ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA ÚNICO DE...

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i ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) CAMPINAS 2015

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    ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO

    ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA

    ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

    CAMPINAS

    2015

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE ECONOMIA

    ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO

    ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA

    ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

    Prof. Dr. Eduardo Fagnani – Orientador

    Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico,

    área de concentração em Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Universidade

    Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Desenvolvimento Econômico, na área de

    concentração em Economia Social e do Trabalho.

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

    DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA

    PAULA ANDREOTTI PEGORARO E ORIENTADA

    PELO PROF. DR. EDUARDO FAGNANI.

    CAMPINAS

    2015

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  • v

    DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

    ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO

    ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA

    ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

    Defendida em 24/02/2015

    COMISSÃO JULGADORA

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    Dedico este trabalho a todos que

    sonharam e lutaram por um sistema de

    saúde mais justo e a todos que

    continuam lutando.

    Dedico a meus pais e meu

    marido, minhas fortalezas e minha

    maior razão de viver.

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    AGRADECIMENTOS

    O trabalho acadêmico é, por vezes, solitário, angustiante e bastante desafiador, mas

    também traz a oportunidade de vivenciar grande crescimento profissional e pessoal ao lado de

    tantas pessoas inspiradoras. Gostaria de agradecer imensamente a todos que, de alguma forma,

    estiveram presentes nesta caminhada.

    Agradeço aos meus pais, Anete e Tito, que sempre me incentivaram a seguir estudando e

    sempre me estimularam a ter uma visão crítica e sensível à realidade. Agradeço a meu marido e

    companheiro, Rafael, que abraça todas as minhas lutas junto comigo e me apoia em todos os

    momentos. Agradeço a minha amada irmã, Carol, e minha irmã de coração, Denise, que mesmo

    tão diferentes estiveram presentes e torcendo por mim. O amor de vocês é o que me move.

    Agradeço meu orientador, Eduardo Fagnani, por acreditar no meu trabalho, pela paciência

    e dedicação comigo e também por ser um grande exemplo de retidão intelectual e de ativismo

    político. Agradeço aos membros da banca de qualificação e de defesa, Gastão Wagner e Denis

    Gimenez, que se prontificaram em contribuir com este trabalho. Também agradeço a todos os

    professores do Instituto de Economia e do CESIT, em especial aos que ministraram ricas e

    estimulantes aulas neste período.

    Agradeço também aos funcionários do Instituto, sempre solícitos dedicados me ajudaram

    com a parte burocrática do trabalho, com a limpeza e infraestrutura para meus estudos. Agradeço

    ao Felipe Monte Cardoso, por achar um tempinho em meio a tantos compromissos para ler meu

    trabalho, me ajudar em diversos pontos e, principalmente, ser um exemplo na academia, na

    medicina e na militância.

    Aos colegas de classe das muitas matérias que tivemos, com as quais pudemos vivenciar

    muitos momentos de aprendizado. Em especial, agradeço aos meus amigos: Ana Paula Biachi,

    por tantas conversas, risadas e parcerias: temos muito mais em comum do que apenas o nome!

    Juliana Bacelar, por sua generosidade acadêmica e por tantos bons momentos compartilhados.

    Tatiana Henriques, Rebeca Bertoni e Lucas Andrieta, por me ajudarem na execução da

    dissertação e por compartilharem esse momento comigo.

    Agradeço a todo pessoal do DIEESE, por todos apoio e prazeroso convívio. Em especial,

    agradeço à Samira Schatzmann, minha melhor interlocutora de tantos e variados assuntos. Sua

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    grande generosidade intelectual foi fundamental para fortalecer a autoconfiança na reta final

    desta dissertação.

    Agradeço a minha grande e tão querida prima e amiga, Gabriela Martin, que mesmo longe

    sempre esteve tão perto e presente, por me apresentar sempre o lado positivo de tudo e torcer em

    cada desafio e vibrar por cada realização. Agradeço a minha amiga Bianca Luchiari, por me

    apresentar ao mundo da corrida e da vida saudável e me incentivar a confiar em mim a cada

    obstáculo. Agradeço meus amigos Bruno e Giu, parceiros de viagens e conversas, me mostravam

    sempre o lado mais leve da vida.

    Agradeço a minha segunda família, Cidinha, Gilberto e Mariana, que entenderam

    aAgradeço à toda minha família (incluindo Stenicos e Banzatos, minha família também) e demais

    amigos. Obrigada por todo apoio e incentivo!

  • xi

    RESUMO

    Esta dissertação tem por objetivo delinear as relações entre os setores público e privado

    no que diz respeito à assistência à saúde no Brasil, destacando que os avanços formais da

    Constituição Federal de 1988 foram sobrepostos por um contexto político e econômico hostil que

    se abre a partir de 1990, que limitou o fortalecimento do setor público em favor da contínua

    expansão do setor privado.

    Este trabalho está dividido em duas partes, a primeira destaca os determinantes históricos

    e as relações entre Estado e mercado na saúde no período anterior à Constituição de 1988.

    Sublinha a forte predominância do setor privado no país desde os primórdios da formação do

    sistema de saúde brasileiro num contexto marcado pelo vigoroso viés conservador da sociedade e

    suas rígidas estruturas de um capitalismo tardio e dependente, marcado pela segregação social e

    dependência externa. Ressalta-se também o movimento de modernização conservadora dos bens

    e serviços públicos durante os 21 anos de governo militar, bem como os avanços sociais da

    Constituição de 1988.

    Na segunda parte discute-se a introdução do neoliberalismo no Brasil a partir dos anos de

    1990, após ganhar força nos países centrais e subdesenvolvidos durante as décadas de 1970 e

    1980. O trabalho sublinha o antagonismo desta corrente com os princípios do Sistema Único de

    Saúde recém-implantado em 1988, com destaque para as diretrizes e orientações políticas do

    Banco Mundial no incentivo à expansão da iniciativa privada na oferta de serviços de saúde.

    Esse movimento político e econômico mais amplo era antagônico aos princípios estabelecidos

    pela Carta de1988 e contribuíram, em grande medida, para que o processo de consolidação do

    SUS fosse permeado por diversas contramarchas que abriram novas brechas para a expansão do

    setor privado na saúde.

    Palavras-chave: Estado, mercado, saúde, SUS, Brasil

  • xiii

    ABSTRACT

    This paper aims to outline the relationships between the public and private sectors in

    health care on Brazil, noting that the formal advances of the Federal Constitution of 1988 were

    superimposed by a hostile political and economic context that was imposed in the 90´s, that

    limited the strength of the public sector in favor of continued expansion of the private sector.

    This work is divided into two parts, the first shows the historical determinants and the

    relationship between state and market in health in the period prior to the 1988 Constitution. This

    part underlines the strong predominance of the private sector in the country since the beginning

    of formation of the Brazilian health system in a context characterized by strong conservative bias

    of society and its rigid structures of late and dependent capitalism. Also points up the

    conservative modernization movement of goods and public services during the 21 years of

    military government and the social advances of the 1988 Constitution.

    The second part discusses the introduction of neoliberalism in Brazil from the 90´s, after

    gaining strength in the central and developing countries during the 70´s and 80´s. This work

    emphasizes the antagonism of this current with the principles of the Unified Health System

    (SUS) recently implemented in 1988, highlighting the guidelines and political directives of the

    World Bank encouraging the expansion of the private sector in the supply of health services. This

    broader political and economic movement was antagonic to the principles established by the 1988

    constitution and contributed largely to the SUS consolidation process was impeded by several

    setbacks that have opened new spaces for the expansion of the private sector in health.

    Key words: State, Market, Health, SUS (Unified Health System) and Brazil.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    AIF – Associação Internacional de Fomento

    ANS – Agencia Nacional de Saúde Suplementar

    AVAI – Anos de Vida Ajustados por Incapacidade

    BIRD – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento

    CAP - Caixa de Aposentadoria e Pensão

    CDS – Conselho de Desenvolvimento Social

    Cebes – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

    CFI – Corporação Financeira Internacional

    CIADI – Centro Internacional de Arranjo de Diferenças relativas ao Investimento

    CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira

    Dataprev – Empresa de processamento de Dados da Previdência Social

    DRU – Desvinculação dos recursos da União

    DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis

    FAZ – Fundo de Apoio ao desenvolvimento Social

    FMI – Fundo Monetário Internacional

    FSE – Fundo Social de Emergência

    IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensão

    II PND – Plano Nacional de Desenvolvimento

    INAMPS – Instituto de Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

    INPS - Instituto Nacional de Previdência Social

    INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social

    IPMF – Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira

    LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social

    MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social

    NO – Normas Operativas

    NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde

    NOB – Norma Operacional Básica

    OMGI – Organismo Multilateral de Garantia de Inversões

    ONG – Organização Não Governamental

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    OSCIPs –Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público

    OSS – Orçamento de Seguridade Social

    Piass – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento

    PMC – Plano Montes Claros

    PNS – Plano Nacional de Saúde

    SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

    SESP – Serviço Especial de Saúde Pública

    Sinpas – Sistema Nacional de Previdência Social

    SNS – Sistema Nacional de Saúde

    SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde

    SUS – Sistema Único de Saúde

  • xvii

    Sumário

    INTRODUÇÃO .................................................................................................... 1

    PARTE I – DETERMINANTES HISTÓRICOS E RELAÇÕES ENTRE ESTADO E

    MERCADO NA SAÚDE NO BRASIL ........................................................................... 9

    Capítulo 1. Os Primórdios da Assistência à Saúde no Brasil (1930/1984) .... 11

    1.1. ................... Formação Capitalista E Atenção à Saúde no Brasil (1930/1964) 12

