que “essa convicção apenas intensificaria a

tragédia se ficasse demonstrado que aquilo que nos prometiam como o Caminho da

Liberdade era na realidade o Caminho da Servidão.” (Hayek, 1994, 50) A base do

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socialismo que ele usa não é, obviamente, a de Marx ou Engels, mas sim a do

socialismo stalinista, o qual ele define de “superfascista.” Para Hayek, “stalinismo é

socialismo, no sentido de que constitui uma decorrência política inevitável embora

imprevista da estatização e da coletivização, elementos em que ele (Stalin)

fundamentara parte de seu plano de construção de uma sociedade sem classes.” (Hayek,

1994,50)

Afirmar que o stalinismo pode ter levado a Revolução Soviética rumo ao

autoritarismo ou a coerção da liberdade é uma coisa, agora, dizer que “o marxismo

levou ao fascismo e ao nacional-socialismo porque em essência marxismo é fascismo e

nacional-socialismo,” (Hayek, 1994, 51) é outra coisa. Ora, se o exemplo clássico de

totalitarismo (Itália e Alemanha) que desencadearam na Segunda Guerra Mundial foram

conseqüências do socialismo, então como explicar a guerra a partir das disputas

comerciais ou Imperialistas entre as grandes potências da época? Isso sim pode ter

desencadeado os conflitos, ou seja, uma disputa provocada pelo desenvolvimento das

grandes nações capitalistas.

“O Caminho da Servidão” é traduzido no Brasil por Roberto Campos, um ex-

militar e com intimas ligações com a ditadura. Se uma das argumentações dos militares

para o golpe de 1964 foi a de que o país passava por uma “ameaça comunista” o que

para Hayek poderia ser o “caminho da servidão” e da “restrição da liberdade,” como

explicar então o discurso de Castelo Branco na aula inaugural da Escola Superior de

Guerra em 1965, quando ele lançou a “Doutrina de Segurança Nacional” afirmando

que “se o problema é a luta de classes, escolhe-se uma classe eleita e eliminam-se as

outras.”

Foram a partir desses princípios que se deram às relações de poder no país após

o golpe. Se o socialismo leva ao caminho da servidão como afirma Hayek que foi tão

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elogiado por Roberto Campos, as formas de dominação adotadas pelos militares é uma

contradição para os políticos da “Segurança Nacional” e do “AI 5,” da censura, do

exílio, da norte de Vladimir Erzog, da repressão à “antiga” UNE e dos movimentos

sociais, ou seja, daqueles considerados subversivos, comunistas, baderneiros,

anarquistas ou socialistas.

Para Tocqueville, Liberdade e Igualdade é o mesmo que Democracia. O grande

exemplo de democracia para ele era os Estados Unidos da América, país que ele

apontava já em 1835, que um dia, iria “deter nas mãos, (...) os destinos da metade do

mundo.” (Quirino, 1989, 152)

Célia Galvão Quirino, afirma que:

democracia para Tocqueville está sempre associada a um processo igualitário que não poderá ser sustado, desenvolvendo-se também diversamente em diferentes povos, conforme suas variações culturais. Porém, será sobretudo a ação política desse povo que irá definir se essa democracia será liberal ou tirânica. (Quirino, 1989, 155)

Tocqueville vivenciou os primeiros passos da democracia no início do século

XIX, quando as experiências anteriores (Absolutismo ou Despotismo) ainda eram muito

presentes. Diante das teses “Utópicas” de socialismo, a democracia poderia realmente

encantar a sociedade européia e a americana. Porém, como ele poderia falar em

igualdade ou liberdade sendo parlamentar e oriundo de um nascente capitalismo que

naquele momento já colhia os lucros da exploração colonial, das grandes navegações e

do tráfico de escravos? Mesmo que os Liberais e o próprio Tocqueville tenham rejeitado

a escravidão, jamais rejeitaram os grandes lucros acumulados de capital financeiro

proporcionado por tais práticas.

Para a realização dessa pesquisa, deve-se considerar principalmente as

bibliografias referentes à formação do Estado moderno burguês. Esse conceito precisa

ser bem desenvolvido já que é dele que se forma a atual concepção de democracia.

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Para Engels, assim como para Marx, o Estado surgiu da “necessidade de conter

os antagonismos de classe,”5 Engels afirma ainda que:

O Estado não é de modo algum, um poder que é imposto de fora à sociedade e tão pouco é “a realidade da ideia ética”, nem “a imagem e a realidade da razão,” como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando essa chega a um determinado grau de desenvolvimento. É o reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições inconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não se consumam a sociedade numa luta estéril, chamado a amortecer o choque e mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela é o Estado. (ENGELS, 2005, 181)

Para contextualizar o surgimento do Estado, serão utilizadas várias outras

literaturas e autores entre eles: Lênin, Engels, Marx, Ellen Wood e Thomas Hobbes,

além de outras contribuições como Gramsci e Sônia R. Mendonça. Mas o principal

conceito a ser usado será o de Marx,

Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classes, um órgão de opressão de uma classe pela outra, é a criação da “ordem” que legaliza e avaliza essa opressão, amortecendo os choques entre as classes. Na opinião dos políticos pequeno-burgueses, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a opressão de uma classe por outra. Amortecer os choques para eles significa conciliar. Não significa privar as classes oprimidas de certos meios e procedimentos de luta para a derrubada dos opressores. (LÊNIN, 1979, 55)

Segundo Sônia Regina de Mendonça, que parte da premissa de Estado

com base em Gramsci,

O Estado, para Gramsci, não é nem sujeito - algo a pairar, inconteste, acima da sociedade -, nem objeto - como propunham algumas leituras marxistas economicistas -, mas sim uma relação social, ou seja, a condensação das relações sociais presentes numa dada sociedade. Nesta nova ótica, o Estado é atravessado pelo conjunto das relações sociais existentes numa formação social determinada, incorporando em si mesmo os conflitos vigentes na formação social. (MENDONÇA, 1999, p. 20)

5 ENGELS, F. in LENIN, V. U. Obras Escolhidas – tomo 1, 1º ed. São Paulo, Alfa-Omega, 1979 p.56. Lênin faz uma análise da formação do estado moderno burguês e utiliza-se de vários conceitos marxistas.

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A partir desses conceitos de Estado, essa pesquisa poderá se desenvolver e

analisar qual é o projeto político econômico presente nos livros didáticos analisados,

buscando compreender com qual deles o Brasil se identifica, podendo assim ser

compreendido como se constitui a democracia durante o regime militar.

Esse é o primeiro conceito desenvolvido aqui, o conceito de Estado. Mas só isso

não é o suficiente para compreender as relações que envolvem a sociedade

contemporânea. O Estado não é somente o “órgão de dominação de uma classe pela

outra” ou o “Leviatã,” para que ele se estabeleça diante da sociedade ele necessita criar

a idéia de consenso mesmo que esse consenso seja a dominação de uma classe pela

outra e que esteja disfarçado de alguma forma.

