Estado Governo Mercado GPM Miolo Grafica

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Primeiro material da pós graduação em gestão pública municipal.

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Ministrio da Educao MEC Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES Diretoria de Educao a Distncia DED Universidade Aberta do Brasil UAB Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica PNAP Especializao em Gesto Pblica Municipal

ESTADO, GOVERNO E MERCADO

Ricardo Corra Coelho

2009

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2009. Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Todos os direitos reservados. A responsabilidade pelo contedo e imagens desta obra do(s) respectivos autor(es). O contedo desta obra foi licenciado temporria e gratuitamente para utilizao no mbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, atravs da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o contedo desta obra para aprendizado pessoal, sendo que a reproduo e distribuio ficaro limitadas ao mbito interno dos cursos. A citao desta obra em trabalhos acadmicos e/ou profissionais poder ser feita com indicao da fonte. A cpia desta obra sem autorizao expressa ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanes previstas no Cdigo Penal, artigo 184, Pargrafos 1 ao 3, sem prejuzo das sanes cveis cabveis espcie.

C672e

Coelho, Ricardo Corra Estado, governo e mercado / Ricardo Corra Coelho. Florianpolis : Departamento de Cincias da Administrao / UFSC; [Braslia] : CAPES : UAB, 2009. 116p. : il. Especializao Mdulo Bsico Inclui bibliografia ISBN: 978-85-61608-81-1 1. Administrao pblica. 2. Poltica e governo Histria. 3. Gesto pblica. 4. Educao a distncia. I. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Brasil). II. Universidade Aberta do Brasil. III. Ttulo. CDU: 35

Catalogao na publicao por: Onlia Silva Guimares CRB-14/071

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PRESIDENTE DA REPBLICA Luiz Incio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAO Fernando Haddad PRESIDENTE DA CAPES Jorge Almeida Guimares UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA REITOR lvaro Toubes Prata VICE-REITOR Carlos Alberto Justo da Silva CENTRO SCIO-ECONMICO DIRETOR Ricardo Jos de Arajo Oliveira VICE-DIRETOR Alexandre Marino Costa DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA ADMINISTRAO CHEFE DO DEPARTAMENTO Joo Nilo Linhares SUBCHEFE DO DEPARTAMENTO Gilberto de Oliveira Moritz SECRETARIA DE EDUCAO A DISTNCIA SECRETRIO DE EDUCAO A DISTNCIA Carlos Eduardo Bielschowsky DIRETORIA DE EDUCAO A DISTNCIA DIRETOR DE EDUCAO A DISTNCIA Celso Jos da Costa COORDENAO GERAL DE ARTICULAO ACADMICA Nara Maria Pimentel COORDENAO GERAL DE SUPERVISO E FOMENTO Grace Tavares Vieira COORDENAO GERAL DE INFRAESTRUTURA DE POLOS Francisco das Chagas Miranda Silva COORDENAO GERAL DE POLTICAS DE INFORMAO Adi Balbinot Junior

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COMISSO DE AVALIAO E ACOMPANHAMENTO PNAP Alexandre Marino Costa Claudin Jordo de Carvalho Eliane Moreira S de Souza Marcos Tanure Sanabio Maria Aparecida da Silva Marina Isabel de Almeida Oreste Preti Tatiane Michelon Teresa Cristina Janes Carneiro METODOLOGIA PARA EDUCAO A DISTNCIA Universidade Federal de Mato Grosso COORDENAO TCNICA DED Soraya Matos de Vasconcelos Tatiane Michelon Tatiane Pacanaro Trinca AUTOR DO CONTEDO Ricardo Corra Coelho EQUIPE DE DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDTICOS CAD/UFSC Coordenador do Projeto Alexandre Marino Costa Coordenao de Produo de Recursos Didticos Denise Aparecida Bunn Superviso de Produo de Recursos Didticos Flavia Maria de Oliveira Designer Instrucional Denise Aparecida Bunn Andreza Regina Lopes da Silva Superviso Administrativa rika Alessandra Salmeron Silva Capa Alexandre Noronha Ilustrao Igor Baranenko Projeto Grfico e Editorao Annye Cristiny Tessaro Reviso Textual Sergio Meira

Crditos da imagem da capa: extrada do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.

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PREFCIOOs dois principais desafios da atualidade na rea educacional do Pas so a qualificao dos professores que atuam nas escolas de educao bsica e a qualificao do quadro funcional atuante na gesto do Estado Brasileiro, nas vrias instncias administrativas. O Ministrio da Educao est enfrentando o primeiro desafio atravs do Plano Nacional de Formao de Professores, que tem como objetivo qualificar mais de 300.000 professores em exerccio nas escolas de ensino fundamental e mdio, sendo metade desse esforo realizado pelo Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Em relao ao segundo desafio, o MEC, por meio da UAB/CAPES, lana o Programa Nacional de Formao em Administrao Pblica (PNAP). Esse Programa engloba um curso de bacharelado e trs especializaes (Gesto Pblica, Gesto Pblica Municipal e Gesto em Sade) e visa colaborar com o esforo de qualificao dos gestores pblicos brasileiros, com especial ateno no atendimento ao interior do Pas, atravs dos Polos da UAB. O PNAP um Programa com caractersticas especiais. Em primeiro lugar, tal Programa surgiu do esforo e da reflexo de uma rede composta pela Escola Nacional de Administrao Pblica (ENAP), do Ministrio do Planejamento, pelo Ministrio da Sade, pelo Conselho Federal de Administrao, pela Secretaria de Educao a Distncia (SEED) e por mais de 20 instituies pblicas de ensino superior, vinculadas UAB, que colaboraram na elaborao do Projeto Poltico Pedaggico dos cursos. Em segundo lugar, esse Projeto ser aplicado por todas as instituies e pretende manter um padro de qualidade em todo o Pas, mas abrindo

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margem para que cada Instituio, que ofertar os cursos, possa incluir assuntos em atendimento s diversidades econmicas e culturais de sua regio. Outro elemento importante a construo coletiva do material didtico. A UAB colocar disposio das instituies um material didtico mnimo de referncia para todas as disciplinas obrigatrias e para algumas optativas. Esse material est sendo elaborado por profissionais experientes da rea da Administrao Pblica de mais de 30 diferentes instituies, com apoio de equipe multidisciplinar. Por ltimo, a produo coletiva antecipada dos materiais didticos libera o corpo docente das instituies para uma dedicao maior ao processo de gesto acadmica dos cursos; uniformiza um elevado patamar de qualidade para o material didtico; e garante o desenvolvimento ininterrupto dos cursos, sem paralisaes que sempre comprometem o entusiasmo dos alunos. Por tudo isso, estamos seguros de que mais um importante passo em direo democratizao do ensino superior pblico e de qualidade est sendo dado, desta vez contribuindo tambm para a melhoria da gesto pblica brasileira, compromisso deste governo.

Celso Jos da Costa Diretor de Educao a Distncia Coordenador Nacional da UAB CAPES-MEC

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SUMRIOApresentao .................................................................................................... 9 Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercadoIntroduo...................................................................................... 13 Conceitos bsicos................................................................................. 15 A dinmica pendular das relaes entre Estado e mercado................................... 24 Duas matrizes tericas para a interpretao das relaes entre Estado e mercado: a liberal e a marxista.................................................................................. 28 A formao da matriz do pensamento liberal................................... 31 A matriz marxista........................................................................... 40 As mudanas nas sociedades capitalistas no final do sculo XIX e seus impactos sobre as matrizes marxista e liberal................................................................. 52

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Unidade 2 As relaes entre Estado, governo e mercado durante o sculo XXIntroduo...................................................................................... 73 O Estado liberal................................................................................. 75 O Estado socialista.................................................................................. 83 O Estado de bem-estar social.............................................................................. 88 O Estado neoliberal........................................................................... 100

Referncias.................................................................................................... 111 Minicurrculo.................................................................................................... 114

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Apresentao

APRESENTAOCaro Estudante! A disciplina que d incio a esse curso aborda uma das questes mais controversas do mundo contemporneo: a da relao entre Estado, governo e mercado. Essa questo no apenas se apresenta no dia a dia do gestor pblico, como debatida em todas as disputas eleitorais sejam elas nacionais, estaduais ou municipais , alm de figurar diariamente nas pginas dos jornais. Para ela no h uma resposta conclusiva. Por mais que se tenha buscado e ainda se continue buscando encontrar o ponto de equilbrio entre a interveno estatal e a liberdade de mercado, esse equilbrio no poder ser mais que temporrio. Por essa razo, por meio desta disciplina pretendemos que voc, gestor pblico, que j se encontra no exerccio da funo ou que almeja exercer uma funo pblica, compreenda alguns conceitos, teorias e informaes histricas que lhes possibilitaro no s acompanhar e participar dessa discusso, mas, sobretudo, desempenhar as funes do gestor pblico com mais segurana e maior conhecimento do terreno em que atua. Com esse objetivo e preocupao, organizamos os temas a serem tratados nesta disciplina em duas Unidades. Na Unidade 1 vamos tratar das teorias que explicam as relaes entre Estado, governo e mercado; e na Unidade 2 estudaremos as mudanas nas relaes entre Estado, governo e mercado durante o sculo XX. O domnio de conceitos-chave envolvidos na discusso das relaes entre Estado, governo e mercado essencial para quem atua ou pretende atuar na esfera pblica, mas no suficiente.