    1.2. ........................................... O Fortalecimento Da Oferta Privada (1964/1985) 22

    Capítulo 2. A Constituição de 1988: da reforma sanitária à garantia formal de direitos

    39

    PARTE II – NEOLIBERALISMO, MERCADO E SAÚDE ............................. 51

    Capítulo 1. A Ascensão do Neoliberalismo nos países centrais (1970/1990) 53

    Capítulo 2. A crise da dívida e mudança do papel do Estado (1980/1990) .... 63

    Capítulo 3. Os desafios das relações entre Estado e mercado na saúde: o papel do

    Banco Mundial ........................................................................................................... 73

    3.1. A trajetória política e institucional do Banco Mundial ............................ 76

    3.2. O posicionamento do Banco Mundial sobre a questão da saúde ............. 81

    Capítulo 4. A influência do Banco Mundial na política de saúde brasileira: persistência

    e o avanço das múltiplas faces da mercantilização no Brasil ..................................... 93

    4.1 A repercussão do relatório no Brasil e as propostas de políticas .............. 94

    4.2. Os Limites Da Operacionalização Do SUS ........................................... 102

    4.3. Neoliberalismo e mercantilização da saúde no Brasil ........................... 116

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 121

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 127

  • 1

    INTRODUÇÃO

    Esta dissertação se insere no campo de estudos da assistência à saúde no Brasil e tem

    como problematização a relação entre o Estado e o mercado neste setor. Considera que os

    imensos desafios que transpassam o tema da saúde é um dos muitos reflexos de um país ainda

    subdesenvolvido em pleno século XXI.

    A história do desenvolvimento da infraestrutura social e urbana no Brasil ao longo do

    século XX deve ser entendida como um processo de consolidação do modo de produção

    capitalista no Brasil. Em particular, procurou-se compreender como cada etapa deste processo

    implicou em mudanças no modo de promoção da oferta de bens públicos. Como pano de fundo

    deste processo, colocam-se as questões relativas às relações entre o Estado e mercado, que estão

    presentes em todas as correntes do pensamento econômico desde sua gênese.

    Num período curto de tempo, de 1930 a 1980, o Brasil passou por profundas

    transformações econômicas e sociais, resultado de um processo intenso de industrialização e

    expansão econômica. Porém, seus resultados foram apropriados de maneira extremamente

    desigual; a velha pobreza no campo somou-se à nova pobreza urbana, visível a olho nu nas

    grandes cidades (Henrique, 1999).

    Mais especificamente, esse processo foi caracterizado pela modernização conservadora,

    pois amplificava as profundas desigualdades socioeconômicas e regionais, a assimetria de

    oportunidades, a distribuição desigual da riqueza, renda e propriedade agrária e urbana, e o

    acesso desigual aos bens de consumo e aos serviços essenciais. Soma-se a isso a heterogeneidade

  • 2

    do mercado de trabalho, ampla disponibilidade de força de trabalho e o consequente baixo salário

    (Fajnzylber, 1983)

    Durante toda a consolidação do capitalismo no Brasil se observa uma forte interação entre

    os setores público e privado, em uma ampla quantidade de setores produtivos e esferas da

    sociabilidade moderna. Na assistência à saúde, tal interação tem seus princípios no início do

    século XX.

    O objetivo central desta dissertação é delinear as relações entre os setores público e

    privado no que diz respeito a assistência à saúde no Brasil em dois períodos distintos: o primeiro,

    contempla os determinantes históricos do sistema de saúde brasileiro, do início do século XX até

    1988; o segundo abarca o período pós 1990 quando o Brasil faz opção passiva ao neoliberalismo.

    A tese central desta dissertação é de que a questão da saúde é um resultado das

    deficiências estruturais do Estado brasileiro, num contexto de prevalência dos interesses privados,

    presente tanto no momento anterior quanto no posterior a Constituição de 1988. Mais

    especificamente, o setor privado se aproveitou da interação com o Estado para, além de auferir

    lucros, transformar a saúde em mercadoria. Esta hipótese é estabelecida a partir da observação

    das diversas etapas de construção deste sistema, que não foi linear; houve idas e vindas, avanços

    e retrocessos. Tal sistema foi construído concomitantemente com a formação econômica, política

    e social Brasil e com os processos de modernização, urbanização, industrialização, implantação

    infraestrutura de saneamento, e também os avanços na medicina.

    Este processo se inicia no início do século 20, ganha contornos mais claros entre 1930 e

    1964 e se aprofunda na ditadura militar (1964/1984). Ao longo desse processo, assiste-se à

  • 3

    formação de um forte segmento empresarial privado que opera a saúde em seus diversos

    componentes. A mercantilização da saúde responde em parte pelas deficiências estruturais do

    Estado brasileiro e seu caráter patrimonialista, que abriu espaços para a prevalência dos interesses

    privados.

    Neste aspecto a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), inspirado em alguns dos

    valores dos regimes de Welfare State desenvolvido nos países centrais europeus entre 1945 a

    1975, foi uma tentativa de romper com a lógica privada que histórica e sistematicamente

    ampliava seus espaços de ação Esse movimento, que se opunha ao longo processo de

    mercantilização, era uma reação, sobretudo, ao “modelo médico assistencial privatista”

    hegemônico durante a ditadura militar.

    A construção da agenda do SUS no Brasil coincidia, mesmo que tardiamente, com o

    processo de formação de um sistema de proteção social ocorrido na Europa no período Pós-

    Guerra. Nossos reformistas, que lutavam pela redemocratização do país, estavam olhando para os

    êxitos da socialdemocracia europeia. Após longa marcha, a Constituição Federal consagrou o

    SUS. Do ponto de vista formal, a Carta de 1988 era a antítese da política privatista de saúde

    vigente na ditadura.

    Não obstante, a partir de 1990 o Brasil adere tardiamente ao Neoliberalismo, cuja agenda

    liberal e conservadora antagonizava-se com os princípios do SUS. Na prática, o sistema de saúde

    brasileiro passou a viver tensionado entre o que reza a Constituição (formal) e o que contexto

    político e econômico favorável aos mercados desregulados. Neste cenário, a privatização da

    saúde no Brasil – impulsionado desde os anos de 1930 e que ganha vigor no pós-64 – ganha novo

  • 4

    fôlego, em oposição ao que reza a Carta de 1988. Essa contradição está na raiz dos problemas

    vividos hoje pelo SUS.

    Nos últimos 30 anos, houve grande avanço em diversos indicadores epidemiológicos

    assim como importantes transformações em ciência e tecnologia aplicadas à saúde que resultou

    em significativa melhora nas condições básicas de sobrevivência de milhões de brasileiros

    (Campos, 2007). Porém, ao mesmo tempo ainda persiste, em níveis preocupantes, doenças como

    tuberculose, dengue e malária, além de elevada morbidade por causas violentas e também maus

    indicadores do padrão das doenças crônicas (como cânceres e enfermidades cardiovasculares).

    Essa polarização epidemiológica presente no Brasil, que perpetua a sensação de insegurança entre

    os brasileiros, é, em grande medida reflexo do caráter hibrido do sistema de saúde, dividido entre

    ações públicas e privadas

    Enormes são os desafios do SUS. Mais de 26 anos após sua criação, ainda não foram

    alterados os parâmetros legais das políticas de saúde enraizados durante um longo período

    anterior. A lógica dos mercados, a modernização conservadora e a profunda segregação social

    foram mantidas, sob as bases do SUS e da reorganização do capitalismo brasileiro. Prevalece a

    tensão entre o cumprimento do ideário universalista do SUS e a perpetuação da segregação na

    sociedade brasileira.

    Nesta perspectiva, argumenta-se que a raiz dos problemas atuais do sistema público e

    universal de saúde brasileiro reside no antagonismo entre os princípios formais estabelecidos pela

    Carta de 1988 e o contexto político e econômico vivido a partir de 1990, quando o Brasil aderiu

    tardiamente à doutrina neoliberal.

  • 5

    Desde então, houve fortes pressões no sentido de se impedir a consolidação das

    conquistas de 1988 e implantar o paradigma do Estado Mínimo no campo social. A

    mercantilização da saúde, traço presente no setor desde os anos de 1930, continuou, na prática, a

    ser incentivado pelo Parlamento e pelo Executivo dos três entes federativos. Portanto, o SUS

    formal (Constituição de 1988) foi atropelado pela realidade caracterizada pela continuidade do

    processo histórico de privatização, reforçado pela hegemonia da agenda neoliberal. Neste

    trabalho assume-se que este é o pano de fundo para se compreender os problemas atuais vividos

    pelo SUS, passados 26 anos da sua consagração formal pela Carta de 1988.

    Para argumentar em favor desta hipótese, esta dissertação está dividida em duas partes:

    A primeira (Determinantes históricos e relações entre estado e mercado na

    saúde) analisa os determinantes históricos da formação econômica e consolidação

    do capitalismo no Brasil e a interação entre os setores público e privado até a

    Constituição de 1988. O primeiro objetivo é assinalar a forte predominância do

    setor privado no país desde os primórdios da formação do sistema de saúde e forte

    viés conservador da sociedade e suas rígidas estruturas. Nesta incursão,

    discutimos a situação da saúde no Brasil no período anterior à criação do SUS,

    procurando identificar os traços estruturais do sistema de saúde brasileiro criado

    de 1930 a 1988. O segundo objetivo é assinalar que o SUS – fruto das pressões do

    Movimento Sanitário Brasileiro, consagrado pela Constituição de 1988 – aparece

    como contraposição ao período anterior, marcado pela segregação social e

    privatização dos espaços públicos. A hipótese levantada neste capítulo é de que a

    Constituição Federal procura se contrapor à mercantilização da saúde, que ganhou

  • 6

    forma no período anterior, através da garantia formal de direitos à todos os

    cidadãos.