Os liberais conseguiram estabelecer esse consenso através da democracia, para

isso fundamentaram-se em “direitos naturais” e defenderam seus interesses colocando-

os como se fossem os interesses da maioria, para garantir que isso fosse possível,

bastava os próprios liberais estabelecerem as regras para as eleições.6

Os liberais costumam associar a democracia ao capitalismo, na perspectiva que

vem sendo trabalhada aqui, essa associação é extremamente necessária tendo em vista

que na forma como as duas coisas vão aparecer nos livros didáticos essa junção ajuda a

justificar o autoritarismo dos militares ao mesmo tempo em que se fala de um Estado

democrático, mas, que tinha como política econômica suas bases encravadas no

capitalismo.

A historiadora estadunidense Ellen Meiksins Wood, em seu livro “A

Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico”, parte da

premissa de que o capitalismo é, na sua essência, incompatível com a democracia. Vale

lembrar que a autora escreve esse livro em 1995, pleno período dá publicação dos

6 Não nos interessa aqui entrar na discussão sobre como os liberais tomaram o poder tendo em vista que esse foi um processo longo e porque não “revolucionário”

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estudos de Francis Fukuyama alegando que era o fim da história, ou seja, o capitalismo

havia vencido o socialismo.

Wood divide o livro basicamente em duas partes, em uma delas dedica grande

parte dos seus estudos fazendo um resgate histórico do desenvolvimento da democracia

que ela analisa desde a ateniense até as atuais formas de democracia vinculadas ao

capitalismo. Grande parte desse livro é dedicado ainda para contestar a idéia de “fim da

história,” “fim das ideologias,” “fim do marxismo” e o “fim do socialismo.”

Para a autora, um capitalismo humano, “social” e equitativo seria mais irreal e

utópico de que o socialismo. Assim, o projeto teórico principal do marxismo, “a crítica

ao capitalismo,” e a sua “crítica à economia de mercado,” seriam hoje mais oportunas

do que nunca. (WOOD, 2003, 27)

Para Ellen Wood,

O que talvez não seja tão evidente são os princípios antidemocráticos contidos na ideia de cidadania democrática (...). Os criadores da constituição se engajaram na primeira experiência de criação de um conjunto de instituições políticas que corporificam, e simultaneamente limitariam o poder popular, num contexto em que já não era possível manter um corpo exclusivo de cidadãos. Onde já não existia a opção de uma cidadania ativa, mas excludente, teria sido necessário criar um corpo de cidadãos inclusivo, porém passivo, cujos poderes tivessem alcance limitado. (WOOD, 2003, 29)

Ellen Wood propõe a renovação do programa crítico do materialismo histórico

pela redefinição de seus princípios básicos e de sua teoria da história. Explora também o

conceito de democracia no mundo antigo e no mundo moderno, examinando suas

relações com o capitalismo e levantando questões sobre como o poder público pode

ultrapassar os limites a ele impostos pelo regime do capital.

Wood chama a atenção para o fato de que “a crítica original do capitalismo não

poderia ser executada sem a convicção de que existem alternativas, e isso se realizou a

partir do ponto de vista da antítese do capitalismo, o socialismo.” Vale lembrar que,

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com o colapso do “socialismo real” dos países do leste europeu, difundiu-se a idéia de

fim do marxismo. Para Ellen Wood,

Há algo de estranho na premissa de que o capital representa a crise terminal do marxismo. Podia-se esperar, entre outras coisas, que um período de triunfalismo capitalista devesse oferecer mais espaço, em relação a qualquer outra época, para o principal projeto marxista: a crítica do capitalismo. (WOOD, 2003, 27)

A autora coloca ainda que:

O objetivo principal dessa crítica foi a transformação da ideia socialista, de uma aspiração a-histórica, num programa político baseado nas condições históricas do capitalismo. (...) Se existe hoje um tema unificador entre as várias oposições fragmentadas, é a aspiração à democracia. (WOOD, 2003, 27)

Vale lembrar que desde o século XIX alguns autores já desenvolviam críticas

sobre o sufrágio universal, eles apontam esse caminho como um instrumento de

dominação da burguesia e que aquela experiência de democracia servia principalmente

ao capitalismo. Para Lênin,

Há que se observar, além disso, que Engels, com a maior precisão, chama também o sufrágio universal de instrumento de dominação da burguesia. O sufrágio universal diz Engels, baseando-se evidentemente na longa experiência da social democracia alemã, é “o indicio de maturidade da classe operária. Não se pode chegar e não se chegará nunca a mais do que isso no Estado atual.” (LENIN, 1979: 21)

Pensar a democracia hoje é pensar a forma atual como o capitalismo vem se

desenvolvendo. Essa é a forma atual que a burguesia utiliza para construir e manter o

consenso dentro da sociedade contemporânea, como ela aparece bem justificada, nos

passa a impressão de que todos nós somos bem representados e que o voto nos dá a

condição de cidadão.

Para Sônia Regina de Mendonça,

O que é peculiar ao Estado contemporâneo, o qual, por sua vez, deve ser pensado como uma relação social em si mesmo, é que ele guarda um espaço de consenso e não só de violência, sendo o consenso – ou consentimento- obtido, para Gramsci, através dos aparelhos privados de hegemonia, bem como através da ação do Estado restrito, que busca promover e generalizar a visão da fração de classes hegemônicas. [grifos da autora] (MENDONÇA, 1999, 21)

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Nesse sentido, cabe pensar até que ponto os militares tiveram consenso em torno

do seu projeto de governo, não foi só o uso da força, existiu apoio de uma parte

significativa da população que concordava com aquele modelo político. É nesse sentido

que a escola entra como uma reprodutora das ideologias do Estado e um dos veículos

que continuam possibilitando essa reprodução ideológica ainda é o livro didático.

Em outro momento, já no final do regime militar, essas políticas aparecem de

uma outra forma. Retira-se de pauta a discussão de democracia, no entanto, não podem

ser tão contraditórios a ponto de mudar seu discurso e admitirem a redemocratização.

Em, O Jogo da Direita, Dreifuss destaca as formas como a burguesia se

organizou para defender seus interesses no processo de redemocratização do país. Ele se

utiliza da imprensa como fonte para seus estudos. Nessa obra são comuns as referências

a jornais (que já começam pela capa do livro) que divulgam matérias sobre os encontros

e discussões realizadas pelos grupos de fazendeiros, empresários e porque não, dos

donos de jornais, revistas e televisão.

Outra importante obra de Dreifuss e que vem a contribuir diretamente com essa

pesquisa é A Internacional Capitalista. Nesse livro, Dreifuss fala sobre os acordos

firmados ente os governos militares com agências estadunidenses e a forma como eles

interagiam com diversas entidades brasileiras, sejam elas de organização empresarial ou

até mesmo entre os sindicalistas e estudantes.