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Alm dele, necessrio ao gestor pblico conhecer e identificar as matrizes tericas que animam esse debate e que se encontram conscientemente ou no presentes no raciocnio e no discurso de todos aqueles que trabalham no Estado, prestam-lhe servios ou a ele se opem e apresentam suas reivindicaes. Assim, ao dominar conceitos e conhecer as teorias subjacentes ao debate e s posies e reivindicaes de uns e outros, o gestor pblico ter melhores condies de entender o raciocnio dos seus inmeros interlocutores e tomar decises esclarecidas e orientadas pelo seu prprio discernimento. Mas para que as suas decises e aes sejam, de fato, conscientes e bem informadas, como desejam todos dos governantes eleitos e partidos polticos que os acolheram em suas legendas para disputar as eleies e se eleger, aos cidados e eleitores que lhes sufragaram nas urnas , o gestor pblico precisa ainda estar bem informado sobre como as relaes entre Estado, governo e mercado estabeleceram-se e modificaram-se ao longo do tempo. Sem o conhecimento da experincia acumulada, seria difcil ao gestor pblico compreender por que o setor pblico brasileiro como , entender os lentos, mas contnuos, processos de mudana que se operam nas relaes entre Estado, governo e mercado que tm impacto direto no funcionamento da Administrao Pblica e posicionar-se frente a questes que envolvem conflito tomando decises esclarecidas conforme o interesse pblico. Esperamos que os temas tratados nesta disciplina lhe propiciem elementos para melhor conhecer o espao em que atua e identificar os seus interlocutores, as demandas que lhe so feitas, os desafios que lhe so propostos para enfim poder, consciente e livremente, tomar as suas decises em um campo que se encontra muito sujeito a influncias ideolgicas, as quais nem sempre so as melhores conselheiras para as aes mais sensatas, mas que frequentemente orientam as aes dos agentes pblicos. Comecemos, ento, nosso estudo. Professor Ricardo Corra Coelho

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Apresentao

UNIDADE 1PERSPECTIVA ESTADO,TERICA PARA A ANLISE DAS RELAES ENTRE GOVERNO E MERCADO

OBJETIVOS

ESPECFICOS DE APRENDIZAGEM

Ao finalizar esta Unidade voc dever ser capaz de: Definir os conceitos de Estado, governo e mercado; Compreender a lgica interna de cada matriz terica, distinguindo os seus principais conceitos; Identificar a influncia dessas matrizes no pensamento e discurso dos atores polticos; e Avaliar comparativamente as potencialidades e limites explicativos de cada matriz.

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

INTRODUOA extenso dos poderes do Estado sobre a sociedade um tema que suscita grandes controvrsias, e em torno das quais no se pode, rigorosamente, falar de consenso ou da existncia de uma posio dominante. Por se tratar de questo que emana do mago da reflexo e da prtica polticas, as formulaes que venham a ser produzidas a respeito carregaro, sempre, um forte vis ideolgico, alimentadas por diferentes vises de mundo, concepes e valores dos quais todos os indivduos das sociedades contemporneas, sem exceo, so portadores, conscientemente ou no. O reconhecimento desses vieses no nos deve desencorajar a enfrentar o desafio, nem tampouco nos autoriza a fazer qualquer tipo de formulao, numa espcie de vale-tudo. Ao longo de sculos, a civilizao ocidental vem recorrentemente colocando-se questes relativas ao Estado, ao exerccio do poder e s relaes entre Estado e sociedade. Ser essa reflexo socialmente acumulada que nos servir de base para refletirmos sobre as complexas relaes entre Estado, governo e mercado no mundo contemporneo.

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H duas matrizes principais no pensamento poltico contemporneo que procuram explicar essas relaes: a liberal, que tem razes no pensamento dos filsofos iluministas, do sculo XVII, e dos economistas da escola clssica, do sculo XVIII; e a marxista, que se inspira no pensamento do filsofo alemo Karl Marx, que foi o mais contundente crtico do pensamento poltico, filosfico e Karl Marx (1818-1883) Saiba mais econmico vigente sua poca. Filsofo alemo e tericodo socialismo. Em 1848, Marx e Engels publicaram o Manifesto do Partido Comunista, o primeiro esboo da teoria revolucionria que, anos mais tarde, foi denominada marxista. Embora praticamente ignorado pelos estudiosos acadmicos de sua poca, Karl Marx um dos pensadores que mais influenciaram a histria da humanidade. Suas ideias sociais, econmicas e polticas tiveram grande influncia sobre o mundo do sculo XX. Disponvel em:. Acesso em: 2 jul. 2009.

Mas antes de estudarmos as teorias que explicam essas relaes e analisarmos a contribuio de uma e de outra para a compreenso da dinmica do mundo contemporneo, convm precisarmos alguns conceitos bsicos que sero utilizados nesta disciplina e que sero recorrentes durante todo o curso: os de Estado, governo e mercado.

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

CONCEITOS BSICOSQuando nos referimos ao Estado, grafado com inicial maiscula, estamos tratando da organizao que exerce o poder supremo sobre o conjunto de indivduos que ocupam um determinado territrio. E quando falamos de exerccio do poder, estamos nos referindo capacidade de influenciar decisivamente a ao e o comportamento das pessoas. Estado e poder so, portanto, dois termos indissociveis. Mas a capacidade de uma organizao exercer o poder sobre o conjunto de indivduos que ocupa um territrio no suficiente para definir o Estado. Se isso bastasse, teramos por exemplo de reconhecer como Estado as organizaes criminosas que controlam algumas favelas do Rio de Janeiro e outros bairros das periferias de grandes cidades brasileiras, uma vez que so a fora dominante que dita as regras de comportamento a serem seguidas por todos os seus habitantes. Ou ento teramos de reconhecer como Estado as organizaes guerrilheiras que ocupam e controlam parte do territrio da Colmbia.

Para diferenciar o poder exercido pelo Estado do poder de outros grupos que controlam territrios e indivduos com base no uso da fora fsica, necessrio introduzir a noo fundamental da legitimidade.

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Saiba mais

Maximillian Carl Emil Weber (1864 - 1920)

Socilogo, historiador e poltico alemo que, junto com Karl Marx e mile Durkheim, considerado um dos fundadores da sociologia e dos estudos comparados sobre cultura e religio. Para Weber, o ncleo da anlise social consistia na interdependncia entre religio, economia e sociedade. Fonte: . Acesso em: 2 jul. 2009.

De acordo com o socilogo alemo Max Weber, o que caracteriza o Estado o monoplio do exerccio legtimo da fora em uma sociedade. Enquanto mfias e outras organizaes armadas disputam entre si o controle sobre territrios e indivduos pelo simples uso da fora, o Estado se diferencia dessas pela legitimidade com que se encontra investido para exercer, em ltima instncia, a fora fsica sobre os indivduos.

Isso significa que apenas as organizaes estatais e nenhuma outra tm o reconhecimento da populao para estabelecer regras a serem obedecidas por todos, administrar a justia, cobrar impostos, julgar e punir os infratores das regras comuns. Em todas as sociedades, h ainda outras formas de poder, que so exercidas por outros meios, que no a fora fsica, e por outros tipos de organizaes. Por exemplo: grandes empresas influenciaram o comportamento das pessoas por meio dos bens que possuem e dispem; as igrejas e os grandes meios de comunicao de massa influenciam o comportamento dos indivduos por meio das ideias e princpios que pregam e sustentam. As primeiras exercem poder econmico, as segundas, poder ideolgico e ambas influenciaram o comportamento dos indivduos de forma concomitante e concorrencial.

O Estado no admite concorrncia e exerce de forma monopolista o poder poltico, que o poder supremo nas sociedades contemporneas.

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

Alm do carter monopolista do poder do Estado, ressaltado por Weber, o pensador italiano Norberto Bobbio iria ainda pr em destaque duas caractersticas distintivas do poder estatal: Universalidade: o Estado toma decises em nome de toda a coletividade que ele representa, e no apenas da parte que exerce o poder. Inclusividade: em princpio, nenhuma esfera da vida social encontra-se fora do alcance da interveno do Estado. Isso, no entanto, no significa que o Estado tenha de intervir ou regular tudo apenas os Estados totalitrios tm essa pretenso , mas que prerrogativa do Estado definir as reas em que ir ou no ir intervir, conforme o tempo, as circunstncias e o interesse pblico. Mas o carter inclusivo e monopolista do poder do Estado no o impede de exercer suas diferentes funes por meio de diferentes instituies. De acordo com Montesquieu, o Estado possui trs funes fundamentais, sendo todas as suas aes decorrentes de uma, ou mais, dessas funes:Saiba maisBaro de Montesquieu (1689-1755) Charles-Louis de Secondat, conhecido como baro de Montesquieu, foi um dos grandes filsofos polticos do Iluminismo. Autor de O esprito das leis, livro fundamental da filosofia poltica contempornea. Fonte: . Acesso em: 2 jul. 2009.