    A segunda parte desta dissertação (Neoliberalismo, Mercado e Saúde) procura

    contextualizar as últimas duas décadas do século XX no que diz respeito tanto à

    conjuntura internacional, marcada pelo avanço do neoliberalismo no contexto da

    globalização partir da década de 1970, como pela conjuntura nacional,

    caracterizada pela crise econômica e desestruturação do Estado brasileiro na

    década de 1980, seguida pelo ajuste macroeconômico ortodoxo e pela reforma

    liberal do Estado nos anos de 1990 que, rigorosamente, não foi enfrentadas na

    primeira década do século XXI. Mais especificamente, buscamos discutir os

    principais desafios da interação Estado e mercado na atenção à saúde sob os

    preceitos neoliberais. A neoliberalização é um fator decisivo para a interação

    entre Estado e mercado, uma vez que ressignifica o papel do Estado e o modo de

    produção e acumulação capitalista. Tal movimento é impulsionado pela

    desregulamentação e flexibilização dos mercados, globalização e financeirização.

    Nesta incursão, privilegia-se o papel do Banco Mundial como porta voz do

    neoliberalismo. Por isso, analisa-se como as propostas do Banco Mundial

    influenciaram na adoção de certas políticas de saúde nos anos 1990 no Brasil,

    através da descrição, tanto dos princípios gerais que norteiam o arcabouço teórico

    do Banco Mundial em relação às políticas de saúde em diversos países, como das

    principais políticas econômicas e de saúde adotadas. Nesta parte, o período

    analisado será o posterior à criação do SUS, em 1988 com a Constituição Federal.

  • 7

    Espera-se, com este trabalho, dar uma colaboração para o campo de pesquisa de políticas

    sociais, bem como, colaborar para o fortalecimento do debate em torno do planejamento e

    execução das políticas públicas para garantir o direito constitucional do acesso aos cidadãos

    brasileiros a uma saúde de qualidade.

  • 9

    PARTE I – DETERMINANTES HISTÓRICOS E RELAÇÕES ENTRE

    ESTADO E MERCADO NA SAÚDE NO BRASIL

    O tema da saúde é complexo e muito amplo, uma vez que seus imensos desafios são

    resultados de diversos determinantes históricos de um determinado país. No caso do Brasil,

    destaca-se a posição dependente de subdesenvolvida que tomou forma durante todo o século XX.

    Entender a questão da assistência à saúde é, antes de tudo, levar em consideração o grau de

    desenvolvimento socioeconômico do Brasil e os diversos aspectos que dele reflete. Por isso, esta

    primeira parte busca delinear os determinantes históricos e as relações entre Estado e mercado no

    sistema de saúde brasileiro no período anterior à Constituição de 1988.

    Pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ser o garantidor do

    acesso aos serviços de saúde ao conjunto da população brasileira, mas é justamente o

    aprofundamento dos laços entre o setor público e o setor privado – e a evidente hegemonia do

    segundo – o principal entrave para o fortalecimento do SUS nos moldes da Carta de 1988.

    Esta parte está dividida em dois capítulos, o primeiro busca, por meio de uma vasta

    revisão bibliográfica, identificar os traços estruturais do sistema de saúde brasileiro criado de

    1930 a 1988.

    O segundo capítulo analisa a formação da agenda de mudanças e o papel do movimento

    social no processo que culminou na Carta de 1988.

  • 11

    Capítulo 1. Os Primórdios da Assistência à Saúde no Brasil (1930/1984)

    Pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ser o garantidor do

    acesso aos serviços de saúde ao conjunto da população brasileira, mas é justamente o

    aprofundamento dos laços entre o setor público e o setor privado – e a evidente hegemonia do

    segundo – o principal entrave para o fortalecimento do SUS nos moldes da Carta de 1988.

    Explicar a gênese destes laços é objetivo primordial deste capítulo.

    Este capítulo parte da hipótese de que a saúde no Brasil apresentou, desde 1930, forte

    componente mercantil, através da intensa presença do setor privado e de grandes incentivos

    diretos e indiretos do governo ditatorial ao empresariamento neste setor.

    A análise da formação econômica brasileira1 mostra que tais laços foram gestados anos

    antes da ditadura militar e enraizados durante o regime ditatorial. Os autores analisados

    argumentam que as políticas adotadas antes e durante a ditadura militar aprofundaram e

    cristalizaram as características antissociais, antidemocráticas e antinacionais do capitalismo

    brasileiro, tornando-o incompatível com o sistema de saúde baseados na universalidade,

    integralidade e equidade.

    Neste sentido, o objetivo central deste capítulo é discutir a situação da saúde no Brasil no

    período anterior à criação do SUS, busca-se por meio de uma vasta revisão bibliográfica

    identificar os traços estruturais do sistema de saúde brasileiro criado de 1930 a 1988.

    1 A respeito do debate sobre a formação econômica do Brasil, ver Furtado (1980), Fernandes (1976), Prado

    (1987) e Sampaio (1999).

  • 12

    Para isso, o capítulo está dividido em duas partes, a primeira busca mostrar as

    especificidades da formação econômica do Brasil, principalmente no que diz respeito à

    articulação entre segregação social e dependência externa, traços típicos de um capitalismo

    dependente2. Neste primeiro item, além de buscar os traços principais deste período, o objetivo é

    compreender a influência da formação econômica para os primeiros encaminhamentos às

    demandas sociais da população no período de 1930 a 1964.

    O segundo item procura conceituar à primeira hipótese ao mostrar os pilares mercantis

    que se firmaram no período de 1964 a 1985, com o regime ditatorial. A mercantilização da saúde

    no Brasil deve ser explicada a partir do fortalecimento do setor privado durante 21 anos de

    governo militar, cuja principal característica é a modernização conservadora dos serviços

    públicos.

    1.1. Formação Capitalista E Atenção à Saúde no Brasil (1930/1964)

    O problema central deste trabalho é o sistema de saúde brasileiro e a interação predatória

    entre o setor privado e público. Para compreendê-lo, é necessário traçar as linhas gerais da

    formação do capitalismo brasileiro, analisando a inserção de um país periférico como o Brasil no

    mercado mundial capitalista em contínua expansão. O caráter desigual e combinado do

    desenvolvimento capitalista é exacerbado na periferia, condicionando assim especificidades no

    que diz respeito às transformações em cada formação social (Fernandes, 1976).

    2 A respeito desta conceitualização ver Fernandes (1976).

  • 13

    A principal especificidade da formação econômica brasileira, para Caio Prado Junior

    (1966), é a origem como uma colônia de exploração, cuja evolução é condicionada a partir de

    fora e para fora. Para o autor, o Brasil nasce a permanece visto como um negócio, sendo a

    engrenagem do mercantilismo europeu e caracterizado pela ausência de nexos morais

    unificadores de uma nação.

    Segundo Fernandes (1975), a principal especificidade do capitalismo brasileiro é seu

    caráter dependente, marcado tanto pela subordinação da sociedade nacional aos países e capitais

    dominantes, como pela necessidade de conservação de um regime de segregação social no

    interior desta sociedade. Destaca-se que esta forte heterogeneidade estrutural3 formada no Brasil

    determina certo padrão de modernização e de acumulação do capital que torna ainda mais grave a

    questão social.

    As debilidades econômicas da sociedade brasileira são entendidas neste trabalho como

    reflexo da formação econômica pautada nas características de um capitalismo dependente. Tanto

    pela dependência dos dinamismos econômicos, sociais, políticos, técnicos e culturais das nações

    centrais do sistema capitalista mundial. Como pela profunda segregação social, herdada de um

    período colonial, marcado pela escravidão e pela integração limitada e heterogênea, em que

    condições de trabalhos mínimas, direitos sociais e políticos e os benefícios do progresso material

    capitalista foram restritos à pequena parcela da sociedade (Monte-Cardoso, 2013).

    3 O conceito de heterogeneidade estrutural está inserido na análise do fenômeno de subdesenvolvimento de Furtado

    (1974). Para o autor, o subdesenvolvimento é caracterizado por sua heterogeneidade estrutural e tecnológica, isto é, pelas

    diferenças de produtividade, tecnologia e salários entre os setores. Segundo o autor, o grau de acumulação do capital aplicado aos

    processos produtivos é um parâmetro para medir o subdesenvolvimento, isto é, a industrialização em cada época se molda em

    função do grau de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo.

  • 14

    Portanto, entender a questão da saúde no Brasil é, antes de tudo, considerar que a

    formação nacional foi fundamentalmente baseada na articulação entre dependência externa e

    segregação social interna, especificidade que baliza a condução de todas as questões sociais no

    país. Cabe destacar que o capitalismo dependente também expressa a perversa e sempre presente

    combinação entre moderno e atraso no Brasil (Monte-Cardoso, 2013).

