ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA ÚNICO DE...
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ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO
ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE (SUS)
CAMPINAS
2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO
ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE (SUS)
Prof. Dr. Eduardo Fagnani – Orientador
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico,
área de concentração em Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Desenvolvimento Econômico, na área de
concentração em Economia Social e do Trabalho.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA
PAULA ANDREOTTI PEGORARO E ORIENTADA
PELO PROF. DR. EDUARDO FAGNANI.
CAMPINAS
2015
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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ANA PAULA ANDREOTTI PEGORARO
ESTADO E MERCADO: DESAFIOS PARA O SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE (SUS)
Defendida em 24/02/2015
COMISSÃO JULGADORA
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Dedico este trabalho a todos que
sonharam e lutaram por um sistema de
saúde mais justo e a todos que
continuam lutando.
Dedico a meus pais e meu
marido, minhas fortalezas e minha
maior razão de viver.
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AGRADECIMENTOS
O trabalho acadêmico é, por vezes, solitário, angustiante e bastante desafiador, mas
também traz a oportunidade de vivenciar grande crescimento profissional e pessoal ao lado de
tantas pessoas inspiradoras. Gostaria de agradecer imensamente a todos que, de alguma forma,
estiveram presentes nesta caminhada.
Agradeço aos meus pais, Anete e Tito, que sempre me incentivaram a seguir estudando e
sempre me estimularam a ter uma visão crítica e sensível à realidade. Agradeço a meu marido e
companheiro, Rafael, que abraça todas as minhas lutas junto comigo e me apoia em todos os
momentos. Agradeço a minha amada irmã, Carol, e minha irmã de coração, Denise, que mesmo
tão diferentes estiveram presentes e torcendo por mim. O amor de vocês é o que me move.
Agradeço meu orientador, Eduardo Fagnani, por acreditar no meu trabalho, pela paciência
e dedicação comigo e também por ser um grande exemplo de retidão intelectual e de ativismo
político. Agradeço aos membros da banca de qualificação e de defesa, Gastão Wagner e Denis
Gimenez, que se prontificaram em contribuir com este trabalho. Também agradeço a todos os
professores do Instituto de Economia e do CESIT, em especial aos que ministraram ricas e
estimulantes aulas neste período.
Agradeço também aos funcionários do Instituto, sempre solícitos dedicados me ajudaram
com a parte burocrática do trabalho, com a limpeza e infraestrutura para meus estudos. Agradeço
ao Felipe Monte Cardoso, por achar um tempinho em meio a tantos compromissos para ler meu
trabalho, me ajudar em diversos pontos e, principalmente, ser um exemplo na academia, na
medicina e na militância.
Aos colegas de classe das muitas matérias que tivemos, com as quais pudemos vivenciar
muitos momentos de aprendizado. Em especial, agradeço aos meus amigos: Ana Paula Biachi,
por tantas conversas, risadas e parcerias: temos muito mais em comum do que apenas o nome!
Juliana Bacelar, por sua generosidade acadêmica e por tantos bons momentos compartilhados.
Tatiana Henriques, Rebeca Bertoni e Lucas Andrieta, por me ajudarem na execução da
dissertação e por compartilharem esse momento comigo.
Agradeço a todo pessoal do DIEESE, por todos apoio e prazeroso convívio. Em especial,
agradeço à Samira Schatzmann, minha melhor interlocutora de tantos e variados assuntos. Sua
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grande generosidade intelectual foi fundamental para fortalecer a autoconfiança na reta final
desta dissertação.
Agradeço a minha grande e tão querida prima e amiga, Gabriela Martin, que mesmo longe
sempre esteve tão perto e presente, por me apresentar sempre o lado positivo de tudo e torcer em
cada desafio e vibrar por cada realização. Agradeço a minha amiga Bianca Luchiari, por me
apresentar ao mundo da corrida e da vida saudável e me incentivar a confiar em mim a cada
obstáculo. Agradeço meus amigos Bruno e Giu, parceiros de viagens e conversas, me mostravam
sempre o lado mais leve da vida.
Agradeço a minha segunda família, Cidinha, Gilberto e Mariana, que entenderam
aAgradeço à toda minha família (incluindo Stenicos e Banzatos, minha família também) e demais
amigos. Obrigada por todo apoio e incentivo!
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RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo delinear as relações entre os setores público e privado
no que diz respeito à assistência à saúde no Brasil, destacando que os avanços formais da
Constituição Federal de 1988 foram sobrepostos por um contexto político e econômico hostil que
se abre a partir de 1990, que limitou o fortalecimento do setor público em favor da contínua
expansão do setor privado.
Este trabalho está dividido em duas partes, a primeira destaca os determinantes históricos
e as relações entre Estado e mercado na saúde no período anterior à Constituição de 1988.
Sublinha a forte predominância do setor privado no país desde os primórdios da formação do
sistema de saúde brasileiro num contexto marcado pelo vigoroso viés conservador da sociedade e
suas rígidas estruturas de um capitalismo tardio e dependente, marcado pela segregação social e
dependência externa. Ressalta-se também o movimento de modernização conservadora dos bens
e serviços públicos durante os 21 anos de governo militar, bem como os avanços sociais da
Constituição de 1988.
Na segunda parte discute-se a introdução do neoliberalismo no Brasil a partir dos anos de
1990, após ganhar força nos países centrais e subdesenvolvidos durante as décadas de 1970 e
1980. O trabalho sublinha o antagonismo desta corrente com os princípios do Sistema Único de
Saúde recém-implantado em 1988, com destaque para as diretrizes e orientações políticas do
Banco Mundial no incentivo à expansão da iniciativa privada na oferta de serviços de saúde.
Esse movimento político e econômico mais amplo era antagônico aos princípios estabelecidos
pela Carta de1988 e contribuíram, em grande medida, para que o processo de consolidação do
SUS fosse permeado por diversas contramarchas que abriram novas brechas para a expansão do
setor privado na saúde.
Palavras-chave: Estado, mercado, saúde, SUS, Brasil
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ABSTRACT
This paper aims to outline the relationships between the public and private sectors in
health care on Brazil, noting that the formal advances of the Federal Constitution of 1988 were
superimposed by a hostile political and economic context that was imposed in the 90´s, that
limited the strength of the public sector in favor of continued expansion of the private sector.
This work is divided into two parts, the first shows the historical determinants and the
relationship between state and market in health in the period prior to the 1988 Constitution. This
part underlines the strong predominance of the private sector in the country since the beginning
of formation of the Brazilian health system in a context characterized by strong conservative bias
of society and its rigid structures of late and dependent capitalism. Also points up the
conservative modernization movement of goods and public services during the 21 years of
military government and the social advances of the 1988 Constitution.
The second part discusses the introduction of neoliberalism in Brazil from the 90´s, after
gaining strength in the central and developing countries during the 70´s and 80´s. This work
emphasizes the antagonism of this current with the principles of the Unified Health System
(SUS) recently implemented in 1988, highlighting the guidelines and political directives of the
World Bank encouraging the expansion of the private sector in the supply of health services. This
broader political and economic movement was antagonic to the principles established by the 1988
constitution and contributed largely to the SUS consolidation process was impeded by several
setbacks that have opened new spaces for the expansion of the private sector in health.
Key words: State, Market, Health, SUS (Unified Health System) and Brazil.
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LISTA DE ABREVIATURAS
AIF – Associação Internacional de Fomento
ANS – Agencia Nacional de Saúde Suplementar
AVAI – Anos de Vida Ajustados por Incapacidade
BIRD – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
CAP - Caixa de Aposentadoria e Pensão
CDS – Conselho de Desenvolvimento Social
Cebes – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde
CFI – Corporação Financeira Internacional
CIADI – Centro Internacional de Arranjo de Diferenças relativas ao Investimento
CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
Dataprev – Empresa de processamento de Dados da Previdência Social
DRU – Desvinculação dos recursos da União
DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis
FAZ – Fundo de Apoio ao desenvolvimento Social
FMI – Fundo Monetário Internacional
FSE – Fundo Social de Emergência
IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensão
II PND – Plano Nacional de Desenvolvimento
INAMPS – Instituto de Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INPS - Instituto Nacional de Previdência Social
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social
IPMF – Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira
LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social
MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social
NO – Normas Operativas
NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde
NOB – Norma Operacional Básica
OMGI – Organismo Multilateral de Garantia de Inversões
ONG – Organização Não Governamental
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OSCIPs –Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
OSS – Orçamento de Seguridade Social
Piass – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento
PMC – Plano Montes Claros
PNS – Plano Nacional de Saúde
SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SESP – Serviço Especial de Saúde Pública
Sinpas – Sistema Nacional de Previdência Social
SNS – Sistema Nacional de Saúde
SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
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Sumário
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 1
PARTE I – DETERMINANTES HISTÓRICOS E RELAÇÕES ENTRE ESTADO E
MERCADO NA SAÚDE NO BRASIL ........................................................................... 9
Capítulo 1. Os Primórdios da Assistência à Saúde no Brasil (1930/1984) .... 11
1.1. ................... Formação Capitalista E Atenção à Saúde no Brasil (1930/1964) 12
1.2. ........................................... O Fortalecimento Da Oferta Privada (1964/1985) 22
Capítulo 2. A Constituição de 1988: da reforma sanitária à garantia formal de direitos
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PARTE II – NEOLIBERALISMO, MERCADO E SAÚDE ............................. 51
Capítulo 1. A Ascensão do Neoliberalismo nos países centrais (1970/1990) 53
Capítulo 2. A crise da dívida e mudança do papel do Estado (1980/1990) .... 63
Capítulo 3. Os desafios das relações entre Estado e mercado na saúde: o papel do
Banco Mundial ........................................................................................................... 73
3.1. A trajetória política e institucional do Banco Mundial ............................ 76
3.2. O posicionamento do Banco Mundial sobre a questão da saúde ............. 81
Capítulo 4. A influência do Banco Mundial na política de saúde brasileira: persistência
e o avanço das múltiplas faces da mercantilização no Brasil ..................................... 93
4.1 A repercussão do relatório no Brasil e as propostas de políticas .............. 94
4.2. Os Limites Da Operacionalização Do SUS ........................................... 102
4.3. Neoliberalismo e mercantilização da saúde no Brasil ........................... 116
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 127
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INTRODUÇÃO
Esta dissertação se insere no campo de estudos da assistência à saúde no Brasil e tem
como problematização a relação entre o Estado e o mercado neste setor. Considera que os
imensos desafios que transpassam o tema da saúde é um dos muitos reflexos de um país ainda
subdesenvolvido em pleno século XXI.