Legislativa: produzir as leis e o ordenamento jurdico necessrios vida em sociedade. Executiva: assegurar o cumprimento das leis. Judiciria: julgar a adequao, ou inadequao, dos atos particulares s leis existentes. Tendo em vista evitar que o Estado abusasse do seu poder, tornando-se tirnico com os seus sditos, Montesquieu formulou a

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teoria da separao funcional dos poderes, que deu origem separao entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, tal como os conhecemos hoje. Da mesma forma que o poder do Estado pode ser funcionalmente distribudo entre diferentes instituies sem perder as suas caractersticas monopolistas, ele tambm passvel de ser exercido por diferentes esferas. Diferentemente dos Estados unitrios como a Frana, o Chile e Israel , onde o poder do Estado exercido por instncias poltico-administrativas nacionais e as autoridades locais no tm autonomia normativa, nos Estados federativos esse poder encontrase ainda subdividido entre a instncia nacional e as instncias subnacionais. No Brasil, como nos Estados Unidos, na Rssia, no Canad, na ndia e em outras federaes existentes no mundo, o poder do Estado (grafado com inicial maiscula) e suas funes executiva, legislativa e judiciria so exercidos de forma compartilhada pela Unio e pelos estados federados (grafados com inicial minscula). No Brasil, em particular, a Constituio de 1988 chegou a elevar os municpios e o Distrito Federal categoria de membros da Federao antes circunscrita Unio e aos estados criando assim uma federao sui generis composta por trs entes federativos: o federal, o estadual e o municipal. Na ndia, o poder do Estado chega ainda a ser distribudo em at cinco esferas administrativas distintas. Essas variaes na organizao formal dos Estados contemporneos devem-se antes histria e s convenincias poltico-administrativas de cada pas, em nada alterando as suas caractersticas fundamentais, funes, poderes e prerrogativas. Qualquer que seja a forma assumida pelo Estado unitria ou federativa , em todas elas o Poder Executivo (ou mais precisamente o governo e o conjunto de instituies que exercem as funes executivas) ter papel preponderante. Essa importncia e ascendncia do Executivo sobre os demais Poderes nada tem a ver com a relevncia das suas funes.

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Segundo Rousseau, o Poder Legislativo , indubitavelmente, o poder central e fundamental do Estado, j que lhe cabe a elaborao das leis a serem seguidas por toda a coletividade.

Saiba mais Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)Nasceu em Genebra, na Sua. Escreveu o Discurso Sobre as Cincias e as Artes, tratando j da maioria dos temas importantes em sua filosofia. Em 1755, publicou o Discurso

Para Montesquieu, as trs Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens. funes do poder do Estado Em 1761, veio luz A Nova Helosa, romance devem ser distribudas por trs epistolar que obteve grande sucesso. No ano corpos distintos para evitar que o seguinte, saram duas de suas obras mais imPoder Executivo desde sempre portantes: o ensaio Do Contrato Social e o tratao predominante exorbitasse das do pedaggico Emlio, ou da Educao. Em 1762, suas funes e exercesse o poder foi perseguido por conta de suas obras, consideradas ofensivas moral e religio, e obrigade forma tirnica sobre os do a exilar-se em Neuchtel (Sua). Fonte: . Acesso em: 1 jul. 2009. Montesquieu, o Poder Judicirio que desempenha o papel fundamental de mediar a relao entre aquele que manda (o governante) e aqueles que legislam (a assembleia).

O que explicaria, ento, a preponderncia do Executivo sobre os demais poderes do Estado?

Uma resposta simples a essa questo a de que o Poder Executivo que a partir de agora passaremos a chamar de governo que dispe dos meios coercitivos do Estado. Embora no crie as regras gerais que balizam a vida dos cidados (funo legislativa), nem decida sobre a adequao dessas regras aos casos particulares (funo judiciria), o governo que, por meio do seu aparato coercitivo, garante o cumprimento das decises dos outros poderes e executa as polticas do Estado. ao governo que compete recolher os impostos que sustentam o funcionamento de todos os poderes do Estado

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recolhimento que sempre compulsrio e respaldado pelo uso da fora se necessrio for. So as instituies do governo que garantem a segurana interna dos cidados entendida como a proteo da sua integridade fsica, liberdade e bens e os protegem das agresses externas; tambm o governo que exerce o poder de polcia do Estado, que vai da fiscalizao do cumprimento das normas punio dos infratores. Enfim, o governo que transforma em atos a vontade do Estado, o que suficiente para fazer dele o poder preponderante sobre todos os demais e exigir dos legisladores um contnuo aperfeioamento das normas que regem o funcionamento do Estado e regulam as suas relaes com a sociedade, e dos tribunais a constante vigilncia da adequao dos atos de governo legislao, sem o que o poder do governo se tornaria tirnico. Da mesma maneira que as diferentes formas assumidas pelo Estado no alteram a sua essncia, as diferentes formas de governo tampouco alteram substantivamente o seu poder no conjunto do Estado. Assim, as diferenas entre parlamentarismo e presidencialismo dizem respeito forma como Legislativo e Executivo se relacionam, mas nada indicam sobre a maior ou menor fora do governo sob um ou outro regime. No presidencialismo, h uma rgida separao entre Executivo e Legislativo no que diz respeito durao dos mandatos do presidente e dos parlamentares. Sob o presidencialismo, nem o presidente tem o poder de dissolver o parlamento e convocar novas eleies, nem o parlamento pode destituir o presidente do seu cargo, exceto no caso extremo de impeachment* por crime de responsabilidade. J sob o parlamentarismo, nem o gover no, nem os parlamentares tm mandatos rigidamente definidos. Na verdade, o governo do primeiro-ministro no tem mandato temporalmente definido, durando o seu governo enquanto a maioria do parlamento lhe der sustentao. Os parlamentares, por sua vez, tm um mandato com durao mxima estipulada, mas no rigidamente estabelecida como sob o presidencialismo, pois facultado ao governo dissolver

Esse tema ser

examinado e tratado em detalhe na disciplina Gesto Pblica. O Pblico e o Privado na

vpor

*Impeachment Processo poltico-criminal instaurado por denncia no Congresso para apurar a responsabilidade, grave delito ou m conduta no exerccio de suas funes, do presidente da Repblica, ministros do Supremo Tribunal ou de qualquer outro funcionrio de alta categoria. Cabe ao Senado, se procedente a acusao, aplicar ao infrator a pena de destituio do cargo. Fonte: Houaiss (2007).

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o parlamento e convocar novas eleies quando o plenrio no for capaz de formar uma maioria capaz de eleger um novo primeiroministro e dar sustentao ao seu governo. Essa separao claramente mais flexvel entre os poderes Executivo e Legislativo sob o regime parlamentar no significa de forma alguma que as funes executivas e legislativas do Estado encontram-se misturadas e sob o mesmo comando. Uma vez escolhido o primeiro-ministro pela maioria parlamentar, este monta o seu gabinete ministerial e exerce as funes executivas de forma completamente independente do parlamento. Ao governo, caber governar e sua maioria no parlamento, lhe dar sustentao e aprovar as leis do seu interesse, exatamente como ocorre sob o presidencialismo. Portanto, a fora de um governo no pode ser derivada da sua forma. Outros fatores merecem destaque. Em um regime democrtico em que os governantes so eleitos e tm seus atos constantemente submetidos ao escrutnio* da opinio pblica e dos formadores de opinio a fora de um governo depende, em grande parte, do apoio que suas propostas polticas e proposies legislativas encontrarem no parlamento; da sintonia entre suas aes e as expectativas dos eleitores; e da relao mantida com os diferentes grupos organizados da sociedade meios de comunicao, sindicatos e associaes, empresas e ONGs etc.

*Escrutnio Processo de votao que utiliza urna. Fonte: Houaiss (2007).

Importante! Democrtico ou no, um regime se legitima pelas respostas que d sociedade.

Em todos os regimes, democrticos ou no, a fora do governo depender tambm da sua capacidade de identificar necessidades e anseios sociais e transform-los em polticas pblicas que produzam resultados na sociedade, dando respostas efetivas aos problemas que pretende enfrentar. Para isso, o governo depende tambm de um aparato administrativo capaz de transformar as suas diretrizes em atos e da capacidade de alocar

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recursos sociais para realiz-los. Todo esse complexo conjunto de exigncias foi denominado de requisitos, ou elementos, da governabilidade.*Governana um termo de origem recente que surgiu procurando explicar as complexas relaes entre Estado e sociedade nas sociedades contemporneas. Fonte: Elaborado pelo autor.

Mais recentemente, surgiu um novo termo governana* que procura dar conta de outros elementos envolvidos na capacidade de interveno do Estado na sociedade e que pareciam no estar adequadamente recobertos pelo termo governabilidade. Ainda que no suficientemente definido e consolidado, o novo termo pe em destaque as interaes entre o Estado e os vrios agentes no governamentais para se atingir resultados de interesse pblico. O foco deixa de ser a capacidade interventora e indutora do Estado e passa a se concentrar no seu papel de coordenador dos diversos esforos pblicos e privados para produzir benefcios coletivos. Independentemente de quo frgil ou promissor seja esse novo conceito, ele tem a virtude de voltar a ateno para as relaes desejveis entre Estado e sociedade. Repensar as relaes entre Estado e sociedade foi a questo central dos filsofos iluministas, qual a teoria econmica clssica introduziu um novo conceito que veio para ficar: o de mercado. A partir de ento, as relaes entre Estado e sociedade passaram a ser pensadas e analisadas sempre mas no exclusivamente como uma relao entre Estado e mercado. O mercado pode ser definido como um sistema de trocas do qual participam agentes e instituies interessados em vender ou comprar um bem ou prestar ou receber um servio. Todos os mercados seja o imobilirio, de capitais, de trabalho, de gros, de energia etc. esto sempre sujeitos a alguma forma de regulao. Os mercados no existem na natureza, sendo resultado da interao humana que requer sempre regras e princpios para funcionar. Mas por mais variados que sejam os mercados e os princpios e regras que os regem, existem algumas regularidades comuns a todos.

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

De acordo com o filsofo e economista escocs Adam Smith, o mercado regido por determinadas leis que esto diretamente associadas ao carter egosta do ser humano.