Nesses dois últimos casos, eles trabalharam para mudar não só as formas de agir,

mas principalmente as bandeiras de luta que deixaram de ser por “socialismo” (se é que

um dia isso foi consenso entre estudantes e sindicalistas) e passou a ser “democracia,”

No campo acadêmico estudantil, o Council patrocinou a visita de centenas de estudantes brasileiros aos Estados Unidos, depois de avaliá-los como “possíveis futuros lideres.” (...) O Council também passou a patrocinar lideranças “democráticas” no meio estudantil financiava a formação de quadros anti-comunistas, assim como a vinda de cientistas

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políticos e pesquisadores, para “explicar” aos cidadãos brasileiros de que maneira eles poderiam fortalecer o “sistema democrático.” (Dreifuss, 1987, 256 )

A pergunta que fica é a seguinte, se os estadunidenses tinham tanto interesse em

“democratização” do Brasil, então por que eles tinham uma proximidade tão grande

com os militares brasileiros? Por que Costa e Silva visitou os Estados Unidos antes

mesmo de assumir a presidência do país? Por que tanto interesse em formar quadros

políticos que defendessem a “democracia” e contestassem o “comunismo”? Certamente

não teremos respostas dessas perguntas nos livros analisados.

Não cabe aqui contextualizar os porquês da ditadura militar no país, no entanto,

não podemos fugir totalmente desse debate. Para compreendermos a discussão que está

sendo proposta aqui, vamos partir do princípio de que a ditadura militar brasileira foi

uma forma de impedir o avanço de uma “ameaça comunista.”7

Dessa forma, como falar em uma democracia que respeitasse liberdade e

Igualdade, tendo em vista que a ditadura pode ter se caracterizado pela perseguição e

repressão de vários segmentos dessa sociedade, será que essa ameaça era tão grande que

não poderia ser dado voz às tendências contrárias ao regime? Até que ponto essa

“liberdade” foi respeitada nas ditaduras militares que serviram para garantir o

desenvolvimento do capitalismo em diversos países, inclusive o Brasil.

Para Dreifuss, o golpe foi articulado pelas elites orgânicas do Brasil e dos

Estados Unidos que costumavam se reunir para discutir

vários assuntos que afetavam os interesses multinacionais e associados e que eram temas essenciais das elites orgânicas modernizante conservadoras da América Latina e de suas congêneres norte-

7 Em minha trajetória no movimento estudantil, certa vez, em uma aula de início de ano, estávamos em uma atividade com alunos do primeiro ano do Curso de História, na qual debatíamos sobre a ditadura militar, quando um senhor de aproximadamente, sessenta ou setenta anos pediu a palavra e argumentou em tom forte e com uma convicção plena as seguintes palavras: “eu era militar na época da ‘revolução’ e muita gente fala sem saber, mas o que aconteceu em 64 é que existia uma ameaça comunista no Brasil.” Esse foi o mesmo argumento usado pelos militares que lançaram sua “Doutrina de Segurança Nacional” em 1965 na Escola Superior de Guerra.

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americanas. Planificação governamental e privada, mercado comum latino-americano, o papel político e social da empresa privada e do empresário, o combate ao comunismo e a implantação das reformas capitalistas. (Dreifuss, 1987, 112)

Essa pesquisa não tem a pretensão de responder todas essas questões levantadas

até aqui. O que cabe ser investigado é como os livros didáticos encaravam o Estado e a

democracia, como eles difundiam as suas (ou até que ponto eram deles) ideias e qual

seria seu projeto. Se encararmos os livros didáticos enquanto difusores das ideias dos

militares, podemos entender qual era a sua concepção ideal de política para o país e

quais eram as organizações diretas da burguesia que são apontadas por Dreifuss, dessa

forma, podemos nos aproximar melhor de qual era o projeto defendido pelos autores

que serão analisados.

A partir dessa reflexão teórica podemos entender melhor como se dão as

relações de dominação dentro da sociedade brasileira durante o regime militar. Dreifuss

ajuda a entender o contexto histórico a que nos referimos, os demais autores citados ao

longo desse capítulo vão nos dar uma noção geral de como o Estado exerce seu poder de

dominação, de convencimento, de persuasão e principalmente de criação de consenso

em torno do seu modelo de governo.

Essas noções são fundamentais para identificar qual é o modelo de Estado que

está sendo adotado no país e principalmente como esse modelo aparece nos livros

didáticos trabalhados nessa pesquisa. Isso vai gerar uma perspectiva de análise que é

fundamental para esse trabalho, é a partir dessa concepção teórica que podemos

identificar o modelo de Estado que os autores estão defendendo em suas obras.

22

II – O CONCEITO DE DEMOCRACIA A PARTIR DOS LIVROS D IDÁTICOS

Atualmente vivemos um período de estabilidade política que já dura quase vinte

anos, visto que a democracia é colocada hoje como uma conquista da sociedade

brasileira. É comum vermos propagandas nos jornais, revistas e na televisão, que

colocam a democracia como a principal bandeira de luta dos estudantes e dos

trabalhadores das décadas de 1960, 70 e 80.

Os livros didáticos de Educação Moral e Cívica analisados definiam o regime

militar instalado em 1964 como sendo um Estado de direito, fundado nos princípios da

democracia. Todavia, o Estado brasileiro, constituído em 1964, tinha característica

claramente autoritária, pois foi conquistado pela ação do exército e era mantido pela

força. Nessa perspectiva, os intelectuais da burguesia poderiam criar uma falsa ideia de

consenso, para isso, chamavam a atenção dos leitores atribuindo um estereótipo de

autoritarismo aos paises socialistas, taxando-os de antidemocráticos. Assim, poderiam

afirmar, mesmo sob uma ditadura, que o seu projeto tinha legitimidade diante da

população e por isso eram democráticos. Foi dessa forma que os militares criaram um

certo consenso em torno do seu projeto de “democracia” para o país.

Através das escolas, o Governo militar poderia disseminar junto a população a

ideia de que a sociedade brasileira convivia em harmonia. Na análise do modo como os

livros de Educação Moral e Cívica definem sua concepção de Estado e Democracia,

pude observar alguns aspectos comuns. Porém, não cabe aqui pontuar especificamente

todas as hipóteses levantadas no livro, o que nos interessa nesse momento é a concepção

de democracia e de Estado utilizados pela autora. Para ela, o Estado

significa um conjunto de indivíduos, submetidos à mesma legislação e a mesma autoridade política. O Estado através dos tempos assumiu as

23

mais variadas formas de governo até chegar ao moderno Estado Democrático. Sua principal obrigação é promover o bem comum. Os Estados modernos gozam da prerrogativa da soberania, isto é, tem poderes autônomos e não sujeitos a nenhum outro governo estranho. [grifei] (Garcia, 1971, 188)

Ela passa a ideia de que a nossa sociedade evoluiu até chegar a “moderna

democracia” mesmo que essa democracia seja concebida dentro de um Estado que passa

pelo momento de uma ditadura militar, embora ela não venha a admitir isso em nenhum

momento, para todos os efeitos, o país vivenciava uma democracia.