    É neste vácuo moral, nesta sociedade em que, como observou Caio prado Jr. (...) não

    há nexos éticos entre homem, mas só relações de exploração econômica e de dominação

    política, nesta sociedade em que impera a ‘vontade de poder’ em meio à espontaneidade dos

    afetos, que a razão instrumental pode penetrar com facilidade. Cardoso de Mello e Novais

    (1998:608)

    Portanto, quando se trata de saúde no Brasil, deve-se levar em conta a complexidade

    envolvida em tais questões e a forma bruta e perversa que a lógica capitalista assume frente às

    necessidades sociais das populações. Soma-se a isso as especificidades de um país periférico

    marcado por uma industrialização tardia, onde a presença do moderno e do velho mostra o lado

    perverso e sombrio da lógica capitalista.

    Além disso, a análise da formação econômica do Brasil e suas implicações nas questões

    sociais, principalmente no que se refere à saúde confirma a subordinação de tais questões à lógica

    capitalista que foi sendo desenvolvida no país à medida que a industrialização ganhava forças

    autônomas de acumulação e dinamismo (Henrique, 1999). Tanto no que diz respeito à garantia de

    proteção ao trabalhador como no interior no sistema de saúde fica evidente o Capital como

    determinante das tensões envolvidas nestas esferas. O Estado aparece de forma fraca e incapaz de

    garantir mecanismos de proteção social além de facilitar, em certa medida, o fortalecimento da

    lógica capitalista neste setor.

  • 15

    Analisando as primeiras políticas voltadas às questões sociais no início do século XX, os

    autores Braga e Paula (1981) afirmam que o Estado brasileiro se colocou de forma precoce às tais

    questões, principalmente assumindo práticas que, tradicionalmente, pertenciam aos movimentos

    das classes. No Brasil, a questão social surge no interior da economia capitalista exportadora,

    considerada como a primeira etapa do desenvolvimento capitalista brasileiro (Braga &

    Paula,1981).

    A década de 1920 é caracterizada no Brasil pela crise do padrão exportador capitalista e

    crise do Estado, levando à primeira fase de acumulação capitalista brasileira que ultrapassa seus

    limites diante do auge da economia cafeeira, estimulando a urbanização e o desenvolvimento

    industrial.

    Na economia cafeeira, os problemas de saúde e suas formas de atendimento apareciam de

    duas maneiras prioritárias: Endemias e problemas gerais de saneamento nos núcleos urbanos

    resultado do processo de acumulação cafeeira; Escassez relativa de mão de obra e péssimas

    condições de reprodução da força de trabalho, o que acarretou na estratégia pública e privada de

    atração e retenção da mão de obra. Como mostra Braga & Paula (1981:42):

    Tratava-se da criação de condições sanitárias mínimas indispensáveis não só às

    relações comerciais com o exterior, como também ao êxito da política de imigração, que

    pretendia atrair a mão de obra fundamental para a constituição do mercado de trabalho

    capitalista.

    As questões sociais e suas soluções são imediatistas a exasperados problemas que

    poderiam vir a comprometer o processo de acumulação cafeeira. Não se tratava de criar melhores

    condições de vida à população nem garantia de direitos humanos e sim defender os interesses

    pré-capitalistas através da acumulação cafeeira. Ademais, a precária estrutura financeira e as

  • 16

    bases sociais restritas do Estado brasileiro implicavam na incapacidade de resposta aos problemas

    sociais de forma satisfatória.

    Monte-Cardoso (2013) complementa essa análise afirmando que as instituições sanitárias

    do país priorizavam os grandes centros urbanos e também os portos, por onde saíam os produtos

    agrícolas e passavam os grandes fluxos de imigrantes. Os cuidados com a saúde da população de

    municípios de interior e de menor importância econômica eram bem rudimentares.

    As políticas sociais, em geral, e a de saúde, especificamente, não representavam a

    formação de um sistema de proteção social e não eram, portanto, baseados em direitos. Tais

    políticas eram direcionadas à preservação da fluidez dos negócios (exportação de café, borracha e

    minérios, industrialização por substituição de importações), garantindo o mínimo necessário à

    reprodução da força de trabalho. Dessa forma, as políticas eram relacionadas basicamente ao

    combate à mortalidade excessiva por epidemias e garantia de atendimento aos setores ligados às

    atividades mais dinâmicas do setor industrial.

    O peso político do operariado era pequeno e heterogêneo e, portanto, não poderia ser

    considerado ainda um sistema de proteção social. Apesar das políticas sociais estarem,

    evidentemente, em função dos negócios, algumas iniciativas (como os Institutos de

    Aposentadorias e Pensões - IAPs) eram algo mais que a garantia do mínimo necessário à

    reprodução da força de trabalho: eram também expressão da luta operária por uma parcela maior

    da riqueza social.

    Campos (2007) destaca que desde o início do século foram desenvolvidos no país

    diversos serviços estatais de atenção à saúde, tal como a Fundação Oswaldo Cruz, Instituto

  • 17

    Butantã, as escolas de Saúde Pública, universidades e hospitais públicos, departamentos de

    preventiva além de uma rede centros de saúde, em geral de gestão estadual ou do Ministério da

    Saúde (Fundação SESP). O autor destaca que todos estes serviços funcionavam com corpo de

    servidores públicos e modalidades de gestão típicas de Estado, para ele este segmento de serviços

    assegurou uma das bases sobre a qual se desenvolveria o projeto de um sistema nacional de saúde

    no Brasil.

    Apesar do forte componente mercantil presente desde os primórdios do sistema de saúde

    no Brasil, não se pode ignorar uma insistente força, originada de intelectuais, sanitaristas,

    sindicatos e outros movimentos sociais, exigia do Estado brasileiro o oferecimento de bens e

    serviços de saúde à população desde o início do século XX. Mesmo que em ações pontuais, estes

    movimentos foram construindo o sistema de saúde público brasileiro de tal forma que a

    idealização do SUS contou com um arcabouço de atenção à saúde, relativamente robusto,

    montado até então (Campos, 2007).

    Braga & Paula (1981) observam que a saúde pública ganha espaço como questão social à

    medida que o capitalismo se desenvolve, uma vez que essa primeira fase de acumulação

    capitalista reflete nas tentativas de extensão das políticas de saúde pública por todo o país

    apontando a saúde como questão nacional pela primeira vez no país, mesmo com o fraco sistema

    financeiro e com a crise política instaurada.

    Até a década de 1930 os trabalhadores contavam apenas com os benefícios

    previdenciários oferecidos por algumas das grandes empresas ou por Caixas de Aposentadorias e

  • 18

    Pensões4 (CAPs). Aos demais trabalhadores, excluídos de tais benefícios, lhes restavam os

    serviços público ou outras formas de medicina (precária, restrita e muitas vezes provindas de

    doações).

    Foi a partir de 1930 com a alteração do caráter do Estado que as questões sociais se

    transformaram em problemáticas do poder. No que diz respeito à lógica capitalista, Braga & De

    Paula (1981) afirmam que o respaldo econômico ao processo político vigente só acontece quando

    a acumulação capitalista passa a ser dominada pelo capital industrial.

    Do ponto de vista econômico, o período que vai de 1930 a 1955 é caracterizado por

    Cardoso de Mello (1982) como processo de industrialização restringida, em que o motor da

    acumulação capitalista passa a ser o capital industrial, trata-se de uma industrialização restrita

    diante da insuficiência técnica e financeira do capital industrial.

    A fase de transição entre a industrialização restringida e a pesada foi marcada por grandes

    descontinuidades, de tal forma que a ação do Estado foi de extrema importância ao investimento

    em infraestrutura e em indústrias de base, determinando assim os rumos da economia nessa época

    (Draibe, 1985).

    A política nacional de saúde no Brasil toma forma a partir de 1930 à medida que se

    instalam os aparelhos necessários à sua execução. Mesmo assim, cabe ressaltar que esta política

    de saúde assume caráter restrito uma vez que aspectos técnicos e financeiros da estrutura

    organizacional restringem a magnitude da cobertura (Braga & De Paula, 1981).

    4 Em 1923, a lei Eloi Chaves regulamenta a ação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), surgidas a partir de

    1917, como desdobramento das lutas operárias eram entidades de ajuda mútua autogeridas que abrangiam trabalhadores da

    mesma empresa. As CAPs constituem o embrião do seguro social no Brasil, por terem sido criadas em modelo de seguro social,

    inspirado na reforma de Bismark na Alemanha, elas formam a base de financiamento de empresas, trabalhadores e,

    eventualmente, Estado (Monte-Cardoso, 2013).

  • 19

    São as alterações de caráter político e as transformações da natureza do Estado que

    criam as condições iniciais para que as questões sociais em geral – e as de saúde em particular –

    já postas no período anterior, pudessem ser enfrentadas através de um bloco orgânico e

    sistemático de políticas.

    Assim, tem-se em 1930 um ponto de ruptura com o período anterior na medida em que o

    Estado passa a responder à questão social de forma universal, em toda a extensão nacional -

    guardando os limites já expostos - deixando de tratar a questão social de forma parcial e pontual.

    No que tange ao sistema previdenciário, foi a partir de 1933 que as CAPs começaram a

    ser convertidas em IAPs, com comando e financiamento tríplice (empresas, trabalhadores e

    Estado). Apesar do regime contencionista adotado durante a década de 1930, reflexo da crise de

    1929, a industrialização impulsionou o crescimento da base de trabalhadores formais, acarretando

    no crescimento do aparelho previdenciário (Monte-Cardoso, 2013).

    Tendo em vista as transformações que resultaram em uma nova dinâmica de acumulação

    subordinada ao capital industrial, as novas necessidades aumentaram a pressão para realizar e

    ampliar as políticas sociais. A política nacional de saúde estava organizada em dois subsetores:

    saúde pública e medicina previdenciária (Braga & Paula, 1981).