Saiba mais

Adam Smith (1723-1790)

Economista escocs, com formao filosfica, lecionou em Glasgow e publicou duas obras importantes:

A Teoria dos Sentimentos Morais e Guiados pelos seus interesses egostas A Riqueza das Naes. Fonte: desejo de maximizar os ganhos individuais Acesso em: 29 jun. 2009. ao realizar uma troca , os indivduos entrariam em concorrncia uns com os outros, e da competio generalizada resultaria o equilbrio econmico e o bem coletivo, com a produo e oferta de bens e servios requeridos pela sociedade em quantidade e preos adequados. O mercado seria ento um mecanismo autorregulvel, que dispensaria a interveno estatal, pois a lei da oferta e da demanda seria suficiente para regular as quantidades e preos de bens e servios em uma sociedade. Assim, ao Estado caberia apenas assegurar a concorrncia para o bom funcionamento do mercado, impedindo que os produtores movidos pela avidez se organizem em cartis, distorcendo os preos e beneficiando apenas a si mesmos em detrimento da coletividade.

A existncia da concorrncia , portanto, condio indispensvel para o funcionamento do mercado.

Mercado autorregulvel e concorrncia so a pedra de toque do liberalismo econmico*. Da adequada relao entre Estado e mercado dependeriam o crescimento econmico e o bem-estar social. No entanto, esse ponto de equilbrio entre liberdade econmica e interveno do Estado nunca foi encontrado, fazendo com que a histria das sociedades capitalistas sobretudo a partir do sculo XX fosse marcada por um movimento pendular: ora mais liberdade de mercado, ora mais interveno do Estado.

*Liberalismo econmico Doutrina que advoga o uso maior possvel das foras do mercado para determinar as decises dos agentes econmicos. Fonte: Lacombe (2004).

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A DINMICA PENDULAR DAS RELAES ENTRE ESTADO E MERCADOEmbora a histria seja um movimento constante de transformao mais lento em determinados momentos, mais acelerado em outros , as mudanas e os avanos produzidos ao longo do tempo fazem-se, aparentemente, em zigue-zague, mas certamente no em linha reta. No que se refere especificamente s relaes entre Estado e mercado nas sociedades capitalistas, observa-se um movimento pendular, em que figuram como as duas principais referncias ordenadoras da vida social: Estado, situado esquerda; e Mercado, direita quando a sociedade o prprio pndulo a oscilar entre os princpios opostos. Veja a Figura 1:

Figura 1: Movimento pendular das sociedades capitalistas Fonte: Elaborada pelo autor

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

A partir de um determinado momento em que o pndulo chega ao seu ponto mximo direita, e os mecanismos de mercado mostram-se insuficientes para estimular o investimento privado, o desenvolvimento econmico e o bem-estar social, a sociedade comea a inclinar-se esquerda, buscando cada vez mais a interveno do Estado como forma de corrigir as falhas de mercado, sanar as suas insuficincias e recriar as bases para a retomada dos investimentos, a expanso da economia e o aumento do bem-estar. No momento em que o pndulo chega ao seu ponto mximo esquerda e a interveno do Estado na regulao da vida social e econmica no se mostra mais capaz de promover o crescimento econmico e o bem-estar dos indivduos passando a ser percebido como um empecilho ao investimento privado, que a condio necessria para a expanso econmica nas sociedades capitalistas, tem incio o movimento oposto da sociedade em direo direita, com a retrao do Estado em favor dos mecanismos de regulao de mercado. A imagem metafrica do pndulo social, oscilando entre direita e esquerda, pode bem ilustrar a alternncia entre os princpios dominantes de organizao das relaes sociais, mas insuficiente para explicar como, em cada momento especfico, as relaes entre o Estado e o mercado, de fato, se estabelecem. Para esse movimento, a figura mais adequada a da espiral, que agrega uma outra dimenso nesse movimento. Alm de oscilar entre os princpios opostos direita e esquerda, as relaes entre Estado e mercado assumem conformaes distintas no espao ao longo tempo, de forma que no se possa, rigorosamente, falar de retorno a um ponto de partida, como seria o caso do pndulo de um relgio. Dito de outra forma, as relaes entre Estado e mercado nunca se repetem no tempo, renovando-se constantemente.

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A alternncia contnua entre os princpios opostos explica-se pela impossibilidade de se encontrar o ponto de equilbrio entre ambos e pelas virtudes e vcios de cada um, alm das transformaes do pensamento sociopoltico de cada sociedade em determinada poca.

A histria tem mostrado que os mecanismos de mercado so bastante favorveis ao aumento da produo, desenvolvimento tecnolgico e da riqueza em uma sociedade. No entanto, a experincia histrica mostra tambm que o notvel aumento da riqueza social ensejado pelo livre curso das leis do mercado acaba concentrado-a nas mos de uns poucos. A lgica do mercado no s permite como estimula os indivduos a arriscarem os seus recursos privados em empreendimentos econmicos diversos na procura de satisfao econmica. Por meio da competio, que a regra bsica do mercado, e da busca do lucro, que a sua mola propulsora, o mercado acaba selecionando os melhores isto , aqueles que so economicamente mais fortes, mais produtivos, que fabricam produtos e prestam servios de melhor qualidade e que oferecem preos mais baixos, eliminando assim os mais fracos e menos produtivos e competitivos. Essa lgica levaria inexoravelmente concentrao crescente da riqueza nas mos de um grupo cada vez menor, se no houvesse qualquer interveno do Estado no funcionamento do mercado. E esta contnua concentrao da riqueza levaria situao de monoplio que, por sua vez, levaria ao fim da concorrncia e, consequentemente, do prprio mercado. Assim podemos afirmar que o mercado , portanto, um mecanismo bastante eficiente para acumular riquezas, mas requer sempre algum grau de interveno do Estado para evitar a sua autodestruio. Como mecanismo que enseja o crescimento concentrado da riqueza, o mercado engendra e agudiza as desigualdades sociais, requerendo tambm a interveno do Estado

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

para criar um mnimo de igualdade entre os indivduos, sem o que a vida em sociedade estaria comprometida.

O Estado figura como o contraponto indispensvel ao mercado nas sociedades capitalistas.

A histria tambm tem mostrado que, se por um lado, o Estado apresenta grande capacidade distributiva, por outro, tem se mostrado bem menos eficiente que o mercado para produzir e ofertar bens e servios, e que a partir de um determinado grau de interveno no mercado, ele passa a inibir a atividade produtiva. Podemos dizer ainda que o mercado assemelha-se galinha dos ovos de ouro, da fbula de La Fontaine (16211695): se viva, produz constantemente riqueza, mas uma vez morta lega apenas um pequeno estoque de valor que ao ser distribudo rapidamente se consome.

Saiba mais

Jean de La Fontaine (1621-95)

Nasceu na Frana. Seu pai queria que ele fosse advogado, mas alguns mecenas (homens ricos e nobres que patrocinavam os artistas) se interessaram por ele. Assim, pde se dedicar carreira literria. Suas fbulas escritas em versos elegantes deram-lhe enorme popularidade. Sirvo-me dos animais para instruir os homens, dizia ele. Os animais simbolizavam os homens, suas manias e seus defeitos. Ele reeditou muitas das fbulas clssicas de Esopo, o pai do gnero. As mais famosas so: A gansa dos ovos de ouro (e no a galinha) e A lebre e a tartaruga. Fonte: . Acesso em: 1 jul. 2009.

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DUAS MATRIZES TERICASPARA A INTERPRETAO DAS RELAES ENTRE ESTADO E MERCADO: A LIBERAL E A MARXISTA

No mundo contemporneo, existem diferentes correntes tericas que procuram explicar as relaes entre Estado e mercado nas sociedades capitalistas e orientar a ao coletiva. Contudo, para efeito de anlise, podemos identificar duas posies principais que aglutinam essas diferentes vises: a liberal e a marxista.

As correntes liberal e marxista se formaram combatendo as ideias e a ordem vigentes sua poca e propondo novas e mais justas formas de organizao da sociedade.

Com base no pensamento de filsofos ingleses e franceses dos sculos XVII e XVIII, o liberalismo iria se estruturar em oposio ao poder absoluto exercido pelas monarquias hereditrias da Europa, que invocavam o direito divino como fonte de sua legitimidade. O marxismo se estruturaria como crtica e alternativa sociedade burguesa e ordem liberal vigentes no sculo XIX, tomando por base o pensamento do filsofo alemo Karl Marx.

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Mas diferentemente do liberalismo, que ao longo do sculo XIX se imps completamente ao pensamento conservador, varrendoo do cenrio poltico e reorganizando as sociedades europeias conforme os seus princpios, o marxismo no conseguiu derrotar o liberalismo e a ordem burguesa durante o sculo XX, estabelecendose como forte concorrente, mas no substituto, do pensamento e da ordem social aos quais se opunha. Nessa disputa, as duas correntes tiveram de oferecer respostas a, no mnimo, duas questes fundamentais que envolvem a ordem poltica. So elas: Qual a natureza do domnio exercido pelo Estado sobre a sociedade e do uso da coero fsica sobre os indivduos? Como so as relaes entre maioria e minorias na sociedade e como essas se relacionam com o Estado?

Caro estudante: essas duas questes devem orientar a sua leitura do texto a seguir.

As respostas primeira pergunta constituram o ncleo duro de cada matriz, permanecendo praticamente inalteradas ao longo do tempo. J as respostas oferecidas para a segunda pergunta iriam variar consideravelmente, conforme as provas e contraprovas da histria. Em mais de um sculo de coexistncia e competio, os pensamentos liberal e marxista tiveram de rever alguns de seus pressupostos para continuarem explicando um mundo em constante e acelerada transformao e assim poderem nele seguir disputando a conduo da ao coletiva. Por essa razo, parece que a melhor forma de se compreender o significado e a contribuio de cada matriz para explicar a dinmica do mundo em que vivemos e o comportamento poltico dos diferentes agentes sociais seja o seu estudo comparado e contextualizado no tempo.