Ela atribui às famílias patriarcais a primeira forma de organização social dos

homens, chegando até os Gregos Antigos e sua democracia. Os gregos não foram

necessariamente os pioneiros em organização e desenvolvimento de uma certa

organização estatal, antes deles os egípcios e os persas, entre outros povos, já haviam

atingido um considerável estágio de desenvolvimento e organização. Mas o Estado

grego, com certeza, é o que mais chama a atenção devido ao alto grau de seu

desenvolvimento político respeitando e dando voz aos seus cidadãos, isso foi chamado

pela primeira vez de democracia. É comum encontrar referencias aos gregos quando se

estuda a democracia em qualquer tempo ou sociedade.

Perry Anderson também faz referência aos gregos. Ele cita passagens das obras

de Platão e Aristóteles e a forma com que eles se referiam aos escravos, isso tudo na

mesma Grécia democrática:

Aristóteles: “Aqueles que cultivam a terra devem idealmente ser escravos, nem todos recrutados de um só povo, nem ardentes no temperamento (de modo que sejam laboriosos no trabalho e imunes à rebelião)” Platão: “o trabalho permanece alheio a qualquer valor humano e em certos aspectos parece mesmo a antítese do que seja essencial ao homem.” Aristóteles: “O melhor Estado não fará de um trabalhador manual um cidadão, pois a massa de trabalhadores manuais hoje é escrava ou estrangeira.”(Anderson, 1982, 26, 27)

A todo o momento, Edilia Garcia compara o governo democrático com formas e

tentativas de governos autoritários, mas, o seu exemplo de autoritarismo é a URSS e a

24

China maoísta, a Alemanha e a Itália com seus regimes fascistas. Em nenhum momento

o Brasil entra em questionamento, muito pelo contrário, tenta-se passar a imagem de

que o Brasil era uma democracia.

Ao mesmo tempo, ela tenta naturalizar as formas de governo, isso fica mais

presente na fase inicial do livro quando a autora afirma que:

Antes que os homens se reunissem em grupos para formar uma nação, já o direito natural existia. O direito natural não sofre mudanças através dos tempos, o direito natural considera que acima daquilo que as leis do homem determinam, existem princípios fixos, imutáveis, derivados da própria natureza das coisas, como principio instituído por Deus, como parte da ordem natural por ele criada.” (Garcia, 1971, 40)

E para finalizar ela ainda afirma que, “o direito natural é universalmente aceito

(...) desde a mais remota antiguidade” como justificativa disso, ela cita o Código de

Hamurabi8 e a bíblia que, segundo ela, defendiam a propriedade privada.

Ela finaliza essa discussão sobre direito natural da seguinte forma:

O respeito à própria vida ou à do próximo é um dever de grande importância. Há, no entanto, outros direitos naturais que são os alicerces da dignidade humana. A liberdade pessoal, a liberdade da palavra e a liberdade de pensamento – são as condições que caracterizam o homem civilizado. Um homem que não possa ir onde desejar ou que não possa exprimir seus pensamentos de forma livre, sofre a mais desoladora escravidão. Esta é infelizmente, a característica dos regimes autoritários. (Garcia, 1971, 41)

Ela está mais preocupada em historicizar a democracia. Essa análise, parte dos

gregos e romanos na antiguidade, os Estados Unidos de 1776 e a França de 1789, esses

últimos como “marcos do liberalismo dos tempos modernos.” (Garcia, 1971, 195) Assim,

a autora contextualiza o surgimento das atuais formas de democracia, já com relação aos

Estados autoritários, declara:

infelizmente o absolutismo não se extinguiu em todos os países com a “Declaração dos Direitos do Homem,” que foi repetida na França por ocasião da Revolução. Em quase todas as épocas, alguns homens, por ambição ou por outros motivos, têm desejado implanta-la e algumas vezes o tem conseguido, como foi o caso de Hitler na Alemanha nazista

8 Fundador do Império Babilônico e seu código de leis era o Talião (olho por olho, dente por dente)

25

e de Mussolini na Itália Fascista. São os ditadores do mundo moderno e podem ocorrer tanto nos regimes de direita como nos regimes de esquerda (Stalin, Fidel Castro, Mao-Tsé-Tung). [grifei] (Garcia, 1971, 195)

Aqui, a intenção da autora é trazer uma comparação entre dois modelos de

governos autoritários e que são diferentes do modelo político e econômico adotado no

Brasil. Ela tenta a todo o momento diferenciar o regime brasileiro dos governos

autoritários, alegando convictamente que “aqui vivemos em uma democracia.”

Edilia vai usar alguns conceitos buscando referências novamente em Platão,

Cidadão: é o membro da sociedade em pleno exercício de seus direitos. Lembre-se que Platão designava cidadão como o antônimo de escravos. Nota-se por aí que uma das condições de cidadania é a liberdade. Democracia: é a forma de governo caracterizada pelo fato de o povo ter o direito de designar os seus governantes e controlar o modo pelo qual exercem o poder que lhes é delegado. República: forma de governo normalmente associada à idéia de democracia, pelo fato de o povo poder participar da escolha de seus mandatários. (Garcia, 1971, 196)

A Grécia antiga era uma sociedade escravista, o escravo na antiguidade não era

considerado cidadão, era um instrumentum vocale, como vimos anteriormente Platão se

refere naturalmente à escravidão. Edilia vai se referir a essa idéia de liberdade para

justificar o que ela chama de servidão, que segundo ela era o caminho seguido pelos

países socialistas. Algo muito parecido com o que Hayek afirmou em O Caminho da

Servidão. Esse livro já citado anteriormente é traduzido no Brasil em plena década de

1960, o discurso dos dois autores é muito semelhante.

Algo que chama a atenção é que, logo em seguida, ela começa uma série de

críticas aos socialistas, provavelmente porque esses faziam críticas ao modelo de Estado

capitalista, tanto no âmbito nacional, como no internacional. Se os liberais tinham seu

modelo de democracia social, porque precisávamos de outro modelo? É obvio que o

modelo defendido por Marx era outro, e é justamente esse modelo que vai causar tanto

26

espanto entre os liberais, por isso é que vão aparecer tantas críticas, na maioria das

vezes infundadas, direcionadas a Karl Marx,

Em meados do século XIX, um pensador de origem judaicoalemã, Karl Marx, impressionado pela pobreza e pela condição de vida miserável do operariado europeu, escreveu duas obras que muito mais tarde se tornariam famosas: O Manifesto Comunista e O Capital em ambas, criticava o regime capitalista da época e o sistema liberal democrata. [grifei] (Garcia, 1971, 198)

Falando dessa forma parece que as duas obras são uma simples crítica ao

capitalismo da época, e que foi causada devido ao seu impressionismo com as

condições de vida dos operários. Não cabe aqui aprofundar essa discussão, mas para

essas obras ainda serem criticadas pelos capitalistas em plena década de 1970 no Brasil,

significa que tenham alguma coisa de muito importante.