A história do desenvolvimento da infraestrutura social e urbana no Brasil ao longo do
século XX deve ser entendida como um processo de consolidação do modo de produção
capitalista no Brasil. Em particular, procurou-se compreender como cada etapa deste processo
implicou em mudanças no modo de promoção da oferta de bens públicos. Como pano de fundo
deste processo, colocam-se as questões relativas às relações entre o Estado e mercado, que estão
presentes em todas as correntes do pensamento econômico desde sua gênese.
Num período curto de tempo, de 1930 a 1980, o Brasil passou por profundas
transformações econômicas e sociais, resultado de um processo intenso de industrialização e
expansão econômica. Porém, seus resultados foram apropriados de maneira extremamente
desigual; a velha pobreza no campo somou-se à nova pobreza urbana, visível a olho nu nas
grandes cidades (Henrique, 1999).
Mais especificamente, esse processo foi caracterizado pela modernização conservadora,
pois amplificava as profundas desigualdades socioeconômicas e regionais, a assimetria de
oportunidades, a distribuição desigual da riqueza, renda e propriedade agrária e urbana, e o
acesso desigual aos bens de consumo e aos serviços essenciais. Soma-se a isso a heterogeneidade
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do mercado de trabalho, ampla disponibilidade de força de trabalho e o consequente baixo salário
(Fajnzylber, 1983)
Durante toda a consolidação do capitalismo no Brasil se observa uma forte interação entre
os setores público e privado, em uma ampla quantidade de setores produtivos e esferas da
sociabilidade moderna. Na assistência à saúde, tal interação tem seus princípios no início do
século XX.
O objetivo central desta dissertação é delinear as relações entre os setores público e
privado no que diz respeito a assistência à saúde no Brasil em dois períodos distintos: o primeiro,
contempla os determinantes históricos do sistema de saúde brasileiro, do início do século XX até
1988; o segundo abarca o período pós 1990 quando o Brasil faz opção passiva ao neoliberalismo.
A tese central desta dissertação é de que a questão da saúde é um resultado das
deficiências estruturais do Estado brasileiro, num contexto de prevalência dos interesses privados,
presente tanto no momento anterior quanto no posterior a Constituição de 1988. Mais
especificamente, o setor privado se aproveitou da interação com o Estado para, além de auferir
lucros, transformar a saúde em mercadoria. Esta hipótese é estabelecida a partir da observação
das diversas etapas de construção deste sistema, que não foi linear; houve idas e vindas, avanços
e retrocessos. Tal sistema foi construído concomitantemente com a formação econômica, política
e social Brasil e com os processos de modernização, urbanização, industrialização, implantação
infraestrutura de saneamento, e também os avanços na medicina.
Este processo se inicia no início do século 20, ganha contornos mais claros entre 1930 e
1964 e se aprofunda na ditadura militar (1964/1984). Ao longo desse processo, assiste-se à
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formação de um forte segmento empresarial privado que opera a saúde em seus diversos
componentes. A mercantilização da saúde responde em parte pelas deficiências estruturais do
Estado brasileiro e seu caráter patrimonialista, que abriu espaços para a prevalência dos interesses
privados.
Neste aspecto a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), inspirado em alguns dos
valores dos regimes de Welfare State desenvolvido nos países centrais europeus entre 1945 a
1975, foi uma tentativa de romper com a lógica privada que histórica e sistematicamente
ampliava seus espaços de ação Esse movimento, que se opunha ao longo processo de
mercantilização, era uma reação, sobretudo, ao “modelo médico assistencial privatista”
hegemônico durante a ditadura militar.
A construção da agenda do SUS no Brasil coincidia, mesmo que tardiamente, com o
processo de formação de um sistema de proteção social ocorrido na Europa no período Pós-
Guerra. Nossos reformistas, que lutavam pela redemocratização do país, estavam olhando para os
êxitos da socialdemocracia europeia. Após longa marcha, a Constituição Federal consagrou o
SUS. Do ponto de vista formal, a Carta de 1988 era a antítese da política privatista de saúde
vigente na ditadura.
Não obstante, a partir de 1990 o Brasil adere tardiamente ao Neoliberalismo, cuja agenda
liberal e conservadora antagonizava-se com os princípios do SUS. Na prática, o sistema de saúde
brasileiro passou a viver tensionado entre o que reza a Constituição (formal) e o que contexto
político e econômico favorável aos mercados desregulados. Neste cenário, a privatização da
saúde no Brasil – impulsionado desde os anos de 1930 e que ganha vigor no pós-64 – ganha novo
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fôlego, em oposição ao que reza a Carta de 1988. Essa contradição está na raiz dos problemas
vividos hoje pelo SUS.
Nos últimos 30 anos, houve grande avanço em diversos indicadores epidemiológicos
assim como importantes transformações em ciência e tecnologia aplicadas à saúde que resultou
em significativa melhora nas condições básicas de sobrevivência de milhões de brasileiros
(Campos, 2007). Porém, ao mesmo tempo ainda persiste, em níveis preocupantes, doenças como
tuberculose, dengue e malária, além de elevada morbidade por causas violentas e também maus
indicadores do padrão das doenças crônicas (como cânceres e enfermidades cardiovasculares).
Essa polarização epidemiológica presente no Brasil, que perpetua a sensação de insegurança entre
os brasileiros, é, em grande medida reflexo do caráter hibrido do sistema de saúde, dividido entre
ações públicas e privadas
Enormes são os desafios do SUS. Mais de 26 anos após sua criação, ainda não foram
alterados os parâmetros legais das políticas de saúde enraizados durante um longo período
anterior. A lógica dos mercados, a modernização conservadora e a profunda segregação social
foram mantidas, sob as bases do SUS e da reorganização do capitalismo brasileiro. Prevalece a
tensão entre o cumprimento do ideário universalista do SUS e a perpetuação da segregação na
sociedade brasileira.
Nesta perspectiva, argumenta-se que a raiz dos problemas atuais do sistema público e
universal de saúde brasileiro reside no antagonismo entre os princípios formais estabelecidos pela
Carta de 1988 e o contexto político e econômico vivido a partir de 1990, quando o Brasil aderiu
tardiamente à doutrina neoliberal.
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Desde então, houve fortes pressões no sentido de se impedir a consolidação das
conquistas de 1988 e implantar o paradigma do Estado Mínimo no campo social. A
mercantilização da saúde, traço presente no setor desde os anos de 1930, continuou, na prática, a
ser incentivado pelo Parlamento e pelo Executivo dos três entes federativos. Portanto, o SUS
formal (Constituição de 1988) foi atropelado pela realidade caracterizada pela continuidade do
processo histórico de privatização, reforçado pela hegemonia da agenda neoliberal. Neste
trabalho assume-se que este é o pano de fundo para se compreender os problemas atuais vividos
pelo SUS, passados 26 anos da sua consagração formal pela Carta de 1988.
Para argumentar em favor desta hipótese, esta dissertação está dividida em duas partes:
A primeira (Determinantes históricos e relações entre estado e mercado na
saúde) analisa os determinantes históricos da formação econômica e consolidação
do capitalismo no Brasil e a interação entre os setores público e privado até a
Constituição de 1988. O primeiro objetivo é assinalar a forte predominância do
setor privado no país desde os primórdios da formação do sistema de saúde e forte
viés conservador da sociedade e suas rígidas estruturas. Nesta incursão,
discutimos a situação da saúde no Brasil no período anterior à criação do SUS,
procurando identificar os traços estruturais do sistema de saúde brasileiro criado
de 1930 a 1988. O segundo objetivo é assinalar que o SUS – fruto das pressões do
Movimento Sanitário Brasileiro, consagrado pela Constituição de 1988 – aparece
como contraposição ao período anterior, marcado pela segregação social e
privatização dos espaços públicos. A hipótese levantada neste capítulo é de que a
Constituição Federal procura se contrapor à mercantilização da saúde, que ganhou
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forma no período anterior, através da garantia formal de direitos à todos os
cidadãos.