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Para tanto, comearemos analisando o surgimento do pensamento liberal como crtica aos fundamentos da ordem vigente nos sculos XVII e XVIII e proposta alternativa de organizao da sociedade. Depois, estudaremos a formao da matriz marxista a partir da crtica formulada por Marx teoria da economia poltica e sociedade capitalista do sculo XIX, para a qual ele tambm formularia uma nova proposta de organizao social. Por fim, examinaremos como as mudanas polticas, econmicas e tecnolgicas ocorridas entre os sculos XIX e XX impactaram cada matriz, promovendo a reviso de determinados princpios e prognsticos e levando renovao do seu quadro conceitual.

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A FORMAO DA MATRIZ DOPENSAMENTO LIBERAL

O pensamento liberal funda-se numa corrente filosfica que foi predominante na Europa durante os sculos XVII e XVIII: o Jusnaturalismo. Contrariamente a toda tradio filosfica que lhe antecedeu e que viria a lhe suceder que tem o grupo como ponto de partida , o Jusnaturalismo buscou no indivduo a origem do Direito e da ordem poltica legtima. Entre os vrios e diferentes pensadores dessa corrente filosfica, quatro tiveram influncia decisiva na formao do pensamento liberal: Thomas Hobbes, John Locke, Charles Louis de Secondat, baro de Montesquieu (1689-1755), e JeanJacques Rousseau (1712-1778).

Saiba mais

Thomas Hobbes (1588-1679)

Nasceu na Inglaterra. Descobriu os Elementos, de Euclides, e a geometria, que o ajudaram a clarear suas ideias sobre a Filosofia. Com a ideia de que a causa de tudo est na diversidade do movimento, escreveu seu primeiro livro filosfico, Uma Curta Abordagem a Respeito dos Primeiros Princpios. Em 1651, publicou sua obra-prima, o Leviat. Fonte: . Acesso em: 2 jul 2009. John Locke (1632-1704) Nascido na Inglaterra, caracterizou a maior parte de sua obra pela oposio ao autoritarismo. Para ele, o que dava direito propriedade o

Tomados separadamente, o trabalho que se dedica a ela. E, pensamento de cada um desses autores desde que isso no prejudique algum, fica assegurado o direito ao fruto do trabalho. Foram bastante singular e, em muitos pontos, esses um dos princpios bsicos do capitalismo at oposto um ao do outro. Com exceo liberal. Disponvel em: . Acesso em: 1 jul. 2009. no pode ser considerado propriamente liberal. Mas tomados em conjunto, eles formam o alicerce sobre o qual se fundou o liberalismo, cuja

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influncia seria decisiva na dinmica poltica das sociedades ocidentais, do final do sculo XVIII at os dias de hoje. Apesar das muitas diferenas, h elementos fundamentais em comum no pensamento dos quatro autores: a ideia de que a vida em sociedade no o ambiente natural do homem, mas um artifcio fundado em um contrato; o contrato social que funda a sociedade civil foi precedido por um estado de guerra (exceto para Locke) e um estado de natureza, no qual as relaes humanas eram regidas pelo Direito Natural*; que o Direito Natural constitui a nica base legtima do Direito Civil; e que somente por meio da razo seria possvel conhecer os direitos naturais para, com base neles, estabelecer os fundamentos de uma ordem poltica legtima. A partir desses pressupostos e utilizando o mtodo racional, as obras de Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau trataram extensamente do Direito Pblico e dos fundamentos e natureza do poder do Estado, estabelecendo, pela primeira vez na histria, uma clara separao entre Estado e sociedade civil, entre esfera pblica e esfera privada, que at hoje se constitui na referncia bsica do Estado de Direito.

*Direito Natural Conjunto de regras inatas natureza humana, s quais todas as pessoas devem obedecer. Fonte: Lacombe (2004).

De acordo com o pensamento liberal, todos os indivduos so iguais por natureza e igualmente portadores de direitos naturais aos quais eles no podem, em hiptese alguma, abdicar: os direitos liberdade e propriedade.

No estado de natureza, isto , naquele em que no houvesse um poder estatal constitudo regendo a relao entre os homens, os

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indivduos gozariam da mais plena liberdade e usufruiriam de tudo aquilo que pudessem possuir. Naquelas condies, no haveria nem bem, nem mal, nem a noo de justo ou injusto, pois nenhuma conveno havia ainda sido estabelecida entre os homens, determinando e diferenciando o certo do errado, assim como tampouco haveria qualquer lei alm das da prpria natureza a regular as suas relaes.

Se a condio humana no estado de natureza era a de plena liberdade e independncia, o que, ento perguntaria voc , teria levado a humanidade a abandon-la para viver em sociedade e sob o domnio do Estado?

Apesar de conceberem a passagem do estado de natureza para o estado civil de formas distintas, todos os quatro autores deram uma nica resposta a essa pergunta: por segurana e para proteo dos bens e da vida de cada um. Hobbes conceberia dramaticamente o estado de natureza como um estado de guerra de todos contra todos:[...] tudo aquilo que vlido para um tempo de guerra, em que todo homem inimigo de todo homem, o mesmo vlido para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurana seno a que lhes poder ser oferecida por sua prpria fora e sua prpria inveno. Numa tal situao, no h lugar para a indstria, pois o seu fruto incerto; consequentemente, no h cultivo da terra, nem navegao, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; no h construes confortveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande fora; no h conhecimento da face da Terra, nem cmputo do tempo, nem artes, nem letras; no h sociedade; e o que pior de tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem solitria, pobre, srdida, embrutecida e curta (HOBBES, 1979, p.76).

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Saiba mais

Leviat um monstro bblico que serviria de inspirao para o ttulo da obra de Hobbes sobre a natureza e funes do Estado moderno. A diferena entre o monstro da bblia e

o Leviat moderno que este seria criado e composto pela unio e fora de todos os homens que pactuaram em formar o Estado para lhes proteger. Na ilustrao de capa da primeira edio da obra de Hobbes, publicada em 1651, o Leviat moderno representado pela figura de um rei gigantesco que protege a cidade, portando a coroa sobre a cabea e empunhando a espada na direita, cujo corpo e armadura so formados por todos os homens que compem a sociedade e se encontram submetidos ao seu poder. Fonte: Elaborado pelo autor.

Seria, portanto, essa condio miservel da humanidade no estado de natureza que a teria levado a celebrar um pacto, dando origem ao Estado. Ao transferirem o direito natural de utilizar a prpria fora para se defender e satisfazer os seus desejos para um ser artificial e coletivo o Leviat , os homens estariam trocando a liberdade natural pela liberdade civil e a independncia pela segurana, obrigandose mutuamente a se submeter ao poder do Estado. Montesquieu e Rousseau discordariam de Hobbes, pois consideravam o estado de natureza distinto do estado de guerra. Para Montesquieu,[...] logo que os homens esto em sociedade, perdem o sentimento de suas fraquezas; a igualdade que existia [no estado de natureza] desaparece e o estado de guerra comea (1979, p. 27).

J para Rousseau,[...] a guerra no representa, de modo algum, uma relao de homem para homem, mas uma relao de Estado para Estado, na qual os particulares s acidentalmente se tornam inimigos, no o sendo como homens, nem como cidados, mas como soldados (ROUSSEAU, 1987, p. 28).

O estado de guerra seria, portanto, um estgio degenerado e posterior ao estado de natureza, que, por ser nocivo sobrevivncia e felicidade humanas, teria levado os homens a celebrar um pacto social a fim de restituir a paz. Locke, por sua vez, discordaria de todos os trs, pois sequer consideraria a existncia de um estado de guerra na origem do pacto que criaria o estado civil:

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Unidade 1 Perspectiva terica para a anlise das relaes entre Estado, governo e mercado

A maneira nica em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia liberdade natural e se reveste dos laos da sociedade civil consiste em concordar com as outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurana, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando da maior proteo contra quem quer que no faa parte dela. Qualquer nmero de homens pode faz-lo, porque no prejudica a liberdade dos demais; ficam como estavam na liberdade do estado de natureza (LOCKE, 1983, p.71).

Quaisquer que tenham sido as motivaes que levaram a humanidade a deixar o estado de natureza para ingressar no estado civil, a questo fundamental para todos que sob a ordem civil os direitos naturais dos indivduos tm necessariamente de ser preservados. A renncia a qualquer desses direitos ainda que voluntria seria sempre ilegtima, pois equivaleria abdicao da prpria humanidade.

Por se tratar de direitos humanos inalienveis, a preservao da liberdade e da propriedade dos indivduos seria considerada pelos liberais como clusula ptrea de qualquer contrato social. Toda ameaa ou tentativa de usurpao desses direitos seria sempre espria, pois contrria razo da existncia do prprio Estado.

Afinal, os homens teriam abdicado de utilizar a sua prpria fora fsica em favor do Estado justamente para que este garantisse a sua liberdade e propriedade, e no contra elas atentasse. Assim sendo, a ao do Estado que se opuser a esses direitos bsicos ser sempre ilegtima, e a um poder ilegtimo nenhum indivduo se encontra moralmente obrigado a se submeter. Essa gnese do Estado, descrita pelos liberais, no encontra qualquer comprovao histrica. A Arqueologia e a Antropologia

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nunca apresentaram qualquer indcio de que o homem tenha, em algum momento, vivido isolado, e no em grupos. Tampouco h prova da existncia de um estado de guerra generalizado anterior formao do Estado, nem de pacto fundador da unio poltica. No entanto, a ausncia de uma base factual para essa teoria no apresentaria qualquer constrangimento para os filsofos jusnaturalistas, pois o seu mtodo de trabalho inteiramente racional e dedutivo, dispensando comprovaes empricas. Hobbes rejeita a objeo que poderiam lhe formular os adeptos do mtodo histrico da seguinte forma:Poder porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condio de guerra como esta [de todos contra todos], e acredito que jamais tenha sido assim, no mundo inteiro. [...] Seja como for, fcil conceber qual seria o gnero de vida quando no havia poder comum a recear, atravs do gnero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacfico costumam deixarse cair, numa guerra civil (HOBBES, 1979, p. 76).