Na sequência, ela parte para uma série de ataques contra a obra de Marx,

primeiramente tenta descaracterizar a sua obra usando princípios morais e religiosos

como a existência ou não de Deus, em um país de maioria cristã isso já poderia ser um

bom motivo para que as pessoas não lessem suas obras. Observe,

Entretanto, Marx partiu para afirmações absurdas. Em primeiro lugar, negava a existência de Deus. Fundamentava sua teoria numa tese materialista. Em segundo lugar, a moral comunista não é absoluta. Segundo os “princípios” morais comunistas “os fins justificam os meios.” Assim se para conseguir o poder é preciso roubar ou matar, não prevalecem os princípios morais “não furtarás”, “não matarás.” E, ainda mais, Marx fez uma série de previsões que, modernamente, não foram confirmadas. Para ele o sistema comunista não teria lutas internas. O que se vê, atualmente, são tremendas lutas travadas no bloco das nações comunistas. [grifei] ( Garcia, 1971, 198)

Em um país que a maioria da população é cristã, negar a existência divina é

quase impensável, esse é um tipo de argumento que pode estabelecer um pré-conceito

entre o leitor com relação ao assunto que ele está estudando. Nota-se que a

argumentação dela está formada sob princípios morais, ela não faz referencias nem

justifica suas críticas, apenas acusações vazias e com apelação a princípios morais e

religiosos.

27

Mas a pergunta que fica é bem simples, se as teorias marxistas eram infundadas,

então qual é o motivo de tanto medo com relação aos marxistas? A resposta pode estar

nas próprias referências de Edilia, ela cita o exemplo dos países comunistas e os coloca

sempre como uma ameaça à liberdade.

Para os liberais a liberdade é de fundamental importância, mas não é a liberdade

pessoal que eles se referem, é a liberdade para desenvolvimento do capital, ou seja,

liberdade econômica e a liberdade política (desde que não seja marxista). Para isso,

necessitam de um Estado que garanta seus “direitos” de propriedade privada, e que ao

mesmo tempo garantam para a população o dever de trabalhar e pagar seus impostos.

Se fosse simplesmente uma ameaça à liberdade, será que o comunismo chamaria

tanta a atenção a ponto de diversos intelectuais burgueses dedicarem tantas palavras

para enterrar essa teoria? Ou será que havia tanta gente assim querendo ser escravo ou

servo de um Estado comunal?

De qualquer modo, a “doutrina marxista” impressionou a muita gente. Em 1917, ocorreu na Rússia, cujo governo era ainda absolutista, hereditário e de “direito divino,” uma Revolução parecida com a Revolução Francesa de 1789 em sua manifestação exterior, mas que teve como consequência o aparecimento do Sistema Comunista. (Garcia, 1971, 198)

A Revolução Russa de 1917 foi uma tentativa de construção de um regime

socialista, vale lembrar que quem derrubou o absolutismo russo não foram

necessariamente os socialistas, mas os próprios liberais que, alguns meses depois,

acabaram perdendo o poder para os Sovietes.

Se contextualizarmos o período, vamos perceber o por quê dessa discussão estar

presente aqui. Estamos falando dos anos de 1970, nesse período o socialismo soviético

era o principal inimigo do capitalismo, portanto, para um país capitalista como o Brasil,

não se mediam esforços para aniquilar seu grande inimigo, nesse caso, o socialismo.

Ela continua essa discussão da seguinte forma:

28

O Comunismo ou o Marxismo, nome que se deu aos princípios pregados por Marx, é uma doutrina político-econômica que pretende acabar com a propriedade privada e com as classes sociais e pretende ser imposta a todos os povos do mundo, nem que para isso seja necessário o uso de canhões e tanques de guerra, como ocorreu em Praga, na Tchecoslováquia, em 1968. Antes de tentar o ataque militar, sempre muito antipático e impopular, os comunistas fazem intensa propaganda através de seus adeptos, que infelizmente existem em todas as nações do mundo. É a este tipo de propaganda que se pretende subverter a ordem estabelecida num país, que se chama de subversão. [grifei] (Garcia, 1971, 198)

Aqui, ela tenta justificar o golpe militar no Brasil como uma conseqüência,

talvez, de alguma ameaça de comunismo no país, “Diante desta propaganda comunista

as democracias foram colocadas diante de um dilema: manter a liberdade, até mesmo

com o risco de serem destruídas, ou restringirem algumas liberdades, em nome da

própria liberdade.” (Garcia, 1971, 199) Ou seja, os liberais defendem a liberdade até o

momento que essa liberdade está de acordo com os seus interesses, do contrário eles

podem restringi-la, mesmo que para isso seja necessário o uso de “canhões para impor

a todos os povos do mundo.” Isso que a autora atribui aos comunistas é usado

normalmente para manter a “ordem”, dentro do capitalismo dos liberais.

Aqui podemos perceber alguns limites da liberdade defendida pelos liberais, a

liberdade de manifestação política acaba no momento em que não esteja de acordo com

os interesses das classes dominantes, ou seja, a grande defensora da liberdade, mas da

liberdade de expansão do seu capital.

Na sequência, ela enquanto uma defensora da liberdade de expressão, legitima a

censura das manifestações políticas e fala abertamente em “inimigos comunistas,” ou

seja, a liberdade é somente para aqueles que são partidários da democracia, governo que

é “do povo para o povo.” Afinal, comunista, segundo ela, não é cidadão, é servo de um

Estado absolutista.

Embora não seja esta uma forma de democracia já consagrada, nem possa ela ser enquadrada em nenhum esquema anterior, as nações democratas da atualidade estão sendo obrigadas a limitar a ação de

29

seus inimigos comunistas, colocando seus partidos fora da lei e combatendo-os por todos os meios e modos. (Garcia, 1971, 199)

Os “meios e modos” de combate aos comunistas vão desde a tortura ao

assassinato de milhares de pessoas. Aqui ela entra em uma questão delicada, a autora se

posiciona abertamente sobre os comunistas, ela utiliza isso como argumento para

justificar as ações tomadas pelo Estado contra um segmento da sociedade que são os

comunistas.

Mas o grande inimigo da liberdade a ser combatido vai aparecer logo em

seguida, em pleno período de Guerra Fria, quando cabia ao país decidir de qual lado

estaria. No caso brasileiro isso fica bem claro, não só nas políticas e alianças comerciais

com os países capitalistas, mas em diversos setores, na educação por exemplo, como

estamos analisando, o “inimigo” era combatido diariamente e didaticamente nos livros

de OSPB ou Educação Moral e Cívica utilizados por crianças e adolescentes daquele

período.