A segunda parte desta dissertação (Neoliberalismo, Mercado e Saúde) procura
contextualizar as últimas duas décadas do século XX no que diz respeito tanto à
conjuntura internacional, marcada pelo avanço do neoliberalismo no contexto da
globalização partir da década de 1970, como pela conjuntura nacional,
caracterizada pela crise econômica e desestruturação do Estado brasileiro na
década de 1980, seguida pelo ajuste macroeconômico ortodoxo e pela reforma
liberal do Estado nos anos de 1990 que, rigorosamente, não foi enfrentadas na
primeira década do século XXI. Mais especificamente, buscamos discutir os
principais desafios da interação Estado e mercado na atenção à saúde sob os
preceitos neoliberais. A neoliberalização é um fator decisivo para a interação
entre Estado e mercado, uma vez que ressignifica o papel do Estado e o modo de
produção e acumulação capitalista. Tal movimento é impulsionado pela
desregulamentação e flexibilização dos mercados, globalização e financeirização.
Nesta incursão, privilegia-se o papel do Banco Mundial como porta voz do
neoliberalismo. Por isso, analisa-se como as propostas do Banco Mundial
influenciaram na adoção de certas políticas de saúde nos anos 1990 no Brasil,
através da descrição, tanto dos princípios gerais que norteiam o arcabouço teórico
do Banco Mundial em relação às políticas de saúde em diversos países, como das
principais políticas econômicas e de saúde adotadas. Nesta parte, o período
analisado será o posterior à criação do SUS, em 1988 com a Constituição Federal.
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Espera-se, com este trabalho, dar uma colaboração para o campo de pesquisa de políticas
sociais, bem como, colaborar para o fortalecimento do debate em torno do planejamento e
execução das políticas públicas para garantir o direito constitucional do acesso aos cidadãos
brasileiros a uma saúde de qualidade.
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PARTE I – DETERMINANTES HISTÓRICOS E RELAÇÕES ENTRE
ESTADO E MERCADO NA SAÚDE NO BRASIL
O tema da saúde é complexo e muito amplo, uma vez que seus imensos desafios são
resultados de diversos determinantes históricos de um determinado país. No caso do Brasil,
destaca-se a posição dependente de subdesenvolvida que tomou forma durante todo o século XX.
Entender a questão da assistência à saúde é, antes de tudo, levar em consideração o grau de
desenvolvimento socioeconômico do Brasil e os diversos aspectos que dele reflete. Por isso, esta
primeira parte busca delinear os determinantes históricos e as relações entre Estado e mercado no
sistema de saúde brasileiro no período anterior à Constituição de 1988.
Pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ser o garantidor do
acesso aos serviços de saúde ao conjunto da população brasileira, mas é justamente o
aprofundamento dos laços entre o setor público e o setor privado – e a evidente hegemonia do
segundo – o principal entrave para o fortalecimento do SUS nos moldes da Carta de 1988.
Esta parte está dividida em dois capítulos, o primeiro busca, por meio de uma vasta
revisão bibliográfica, identificar os traços estruturais do sistema de saúde brasileiro criado de
1930 a 1988.
O segundo capítulo analisa a formação da agenda de mudanças e o papel do movimento
social no processo que culminou na Carta de 1988.
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Capítulo 1. Os Primórdios da Assistência à Saúde no Brasil (1930/1984)
Pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ser o garantidor do
acesso aos serviços de saúde ao conjunto da população brasileira, mas é justamente o
aprofundamento dos laços entre o setor público e o setor privado – e a evidente hegemonia do
segundo – o principal entrave para o fortalecimento do SUS nos moldes da Carta de 1988.
Explicar a gênese destes laços é objetivo primordial deste capítulo.
Este capítulo parte da hipótese de que a saúde no Brasil apresentou, desde 1930, forte
componente mercantil, através da intensa presença do setor privado e de grandes incentivos
diretos e indiretos do governo ditatorial ao empresariamento neste setor.
A análise da formação econômica brasileira1 mostra que tais laços foram gestados anos
antes da ditadura militar e enraizados durante o regime ditatorial. Os autores analisados
argumentam que as políticas adotadas antes e durante a ditadura militar aprofundaram e
cristalizaram as características antissociais, antidemocráticas e antinacionais do capitalismo
brasileiro, tornando-o incompatível com o sistema de saúde baseados na universalidade,
integralidade e equidade.
Neste sentido, o objetivo central deste capítulo é discutir a situação da saúde no Brasil no
período anterior à criação do SUS, busca-se por meio de uma vasta revisão bibliográfica
identificar os traços estruturais do sistema de saúde brasileiro criado de 1930 a 1988.
1 A respeito do debate sobre a formação econômica do Brasil, ver Furtado (1980), Fernandes (1976), Prado
(1987) e Sampaio (1999).
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Para isso, o capítulo está dividido em duas partes, a primeira busca mostrar as
especificidades da formação econômica do Brasil, principalmente no que diz respeito à
articulação entre segregação social e dependência externa, traços típicos de um capitalismo
dependente2. Neste primeiro item, além de buscar os traços principais deste período, o objetivo é
compreender a influência da formação econômica para os primeiros encaminhamentos às
demandas sociais da população no período de 1930 a 1964.
O segundo item procura conceituar à primeira hipótese ao mostrar os pilares mercantis
que se firmaram no período de 1964 a 1985, com o regime ditatorial. A mercantilização da saúde
no Brasil deve ser explicada a partir do fortalecimento do setor privado durante 21 anos de
governo militar, cuja principal característica é a modernização conservadora dos serviços
públicos.
1.1. Formação Capitalista E Atenção à Saúde no Brasil (1930/1964)
O problema central deste trabalho é o sistema de saúde brasileiro e a interação predatória
entre o setor privado e público. Para compreendê-lo, é necessário traçar as linhas gerais da
formação do capitalismo brasileiro, analisando a inserção de um país periférico como o Brasil no
mercado mundial capitalista em contínua expansão. O caráter desigual e combinado do
desenvolvimento capitalista é exacerbado na periferia, condicionando assim especificidades no
que diz respeito às transformações em cada formação social (Fernandes, 1976).
2 A respeito desta conceitualização ver Fernandes (1976).
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A principal especificidade da formação econômica brasileira, para Caio Prado Junior
(1966), é a origem como uma colônia de exploração, cuja evolução é condicionada a partir de
fora e para fora. Para o autor, o Brasil nasce a permanece visto como um negócio, sendo a
engrenagem do mercantilismo europeu e caracterizado pela ausência de nexos morais
unificadores de uma nação.
Segundo Fernandes (1975), a principal especificidade do capitalismo brasileiro é seu
caráter dependente, marcado tanto pela subordinação da sociedade nacional aos países e capitais
dominantes, como pela necessidade de conservação de um regime de segregação social no
interior desta sociedade. Destaca-se que esta forte heterogeneidade estrutural3 formada no Brasil
determina certo padrão de modernização e de acumulação do capital que torna ainda mais grave a
questão social.
As debilidades econômicas da sociedade brasileira são entendidas neste trabalho como
reflexo da formação econômica pautada nas características de um capitalismo dependente. Tanto
pela dependência dos dinamismos econômicos, sociais, políticos, técnicos e culturais das nações
centrais do sistema capitalista mundial. Como pela profunda segregação social, herdada de um
período colonial, marcado pela escravidão e pela integração limitada e heterogênea, em que
condições de trabalhos mínimas, direitos sociais e políticos e os benefícios do progresso material
capitalista foram restritos à pequena parcela da sociedade (Monte-Cardoso, 2013).
3 O conceito de heterogeneidade estrutural está inserido na análise do fenômeno de subdesenvolvimento de Furtado
(1974). Para o autor, o subdesenvolvimento é caracterizado por sua heterogeneidade estrutural e tecnológica, isto é, pelas
diferenças de produtividade, tecnologia e salários entre os setores. Segundo o autor, o grau de acumulação do capital aplicado aos
processos produtivos é um parâmetro para medir o subdesenvolvimento, isto é, a industrialização em cada época se molda em
função do grau de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo.
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Portanto, entender a questão da saúde no Brasil é, antes de tudo, considerar que a
formação nacional foi fundamentalmente baseada na articulação entre dependência externa e
segregação social interna, especificidade que baliza a condução de todas as questões sociais no
país. Cabe destacar que o capitalismo dependente também expressa a perversa e sempre presente
combinação entre moderno e atraso no Brasil (Monte-Cardoso, 2013).
É neste vácuo moral, nesta sociedade em que, como observou Caio prado Jr. (...) não
há nexos éticos entre homem, mas só relações de exploração econômica e de dominação
política, nesta sociedade em que impera a ‘vontade de poder’ em meio à espontaneidade dos
afetos, que a razão instrumental pode penetrar com facilidade. Cardoso de Mello e Novais
(1998:608)
Portanto, quando se trata de saúde no Brasil, deve-se levar em conta a complexidade
envolvida em tais questões e a forma bruta e perversa que a lógica capitalista assume frente às
necessidades sociais das populações. Soma-se a isso as especificidades de um país periférico
marcado por uma industrialização tardia, onde a presença do moderno e do velho mostra o lado
perverso e sombrio da lógica capitalista.