Rousseau desdenharia da comprovao histrica com as seguintes palavras, com que inicia o primeiro captulo do livro O Contrato Social:O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se cr senhor dos demais, no deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudana? Ignoro-o. Que poder legitim-la? Creio poder resolver esta questo (ROUSSEAU, 1987, p. 22).

Ao rejeitarem a histria como fonte do conhecimento da natureza e dos fundamentos de uma ordem poltica legtima e aterem-se estritamente razo, os pensadores liberais romperiam frontalmente com a tradio como fonte de legitimao do poder, que ento se constitua na base de justificao da dominao dos reis e prncipes da Europa at o sculo XVIII.

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Ao imaginar como seria, viveria e agiria o homem fora do convvio social e cultural, a teoria jusnaturalista buscaria encontrar a fonte original do poder poltico aplicvel a toda a humanidade, independentemente das circunstncias temporais e dos costumes dos diferentes povos. Essa pretenso que animaria inicialmente a elaborao da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado pelos revolucionrios franceses de 1879, e que culminaria com a adoo pela Assembleia Geral das Naes Unidas, em 1948, da Declarao Universal dos Direitos Humanos.

Ao universalismo intrnseco dos valores liberais estaria ainda associado um radical humanismo, que romperia com o princpio do fundamento divino da lei e do poder dos governantes, tambm vigentes at o sculo XVIII. A ideia de que a unio poltica surge de um pacto de submisso, por meio do qual cada indivduo abre mo do uso legtimo da sua fora fsica, transferindo-o ao Estado, repousa sobre a noo, at ento desconhecida, de representao popular como fundamento do exerccio do poder poltico. Essa inovao faria com que o poder exercido por todo e qualquer governante mesmo o das monarquias hereditrias passasse a ser concebido como poder delegado pelos governados, e no mais por uno de Deus, como sustentavam os adeptos do Direito divino. Essa inverso do princpio da representao abriria o caminho para o surgimento da democracia nos Estados liberais na virada do sculo XIX para o XX, entendida essa como o governo do povo, consagrando o princpio da soberania popular. Mas at que a democracia fosse admitida pelos liberais haveria um longo percurso. Inicialmente, liberalismo e democracia eram vistos como princpios inconciliveis. Como vimos, de acordo com o liberalismo todo indivduo portador de direitos irrevogveis, que devem ser respeitados por qualquer governo: seja o governo de um s, de poucos ou de muitos. J a democracia, desde a Antiguidade, repousa, pura e simplesmente, no princpio do governo da maioria, que desconhece qualquer limite alm da vontade desta.

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Para conhecer mais sobre a Declarao

Universal dos Direitos

Humanos, acesse .

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Saiba mais John Stuart Mill (1806-1873)Nasceu em Londres, Inglaterra. Teve a sua educao orientada e dirigida, desde cedo, dentro do utilitarismo e das obras de Jeremy Bentham, para quem o egosmo, a ao utilitria e a busca do prazer so princpios capazes de fundamentar uma moral e orientar os comportamentos humanos na direo do bem. Fonte: . Acesso em: 2 jul. 2009. Aristteles (384 - 322 a.C.) Nasceu na Macednia. Aos 17 anos foi enviado para a Academia de Plato em Atenas, na qual permaneceu por 20 anos, inicialmente como discpulo, depois como professor, at a morte de seu mestre, se tornando um grande filsofo grego. Auxiliado por Alexandre, fundou o Liceu (334 a.C.) no ginsio do templo de Apolo. Aristteles fez de sua escola um centro de estudos, em que os mestres se distribuam por especialidade, inclusive em cincias positivas. considerado o discpulo mais ilustre de Plato. Fonte: < h t t p : / / w w w. p u c s p . b r / p o s / c e s i m a / schenberg/alunos/paulosergio/ biografia.html>. Acesso em: 1 jul. 2009.

Ora, se para o liberalismo o poder do Estado deve ser sempre limitado pelos direitos naturais, ento existiria uma incompatibilidade fundamental entre os seus princpios e a prtica democrtica. Sobre esse ponto, o julgamento do filsofo e economista liberal ingls John Stuart Mill seria peremptrio:A democracia no ser jamais a melhor forma de governo [...] a no ser que possa ser organizada de maneira a no permitir, que nenhuma classe, nem mesmo a mais numerosa, possa reduzir todo o resto insignificncia poltica (MILL, 1980, p. 87).

O temor da tirania da maioria no era exclusivo dos liberais, mas compartilhado por muitos outros pensadores havia muitos sculos. Aristteles considerava a democracia ateniense uma forma degenerada de governo, pois nela a maioria governaria de acordo com o seu prprio interesse, e no no interesse de todos, como deveria fazer o bom governo. Para evitar esse risco, os liberais recomendariam no s a restrio do direito de participao poltica s classes educadas e proprietrias, como tambm a garantia de direito de expresso para as minorias na assembleia de representantes. A primeira recomendao iria cair por terra com o advento da democracia, como examinaremos mais adiante na Unidade 2; a segunda, no entanto, iria se tornar em uma das clusulas ptreas das democracias liberais.

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Mas antes que o pensamento liberal tivesse de rever alguns de seus pressupostos e previses para se adaptar s circunstncias criadas pela democratizao das sociedades liberais entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, uma outra poderosa corrente de pensamento iria surgir na Europa em oposio a ele, fazendo uma contundente e profunda crtica sociedade e economia capitalistas: o marxismo.

Atividades de aprendizagemPara verificarmos seu entendimento at aqui, separamos uma questo para voc.

1) Aponte trs aspectos fundamentais da matriz liberal.

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A MATRIZ MARXISTAO marxismo iria se inserir na longa tradio organicista da filosofia poltica, posta em suspenso apenas nos dois sculos anteriores de predomnio do jusnaturalismo no pensamento europeu. A dinmica das sociedades voltaria a ser compreendida e analisada a partir das relaes estabelecidas entre os seus grupos sociais concretos, e no mais indivduos abstratos. A histria relegada pelos jusnaturalistas a um plano secundrio passa a ser o objeto central da reflexo dos filsofos e economistas alemes do sculo XIX, entre os quais se encontraria Marx. Inspirado pela dialtica hegeliana, Marx iria fazer tanto a crtica do idealismo no pensamento de Hegel (1770-1831) quanto da economia poltica inglesa, dialogando, a um s tempo, com ambas as correntes de pensamento, at ento apartadas uma da outra.

A histria no seria uma mera sucesso temporal de fatos e de diferentes formas de organizao social da produo, dominao e representao do mundo, mas teria um motor a luta de classes que a conduziria a uma determinada finalidade.

De acordo com essa concepo, o movimento da histria no seria aleatrio ou indeterminado, nem tampouco contnuo, mas se desenvolveria por meio de contradies, isto , dialeticamente. Na teoria de Marx, o movimento dialtico da histria no se daria no nvel das ideias, como para Hegel, mas no plano concreto das

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relaes de produo da riqueza social. por isso que o mtodo por meio do qual Marx iria interpretar e explicar o movimento da histria seria chamado por ele de materialismo dialtico. Veja a Figura 2.

Figura 2: Operrios em greve Fonte:

As classes sociais so um conceito-chave do pensamento marxista e seriam identificadas e definidas por sua insero no processo produtivo, resultante da diviso social do trabalho. Em cada perodo da histria, as classes fundamentais de uma sociedade seriam aquelas diretamente ligadas ao modo de produo dominante. O conceito de modo de produo central na periodizao marxista da histria da humanidade iria resultar da combinao de dois fatores: as foras produtivas, isto , o trabalho humano, os meios de produo tais como a terra, as mquinas e equipamentos e as tecnologias empregadas na produo; e as relaes de produo, que se estabelecem entre as diferentes classes sociais e que envolvem: a

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propriedade sobre os fatores de produo e sobre o produto do trabalho; e o mando e controle sobre o processo de produo. Embora o interesse principal de Marx fosse dissecar e compreender a lgica e funcionamento do modo de produo capitalista, que emergiu nas sociedades europeias, sua pretenso de elaborar uma teoria geral da histria da humanidade o levou tambm a examinar os modos de produo anteriores ou estranhos civilizao ocidental. Antes que surgissem as primeiras civilizaes, o modo de produo predominante teria sido o do Comunismo primitivo. Sob este, a humanidade viveria organizada em tribos, no haveria Estado, diviso social do trabalho, classes sociais nem propriedade. A produo e o consumo seriam coletivos, no havendo excedente de riqueza. No comunismo primitivo, os homens viveriam na mais absoluta igualdade, mas tambm na escassez e na misria. A produo de um excedente econmico s seria possvel a partir da inveno da agricultura e da diviso social do trabalho, que traria consigo a diviso do grupo social em diferentes classes, as quais, por sua vez, iriam se apropriar de forma distinta da riqueza produzida, ensejando assim o surgimento de uma classe dominante sobre uma ou mais classes dominadas. Seria a partir desse momento que surgiria o Estado com a funo de garantir a dominao de classe.

Na teoria marxista, a garantia da preponderncia da classe dominante sobre a classe dominada seria a principal razo do surgimento e manuteno do Estado.