Aqui podemos notar a presença da Guerra Fria,

De um modo geral podemos dividir o mundo de hoje em dois grandes blocos de nações. De um lado temos os democratas, cuja a história e evolução acabamos de estudar; de outro, temos os comunistas. O regime comunista empregado na URSS apresentou como característica maior a ditadura do proletariado que se ressente do problema de toda e qualquer ditadura: ausência de total liberdade individual. (Garcia, 1971, 199)

E novamente a associação dos regimes comunistas aos fascistas, como se

houvesse alguma semelhança original entre eles,

Normalmente falamos até agora em ditadura como governo de uma só pessoa, mas o que ocorre com maior frequência é o governo de um só grupo ou de um só partido. Ocorreu com o Nazismo, com o Fascismo e com o Comunismo. Só o partido dominante tem expressão política, só seus membros são candidatos e só seus membros votam. Ou se é do partido ou não se é cidadão. Não há o direito do oposição. Se o homem não concorda com a linha do partido deve calar-se, mesmo porque de nada valeria protestar ou agir, uma vez que o governo tem elementos para sufocá-lo, expurgá-lo ou destruí-lo. (Garcia, 1971, 199)

30

Depois de tantas críticas ao comunismo, ao marxismo e ao socialismo, ela faz

algumas considerações sobre os governos democráticos, isso transmite a ideia de que,

mesmo na democracia, é possível e se tem o interesse de melhorar e, é claro, o Brasil

está incluído nessa categoria de países.

Muitos erros podem ser apontados nos regimes democráticos. Muitos erros já deveriam ser corrigidos nas democracias, mas a oposição em qualquer circunstância sempre pode protestar e apresentar um candidato melhor e um programa mais eficaz. Nos regimes totalitários (de esquerda ou de direita), os erros só aparecem muito mais tarde, depois que aquele governo já caiu e que um outro, do mesmo partido, da mesma linha ocupou o seu lugar. (Garcia, 1971, 199)

E, para finalizar a discussão, ela levanta a seguinte questão: “- Você, jovem,

estará muito em breve diante desse dilema: escolher o regime a que vai se filiar. (...) –

Só a você pertence o direito de escolha (estamos em uma democracia); só você poderá

no momento oportuno, escolher a liberdade ou a servidão, a igualdade ou a

discriminação.” (Garcia, 1971, 200) De certa forma, ela induz a resposta ao aluno,

afinal, da forma com que ela apresenta os fatos ninguém faria uma opção pela servidão

ou pela discriminação.

A segunda obra analisada aqui é o livro OSPB – Organização Social e Política

Brasileira, escrito por Umberto A. de Medeiros e publicado pela FTD S.A., em 1975.

Esse livro apontava para os “direitos e deveres do cidadão” e define como direito:

Aquilo que o homem tem como próprio. Alguns direitos fazem parte de sua própria existência; são os direitos naturais: direito à existência, à propriedade particular, à liberdade, ao trabalho, ao culto a Deus, etc. Outros direitos são outorgados por alguma autoridade. São os direitos positivos: direito ao voto, a ser eleito para algum cargo público. Quando a pessoa é portadora dos direitos políticos chama-se cidadão.” (Medeiros, 1975, 14)

Já com relação aos deveres ele se refere da seguinte forma: “A cada direito

corresponde um dever. Em se tratando dos deveres para com a pátria, ele se refere aos

direitos políticos e cívicos.” (Medeiros, 1975, 14)

31

A todo o momento ele recorre a princípios religiosos para justificar suas

concepções de liberdade, natureza dos homens e direito. Sempre se referindo aos

“direitos” do homem como “naturais” e de origem “divina,” “o homem é uma pessoa. É

composto de matéria e espírito. É criatura de Deus, mas diferente das demais.”

(Medeiros, 1975, 15)

Medeiros, além de usar a Bíblia e partes da Constituição Brasileira vigente na

época, cita também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 10 de

dezembro de 1948 pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU. A

Declaração começa da seguinte forma:

A Assembléia Geral proclama a presente declaração universal dos direitos do homem, como o ideal comum para atingir todos órgãos da sociedade, tendo sempre em mente esta declaração, se esforcem pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito a esses direitos e liberdade e por assegurar-lhes, através de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, o reconhecimento e a aplicação universais e efetivas, seja entre as populações dos territórios sob sua jurisdição. (Medeiros,1975, 17)

Já no seu primeiro artigo, a Declaração Universal dos Diretos do Homem diz:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito. São dotados de

razão e de consciência, e devem agir, uns em face de outros, com espírito de

fraternidade.” (Medeiros, 1975, 17)

Se todos os homens são iguais perante a lei, como poderemos entender as

desigualdades entre eles? Onde está “espírito de fraternidade”? O que os Jus –

naturalistas hegelianos não conseguem explicar é que se os direitos são parte da

natureza dos homens, então qual seria a origem das desigualdades entre eles, será que

uns são mais “naturais” que os outros? Não seria a propriedade particular a origem

dessas desigualdades?

Na introdução do livro o autor alega que “A Organização Social e Política

Brasileira, visam levar ao aluno, o mínimo de conhecimento necessário para que,

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conhecendo melhor seu país, procure se esforçar no cumprimento dos deveres cívicos,

como cidadão.” (Medeiros, 1975, 08)

O “cumprimento dos deveres cívicos como cidadão” vai aparecer ao longo livro,

é claro que essa ideia está associada ao cidadão que trabalha, paga seus impostos, e

cumpre seus deveres cívicos, para isso, é claro que o “conhecimento necessário” esteja

de acordo com as concepções de Estado e que faça jus ao momento político em que o

país passava (e também porque a edição dos livros era controlada pelos próprios

militares). Portanto, em nenhum momento aparece qualquer tipo de crítica ao governo

militar ou qualquer tipo de denúncia sobre os crimes cometidos em nome da “Segurança

Nacional.”

O autor complementa sua concepção de cidadania apoiado nos preceitos de que

ser cidadão é “conhecer bem a pátria; aceitar suas obrigações para com a pátria;

satisfazer-se com as funções sociais exigidas e procurar cumprir suas funções com o

melhor desempenho possível.” (Medeiros, 1975,08) Para justificar suas afirmações, o

autor se apóia no cristianismo e nos “heróis” da pátria como Tiradentes, o grande nome

da Inconfidência Mineira, ou até mesmo nos autores clássicos como Platão, Aristóteles

ou Rousseau.

O conceito de Estado para Medeiros surge com os gregos. Segundo o autor,

“tanto para Platão como para Aristóteles tem o significado de organização da sociedade,

que permite realizar o ideal de justiça.” (Medeiros, 1975, 143)

Em suas obras, tanto Platão como Aristóteles, fazem uma série de referência a

escravidão. Conviviam com a tão referenciada democracia experimentada pelos gregos

e ao mesmo tempo com a escravidão, mas mesmo assim, até hoje são referenciados pela

sua “justiça” e pela sua organização política através da democracia.