Além disso, a análise da formação econômica do Brasil e suas implicações nas questões
sociais, principalmente no que se refere à saúde confirma a subordinação de tais questões à lógica
capitalista que foi sendo desenvolvida no país à medida que a industrialização ganhava forças
autônomas de acumulação e dinamismo (Henrique, 1999). Tanto no que diz respeito à garantia de
proteção ao trabalhador como no interior no sistema de saúde fica evidente o Capital como
determinante das tensões envolvidas nestas esferas. O Estado aparece de forma fraca e incapaz de
garantir mecanismos de proteção social além de facilitar, em certa medida, o fortalecimento da
lógica capitalista neste setor.
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Analisando as primeiras políticas voltadas às questões sociais no início do século XX, os
autores Braga e Paula (1981) afirmam que o Estado brasileiro se colocou de forma precoce às tais
questões, principalmente assumindo práticas que, tradicionalmente, pertenciam aos movimentos
das classes. No Brasil, a questão social surge no interior da economia capitalista exportadora,
considerada como a primeira etapa do desenvolvimento capitalista brasileiro (Braga &
Paula,1981).
A década de 1920 é caracterizada no Brasil pela crise do padrão exportador capitalista e
crise do Estado, levando à primeira fase de acumulação capitalista brasileira que ultrapassa seus
limites diante do auge da economia cafeeira, estimulando a urbanização e o desenvolvimento
industrial.
Na economia cafeeira, os problemas de saúde e suas formas de atendimento apareciam de
duas maneiras prioritárias: Endemias e problemas gerais de saneamento nos núcleos urbanos
resultado do processo de acumulação cafeeira; Escassez relativa de mão de obra e péssimas
condições de reprodução da força de trabalho, o que acarretou na estratégia pública e privada de
atração e retenção da mão de obra. Como mostra Braga & Paula (1981:42):
Tratava-se da criação de condições sanitárias mínimas indispensáveis não só às
relações comerciais com o exterior, como também ao êxito da política de imigração, que
pretendia atrair a mão de obra fundamental para a constituição do mercado de trabalho
capitalista.
As questões sociais e suas soluções são imediatistas a exasperados problemas que
poderiam vir a comprometer o processo de acumulação cafeeira. Não se tratava de criar melhores
condições de vida à população nem garantia de direitos humanos e sim defender os interesses
pré-capitalistas através da acumulação cafeeira. Ademais, a precária estrutura financeira e as
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bases sociais restritas do Estado brasileiro implicavam na incapacidade de resposta aos problemas
sociais de forma satisfatória.
Monte-Cardoso (2013) complementa essa análise afirmando que as instituições sanitárias
do país priorizavam os grandes centros urbanos e também os portos, por onde saíam os produtos
agrícolas e passavam os grandes fluxos de imigrantes. Os cuidados com a saúde da população de
municípios de interior e de menor importância econômica eram bem rudimentares.
As políticas sociais, em geral, e a de saúde, especificamente, não representavam a
formação de um sistema de proteção social e não eram, portanto, baseados em direitos. Tais
políticas eram direcionadas à preservação da fluidez dos negócios (exportação de café, borracha e
minérios, industrialização por substituição de importações), garantindo o mínimo necessário à
reprodução da força de trabalho. Dessa forma, as políticas eram relacionadas basicamente ao
combate à mortalidade excessiva por epidemias e garantia de atendimento aos setores ligados às
atividades mais dinâmicas do setor industrial.
O peso político do operariado era pequeno e heterogêneo e, portanto, não poderia ser
considerado ainda um sistema de proteção social. Apesar das políticas sociais estarem,
evidentemente, em função dos negócios, algumas iniciativas (como os Institutos de
Aposentadorias e Pensões - IAPs) eram algo mais que a garantia do mínimo necessário à
reprodução da força de trabalho: eram também expressão da luta operária por uma parcela maior
da riqueza social.
Campos (2007) destaca que desde o início do século foram desenvolvidos no país
diversos serviços estatais de atenção à saúde, tal como a Fundação Oswaldo Cruz, Instituto
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Butantã, as escolas de Saúde Pública, universidades e hospitais públicos, departamentos de
preventiva além de uma rede centros de saúde, em geral de gestão estadual ou do Ministério da
Saúde (Fundação SESP). O autor destaca que todos estes serviços funcionavam com corpo de
servidores públicos e modalidades de gestão típicas de Estado, para ele este segmento de serviços
assegurou uma das bases sobre a qual se desenvolveria o projeto de um sistema nacional de saúde
no Brasil.
Apesar do forte componente mercantil presente desde os primórdios do sistema de saúde
no Brasil, não se pode ignorar uma insistente força, originada de intelectuais, sanitaristas,
sindicatos e outros movimentos sociais, exigia do Estado brasileiro o oferecimento de bens e
serviços de saúde à população desde o início do século XX. Mesmo que em ações pontuais, estes
movimentos foram construindo o sistema de saúde público brasileiro de tal forma que a
idealização do SUS contou com um arcabouço de atenção à saúde, relativamente robusto,
montado até então (Campos, 2007).
Braga & Paula (1981) observam que a saúde pública ganha espaço como questão social à
medida que o capitalismo se desenvolve, uma vez que essa primeira fase de acumulação
capitalista reflete nas tentativas de extensão das políticas de saúde pública por todo o país
apontando a saúde como questão nacional pela primeira vez no país, mesmo com o fraco sistema
financeiro e com a crise política instaurada.
Até a década de 1930 os trabalhadores contavam apenas com os benefícios
previdenciários oferecidos por algumas das grandes empresas ou por Caixas de Aposentadorias e
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Pensões4 (CAPs). Aos demais trabalhadores, excluídos de tais benefícios, lhes restavam os
serviços público ou outras formas de medicina (precária, restrita e muitas vezes provindas de
doações).
Foi a partir de 1930 com a alteração do caráter do Estado que as questões sociais se
transformaram em problemáticas do poder. No que diz respeito à lógica capitalista, Braga & De
Paula (1981) afirmam que o respaldo econômico ao processo político vigente só acontece quando
a acumulação capitalista passa a ser dominada pelo capital industrial.
Do ponto de vista econômico, o período que vai de 1930 a 1955 é caracterizado por
Cardoso de Mello (1982) como processo de industrialização restringida, em que o motor da
acumulação capitalista passa a ser o capital industrial, trata-se de uma industrialização restrita
diante da insuficiência técnica e financeira do capital industrial.
A fase de transição entre a industrialização restringida e a pesada foi marcada por grandes
descontinuidades, de tal forma que a ação do Estado foi de extrema importância ao investimento
em infraestrutura e em indústrias de base, determinando assim os rumos da economia nessa época
(Draibe, 1985).
A política nacional de saúde no Brasil toma forma a partir de 1930 à medida que se
instalam os aparelhos necessários à sua execução. Mesmo assim, cabe ressaltar que esta política
de saúde assume caráter restrito uma vez que aspectos técnicos e financeiros da estrutura
organizacional restringem a magnitude da cobertura (Braga & De Paula, 1981).
4 Em 1923, a lei Eloi Chaves regulamenta a ação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), surgidas a partir de
1917, como desdobramento das lutas operárias eram entidades de ajuda mútua autogeridas que abrangiam trabalhadores da
mesma empresa. As CAPs constituem o embrião do seguro social no Brasil, por terem sido criadas em modelo de seguro social,
inspirado na reforma de Bismark na Alemanha, elas formam a base de financiamento de empresas, trabalhadores e,
eventualmente, Estado (Monte-Cardoso, 2013).
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São as alterações de caráter político e as transformações da natureza do Estado que
criam as condições iniciais para que as questões sociais em geral – e as de saúde em particular –
já postas no período anterior, pudessem ser enfrentadas através de um bloco orgânico e
sistemático de políticas.
Assim, tem-se em 1930 um ponto de ruptura com o período anterior na medida em que o
Estado passa a responder à questão social de forma universal, em toda a extensão nacional -
guardando os limites já expostos - deixando de tratar a questão social de forma parcial e pontual.
No que tange ao sistema previdenciário, foi a partir de 1933 que as CAPs começaram a
ser convertidas em IAPs, com comando e financiamento tríplice (empresas, trabalhadores e
Estado). Apesar do regime contencionista adotado durante a década de 1930, reflexo da crise de
1929, a industrialização impulsionou o crescimento da base de trabalhadores formais, acarretando
no crescimento do aparelho previdenciário (Monte-Cardoso, 2013).
Tendo em vista as transformações que resultaram em uma nova dinâmica de acumulação
subordinada ao capital industrial, as novas necessidades aumentaram a pressão para realizar e
ampliar as políticas sociais. A política nacional de saúde estava organizada em dois subsetores:
saúde pública e medicina previdenciária (Braga & Paula, 1981).