    Como destaca Mesquita (2008), a política nacional de saúde era marcada por uma

    separação institucional: por um lado havia a atuação de saúde coletiva, em que as ações eram

    organizadas e prestadas por instituições estatais a toda a população, e do outro, a assistência

    médica previdenciária, em que os serviços eram prestados de forma restrita a alguns

    trabalhadores urbanos.

    Segundo a autora, tal divisão institucional caracterizava-se pela significativa diferença na

    forma de financiamento, as instituições públicas contavam com escassos recursos orçamentários

  • 20

    enquanto que as instituições previdenciárias eram financiadas com recursos de contribuições dos

    trabalhadores, impulsionadas com o desenvolvimento econômico e o crescimento da massa

    salarial.

    Apesar desta forte e perversa segregação institucional, as fortes demandas pela ampliação

    da saúde no Brasil resultaram em diversos movimentos que compuseram a política nacional de

    saúde, tais como o processo de centralização do Estado, as reformas nos serviços de saúde e a

    criação de uma multiplicidade de agencias e novas unidades de serviços fundamentais (Braga &

    Paula, 1981).

    Do ponto de vista político, as décadas de 1940 e 1950 são importantes para a história da

    saúde no Brasil, tanto por apresentar a saúde como uma das prioridades do Plano SALTE5 em

    1940, como pelo reaparelhamento do Estado na década seguinte, que possibilitou a definição e

    consolidação da estrutura da saúde pública no país. Entretanto, cabe ressaltar que, mesmo a saúde

    ganhando destaque no discurso político, as barreiras estruturais – recursos escassos, estreita base

    financeira do Estado e limitado desenvolvimento industrial – comprometeram tais políticas no

    país.

    Do ponto de vista do movimento de acumulação de capital no setor, Braga & Paula (1981)

    associam a entrada do Brasil na etapa de acumulação industrial com a constituição capitalista de

    um setor de atenção de saúde no país, cuja produção privada de bens e serviços é

    progressivamente financiada pelo Estado, através da previdência.

    O setor de atenção médica no Brasil, à semelhança do que ocorre em outros países,

    cresce aceleradamente de importância econômica, mobilizando um volume cada vez maior de

    5 Este foi um plano econômico criado em 1947 e suas iniciais referem-se à: Saúde, Alimentação, Transporte

    e Energia.

  • 21

    recursos, permitindo uma crescente acumulação de capital em seu interior. Braga & De Paula,

    1981:74

    Tal modelo de organização institucional, calcado na segmentação e na discrepante

    diferença de financiamento, beneficiou o financiamento do setor privado através da canalização

    de recursos da saúde previdenciária para a construção e expansão de hospitais privados. Ainda

    neste sentido, Mesquita (2008) destaca que este modelo criou mecanismos para que o setor

    privado ganhasse força e se estruturasse, de forma a ter capacidade de defender seus interesses

    em possíveis tentativas de reestruturação do sistema.

    Durante os anos 1950 e 1960, surgiram certas limitações no sistema previdenciário

    relacionadas com uma crise financeira e, por conseguinte, houve tentativas de reestruturação do

    sistema previdenciário, porém a lógica de seletividade na cobertura no modelo de proteção social

    no Brasil permaneceu.

    Deste ponto de vista, a saúde não pode ser considerada um negócio ainda em 1964, mas a

    clara divisão entre medicina curativa e medicina preventiva e as abordagens distintas da questão

    social para distintos segmentos da incipiente classe trabalhadora brasileira são os primeiros sinais

    do grande mercado que se tornaria a saúde no Brasil. A separação entre saúde previdenciária6 e

    saúde pública7 expressa a formação de um embrionário sistema de saúde pautado nos interesses

    privados em detrimento dos interesses coletivos.

    No que tange ao processo de tentativa de superação do subdesenvolvimento, Furtado

    (1974) destaca que a industrialização da periferia do mundo capitalista ocorre de forma rápida e

    sob a direção de empresas de países do centro. A partir de então a grande empresa passa a

    6 Para o segmento da força de trabalho mais organizado e vinculado ao centro dinâmico da economia, no formato dos

    IAPs. 7 Voltadas basicamente para erradicação de endemias e garantia da reprodução do da força de trabalho.

  • 22

    desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento capitalista e o sistema torna-se

    oligopolizado de maneira que a concorrência não ocorre mais via preços e reduções de lucros.

    Neste contexto, o autor destaca a necessidade de crescente eficiência e sofisticação na

    ação dos Estados frente a esta superestrutura do sistema capitalista alicerçado nessa crescente

    unificação e nas grandes empresas, os Estados seriam fundamentais, como instrumento de

    direção e coordenação das atividades econômicas. Porém, é exatamente a debilidade do Estado,

    em agir em função do interesse da coletividade nacional, que torna o processo evolutivo dos

    países periféricos ainda mais peculiar.

    Até aqui, examinamos a questão da saúde no Brasil a partir das influências da estrutura

    produtiva, de tal forma que foi possível destacar o processo de desenvolvimento capitalista e sua

    relação com a ascensão das políticas sociais, em especial para a saúde.

    Diante da lógica capitalista, a questão social no Brasil foi subordinada a aspectos técnicos

    financeiros no bojo do sistema capitalista brasileiro. O fraco sistema de proteção social no país se

    deve, em grande medida, às determinações capitalistas que seguem a lógica de acumulação do

    capital em detrimento das questões nacionais, como a saúde.

    1.2. O Fortalecimento Da Oferta Privada (1964/1985)

    Sob a perspectiva da formação econômica do Brasil, a ditadura militar desempenhou

    papel central por ter tido as ferramentas sociais e econômicas para enraizar e intensificar os

  • 23

    principais traços do capitalismo dependente e do subdesenvolvimento - características

    antinacionais, antidemocráticas e antissociais, as quais permanecem até hoje na sociedade

    brasileira8.

    Durante a década de 1960, o contexto mundial foi decisivo para a formação econômica do

    Brasil, uma vez que os países periféricos fizeram parte da disputa de poder na Guerra Fria. No

    plano internacional o polo socialista apresentava chances reais de incluir a periferia capitalista,

    haja visto o triunfo socialista em Cuba em 1959, assim como em outros países na Ásia.

    Em alguns países da América Latina a industrialização fazia-se presente, aumentando a

    autonomia relativa de países como Brasil, México e Argentina perante aos países imperialistas, o

    que elevou a instabilidade política no polo capitalista da Guerra. Portanto o avanço progressivo

    do capital nos países periféricos deve ser visto diante da necessidade de conter o comunismo em

    crescimento no mundo.

    Assim, o período do regime militar no Brasil foi decisivo no processo de consolidação do

    capitalismo dependente por cristalizar um padrão de dominação específica através da combinação

    de dependência externa e regime de segregação social herdados do período colonial (Monte-

    Cardoso, 2013).

    A dependência externa brasileira é balizada por ações imperialistas praticadas por estados

    nacionais antes mesmo do surgimento do capitalismo, a acumulação originária por meio da

    colonização e do mercantilismo deu nova forma ao imperialismo na transição ao capitalismo9.

    8 Para Santos (2014:7), a ditadura militar carrega ainda responsabilidade pela devastação e retrocesso nos

    esforços de democratização que se buscava no Brasil. “Nesse período, uma geração de pensadores, formadores de

    opiniões, lideranças e dirigentes foi retirada da convivência e interação no pluralismo da sociedade, da produção

    coletiva de conhecimentos, ideias, buscas, formulações e influencias”.

  • 24

    Mesmo em contexto de ditadura do grande capital no país, o conjunto de políticas

    econômicas do período impulsionou o crescimento de recursos estatais, refletindo no aumento

    significativo de diversos serviços oferecidos assim como na população atendida. Apesar da

    intensiva modernização do aparato estatal, tais políticas tinham alto viés conservador (Fagnani,

    2005; Monte-cardos, 2013)

    De forma geral, Aureliano e Draibe (1989) acreditam que durante o período de 1930 a

    1988 o sistema de proteção social brasileiro se expandiu no que diz respeito às áreas das políticas

    e população beneficiária, mas as características fundamentais não foram alteradas. A segunda

    metade deste período, de 1964 a 1985 houve a consolidação institucional e reestruturação

    conservadora do sistema de proteção socialmente excludente.

    Segundo Fagnani (2005), esse movimento foi conduzido por uma estratégia constituída

    por quatro características centrais: caráter regressivo do financiamento do gasto social;

    privatização do espaço público; centralização do processo decisório; e fragmentação institucional.

    O autor demonstra que tais características estruturais se mantiveram presentes em todos os

    setores de políticas sociais no período autoritário, com maior ou menor intensidade. Tal

    caracterização deste período explicita que a reforma dos mecanismos estatais levou a

    modernização institucional, financeira e burocrática ampliando assim o alcance da gestão

    governamental, o que possibilitou a expansão da oferta de bens e serviços. Porém, tais políticas

    9 O imperialismo, considerado por Lênin como o “estágio superior do capitalismo” é caracterizado por: 1. Aumento da

    concentração de capital e da produção; 2. Passagem de pequena para a grande indústria, com a fusão do capital industrial e

    bancário sob o capital financeiro; 3. Extraordinário aumento de exportação de capital financeiro; 4. Divisão dos mercados

    mundiais pelos monopólios; 5. A moderna colonização; 6. A expansão do capital financeiro e das sociedades anônima, dando

    impulso ao florescimento de uma classe de rentiers; e 7. A colonização incorporando diversos interesses (Cano, 1996) Já

    Fernandes (1973) destaca a nova fase do imperialismo marcado pelo moderno mercado capitalista, de tecnologia avançada e de

    dominação externa de hegemonia dos Estados Unidos. Este movimento é capaz de orquestrar toda a ordem social vigente,

    contemplando o controle de natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa e até mesmo a introdução de tecnologia, a

    modernização de infraestrutura e o fluxo de capitais entre os países.