Ao sair do comunismo primitivo, caracterstico da PrHistria, comeariam as lutas de classe. Seria precisamente por isso que Marx definiria a histria da humanidade como a histria das lutas de classe. A histria teria conhecido quatro modos de produo dominantes: o asitico, o antigo, o feudal e o capitalista.

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Sob a denominao de modo de produo asitico, Marx englobaria todos os modos de produo estranhos civilizao ocidental, sendo, por isso, o conceitualmente mais frgil e controverso. Esse modo de produo teria predominado entre as civilizaes surgidas nos vales do Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates, na Mesopotmia, e do Rio Amarelo, na China (por isso chamado de asitico). Essas civilizaes desconheciam as relaes de escravido e servido, caractersticas do Ocidente pr-capitalista, e fundavam-se na explorao de tribos e comunidades rurais por uma classe dominante que normalmente exercia funes religiosas e comandava a construo das grandes obras, como as pirmides do Egito, os grandes templos da Mesopotmia, Prsia e ndia e da Muralha da China. No Ocidente mais precisamente em torno do Mar Egeu e na bacia do Mediterrneo teria se desenvolvido o modo de produo antigo, predominante durante a Antiguidade Clssica. Esse seria fundado na escravido e caracterizado por uma diviso de classes em que a classe dominante seria proprietria de todos os fatores de produo, inclusive dos homens, mulheres e crianas seus escravos destitudos de toda propriedade e de qualquer direito. Nas sociedades organizadas sob esse modo de produo, as classes sociais fundamentais seriam a dos proprietrios dos meios de produo a dos patrcios, na Roma republicana e imperial e a dos escravos. A contradio fundamental dessas sociedades residiu na relao entre senhores e escravos, sendo as frequentes revoltas dos cativos como a comandada por Esprtaco (109 a.C. - 71 a.C.) e celebrizada na literatura e no cinema um exemplo da luta de classes na Antiguidade. Sucedendo o modo de produo antigo viria o modo de produo feudal, predominante durante a Idade Mdia na Europa, em que as classes fundamentais seriam, de um lado, a da nobreza senhora de terra e, de outro, a dos servos da gleba. A dominao dos primeiros sobre os segundos dar-se-ia por meio de um complexo sistema de obrigaes e direitos mtuos e desiguais, fundados no uso da terra que era um bem comum, da qual os servos eram

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uma emanao e sobre a qual os senhores exerciam o seu poder e na apropriao da produo agrcola. Por fim, viria o modo de produo capitalista, predominante nas sociedades industriais, em que as classes fundamentais seriam a burguesia proprietria de todos os meios de produo e o proletariado dono apenas da sua fora de trabalho. Diferentemente dos modos de produo anteriores, em que a classe dominante dispunha de meios legais para coagir a classe dominada a trabalhar em seu benefcio, sob o modo de produo capitalista os trabalhadores seriam formalmente livres e venderiam voluntariamente sua fora de trabalho para os industriais burgueses em troca de um salrio livremente contratado entre as partes no mercado. Marx iria mostrar em sua obra que a igualdade formal entre burgueses e proletrios perante o Estado e no mercado estaria a mascarar, de fato, a dominao e explorao dos primeiros sobre os segundos. Destitudos de todas as posses, aos proletrios s restaria vender a sua fora de trabalho burguesia para sobreviver, no havendo, portanto, verdadeiramente liberdade e escolha para aqueles que nada possuam. Portanto, sob a ordem liberal dominante na sociedade capitalista aparentemente livre e igualitria e pretensamente fundada nas leis da natureza existiria de fato uma ordem burguesa, ou seja, que atenderia, antes de tudo, aos interesses econmicos da burguesia, assegurando o seu lugar de classe dominante na sociedade.

A essa aparente naturalidade das relaes sociais estabelecidas no mercado Marx chamaria de fetichismo da mercadoria. Por que fetichismo, voc sabe?

Ao transformar todos os fatores de produo em mercadoria a terra, o capital (dinheiro, fbricas, mquinas e equipamentos) e a fora de trabalho a serem livremente trocadas no mercado, o capitalismo transformaria as relaes sociais subjacentes a essas

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trocas isto , as relaes de produo, que so relaes essencialmente humanas em relaes entre coisas (mercadorias), em fetiche*. A essa viso de mundo, dominante nas sociedades liberais do sculo XIX e dominada pelo fetichismo da mercadoria, Marx chamaria de ideologia. Segundo Marx, a ideologia dominante em uma determinada sociedade seria tambm a ideologia da sua classe dominante. Portanto, nada mais natural que nas sociedades capitalistas a ideologia dominante fosse a burguesa, isto , aquela que correspondia viso que os burgueses tinham da sociedade como um todo a partir do ponto de vista que tinham devido sua insero econmica na sociedade e seu interesse de classe. Para Marx, haveria ento uma relao direta entre a representao que os homens tm da realidade e a sua insero econmica nessa realidade. A primeira seria chamada de superestrutura e a segunda de infraestrutura ou, simplesmente, estrutura.

*Fetichismo no mercado, as mercadorias pareceriam ter uma dinmica e uma lgica prprias, independente da vontade e da ao das pessoas, cujo valor de troca seria definido pela lei impessoal da oferta e da demanda. Fonte: Elaborado pela autor.

De acordo com a perspectiva de Marx, a estrutura seria determinante sobre a superestrutura, isto , a insero concreta dos homens no processo econmico que determinaria a sua forma de ver e de conceber o mundo.

Essa determinao da superestrutura pela estrutura derivaria logicamente do materialismo dialtico, mtodo de investigao e interpretao da realidade criado e utilizado por Marx em seu trabalho. Ao examinar as relaes materiais estabelecidas entre os homens na sociedade capitalista, isto , as relaes estabelecidas entre eles no processo de produo industrial, Marx iria formular a sua teoria do valor e identificar uma srie de leis que regeriam o capitalismo. A teoria do valor de Marx complexa, extensa e demonstrada por meio de frmulas, assim como tambm o so as leis do

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capitalismo por ele identificadas. O seu adequado estudo e compreenso extrapolam em muito os objetivos desta disciplina. No entanto, compreender em linhas gerais a concepo de Marx sobre o funcionamento do capitalismo fundamental para entender como e por que ele chegaria concluso de que o sistema capitalista baseado na explorao do proletariado pela burguesia e de que a revoluo proletria e as passagens, primeiramente do capitalismo para o socialismo e finalmente deste para o comunismo, no apenas seriam desejveis como necessrias para o progresso da humanidade. Em A riqueza das naes, publicado em 1776, Adam Smith j havia identificado o trabalho humano como fonte geradora da riqueza de uma sociedade, que independeria dos recursos naturais disponveis no seu territrio. Marx, em sua investigao, iria dar um passo alm: identificaria na fora de trabalho a origem de toda criao de valor. Para Marx, o capital no seria outra coisa seno trabalho morto, isto , a parte do valor produzida pela fora de trabalho, ou seja, pelos trabalhadores, que no lhes foi paga sob a forma de salrios, mas acumulada pelo capitalista e reinvestida na produo.*Mais-valia conceito fundamental da teoria marxista. Criado por Karl Marx para caracterizar a explorao do proletariado pelos capitalistas. Na sua concepo original, era definido como a diferena entre o valor dos produtos que os trabalhadores produzem e o valor pago fora de trabalho vendida aos capitalistas. Fonte: Lacombe (2004).

Essa parte do valor criado pelo trabalho humano e no apropriada pelos trabalhadores Marx chamaria de mais-valia*. A lgica dos capitalistas seria sempre extrair mais mais-valia dos seus trabalhadores, acumulando capital para reinvestir na produo e aumentando assim constantemente a sua riqueza. Essa lgica de acumulao incessante de capital independeria da vontade dos capitalistas individualmente, mas seria inerente sua condio de classe e sua sobrevivncia no mercado. A concorrncia entre capitalistas levaria estes a procurar aumentar constantemente a produtividade de suas empresas, investindo cada vez mais em mquinas, equipamentos e tecnologia e, proporcionalmente, cada vez menos em trabalho humano. Essa lgica implacvel do capital teria diversas consequncias, entre as quais cabe destacar duas:

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a tendncia concentrao do capital, por meio da qual os capitalistas cujas empresas fossem mais produtivas acabariam eliminando do mercado os capitalistas e empresas menos produtivas o que no longo prazo levaria a uma situao de oligoplio e, finalmente, de monoplio, exter minando a concorrncia; e a reduo proporcional do nmero de trabalhadores e o aumento crescente de desempregados, chamados por Marx de exrcito industrial de reserva. A combinao dessas duas tendncias, levadas s ltimas consequncias, resultaria no fim do prprio capitalismo, j que o meio para a sua sobrevivncia o mercado que desapareceria sob uma situao de monoplio e a condio para a constante acumulao e valorizao do capital seria a mais-valia extrada da fora de trabalho, cujo contingente seria cada vez mais reduzido. Frente a essas contradies inerentes ao capitalismo e insuperveis sob esse modo de produo, a humanidade iria se ver conforme a projeo de Marx frente a duas alternativas: socialismo ou barbrie. A barbrie resultaria naturalmente da crescente acumulao da riqueza nas mos de uns poucos e extenso crescente da misria, pois o desenvolvimento do capitalismo tenderia a dissolver as demais classes sociais existentes na sociedade em apenas duas: a dos proprietrios capitalistas e a dos proletrios. O socialismo, no entanto, no resultaria assim naturalmente, mas da ao deliberada do proletariado organizado em partido como fora poltica para tomar o poder e implantar uma ordem social conforme os seus interesses de classe, que seriam tambm o interesse da maioria. A mudana da ordem social por meio de uma revoluo de classe no seria uma novidade na histria, j que teria ocorrido anteriormente quando a burguesia emergente derrubou a monarquia francesa, pondo fim ao Antigo Regime e instituindo a ordem liberal