Como destaca Mesquita (2008), a política nacional de saúde era marcada por uma
separação institucional: por um lado havia a atuação de saúde coletiva, em que as ações eram
organizadas e prestadas por instituições estatais a toda a população, e do outro, a assistência
médica previdenciária, em que os serviços eram prestados de forma restrita a alguns
trabalhadores urbanos.
Segundo a autora, tal divisão institucional caracterizava-se pela significativa diferença na
forma de financiamento, as instituições públicas contavam com escassos recursos orçamentários
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enquanto que as instituições previdenciárias eram financiadas com recursos de contribuições dos
trabalhadores, impulsionadas com o desenvolvimento econômico e o crescimento da massa
salarial.
Apesar desta forte e perversa segregação institucional, as fortes demandas pela ampliação
da saúde no Brasil resultaram em diversos movimentos que compuseram a política nacional de
saúde, tais como o processo de centralização do Estado, as reformas nos serviços de saúde e a
criação de uma multiplicidade de agencias e novas unidades de serviços fundamentais (Braga &
Paula, 1981).
Do ponto de vista político, as décadas de 1940 e 1950 são importantes para a história da
saúde no Brasil, tanto por apresentar a saúde como uma das prioridades do Plano SALTE5 em
1940, como pelo reaparelhamento do Estado na década seguinte, que possibilitou a definição e
consolidação da estrutura da saúde pública no país. Entretanto, cabe ressaltar que, mesmo a saúde
ganhando destaque no discurso político, as barreiras estruturais – recursos escassos, estreita base
financeira do Estado e limitado desenvolvimento industrial – comprometeram tais políticas no
país.
Do ponto de vista do movimento de acumulação de capital no setor, Braga & Paula (1981)
associam a entrada do Brasil na etapa de acumulação industrial com a constituição capitalista de
um setor de atenção de saúde no país, cuja produção privada de bens e serviços é
progressivamente financiada pelo Estado, através da previdência.
O setor de atenção médica no Brasil, à semelhança do que ocorre em outros países,
cresce aceleradamente de importância econômica, mobilizando um volume cada vez maior de
5 Este foi um plano econômico criado em 1947 e suas iniciais referem-se à: Saúde, Alimentação, Transporte
e Energia.
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recursos, permitindo uma crescente acumulação de capital em seu interior. Braga & De Paula,
1981:74
Tal modelo de organização institucional, calcado na segmentação e na discrepante
diferença de financiamento, beneficiou o financiamento do setor privado através da canalização
de recursos da saúde previdenciária para a construção e expansão de hospitais privados. Ainda
neste sentido, Mesquita (2008) destaca que este modelo criou mecanismos para que o setor
privado ganhasse força e se estruturasse, de forma a ter capacidade de defender seus interesses
em possíveis tentativas de reestruturação do sistema.
Durante os anos 1950 e 1960, surgiram certas limitações no sistema previdenciário
relacionadas com uma crise financeira e, por conseguinte, houve tentativas de reestruturação do
sistema previdenciário, porém a lógica de seletividade na cobertura no modelo de proteção social
no Brasil permaneceu.
Deste ponto de vista, a saúde não pode ser considerada um negócio ainda em 1964, mas a
clara divisão entre medicina curativa e medicina preventiva e as abordagens distintas da questão
social para distintos segmentos da incipiente classe trabalhadora brasileira são os primeiros sinais
do grande mercado que se tornaria a saúde no Brasil. A separação entre saúde previdenciária6 e
saúde pública7 expressa a formação de um embrionário sistema de saúde pautado nos interesses
privados em detrimento dos interesses coletivos.
No que tange ao processo de tentativa de superação do subdesenvolvimento, Furtado
(1974) destaca que a industrialização da periferia do mundo capitalista ocorre de forma rápida e
sob a direção de empresas de países do centro. A partir de então a grande empresa passa a
6 Para o segmento da força de trabalho mais organizado e vinculado ao centro dinâmico da economia, no formato dos
IAPs. 7 Voltadas basicamente para erradicação de endemias e garantia da reprodução do da força de trabalho.
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desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento capitalista e o sistema torna-se
oligopolizado de maneira que a concorrência não ocorre mais via preços e reduções de lucros.
Neste contexto, o autor destaca a necessidade de crescente eficiência e sofisticação na
ação dos Estados frente a esta superestrutura do sistema capitalista alicerçado nessa crescente
unificação e nas grandes empresas, os Estados seriam fundamentais, como instrumento de
direção e coordenação das atividades econômicas. Porém, é exatamente a debilidade do Estado,
em agir em função do interesse da coletividade nacional, que torna o processo evolutivo dos
países periféricos ainda mais peculiar.
Até aqui, examinamos a questão da saúde no Brasil a partir das influências da estrutura
produtiva, de tal forma que foi possível destacar o processo de desenvolvimento capitalista e sua
relação com a ascensão das políticas sociais, em especial para a saúde.
Diante da lógica capitalista, a questão social no Brasil foi subordinada a aspectos técnicos
financeiros no bojo do sistema capitalista brasileiro. O fraco sistema de proteção social no país se
deve, em grande medida, às determinações capitalistas que seguem a lógica de acumulação do
capital em detrimento das questões nacionais, como a saúde.
1.2. O Fortalecimento Da Oferta Privada (1964/1985)
Sob a perspectiva da formação econômica do Brasil, a ditadura militar desempenhou
papel central por ter tido as ferramentas sociais e econômicas para enraizar e intensificar os
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principais traços do capitalismo dependente e do subdesenvolvimento - características
antinacionais, antidemocráticas e antissociais, as quais permanecem até hoje na sociedade
brasileira8.
Durante a década de 1960, o contexto mundial foi decisivo para a formação econômica do
Brasil, uma vez que os países periféricos fizeram parte da disputa de poder na Guerra Fria. No
plano internacional o polo socialista apresentava chances reais de incluir a periferia capitalista,
haja visto o triunfo socialista em Cuba em 1959, assim como em outros países na Ásia.
Em alguns países da América Latina a industrialização fazia-se presente, aumentando a
autonomia relativa de países como Brasil, México e Argentina perante aos países imperialistas, o
que elevou a instabilidade política no polo capitalista da Guerra. Portanto o avanço progressivo
do capital nos países periféricos deve ser visto diante da necessidade de conter o comunismo em
crescimento no mundo.
Assim, o período do regime militar no Brasil foi decisivo no processo de consolidação do
capitalismo dependente por cristalizar um padrão de dominação específica através da combinação
de dependência externa e regime de segregação social herdados do período colonial (Monte-
Cardoso, 2013).
A dependência externa brasileira é balizada por ações imperialistas praticadas por estados
nacionais antes mesmo do surgimento do capitalismo, a acumulação originária por meio da
colonização e do mercantilismo deu nova forma ao imperialismo na transição ao capitalismo9.
8 Para Santos (2014:7), a ditadura militar carrega ainda responsabilidade pela devastação e retrocesso nos
esforços de democratização que se buscava no Brasil. “Nesse período, uma geração de pensadores, formadores de
opiniões, lideranças e dirigentes foi retirada da convivência e interação no pluralismo da sociedade, da produção
coletiva de conhecimentos, ideias, buscas, formulações e influencias”.
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Mesmo em contexto de ditadura do grande capital no país, o conjunto de políticas
econômicas do período impulsionou o crescimento de recursos estatais, refletindo no aumento
significativo de diversos serviços oferecidos assim como na população atendida. Apesar da
intensiva modernização do aparato estatal, tais políticas tinham alto viés conservador (Fagnani,
2005; Monte-cardos, 2013)
De forma geral, Aureliano e Draibe (1989) acreditam que durante o período de 1930 a
1988 o sistema de proteção social brasileiro se expandiu no que diz respeito às áreas das políticas
e população beneficiária, mas as características fundamentais não foram alteradas. A segunda
metade deste período, de 1964 a 1985 houve a consolidação institucional e reestruturação
conservadora do sistema de proteção socialmente excludente.
Segundo Fagnani (2005), esse movimento foi conduzido por uma estratégia constituída
por quatro características centrais: caráter regressivo do financiamento do gasto social;
privatização do espaço público; centralização do processo decisório; e fragmentação institucional.
O autor demonstra que tais características estruturais se mantiveram presentes em todos os
setores de políticas sociais no período autoritário, com maior ou menor intensidade. Tal
caracterização deste período explicita que a reforma dos mecanismos estatais levou a
modernização institucional, financeira e burocrática ampliando assim o alcance da gestão
governamental, o que possibilitou a expansão da oferta de bens e serviços. Porém, tais políticas
9 O imperialismo, considerado por Lênin como o “estágio superior do capitalismo” é caracterizado por: 1. Aumento da
concentração de capital e da produção; 2. Passagem de pequena para a grande indústria, com a fusão do capital industrial e
bancário sob o capital financeiro; 3. Extraordinário aumento de exportação de capital financeiro; 4. Divisão dos mercados
mundiais pelos monopólios; 5. A moderna colonização; 6. A expansão do capital financeiro e das sociedades anônima, dando
impulso ao florescimento de uma classe de rentiers; e 7. A colonização incorporando diversos interesses (Cano, 1996) Já
Fernandes (1973) destaca a nova fase do imperialismo marcado pelo moderno mercado capitalista, de tecnologia avançada e de
dominação externa de hegemonia dos Estados Unidos. Este movimento é capaz de orquestrar toda a ordem social vigente,
contemplando o controle de natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa e até mesmo a introdução de tecnologia, a
modernização de infraestrutura e o fluxo de capitais entre os países.