  • 25

    sociais atenderam, em grande medida, as camadas de média e alta renda explicitando o caráter

    conservador do período, dada a limitada capacidade de redistribuição de renda (Fagnani, 2005).

    Sobre a primeira característica, o caráter regressivo do financiamento do gasto social,

    Fagnani (2005) afirma que na década de 1960 o Brasil apresentava uma situação social

    complicada dada a expressiva heterogeneidade social e regional, alta concentração de renda,

    formas precárias de inserção no mercado de trabalho e um contingente significativo de excluídos

    e miseráveis no campo e na cidade. Porém, os mecanismos de financiamento das políticas sociais

    tiveram seu caráter regressivo reforçado a partir de 1964, o que implicou na separação entre

    desenvolvimento econômico e distribuição de renda, complicando ainda mais a situação social

    brasileira.

    No caso especifico da saúde, os mecanismos de financiamento eram exclusivamente

    dependentes do Tesouro Nacional o que acarretou na marginalização deste setor na agenda das

    políticas públicas. A partir de 1964 a política de saúde é marcada pela hegemônica presença da

    “assistência médica previdenciária”, caracterizada pela compra de serviços do setor privado e

    pelo credenciamento de médicos, ela era coordenada pelo INAMPS (Instituto de Nacional de

    Assistência Médica da Previdência Social) e financiada pelas contribuições dos trabalhadores e

    empregadores (Fagnani, 2005).

    A divisão institucional na política nacional de saúde contava com uma significativa

    diferença na forma de financiamento. As instituições públicas contavam com escassos recursos

    fiscais, recebendo tratamento residual. Enquanto que as instituições previdenciárias eram

    financiadas com recursos de contribuições dos trabalhadores, impulsionadas com o

    desenvolvimento econômico e o crescimento da massa salarial (Mesquita, 2008).

  • 26

    Este modelo de organização institucional, calcado na segmentação e na discrepante

    diferença de financiamento, beneficiou o financiamento do setor privado através da canalização

    de recursos da saúde previdenciária para a construção e expansão de hospitais privados. Mesquita

    (2008) destaca que este modelo criou mecanismos para que o setor privado ganhasse força e se

    estruturasse, de tal forma ter capacidade de defender seus interesses em possíveis tentativas de

    reestruturação do sistema.

    Dessa forma, fica claro que a o caráter regressivo do financiamento do gasto social abriu

    espaço para a consolidação da segunda característica deste período, a privatização do espaço

    público. Os interesses privados ganham espaço nas decisões sobre as políticas sociais, sejam

    pelas formas de assistência privada, ou sejam pelos mecanismos democráticos tradicionais de

    representação política e de controle social bastante reduzidos10

    . Em todos os setores, inclusive na

    saúde, enrijeceram fortes alianças entre o setor privado e o público (Fagnani, 2005).

    Neste ponto fica clara a particularidade do capitalismo dependente definida por Prado

    Junior (1987), em que a acumulação do capital no poder público ocorre essencialmente em

    proveito dos interesses privados. Para o autor, o Brasil nasce a permanece visto como um

    negócio, sendo caracterizado pela ausência de nexos morais unificadores de uma nação.

    Essa característica fica mais clara com o destaque de Monte-Cardoso (2013) sobre a

    aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), em 1960, que incorporou os benefícios

    da população previdenciária a uma política mais explícita e articulada da assistência média a

    partir de então. Para o autor, a lei, por ter como um de seus traços centrais a reafirmação das

    10 Cabe destacar que em alguns mecanismos de participação, como nos IAPs, o padrão de gasto não era necessariamente

    mais democrático ou público. Basta ver que no IAPI foi onde surgiu a mais forte expressão do modelo privatista em saúde.

  • 27

    empresas empregadoras como protagonistas da prestação de assistência, deu impulso para o

    fortalecimento do setor privado neste setor.

    Uma proposta com enfoque privatizante foi assumida também no sistema previdenciário

    brasileiro a partir de 1964, uma vez que as mudanças no aparelho previdenciário buscavam

    garantir a expansão dos serviços privados mediante incentivos estatais que abrangessem a maior

    parte dos setores ligados ao chamado ‘complexo médico-empresarial’.

    A partir de 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),

    houve a centralização dos recursos no poder do Estado o que intensificou tal política (Monte-

    Cardoso, 2013).

    Segundo o autor, a criação do INPS, que agregou as atribuições de quase todos os IAPs

    (IAPB, IAPC, IAPFES, IAPI, IAPM, IAPTEC), deve ser olhada por três ângulos, dois primeiros

    que dizem respeito à legitimação do regime militar e ao grande montante de recursos disponíveis

    para este sistema, e um terceiro, central para a análise, que tange ao rápido crescimento de uma

    rede assistencial de serviços de saúde ancorados em um modelo privado com fartos subsídios

    estatais.

    O fortalecimento do setor privado é resultado da expansão das formas assistências que

    ganharam espaço, principalmente, com a centralização do INPS, que passou a ser o maior

    comprador de serviços de assistência individual à saúde no Brasil. Entre as formas assistenciais

    destaca-se o contrato de serviços de saúde e os convênios, o modelo de contrato de serviços

    funcionava a partir do pagamento de “unidade de serviço” ao setor privado credenciado

  • 28

    (hospitais, laboratórios e médicos) em todos os municípios brasileiros, via geração de fatura

    remetida ao INAMPS.

    O principal problema deste arranjo é que o INAMPS não tinha capacidade de analisar e

    vistoriar a geração de tais faturas o que levou a enorme transferência de recursos públicos para o

    setor privados, impulsionando a expansão capitalista no setor da saúde.

    Fagnani (20065:34) cita Carlos Gentille de Mello (1977) que afirma “(...) qualquer que

    seja a roupagem da medicina privatizada, a sua prática cria as condições ideais e propicias para a

    mercantilização da medicina, sem que haja qualquer possibilidade de instituir um sistema eficaz

    de controle e fiscalização (...)”11

    . Monte-Cardoso (2013) destaca que os pagamentos eram

    realizados com base numa tabela de preços por ato médico e o parâmetro de decisões para a

    execução da pratica assistencial era o lucro.

    Este modelo utilizado preserva a centralidade da remuneração por procedimento

    diagnostico ou terapêutico, segundo Campos (2007:1868)

    Até a inauguração do SUS, a expansão do acesso ao cuidado médico-sanitário no

    Brasil vinha ocorrendo sem que se invocasse qualquer meio da Previdência Social (...) servia

    como um grande seguro estatal, que mais dinamizava o mercado da saúde do que o substituía.

    (...) Apesar da intermediação do Estado, conservou-se naquele modelo o estímulo econômico à

    produção dos atos sanitários.

    Já os convênios, outra forma assistencial predominante, é marcado pelo modelo de pré-

    pagamento de um contrato de serviços e não por um serviço executado. Tal forma de assistência

    impulsiona ainda mais a heterogeneidade estrutural brasileira, possibilitar diferenciação da

    qualidade da assistência à saúde de acordo com diversas formas de distinção socioeconômica.

    11

    Numa revelação contundente, Reinhold Stephanes, presidente do INSS (Instituto Nacional de Seguridade

    Social) no governo Geisel, confirmou as apreensões do sanitarista e reconheceu o total descontrole das contas da

    saúde. Num trabalho escrito em 1984, o ex-dirigente do INSS no regime militar reconheceu que a forma de apresentar faturas e pagamentos era como “um cheque em branco” ao setor privado (Fagnani, 2005).

  • 29

    Para Bahia (2005) a condução da política previdenciária e de saúde durante a ditadura

    militar foi se moldando por duas características principais: a privatização e a segmentação da

    clientela. Seja pela unificação previdenciária, pela centralização do INPS ou pelas restrições

    orçamentárias impostas, foi durante este período que a capitalização da medicina sofreu o seu

    primeiro grande impulso. Os autores Braga & Silva (2001:19 e 20) definem “capitalização da

    medicina” como:

    (...) processo em que o Estado provia e pagava a ampliação da demanda aos serviços

    médicos e aos produtos industriais vinculados ao setor; financiava os investimentos e contratava

    os serviços da rede privada, apoiando assim, os empreendimentos capitalistas no setor.

    Monte-Cardoso (2013) mostra que o avanço da capitalização da medicina foi dirigido por

    duas frentes: as transnacionais farmacêuticas e de equipamentos e a formação de um moderno

    mercado de planos e seguros de saúde encabeçados pelas empresas medicas12

    .

    Segundo Donnangello (1975), o Plano Nacional de Saúde (PNS), proposto em 1968, tinha

    como fundamento o financiamento dos serviços médico-hospitalares por fundos públicos e,

    parcialmente, pelo consumidor, já a produção tinha viés totalmente privatizante, através da livre

    escolha do médico e do hospital pelo cliente. Porém, cabe destacar que o PNS não definiu o

    padrão da expansão do setor privado, ele foi tão radicalmente privatista que mexeu com a

    burocracia previdenciária e foi posto de lado.