33

Ele se apóia ainda, em autores como Rousseau que “concebeu o Estado como

um contrato entre os homens” (Medeiros, 1975, 143). Ele cita que:

os marxistas representam o Estado como uma organização despótica para levar os homens ao progresso. Estado é o instrumento de que se servem os homens, os grupos naturais, a nação para manter a ordem, promover o progresso o equilíbrio dos direitos e deveres entre os cidadãos, assim como entre a própria nação e as outras. [grifei] (Medeiros, 1975, 143)

A crítica que ele apresenta aqui passa a impressão de que os marxistas são

contrários ao progresso, mas o progresso que eles criticam é o progresso do capitalismo,

que, na medida em que se desenvolve, aumenta cada vez mais as desigualdades sociais.

Quanto aos “grupos naturais” que se utilizam do Estado para “manter a ordem,

promover o progresso e equilíbrio dos direitos e deveres entre os cidadãos,” cabe

analisar como eles fazem isso, de quem e para quem, se o direito faz parte da natureza

dos homens, porque que alguns tem tantos direitos e outros tem tantos deveres,

obviamente que isso não aparece no discurso de nenhum dos autores liberais citados até

aqui.

Na primeira parte dessa monografia, discutimos algumas concepções de Estado,

entre elas, a dos marxistas, “o Estado é o aparelho de dominação de uma classe pela

outra”, e também de outras concepções que defendem que “todo o homem é mau por

natureza” e de que vivemos uma “guerra que é de todos os homens contra todos os

homens.” Embora pareçam semelhantes, o objetivo é totalmente diferente, os marxistas

usam essa definição para criticarem o Estado enquanto que Hobbes usa esses princípios

para legitimar o surgimento do mesmo.

No caso da ditadura militar brasileira isso fica bem claro no discurso de

inauguração da Escola Superior de Guerra em 1965, quando Castelo Branco afirma que

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“se o problema é a luta de classes, escolhe-se uma classe eleita e eliminam-se as

outras.”9

Castelo Branco havia assumido a presidência do país naquele mesmo ano e já

reafirmava seu compromisso com a classe dominante. Dessa forma, perde-se

completamente o sentido de “natureza,” o Estado claramente vai servir para conter os

antagonismos entre as classes, vai servir de instrumento de “dominação de uma classe

pela outra.”

Nos livros didáticos analisados, assim como no discurso de Castelo Branco que

na ocasião lançava a Doutrina de Segurança Nacional, o que eles expressam, na prática,

é a dominação de uma classe pela outra. No livro da Edilia ela chega a falar em

segurança nacional referindo-se aos comunistas como uma ameaça à democracia,

“diante desta propaganda comunista as democracias foram colocadas diante de um

dilema: manter a liberdade até mesmo com o risco de serem destruídas, ou restringirem

algumas liberdades, em nome da própria liberdade.” (Garcia, 1971, 199)

Aparentemente, pode-se afirmar que os livros didáticos foram difusores das

políticas do governo militar. Isso não é nenhuma novidade e, com certeza, ainda vão

continuar sendo por muito tempo, nesse caso, cabe ao professor fazer a distinção das

políticas que estão sendo transmitidas aos alunos, posicionando-se favorável ou

contrariamente, mas preferivelmente, deixando bem claro qual é o seu posicionamento

diante dos fatos.

O que não se consegue explicar é onde estão os “grupos naturais” tão

referenciados pelos autores como Umberto Medeiros e Edilia Garcia. Para Medeiros, “o

9 BRANCO, Castelo. Doutrina de Segurança Nacional, R. J. Biblioteca do Exército, 1965, p. 29. Discurso realizado na aula inaugural da Escola Superior de Guerra, em 1965 na cidade do Rio de Janeiro. Na ocasião o então Presidente da República, Castelo Branco, discursou diante de uma platéia de oficiais do exército, anunciando o chamado Plano de Segurança Nacional, o discurso é carregado de incitações anti-comunistas colocando-os como uma ameaça à segurança nacional.

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Estado compreende o conjunto de instituições com autorização para usar o poder de

coação, quando a justiça e o bem comum o exigirem.” (Medeiros, 1975, 143)

O capítulo mais analisado do livro de Medeiros está pautado em sete eixos de

discussão: pátria; nação; Estado; bem comum; governo; lei e constituição. (Medeiros,

1975, 143) Vamos nos deter aqui em dois deles, o Estado que já foi analisado, e o

Governo, tendo em vista que é esse ponto que vai permear a discussão central dessa

pesquisa, ou seja, a concepção de democracia nos livros didáticos.

Aqui, Medeiros cita que o governo “é o meio pelo qual o Estado cumpre seu

dever.” Ele conceitua de modo geral que “Governo é o conjunto de três poderes:

Legislativo, Executivo e Judiciário.” (Medeiros, 1975, 154)

No capítulo seguinte, o autor sistematiza as formas de governo a partir de dois

conceitos: democracia (República Federativa ou Parlamentarista; e Monarquia), e

Ditadura (Pessoal ou Estatal, ex: Rússia, China, Cuba).

Para ele:

na democracia, o povo escolhe ou elege seus representantes (...). Nela o governo é exercido em função do bem comum. Visa ao aperfeiçoamento de todos, dando-lhes oportunidades, favorecendo a aquisição dos meios básicos e necessários a esse aperfeiçoamento, defendendo os direitos inalienáveis do homem e facilitando-lhe o cumprimento dos deveres. (Medeiros, 1975, 154)

O governo é que visa promover o bem comum, mas um bem comum que seja

favorável aos interesses liberais, interesses que certamente os defensores da liberdade e

que apoiaram um governo que perseguiu os movimentos sociais, prendeu, torturou,

matou ou exilou todos aqueles que ousaram contrariar os governantes e, que os autores

aqui analisados não reconhecem como ditadores, afinal ditadores eram os russos,

cubanos, chineses. No Brasil o governo era democrático, promovia a “igualdade de

oportunidades,” procurava “desenvolver e aproveitar as capacidades de cada cidadão.”

(Medeiros, 1975, 154)

36

Na sequência, ele aponta diversas formas estruturais de governo:

“Presidencialismo, Parlamentarismo, Monarquia, Ditadura”. O Brasil é enquadrado,

segundo Medeiros, desde 23 de janeiro de 1963, sistema que para ele vigorou no país

desde o fim do Império até 1961. (Medeiros, 1975, 156)

A definição de Presidencialismo que é utilizada aqui é de que “o

Presidencialismo funciona mediante três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário,

(...). O poder Executivo é exercido pelo Presidente da República.” (Medeiros, 1975,

156)

O que ele não define é como esse presidente era escolhido, já que estamos

falando de uma democracia. Nesse caso, como esse presidente era eleito? Quem poderia

ser candidato? Seria coincidência que a maioria dos ministros e todos os presidentes,

desde o golpe de 1964 até o fim do regime militar em1985, tenham sido militares?