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sociais atenderam, em grande medida, as camadas de média e alta renda explicitando o caráter
conservador do período, dada a limitada capacidade de redistribuição de renda (Fagnani, 2005).
Sobre a primeira característica, o caráter regressivo do financiamento do gasto social,
Fagnani (2005) afirma que na década de 1960 o Brasil apresentava uma situação social
complicada dada a expressiva heterogeneidade social e regional, alta concentração de renda,
formas precárias de inserção no mercado de trabalho e um contingente significativo de excluídos
e miseráveis no campo e na cidade. Porém, os mecanismos de financiamento das políticas sociais
tiveram seu caráter regressivo reforçado a partir de 1964, o que implicou na separação entre
desenvolvimento econômico e distribuição de renda, complicando ainda mais a situação social
brasileira.
No caso especifico da saúde, os mecanismos de financiamento eram exclusivamente
dependentes do Tesouro Nacional o que acarretou na marginalização deste setor na agenda das
políticas públicas. A partir de 1964 a política de saúde é marcada pela hegemônica presença da
“assistência médica previdenciária”, caracterizada pela compra de serviços do setor privado e
pelo credenciamento de médicos, ela era coordenada pelo INAMPS (Instituto de Nacional de
Assistência Médica da Previdência Social) e financiada pelas contribuições dos trabalhadores e
empregadores (Fagnani, 2005).
A divisão institucional na política nacional de saúde contava com uma significativa
diferença na forma de financiamento. As instituições públicas contavam com escassos recursos
fiscais, recebendo tratamento residual. Enquanto que as instituições previdenciárias eram
financiadas com recursos de contribuições dos trabalhadores, impulsionadas com o
desenvolvimento econômico e o crescimento da massa salarial (Mesquita, 2008).
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Este modelo de organização institucional, calcado na segmentação e na discrepante
diferença de financiamento, beneficiou o financiamento do setor privado através da canalização
de recursos da saúde previdenciária para a construção e expansão de hospitais privados. Mesquita
(2008) destaca que este modelo criou mecanismos para que o setor privado ganhasse força e se
estruturasse, de tal forma ter capacidade de defender seus interesses em possíveis tentativas de
reestruturação do sistema.
Dessa forma, fica claro que a o caráter regressivo do financiamento do gasto social abriu
espaço para a consolidação da segunda característica deste período, a privatização do espaço
público. Os interesses privados ganham espaço nas decisões sobre as políticas sociais, sejam
pelas formas de assistência privada, ou sejam pelos mecanismos democráticos tradicionais de
representação política e de controle social bastante reduzidos10
. Em todos os setores, inclusive na
saúde, enrijeceram fortes alianças entre o setor privado e o público (Fagnani, 2005).
Neste ponto fica clara a particularidade do capitalismo dependente definida por Prado
Junior (1987), em que a acumulação do capital no poder público ocorre essencialmente em
proveito dos interesses privados. Para o autor, o Brasil nasce a permanece visto como um
negócio, sendo caracterizado pela ausência de nexos morais unificadores de uma nação.
Essa característica fica mais clara com o destaque de Monte-Cardoso (2013) sobre a
aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), em 1960, que incorporou os benefícios
da população previdenciária a uma política mais explícita e articulada da assistência média a
partir de então. Para o autor, a lei, por ter como um de seus traços centrais a reafirmação das
10 Cabe destacar que em alguns mecanismos de participação, como nos IAPs, o padrão de gasto não era necessariamente
mais democrático ou público. Basta ver que no IAPI foi onde surgiu a mais forte expressão do modelo privatista em saúde.
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empresas empregadoras como protagonistas da prestação de assistência, deu impulso para o
fortalecimento do setor privado neste setor.
Uma proposta com enfoque privatizante foi assumida também no sistema previdenciário
brasileiro a partir de 1964, uma vez que as mudanças no aparelho previdenciário buscavam
garantir a expansão dos serviços privados mediante incentivos estatais que abrangessem a maior
parte dos setores ligados ao chamado ‘complexo médico-empresarial’.
A partir de 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),
houve a centralização dos recursos no poder do Estado o que intensificou tal política (Monte-
Cardoso, 2013).
Segundo o autor, a criação do INPS, que agregou as atribuições de quase todos os IAPs
(IAPB, IAPC, IAPFES, IAPI, IAPM, IAPTEC), deve ser olhada por três ângulos, dois primeiros
que dizem respeito à legitimação do regime militar e ao grande montante de recursos disponíveis
para este sistema, e um terceiro, central para a análise, que tange ao rápido crescimento de uma
rede assistencial de serviços de saúde ancorados em um modelo privado com fartos subsídios
estatais.
O fortalecimento do setor privado é resultado da expansão das formas assistências que
ganharam espaço, principalmente, com a centralização do INPS, que passou a ser o maior
comprador de serviços de assistência individual à saúde no Brasil. Entre as formas assistenciais
destaca-se o contrato de serviços de saúde e os convênios, o modelo de contrato de serviços
funcionava a partir do pagamento de “unidade de serviço” ao setor privado credenciado
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(hospitais, laboratórios e médicos) em todos os municípios brasileiros, via geração de fatura
remetida ao INAMPS.
O principal problema deste arranjo é que o INAMPS não tinha capacidade de analisar e
vistoriar a geração de tais faturas o que levou a enorme transferência de recursos públicos para o
setor privados, impulsionando a expansão capitalista no setor da saúde.
Fagnani (20065:34) cita Carlos Gentille de Mello (1977) que afirma “(...) qualquer que
seja a roupagem da medicina privatizada, a sua prática cria as condições ideais e propicias para a
mercantilização da medicina, sem que haja qualquer possibilidade de instituir um sistema eficaz
de controle e fiscalização (...)”11
. Monte-Cardoso (2013) destaca que os pagamentos eram
realizados com base numa tabela de preços por ato médico e o parâmetro de decisões para a
execução da pratica assistencial era o lucro.
Este modelo utilizado preserva a centralidade da remuneração por procedimento
diagnostico ou terapêutico, segundo Campos (2007:1868)
Até a inauguração do SUS, a expansão do acesso ao cuidado médico-sanitário no
Brasil vinha ocorrendo sem que se invocasse qualquer meio da Previdência Social (...) servia
como um grande seguro estatal, que mais dinamizava o mercado da saúde do que o substituía.
(...) Apesar da intermediação do Estado, conservou-se naquele modelo o estímulo econômico à
produção dos atos sanitários.
Já os convênios, outra forma assistencial predominante, é marcado pelo modelo de pré-
pagamento de um contrato de serviços e não por um serviço executado. Tal forma de assistência
impulsiona ainda mais a heterogeneidade estrutural brasileira, possibilitar diferenciação da
qualidade da assistência à saúde de acordo com diversas formas de distinção socioeconômica.
11
Numa revelação contundente, Reinhold Stephanes, presidente do INSS (Instituto Nacional de Seguridade
Social) no governo Geisel, confirmou as apreensões do sanitarista e reconheceu o total descontrole das contas da
saúde. Num trabalho escrito em 1984, o ex-dirigente do INSS no regime militar reconheceu que a forma de apresentar faturas e pagamentos era como “um cheque em branco” ao setor privado (Fagnani, 2005).
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Para Bahia (2005) a condução da política previdenciária e de saúde durante a ditadura
militar foi se moldando por duas características principais: a privatização e a segmentação da
clientela. Seja pela unificação previdenciária, pela centralização do INPS ou pelas restrições
orçamentárias impostas, foi durante este período que a capitalização da medicina sofreu o seu
primeiro grande impulso. Os autores Braga & Silva (2001:19 e 20) definem “capitalização da
medicina” como:
(...) processo em que o Estado provia e pagava a ampliação da demanda aos serviços
médicos e aos produtos industriais vinculados ao setor; financiava os investimentos e contratava
os serviços da rede privada, apoiando assim, os empreendimentos capitalistas no setor.
Monte-Cardoso (2013) mostra que o avanço da capitalização da medicina foi dirigido por
duas frentes: as transnacionais farmacêuticas e de equipamentos e a formação de um moderno
mercado de planos e seguros de saúde encabeçados pelas empresas medicas12
.
Segundo Donnangello (1975), o Plano Nacional de Saúde (PNS), proposto em 1968, tinha
como fundamento o financiamento dos serviços médico-hospitalares por fundos públicos e,
parcialmente, pelo consumidor, já a produção tinha viés totalmente privatizante, através da livre
escolha do médico e do hospital pelo cliente. Porém, cabe destacar que o PNS não definiu o
padrão da expansão do setor privado, ele foi tão radicalmente privatista que mexeu com a
burocracia previdenciária e foi posto de lado.