    Durante a ditadura militar ficou explícita a potencialização da proliferação da saúde como

    um negócio no Brasil, principalmente, através da formação do INPS, mas também com estímulos

    oficiais às outras formas de assistência individual. Além do fortalecimento do setor privado,

    12 Que abarcavam: medicinas de grupo, cooperativas médicas e outras formas incipientes de assistência privada. Para o

    autor, a criação das cooperativas médicas foi um dos pilares do empresariamento da saúde (Monte-Cardoso, 2013).

  • 30

    amplamente discutido, cabe ressaltar que, como um negócio, a saúde passou a ter grande

    componente de diferenciação social, fator exigido pelo grande capital.

    A terceira característica deste período é a centralização do processo decisório, que está

    relacionada ao contexto político e institucional autocrático próprio do autoritarismo marcado pela

    redução dos direitos civis e políticos. Neste sentido, uma característica deste movimento é a

    destituição das entidades sindicais da gestão das políticas sociais. Fagnani (2005:29) afirma:

    “Interrompia-se, assim, um longo ciclo, intensificado entre 1945 e 1963, em que a classe

    trabalhadora tinha representação na definição dos rumos da previdência social, da política salarial

    e da própria Justiça do trabalho”.

    Além disso, este movimento de centralização é uma manifestação das reformas

    institucionais implementadas entre 1964 a 1967, cujo objetivo central era centralizar o controle

    do financiamento no âmbito federal. Para isso, foram criadas “complexas agencias burocráticas

    federais” que passaram a formular, implementar e gerir políticas setoriais no âmbito nacional

    com volumes financeiros significativos (Fagnani, 2005:30).

    Por fim, a última característica deste período é a fragmentação institucional. De menor

    importância, tal mudança não atingiu o centro das políticas sociais, causando maiores impactos

    na alimentação popular e na assistência social.

    Dessas quatro características centrais destacadas por Fagnani (2005), podemos delinear

    mais duas características que transpassam as demais e definem o período analisado. A primeira é

    a forte expansão da oferta de bens e serviços sociais, incluindo, principalmente, os serviços

    estatais. A oferta assistencial e previdenciária deste momento é bastante relevante, pois compôs

  • 31

    grande parte do arcabouço do SUS, quando criado em 1988, os hospitais e centros de criados pelo

    Estado neste período foram incorporados ao sistema de saúde recém criado.

    A outra característica é o resultado excludente e limitador às classes mais abastadas da

    sociedade que tal expansão trouxe, uma vez que mesmo tendo tido um avanço dos serviços

    estatais, estes contavam com restrições do tipo de inserção no mercado de trabalho e também de

    regiões geográficas específicas do Brasil.

    O período autoritário brasileiro foi marcado por uma expansão da oferta de bens e

    serviços sociais, porém tal expansão foi excludente e limitadora às classes mais abastadas da

    sociedade, o que implica no agravamento da desigualdade social e regional do Brasil.

    Cabe aqui analisar ainda, brevemente, os movimentos que compõe distintas fases na

    ditadura brasileira. A primeira fase é definida por Fagnani (2005) como a “Gestação da Estratégia

    de Modernização Conservadora (1964-1967)”, marcados pelo interesse em estabilizar os preços e

    realizar as reformas institucionais que visavam “modernização conservadora” no campo

    econômico.

    O principal objetivo destas reformas era modernizar os instrumentos de gestão econômica

    e de ampliar as bases de financiamento da economia e do setor público. Foi nesta fase que surge a

    ideia de financiar o gasto social através das contribuições sociais, que foi difundido para a maior

    parte dos setores sociais. O autor também destaca que há um processo político e institucional

    mais amplo que condicionava a estratégia conservadora, um exemplo disso é que um dos

    objetivos dos militares era desmontar o aparato nacional popular.

  • 32

    O segundo momento destacado por Fagnani (2005) é “A Modernização em Marcha

    (1968-1973)”, marcada pelo avanço e fortalecimento das políticas que vinham sendo geridas no

    momento anterior. Nesta fase as características apontadas se tornam evidentes e vão se enraizado.

    A consolidação destas características foi possível em função da conjuntura econômica e política

    desta fase, marcada pelo “milagre econômico” e recrudescimento do autoritarismo.

    O autor destaca o financiamento dos gastos sociais que se firmam por contribuições

    sociais; para a difusão da centralização do processo decisório em todos os setores; e o avanço da

    privatização do espaço público. No caso da saúde, em 1968 havia uma disputa, de um lado, havia

    os interesses privados e burocráticos ligados ao segmento da assistência médica previdenciária e,

    de outro lado, havia a saúde pública como responsabilidade do Ministério da Saúde financiada

    com recursos do Tesouro Nacional. Neste ano, o modelo “médico-assistencial privatista” se torna

    hegemônico (Fagnani, 2005).

    O terceiro período é a “Tentativa de Mudança (1974-1979)”, em que há algumas

    tentativas de reformas que visavam mudar os movimentos da fase anterior. Os condicionantes

    deste período podem ser resumidos na precariedade das condições de vida da população, no

    agravamento da questão social, o que levava a oposição do regime ditatorial. No caso da saúde

    houve surtos de epidemias em diversas regiões e estudos mostravam altas taxas de mortalidade

    infantil.

    As políticas desta fase tinham o objetivo de corrigir a baixa efetividade das políticas

    sociais e ampliar a coordenação e a racionalização das ações e do gasto social. Desta forma, tais

    reformas eram divididas em dois tipos: as de tentativa de reformar as políticas já existentes e as

    que incorporavam as novas questões na agenda governamental.

  • 33

    Por fim, há a fase de “Esgotamento da estratégia (1980-1984)”, determinada pelo contexto

    político e econômico do período. A situação política é deteriorada pelo movimento de massa que

    reivindicava o restabelecimento de eleição direta para Presidência da República.

    Analisando este longo período autoritário, duas evidências podem ser destacadas: se, de

    um lado, houve uma significativa expansão da oferta de bens e serviços públicos, de outro lado,

    tal movimento teve pouco impacto na distribuição de renda. Dessa forma, houve

    incompatibilidade entre mecanismos de financiamento do gasto social, de caráter regressivo, e a

    busca redução da desigualdade social (Fagnani, 2005).

    Monte-Cardoso (2013) enfatiza que foi a partir da ditadura que a política econômica foi

    direcionada aos interesses das empresas transnacionais e da viabilização da modernização dos

    padrões de consumo típicas de seu padrão tecnológico importado, através da concentração de

    renda – canalizada para o consumo de bens duráveis e consolidação do papel do Estado em

    garantidor de infraestrutura e bens intermediários necessários.

    Soma-se a esta análise a visão de Furtado (1974) sobre a inadequação deste processo de

    industrialização, que, a despeito de apresentar altas de crescimento econômico, intensificou ainda

    mais o caráter antissocial do capitalismo brasileiro, com uma mudança na cesta de bens de

    consumo em benefício de uma pequena parcela abastada da população13

    .

    13 Segundo Furtado (1974), a condição de economias subdesenvolvidas está relacionada com a forma como o industrial

    cresceu e se difundiu, em que são as vantagens comparativas no comercio internacional o ponto de origem do

    subdesenvolvimento, mas é insuficiente para entender o fenômeno, uma vez que é a disparidade de difusão de progresso o que

    aprofunda a situação inicial. De acordo com o autor, o subdesenvolvimento tem suas raízes no processo interno de exploração e

    no processo externo de dependência. A existência de uma classe dirigente com padrões de consumo similares a de países com

    altos níveis de acumulação de capital provenientes do progresso técnico gerava uma dependência desses países. O processo de

    modernização se deu quando fez-se um esforço de passar a produzir o que se vinha importando. Porém a industrialização não

    acaba com a situação de dependência, pelo contrário, a reforça, pois a introdução de novos produtos requer a utilização de

    técnicas mais avançadas e de capital, e maiores níveis de concentração de renda. Assim, o crescimento não reduz o

    subdesenvolvimento, antes o fortalece, pois aumenta a exploração interna (Furtado, 1994).

  • 34

    Fagnani (2005) mostra a concentração da infraestrutura e da prestação de serviços nas

    regiões mais desenvolvidas, gerando desequilíbrios inter-regionais e intra-regionais em termos de

    distribuição geográfica de equipamentos, cobertura de atendimento e formação de recursos

    humanos. Para a saúde, o lado mais perverso do caráter conservador das políticas adotadas se dá

    pela instalação da rede de saúde onde encontra-se o dinheiro (mercado formal) e não onde está a

    doença.

    Este movimento de modernização conservadora destacado por Fagnani (2005) para o

    período de 1964 é também enfatizado por Monte-Cardoso (2013) ao discutir a clara segmentação

    no sistema de saúde brasileiro, entre saúde previdenciária, que trazia elementos modernos na

    assistência hospitalar e acesso às tecnologias avançadas, e saúde pública, com elementos

    atrasados garantindo mínimas condições de vida tanto no campo quanto em cidades de grande

    crescimento e altas taxas de mortalidade infantil.

    A natureza do modelo assistencial privatista, hegemônico no complexo previdenciário,

    centrado no consumo de fármacos e equipamentos de última geração, favoreceu uma inédita

    modernização nos padrões de consumo de bens de saúde, potencializando as distorções entre as

    necessidades e as possibilidades da sociedade brasileira e o padrão de incorporação tecnológica

    assumido durante o regime. Monte-Monte-Cardoso, 2013:111.