Esse era o presidencialismo brasileiro, ditadura era coisa de Cuba, China,

Rússia. Em outra obra, OSPB: Introdução a política brasileira, publicada pela Ática em

1992 e com destino ao público de 1° grau, Frei Betto denuncia e critica os militares.

Fica bem clara a diferença com que ele trata dos temas políticos do país. Enquanto que

os autores dos livros da década de 1970 que foram analisados anteriormente, tinham por

objetivo, legitimar os atos dos militares, Frei Betto, de forma bem simples e de fácil

compreensão desconstrói a idéia de “Revolução de 1964.”

Durante o regime militar, o governo deu sempre um jeito de alterar as leis eleitorais para favorecer o seu partido e os seus candidatos. Em 31 de março de 1964, ao depor o presidente João Goulart e assumir o poder, os militares desrespeitaram a Constituição Federal e os milhões de votos que haviam eleito Jango vice presidente da República em 1960. (...) a 27 de outubro de 1965, o presidente - marechal Castelo Branco – baixou uma lei especial, o Ato Institucional n° 2, impedindo os eleitores brasileiros de escolher o presidente da República. Este passou a ser indicado pelas Forças armadas e eleito pelo Colégio Eleitoral. (Betto, 1992, 44)

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Frei Betto, jamais poderá ser confundido com os demais autores, essa obra não

será analisada aqui. O período tratado remete as discussões principalmente na década de

1970 e 1980, Frei Betto fica para uma outra ocasião.

As duas obras analisadas até aqui, tem em comum não só o período em que

foram escritas, ambas tinham um objetivo comum que era a formação política nas

escolas. Podemos perceber nas duas diversas coisas em comum, tais como a legitimação

da democracia, a crítica aos estados autoritários, mas principalmente o anti-comunismo.

A terceira obra analisada aqui é outro livro de Educação Moral e Cívica,

publicado quase uma década depois da primeira obra analisada. Ele remete a um outro

momento da ditadura, é o período final do regime militar, e a pergunta que fica é por

que ele não fala em democracia?

Nas duas primeiras obras os autores estão tentando justificar um modelo de

democracia que na prática não existia, a maioria dos cargos do Poder Executivo eram

indicados pelos militares, conforme Frei Betto discorre em seu livro.

Nesse caso, o que eles estão tentando esconder? Porque Medeiros constrói seus

argumentos a partir de um outro eixo de analise e vai se ater mais aos fatores

econômicos do que sociais?

Se contextualizarmos melhor o período, vamos perceber que havia uma série de

manifestações públicas acontecendo naquele momento, eram as greves do ABC,

manifestações estudantis, etc., a ideia de consenso mesmo que seja à base de violência

já não é mais o suficiente para conter os antagonismos da sociedade. Para os autores

oficiais do regime militar que sempre afirmaram que o país vivia uma democracia,

podemos perceber através das duas primeiras obras analisadas, os limites dessa

democracia, bem como, o discurso demagógico em torno de tal proposta. No entanto,

como eles poderiam falar em “redemocratização” do país.

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Em um momento em que as contradições entre a população e o governo estão se

acirrando cada vez mais, o medo das ruas torna-se cada vez mais presente. A

democracia devia ser construída, mas não seria interessante que fosse exigida pela

população que naquele momento não hesitava em ir às ruas. É nesse momento que vão

se construíram os novos projetos de redemocratização do país.

Dessa forma, fica claro quando Edilia coloca a questão “Você, jovem, estará

muito em breve diante desse dilema: escolher o regime a que vai se filiar.” Ela está se

referindo a qual modelo de Estado o aluno vai escolher, e ela complementa, “liberdade

ou servidão.”

Isso pode servir também de ameaça, se ele escolher a liberdade, que nesse caso é

o governo democrático, tudo bem. Mas se escolher os que não “acreditam em Deus” ou

aquela “imposta pelos canhões e tanques de guerra” vai sofrer as conseqüências da

restrição da liberdade. Ou então, em um tom mais ameaçador ainda, poderá ser

classificado como “subversivo” e sofrer as conseqüências com a perseguição do Estado,

tudo em nome da “segurança nacional”.

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CONCLUSÃO

O discurso adotado pelos autores chama a atenção pela forma com que são

construídos, tentam passar uma imagem de organização e respeito às leis.

Desorganização, baderna, golpes, autoritarismo e qualquer outra palavra do gênero eram

associadas aos países comunistas.

O anticomunismo é mais aparente nas obras do que a própria defesa da

democracia, nota-se isso a partir da ênfase que Garcia e Medeiros dão em relação a essa

questão. Para todos os efeitos, na opinião dos autores, o país vivia uma democracia, não

existia nenhuma contradição entre o governo militar e com o seu modelo de Estado, a

repressão, de acordo com os autores analisados, era apenas para evitar qualquer

tentativa de levar o país rumo ao “caminho da servidão”.

Embora não haja qualquer referencia dos autores que possa ser utilizado para

fazer a ligação entre Hayek e os livros didáticos ou então com relação ao discurso dos

militares, os termos “liberdade” e “servidão” são utilizados da mesma forma e com o

mesmo sentido. Nesse caso, existem evidências da ligação intelectual entre eles.

Podemos concluir que os discursos dos livros didáticos eram uma reprodução

dos discursos defendidos pelos governos militares. Até porque, eles eram editados para

reproduzirem o discurso oficial, dessa forma, serviam para criar um consenso entre a

população e o governo militar.

O que chama a atenção é o grau de aprofundamento que os autores dão em livros

que eram utilizados por alunos do então 1º e 2º graus. Trabalham com uma concepção

burguesa de Estado, desenvolvida para justificar o regime militar e formar o cidadão

ideal para a sociedade brasileira, ou seja, aquele cidadão que trabalha, que paga seus

impostos e, dessa forma, goza dos benefícios de uma sociedade que privilegia a

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liberdade. E de preferência que ele não conteste essa liberdade, tendo em vista que é

uma liberdade vigiada, caso ocorra essa contestação poderá, e sofrerá o rigor da lei

mesmo que essa seja obrigada a restringir sua liberdade.

Dessa forma, colocam os leitores muitas vezes contra a parede mostrando uma

falsa idéia de modelos de Estado que estão em oposição ao regime militar brasileiro, no

qual em nenhuma circunstância eles admitem ser um Estado autoritário, falam sempre

que se trata de um Estado democrático. Estão sempre colocando em questão o lado que

o leitor está. Do lado da liberdade ou do lado da servidão.

Dessa forma concluo esse trabalho, o que busquei aqui foi levantar questões

sobre os livros didáticos utilizados nas escolas durante o regime militar, espero ter

contribuído e realizado uma análise crítica das obras. Estudar o regime militar é sempre

importante tendo em vista a realização de uma reflexão crítica desse período tão

marcante da História desse país.

Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!

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