Durante a ditadura militar ficou explícita a potencialização da proliferação da saúde como
um negócio no Brasil, principalmente, através da formação do INPS, mas também com estímulos
oficiais às outras formas de assistência individual. Além do fortalecimento do setor privado,
12 Que abarcavam: medicinas de grupo, cooperativas médicas e outras formas incipientes de assistência privada. Para o
autor, a criação das cooperativas médicas foi um dos pilares do empresariamento da saúde (Monte-Cardoso, 2013).
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amplamente discutido, cabe ressaltar que, como um negócio, a saúde passou a ter grande
componente de diferenciação social, fator exigido pelo grande capital.
A terceira característica deste período é a centralização do processo decisório, que está
relacionada ao contexto político e institucional autocrático próprio do autoritarismo marcado pela
redução dos direitos civis e políticos. Neste sentido, uma característica deste movimento é a
destituição das entidades sindicais da gestão das políticas sociais. Fagnani (2005:29) afirma:
“Interrompia-se, assim, um longo ciclo, intensificado entre 1945 e 1963, em que a classe
trabalhadora tinha representação na definição dos rumos da previdência social, da política salarial
e da própria Justiça do trabalho”.
Além disso, este movimento de centralização é uma manifestação das reformas
institucionais implementadas entre 1964 a 1967, cujo objetivo central era centralizar o controle
do financiamento no âmbito federal. Para isso, foram criadas “complexas agencias burocráticas
federais” que passaram a formular, implementar e gerir políticas setoriais no âmbito nacional
com volumes financeiros significativos (Fagnani, 2005:30).
Por fim, a última característica deste período é a fragmentação institucional. De menor
importância, tal mudança não atingiu o centro das políticas sociais, causando maiores impactos
na alimentação popular e na assistência social.
Dessas quatro características centrais destacadas por Fagnani (2005), podemos delinear
mais duas características que transpassam as demais e definem o período analisado. A primeira é
a forte expansão da oferta de bens e serviços sociais, incluindo, principalmente, os serviços
estatais. A oferta assistencial e previdenciária deste momento é bastante relevante, pois compôs
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grande parte do arcabouço do SUS, quando criado em 1988, os hospitais e centros de criados pelo
Estado neste período foram incorporados ao sistema de saúde recém criado.
A outra característica é o resultado excludente e limitador às classes mais abastadas da
sociedade que tal expansão trouxe, uma vez que mesmo tendo tido um avanço dos serviços
estatais, estes contavam com restrições do tipo de inserção no mercado de trabalho e também de
regiões geográficas específicas do Brasil.
O período autoritário brasileiro foi marcado por uma expansão da oferta de bens e
serviços sociais, porém tal expansão foi excludente e limitadora às classes mais abastadas da
sociedade, o que implica no agravamento da desigualdade social e regional do Brasil.
Cabe aqui analisar ainda, brevemente, os movimentos que compõe distintas fases na
ditadura brasileira. A primeira fase é definida por Fagnani (2005) como a “Gestação da Estratégia
de Modernização Conservadora (1964-1967)”, marcados pelo interesse em estabilizar os preços e
realizar as reformas institucionais que visavam “modernização conservadora” no campo
econômico.
O principal objetivo destas reformas era modernizar os instrumentos de gestão econômica
e de ampliar as bases de financiamento da economia e do setor público. Foi nesta fase que surge a
ideia de financiar o gasto social através das contribuições sociais, que foi difundido para a maior
parte dos setores sociais. O autor também destaca que há um processo político e institucional
mais amplo que condicionava a estratégia conservadora, um exemplo disso é que um dos
objetivos dos militares era desmontar o aparato nacional popular.
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O segundo momento destacado por Fagnani (2005) é “A Modernização em Marcha
(1968-1973)”, marcada pelo avanço e fortalecimento das políticas que vinham sendo geridas no
momento anterior. Nesta fase as características apontadas se tornam evidentes e vão se enraizado.
A consolidação destas características foi possível em função da conjuntura econômica e política
desta fase, marcada pelo “milagre econômico” e recrudescimento do autoritarismo.
O autor destaca o financiamento dos gastos sociais que se firmam por contribuições
sociais; para a difusão da centralização do processo decisório em todos os setores; e o avanço da
privatização do espaço público. No caso da saúde, em 1968 havia uma disputa, de um lado, havia
os interesses privados e burocráticos ligados ao segmento da assistência médica previdenciária e,
de outro lado, havia a saúde pública como responsabilidade do Ministério da Saúde financiada
com recursos do Tesouro Nacional. Neste ano, o modelo “médico-assistencial privatista” se torna
hegemônico (Fagnani, 2005).
O terceiro período é a “Tentativa de Mudança (1974-1979)”, em que há algumas
tentativas de reformas que visavam mudar os movimentos da fase anterior. Os condicionantes
deste período podem ser resumidos na precariedade das condições de vida da população, no
agravamento da questão social, o que levava a oposição do regime ditatorial. No caso da saúde
houve surtos de epidemias em diversas regiões e estudos mostravam altas taxas de mortalidade
infantil.
As políticas desta fase tinham o objetivo de corrigir a baixa efetividade das políticas
sociais e ampliar a coordenação e a racionalização das ações e do gasto social. Desta forma, tais
reformas eram divididas em dois tipos: as de tentativa de reformar as políticas já existentes e as
que incorporavam as novas questões na agenda governamental.
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Por fim, há a fase de “Esgotamento da estratégia (1980-1984)”, determinada pelo contexto
político e econômico do período. A situação política é deteriorada pelo movimento de massa que
reivindicava o restabelecimento de eleição direta para Presidência da República.
Analisando este longo período autoritário, duas evidências podem ser destacadas: se, de
um lado, houve uma significativa expansão da oferta de bens e serviços públicos, de outro lado,
tal movimento teve pouco impacto na distribuição de renda. Dessa forma, houve
incompatibilidade entre mecanismos de financiamento do gasto social, de caráter regressivo, e a
busca redução da desigualdade social (Fagnani, 2005).
Monte-Cardoso (2013) enfatiza que foi a partir da ditadura que a política econômica foi
direcionada aos interesses das empresas transnacionais e da viabilização da modernização dos
padrões de consumo típicas de seu padrão tecnológico importado, através da concentração de
renda – canalizada para o consumo de bens duráveis e consolidação do papel do Estado em
garantidor de infraestrutura e bens intermediários necessários.
Soma-se a esta análise a visão de Furtado (1974) sobre a inadequação deste processo de
industrialização, que, a despeito de apresentar altas de crescimento econômico, intensificou ainda
mais o caráter antissocial do capitalismo brasileiro, com uma mudança na cesta de bens de
consumo em benefício de uma pequena parcela abastada da população13
.
13 Segundo Furtado (1974), a condição de economias subdesenvolvidas está relacionada com a forma como o industrial
cresceu e se difundiu, em que são as vantagens comparativas no comercio internacional o ponto de origem do
subdesenvolvimento, mas é insuficiente para entender o fenômeno, uma vez que é a disparidade de difusão de progresso o que
aprofunda a situação inicial. De acordo com o autor, o subdesenvolvimento tem suas raízes no processo interno de exploração e
no processo externo de dependência. A existência de uma classe dirigente com padrões de consumo similares a de países com
altos níveis de acumulação de capital provenientes do progresso técnico gerava uma dependência desses países. O processo de
modernização se deu quando fez-se um esforço de passar a produzir o que se vinha importando. Porém a industrialização não
acaba com a situação de dependência, pelo contrário, a reforça, pois a introdução de novos produtos requer a utilização de
técnicas mais avançadas e de capital, e maiores níveis de concentração de renda. Assim, o crescimento não reduz o
subdesenvolvimento, antes o fortalece, pois aumenta a exploração interna (Furtado, 1994).
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Fagnani (2005) mostra a concentração da infraestrutura e da prestação de serviços nas
regiões mais desenvolvidas, gerando desequilíbrios inter-regionais e intra-regionais em termos de
distribuição geográfica de equipamentos, cobertura de atendimento e formação de recursos
humanos. Para a saúde, o lado mais perverso do caráter conservador das políticas adotadas se dá
pela instalação da rede de saúde onde encontra-se o dinheiro (mercado formal) e não onde está a
doença.
Este movimento de modernização conservadora destacado por Fagnani (2005) para o
período de 1964 é também enfatizado por Monte-Cardoso (2013) ao discutir a clara segmentação
no sistema de saúde brasileiro, entre saúde previdenciária, que trazia elementos modernos na
assistência hospitalar e acesso às tecnologias avançadas, e saúde pública, com elementos
atrasados garantindo mínimas condições de vida tanto no campo quanto em cidades de grande
crescimento e altas taxas de mortalidade infantil.
A natureza do modelo assistencial privatista, hegemônico no complexo previdenciário,
centrado no consumo de fármacos e equipamentos de última geração, favoreceu uma inédita
modernização nos padrões de consumo de bens de saúde, potencializando as distorções entre as
necessidades e as possibilidades da sociedade brasileira e o padrão de incorporação tecnológica
assumido durante o regime. Monte-Monte-Cardoso, 2013:111.