    Fagnani (2005) destaca ainda que, mesmo de caráter excludente, não se pode tirar o

    mérito de expansão da oferta de bens e serviços em muitos setores. No caso da saúde a expansão

    dos serviços é evidente, mas também se destaca o caráter conservador, dada a concentração da

    infraestrutura e da prestação de serviços nas regiões mais desenvolvidas e a marginalização das

    ações ligadas aos cuidados primários de saúde e atenção médica sanitária, o que acarretou em

    enormes desigualdades regionais e de renda entre os diferentes segmentos populacionais.

  • 35

    A assimetria social, traço fundamental de um capitalismo dependente como o brasileiro,

    aparece de forma gritante entre grandes e pequenas cidades, entra cidade e campo, e entre regiões

    ricas e pobres. As desigualdades criadas pelo sistema de saúde vigente não se restringiam às

    regiões, abarcava também a distribuição da força de trabalho, a capacidade instalada da rede

    hospitalar e ambulatorial, a densidade tecnológica e a distribuição do mercado de planos e

    seguros privados (Monte-Cardoso, 2013).

    Por isso, além desses profundos desequilíbrios sociais e regionais, ainda “assistiu-se a

    mais completa marginalização das ações ligadas aos cuidados primários de saúde e atenção

    médica sanitária” (Fagnani, 2005:39). Esta situação pode ser percebida tanto pelo grande

    retrocesso nas ações coletivas destinadas a intervenções sobre a saúde das populações, como

    imunizações, combate a doenças contagiosas, iniciativas educativas como pelas elevadas taxas de

    morbidade e mortalidade infantil, excessiva incidência de epidemias associadas à miséria, os

    quais correspondem às necessidades de parcela preponderante da demanda da população (Monte-

    Cardoso, 2013).

    A lógica das políticas sociais adotadas durante o regime militar, longe de buscar políticas

    com concessão de direitos universais, seguia a tendência de diminuir as tensões sociais, garantir o

    processo de acumulação dirigido pelo capital internacional e ampliar o espaço para os negócios.

    O movimento de construção do sistema de saúde brasileiro seguiu, portanto, a lógica de

    um país de capitalismo dependente, marcado pela dependência externa e pela segregação social.

    O sistema foi (e ainda é) subordinado ao capital desde sua forma mais embrionária e segregou a

    sociedade desde as primeiras CAPs até o mais avançado sistema de previdenciário do regime

    militar, combinando sempre elementos modernos com atrasados.

  • 36

    De acordo com Ocké-Reis (2012), a partir de 1960 é possível observar uma série de

    incentivos governamentais diretos e indiretos aos planos privados de saúde. Nos estímulos diretos

    o autor destaca a grande facilidade de financiamento para a construção de instalações hospitalares

    e para a compra de equipamentos médicos e uma série de benefícios fiscais e previdenciários

    concedidos a alguns planos que, apesar de desempenharem atividades lucrativas, foram

    consideradas filantrópicas. Já no que diz respeito ao apoio indireto, o autor destaca o

    estabelecimento de normas previdenciárias e jurídicas que impulsionaram a expansão dessas

    empresas.

    De acordo com Monte-Cardoso (2013), a despeito da forte presença do setor privado na

    saúde desde 1930, é só a partir de 1980 que a diversificação no mercado da saúde privada fica

    mais evidente. O autor destaca três motivos para este movimento: a entrada do capital financeiro

    no setor que impulsionou o desenvolvimento das empresas médicas; a crise no setor

    previdenciário e a pressão de diversos segmentos sociais por assistência médica privada.

    Neste sentido, grande parte da classe trabalhadora passa a ser usuária de planos privados

    ou medicinas de grupo na década de 1980. A degradação do sistema público de saúde neste

    período e a consolidação deste setor empresarial (com a entrada do capital financeiro)

    possibilitou que os planos de saúde se transformassem em uma ferramenta de articulação política

    entre patrões e empregados nas negociações trabalhistas, tanto pelo lado dos patrões quanto dos

    dirigentes sindicais, por pressão de suas bases. (Monte-Cardoso, 2013)

    A agitação social que vinha se formando a partir de meados de 1970 e começo de 1980,

    mesmo dentro dos rigorosos moldes da ditadura militar no Brasil, tinha como um de seus pilares

    a crise assistencial da previdência e esta “clara inviabilidade técnica e financeira do modelo

  • 37

    privatista, bem como sua total falta de sintonia com o padrão sanitário brasileiro” (Monte-

    Cardoso, 2013:153)

    O autor destaca três principais heranças da ditadura militar neste contexto de agitação

    social e crise assistencial: Em primeiro lugar, a Segmentação da atenção à saúde, tal padrão não

    só se manteve durante o período, como foi aprofundado neste período. Em segundo lugar, a

    proliferação das formas privadas de atenção à saúde, com destaque para os seguros-saúde para

    grande parte dos trabalhadores assalariados dos setores mais dinâmicos da economia, Em terceiro

    lugar, o caráter altamente concentrador do INAMPS que assegurava a hegemonia das classes

    dominantes ao mesmo tempo que repartia os custos com as classes mais baixas.

    Cabe destacar que as lutas sociais, iniciadas principalmente na década de 1970,

    possibilitaram experiências bastante exitosas no caso das imunizações ou mesmo de projetos

    inovadores no âmbito da assistência14

    , porém não foram capazes de mudar o caráter autoritário e

    antipopular do regime. Dessa forma, a enorme expansão da atenção médica não correspondeu a

    equivalente melhoria dos níveis de saúde da população, formando uma situação favorável para a

    construção de um sistema de saúde segregador e privatista e para o desenvolvimento de um novo

    setor da economia capitalista, o complexo médico industrial.

    A lógica que direciona o sistema de saúde brasileiro, marcada por privatizações,

    modernização conservadora e segregação social, está intimamente relacionada à nossa herança

    colonial. Fica evidente a incompatibilidade entre o padrão dos negócios de saúde no Brasil e os

    interesses coletivos de toda a população.

    14

    Ver mais sobre Plano Montes Claros (PMC), Programa de Interiorização das Ações de Saúde e

    Saneamento (Piass) e o Movimento Municipalista em Monte-Cardoso (2013) item 5.2.3.

  • 38

    Neste capítulo vimos a gênese dos laços entre o setor público e o setor privado na saúde

    em conjunto com a formação capitalista no Brasil, percebe-se a presença do forte componente

    mercantil, por meio da intensa presença do setor privado e grandes incentivos ao

    empresariamento neste setor.

    A análise da formação econômica brasileira mostra que tais laços foram gestados anos

    antes da ditadura militar e enraizados durante o regime ditatorial. As políticas adotadas antes e

    durante a ditadura militar aprofundaram e cristalizaram as características antissociais,

    antidemocráticas e antinacionais do capitalismo brasileiro, tornando-o incompatível com o

    sistema de saúde baseados na universalidade, integralidade e equidade.

    Seguindo a ordem cronológica, o próximo capítulo visa analisar o processo que resultou

    na assinatura da Constituição Federal de 1988 com forte viés social e cidadão. Do ponto de vista

    formal, a Carta Magna é a antítese da política privatista de saúde vigente na ditadura, destacado

    neste primeiro capítulo.

  • 39

    Capítulo 2. A Constituição de 1988: da reforma sanitária à garantia formal de

    direitos

    O período em que o governo brasileiro foi conduzido por militares no Brasil é marcado

    pela modernização conservadora, visto que, simultaneamente, houve expansão dos serviços

    sociais oferecidos à população, mas, tais serviços mantiveram as profundas desigualdades do país

    por seu caráter restrito na redistribuição da renda e na universalização da cidadania.

    No âmbito da saúde, a análise anterior deixa clara a consolidação do grande espaço

    ocupado pelo setor privado assim como a fraca capacidade do Estado em defender os interesses

    coletivos. Enquanto a década de 1960 é caracterizada pelo recrudescimento do processo

    autoritário comandado pelos militares a década de 1970 já se observa a formação dos primeiros

    movimentos sociais, os quais vão ganhando força até o enfraquecimento do governo militar. Com

    a crise do regime militar, tais movimentos sociais sem expandem e ganham força política capaz

    de influenciar diretamente na elaboração da Constituição Federal assinada em 1988.

    O objetivo central deste capítulo é a análise da formação da agenda de mudanças e o papel

    do movimento social no processo que implicou na Carta de 1988. Enfatizaremos que a

    Constituição Federal procura se contrapor à mercantilização da saúde, que ganhou forma no

    período anterior, através da garantia formal de direitos à todos os cidadãos. O que tange à saúde,

    o SUS se inspira nos valores dos regimes de Welfare State que se desenvolveram especialmente

    entre 1945 e 1975, em determinado países da Europa. A construção da agenda do SUS no Brasil

    coincidia com esse processo. Nossos reformistas democráticos estavam olhando para os notáveis

  • 40

    êxitos da social-democracia europeia. Do ponto de vista formal, a Carta Magna é a antítese da

    política privatista de saúde vigente na ditadura.

    No final da década de 1960, registra-se o período de maior crescimento da história até

    então, o “milagre brasileiro”. Em 1974, com a retração da economia e preocupantes índices de

    inflação, formula-se o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) com o objetivo de

    transformar a estrutura produtiva brasileira e assim superar os desequilíbrios enfrentados durante

    o período anterior.

    Para Carneiro (2002), mais do que dar novo fôlego ao crescimento econômico, o II PND

    buscava retomar a legitimidade do regime, abalada diante do grave quadro social que se instalava

    no país. Dentre os pilares do plano, se destaca o impulso na indústria brasileira – através do

    fortalecimento do setor de bens de capital e da empre