Fagnani (2005) destaca ainda que, mesmo de caráter excludente, não se pode tirar o
mérito de expansão da oferta de bens e serviços em muitos setores. No caso da saúde a expansão
dos serviços é evidente, mas também se destaca o caráter conservador, dada a concentração da
infraestrutura e da prestação de serviços nas regiões mais desenvolvidas e a marginalização das
ações ligadas aos cuidados primários de saúde e atenção médica sanitária, o que acarretou em
enormes desigualdades regionais e de renda entre os diferentes segmentos populacionais.
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A assimetria social, traço fundamental de um capitalismo dependente como o brasileiro,
aparece de forma gritante entre grandes e pequenas cidades, entra cidade e campo, e entre regiões
ricas e pobres. As desigualdades criadas pelo sistema de saúde vigente não se restringiam às
regiões, abarcava também a distribuição da força de trabalho, a capacidade instalada da rede
hospitalar e ambulatorial, a densidade tecnológica e a distribuição do mercado de planos e
seguros privados (Monte-Cardoso, 2013).
Por isso, além desses profundos desequilíbrios sociais e regionais, ainda “assistiu-se a
mais completa marginalização das ações ligadas aos cuidados primários de saúde e atenção
médica sanitária” (Fagnani, 2005:39). Esta situação pode ser percebida tanto pelo grande
retrocesso nas ações coletivas destinadas a intervenções sobre a saúde das populações, como
imunizações, combate a doenças contagiosas, iniciativas educativas como pelas elevadas taxas de
morbidade e mortalidade infantil, excessiva incidência de epidemias associadas à miséria, os
quais correspondem às necessidades de parcela preponderante da demanda da população (Monte-
Cardoso, 2013).
A lógica das políticas sociais adotadas durante o regime militar, longe de buscar políticas
com concessão de direitos universais, seguia a tendência de diminuir as tensões sociais, garantir o
processo de acumulação dirigido pelo capital internacional e ampliar o espaço para os negócios.
O movimento de construção do sistema de saúde brasileiro seguiu, portanto, a lógica de
um país de capitalismo dependente, marcado pela dependência externa e pela segregação social.
O sistema foi (e ainda é) subordinado ao capital desde sua forma mais embrionária e segregou a
sociedade desde as primeiras CAPs até o mais avançado sistema de previdenciário do regime
militar, combinando sempre elementos modernos com atrasados.
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De acordo com Ocké-Reis (2012), a partir de 1960 é possível observar uma série de
incentivos governamentais diretos e indiretos aos planos privados de saúde. Nos estímulos diretos
o autor destaca a grande facilidade de financiamento para a construção de instalações hospitalares
e para a compra de equipamentos médicos e uma série de benefícios fiscais e previdenciários
concedidos a alguns planos que, apesar de desempenharem atividades lucrativas, foram
consideradas filantrópicas. Já no que diz respeito ao apoio indireto, o autor destaca o
estabelecimento de normas previdenciárias e jurídicas que impulsionaram a expansão dessas
empresas.
De acordo com Monte-Cardoso (2013), a despeito da forte presença do setor privado na
saúde desde 1930, é só a partir de 1980 que a diversificação no mercado da saúde privada fica
mais evidente. O autor destaca três motivos para este movimento: a entrada do capital financeiro
no setor que impulsionou o desenvolvimento das empresas médicas; a crise no setor
previdenciário e a pressão de diversos segmentos sociais por assistência médica privada.
Neste sentido, grande parte da classe trabalhadora passa a ser usuária de planos privados
ou medicinas de grupo na década de 1980. A degradação do sistema público de saúde neste
período e a consolidação deste setor empresarial (com a entrada do capital financeiro)
possibilitou que os planos de saúde se transformassem em uma ferramenta de articulação política
entre patrões e empregados nas negociações trabalhistas, tanto pelo lado dos patrões quanto dos
dirigentes sindicais, por pressão de suas bases. (Monte-Cardoso, 2013)
A agitação social que vinha se formando a partir de meados de 1970 e começo de 1980,
mesmo dentro dos rigorosos moldes da ditadura militar no Brasil, tinha como um de seus pilares
a crise assistencial da previdência e esta “clara inviabilidade técnica e financeira do modelo
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privatista, bem como sua total falta de sintonia com o padrão sanitário brasileiro” (Monte-
Cardoso, 2013:153)
O autor destaca três principais heranças da ditadura militar neste contexto de agitação
social e crise assistencial: Em primeiro lugar, a Segmentação da atenção à saúde, tal padrão não
só se manteve durante o período, como foi aprofundado neste período. Em segundo lugar, a
proliferação das formas privadas de atenção à saúde, com destaque para os seguros-saúde para
grande parte dos trabalhadores assalariados dos setores mais dinâmicos da economia, Em terceiro
lugar, o caráter altamente concentrador do INAMPS que assegurava a hegemonia das classes
dominantes ao mesmo tempo que repartia os custos com as classes mais baixas.
Cabe destacar que as lutas sociais, iniciadas principalmente na década de 1970,
possibilitaram experiências bastante exitosas no caso das imunizações ou mesmo de projetos
inovadores no âmbito da assistência14
, porém não foram capazes de mudar o caráter autoritário e
antipopular do regime. Dessa forma, a enorme expansão da atenção médica não correspondeu a
equivalente melhoria dos níveis de saúde da população, formando uma situação favorável para a
construção de um sistema de saúde segregador e privatista e para o desenvolvimento de um novo
setor da economia capitalista, o complexo médico industrial.
A lógica que direciona o sistema de saúde brasileiro, marcada por privatizações,
modernização conservadora e segregação social, está intimamente relacionada à nossa herança
colonial. Fica evidente a incompatibilidade entre o padrão dos negócios de saúde no Brasil e os
interesses coletivos de toda a população.
14
Ver mais sobre Plano Montes Claros (PMC), Programa de Interiorização das Ações de Saúde e
Saneamento (Piass) e o Movimento Municipalista em Monte-Cardoso (2013) item 5.2.3.
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Neste capítulo vimos a gênese dos laços entre o setor público e o setor privado na saúde
em conjunto com a formação capitalista no Brasil, percebe-se a presença do forte componente
mercantil, por meio da intensa presença do setor privado e grandes incentivos ao
empresariamento neste setor.
A análise da formação econômica brasileira mostra que tais laços foram gestados anos
antes da ditadura militar e enraizados durante o regime ditatorial. As políticas adotadas antes e
durante a ditadura militar aprofundaram e cristalizaram as características antissociais,
antidemocráticas e antinacionais do capitalismo brasileiro, tornando-o incompatível com o
sistema de saúde baseados na universalidade, integralidade e equidade.
Seguindo a ordem cronológica, o próximo capítulo visa analisar o processo que resultou
na assinatura da Constituição Federal de 1988 com forte viés social e cidadão. Do ponto de vista
formal, a Carta Magna é a antítese da política privatista de saúde vigente na ditadura, destacado
neste primeiro capítulo.
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Capítulo 2. A Constituição de 1988: da reforma sanitária à garantia formal de
direitos
O período em que o governo brasileiro foi conduzido por militares no Brasil é marcado
pela modernização conservadora, visto que, simultaneamente, houve expansão dos serviços
sociais oferecidos à população, mas, tais serviços mantiveram as profundas desigualdades do país
por seu caráter restrito na redistribuição da renda e na universalização da cidadania.
No âmbito da saúde, a análise anterior deixa clara a consolidação do grande espaço
ocupado pelo setor privado assim como a fraca capacidade do Estado em defender os interesses
coletivos. Enquanto a década de 1960 é caracterizada pelo recrudescimento do processo
autoritário comandado pelos militares a década de 1970 já se observa a formação dos primeiros
movimentos sociais, os quais vão ganhando força até o enfraquecimento do governo militar. Com
a crise do regime militar, tais movimentos sociais sem expandem e ganham força política capaz
de influenciar diretamente na elaboração da Constituição Federal assinada em 1988.
O objetivo central deste capítulo é a análise da formação da agenda de mudanças e o papel
do movimento social no processo que implicou na Carta de 1988. Enfatizaremos que a
Constituição Federal procura se contrapor à mercantilização da saúde, que ganhou forma no
período anterior, através da garantia formal de direitos à todos os cidadãos. O que tange à saúde,
o SUS se inspira nos valores dos regimes de Welfare State que se desenvolveram especialmente
entre 1945 e 1975, em determinado países da Europa. A construção da agenda do SUS no Brasil
coincidia com esse processo. Nossos reformistas democráticos estavam olhando para os notáveis
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êxitos da social-democracia europeia. Do ponto de vista formal, a Carta Magna é a antítese da
política privatista de saúde vigente na ditadura.
No final da década de 1960, registra-se o período de maior crescimento da história até
então, o “milagre brasileiro”. Em 1974, com a retração da economia e preocupantes índices de
inflação, formula-se o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) com o objetivo de
transformar a estrutura produtiva brasileira e assim superar os desequilíbrios enfrentados durante
o período anterior.
Para Carneiro (2002), mais do que dar novo fôlego ao crescimento econômico, o II PND
buscava retomar a legitimidade do regime, abalada diante do grave quadro social que se instalava
no país. Dentre os pilares do plano, se destaca o impulso na indústria brasileira – através do
fortalecimento do setor de bens de capital e da empre