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e burguesa, primeiro na Frana e depois em toda a Europa. A revoluo burguesa, no entanto, no se fez sem um novo projeto de mundo e de organizao social, que foi construdo pelos pensadores liberais como alternativa velha ordem e s velhas ideias dominantes. Esse mesmo percurso deveria ser ento seguido pelo proletariado industrial. Tal como a burguesia construiu uma viso de mundo, conforme os seus interesses de classe, a qual foi posteriormente assimilada pelas demais classes da sociedade, tornando-se ideologia dominante, o proletariado deveria fazer o mesmo. Mas para isso, ele deveria, antes, desenvolver a conscincia dos seus prprios interesses de classe para que pudesse transform-los em interesses coletivos. A tomada de conscincia seria um processo eminentemente poltico, no derivado automaticamente da insero econmica de uma classe social no processo produtivo. Para explicar essa diferena, Marx subdividiria o conceito de classe social em classe em si e classe para si. Uma classe em si seria constituda por aquele grupo de homens e de mulheres que se encontravam sob condies econmicas idnticas, mas que no havia desenvolvido a conscincia dos seus prprios interesses. Esta seria a condio do operariado industrial e tambm dos camponeses, servos da gleba, durante a Idade Mdia, e dos escravos, na Antiguidade. A diferena seria a de que, nem servos nem escravos dispunham no seu tempo das condies de desenvolver a conscincia dos seus prprios interesses, que lhes permitissem passar da condio de classe em si para a de classe para si. Antes do advento da sociedade industrial, os indivduos pertencentes s classes exploradas encontravam-se espalhados pelo territrio sem contato uns com os outros, o que no lhes teria permitido desenvolver uma conscincia de classe e formular um projeto de organizao de toda a sociedade, conforme os seus prprios interesses. Segundo Marx, essas condies j existiriam para os proletrios industriais no sculo XIX, na medida em que o desenvolvimento da grande indstria os havia concentrado num

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mesmo local, sob condies idnticas de vida e de trabalho. O papel do partido comunista seria precisamente o de organizar politicamente a classe operria, desenvolver a sua conscincia de classe e conduzi-la na tomada do poder.

Para Marx, a tomada do poder do Estado pelo proletariado poria fim propriedade privada dos meios de produo e ordem e dominao burguesas, instituindo a ditadura do proletariado. Ao utilizar o termo ditadura, Marx no estaria propugnando uma forma de governo mais dura ou autoritria que a dos governos liberais e monarquias parlamentares do seu tempo, mas simplesmente indicando que aquele seria um governo de classe, e no um governo de todos.

v

Manifesto do Partido

Comunista de Marx. www.scielo.br/

Disponvel em: . Acesso em: 2 jul. 2009. Para conhecer mais sobre a teoria da

revoluo de Marx, leia O Manifesto do Partido Comunista.

Para Marx todo governo em uma sociedade de classes seria sempre uma ditadura da classe dominante. Portanto, da mesma forma que sob a ordem capitalista se vivia sob a ditadura da burguesia qualquer que fosse a forma assumida pelo Estado burgus , sob o socialismo iria se viver sob a ditadura do proletariado. A diferena que, sob o capitalismo, a sociedade viveria sob a ditadura da minoria a da burguesia , enquanto que sob o socialismo iria se viver sob a ditadura da maioria o proletariado.

O Socialismo, no entanto, seria apenas uma fase transitria do capitalismo ao comunismo, durante a qual o proletariado utilizaria toda a fora do Estado para acabar com a sociedade de classes. A misso histrica e libertadora do proletariado seria precisamente essa: acabar com as classes sociais, restabelecendo a igualdade inicial entre os homens. No entanto, diferena do comunismo primitivo, em que todos seriam iguais na pobreza, sob a sociedade comunista ps-capitalista os homens iriam ser iguais na abundncia, podendo finalmente desenvolver plenamente o seu potencial humano. Quando as classes tivessem sido finalmente abolidas, o prprio Estado deixaria de existir, pois teria perdido

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completamente a sua funo, que seria a de garantir a dominao de uma classe sobre as demais. Segundo Marx, a sua teoria da revoluo e da tomada do poder pelo proletariado nada teria de utpica, mas estaria cientificamente embasada. Por isso, Marx iria chamar o socialismo por ele propugnado de socialismo cientfico, diferenciando-o das demais formas de socialismo propostas por outros filsofos do seu tempo, que, por no estarem fundamentadas na avaliao da histria conduzida pelo mtodo do materialismo dialtico, seriam utpicas. Por ser cientfico, o socialismo de Marx no poderia ser institudo em qualquer sociedade nem sob quaisquer circunstncias, mas dependeria de determinadas condies objetivas. Essas condies seriam precisamente as do capitalismo industrial plenamente desenvolvido. Para Marx, o capitalismo teria desempenhado um papel progressista na histria da humanidade ao libertar o homem das condies de dominao existentes nas sociedades tradicionais e soltar as amarras que at ento impediam o pleno desenvolvimento das foras produtivas nas sociedades humanas. Somente sob o capitalismo que teriam sido criadas as condies para o aumento crescente da riqueza social e consequente superao do quadro de escassez a que a humanidade, at ento, vivia submetida. Portanto, a perspectiva de Marx no pode jamais ser tomada por anticapitalista, como a de alguns socialistas utpicos, mas sim por ps-capitalista. A partir do momento em que a burguesia tivesse cumprido o seu papel histrico de promover o desenvolvimento do capitalismo, subvertendo completamente a ordem das sociedades tradicionais, e que o capitalismo no estivesse mais trazendo qualquer progresso humanidade, esse deixaria de ser revolucionrio para tornar-se reacionrio. Essa parecia ser a situao das sociedades capitalistas industrialmente desenvolvidas da Europa, como a Inglaterra e a Blgica.

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Para Marx, o pleno desenvolvimento do capitalismo era uma condio necessria para a implantao do socialismo.

Caberia ento ao proletariado tomar o poder e conduzir o gnero humano sua libertao, cumprindo a sua misso histrica. Foi com essa convico que Marx participou da fundao, em 1864, da Associao Internacional dos Trabalhadores, em Londres, que posteriormente seria mais conhecida por I Internacional. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos polticos e econmicos na Europa e nas sociedades capitalistas, em geral, iria tomar uma direo diferente da imaginada por Marx.

Atividade de aprendizagemAvanamos mais um tpico em nosso estudo. Se voc realmente entendeu o contedo, no ter dificuldades de responder questo a seguir. Se, eventualmente, ao responder, sentir dificuldades, volte, releia o material e procure discutir com seu tutor.

2) Cite trs caractersticas distintivas de cada corrente de pensamento at aqui analisada.

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AS MUDANAS NAS SOCIEDADES CAPITALISTAS NO FINAL DO SCULO XIXE SEUS IMPACTOS SOBRE AS MATRIZES MARXISTA E LIBERAL

No fim do sculo XIX, a sociedade e a economia capitalistas passariam por profundas transformaes que iriam obrigar tanto os pensadores marxistas quanto os liberais a rever alguns de seus prognsticos e paradigmas. No plano poltico, a mudana mais impor tante foi a democratizao das sociedades liberais, com a adoo do sufrgio universal masculino. Contrariamente expectativa de todos, que acreditavam que o governo da maioria e a economia de mercado fossem incompatveis, a experincia do sculo XX iria mostrar que democracia e capitalismo poderiam muito bem conviver numa mesma sociedade. Essa contraprova da histria iria desafiar ambas as correntes a explicar os mecanismos que tornariam possvel a coexistncia de um sistema econmico com um sistema poltico, baseados em princpios aparentemente contraditrios. No plano econmico, a virada do sculo traria importantes transformaes tecnolgicas e organizacionais, cujos impactos sobre o conjunto das sociedades seriam enormes, causando diversas mudanas que foram sentidas ao longo das dcadas e levando reestruturao e reorganizao da produo. A Segunda Revoluo Industrial produziria profundas mudanas na composio da fora de trabalho e seria acompanhada pelo desenvolvimento das sociedades

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por aes que modificariam o padro de organizao e gesto empresarial, assim como a inter-relao das empresas no mercado. Essas transformaes no foram presenciadas por Marx, que morreu em 1883, e o surgimento das empresas de capital aberto por ele assistido seria erroneamente interpretado como indicador de uma fase de transio do capitalismo para o socialismo, e no como de mudana do padro de funcionamento do prprio capitalismo. Aos olhos de Marx escreveria Raymond Aron (2005, p. 630), um dos maiores conhecedores da sua obra as grandes sociedades por aes [que comeavam a surgir j no seu tempo] representavam uma primeira forma de negao do capitalismo e uma forma transitria entre o capitalismo e o socialismo. Por isso, toda a teoria de Marx encontra-se baseada no estudo da dinmica das sociedades capitalistas do sculo XIX, e seus prognsticos calcados na projeo das tendncias nelas ento observadas. Em meados do sculo XIX, os Estados liberais europeus eram dirigidos por governos constitudos com base na representao popular e escolhidos por meio do voto censitrio. Tanto nas monarquias constitucionais, como as dos Pases Baixos e do Reino Unido, quanto nas repblicas, como as da Sua e da Frana aps 1870, o direito de voto era sempre restrito s classes proprietrias e educadas. Por essa razo, Marx afirmaria sem hesitar que, qualquer que fosse a forma assumida pelo Estado, todo governo seria sempre uma ditadura da classe dominante. Ainda que a burguesia governasse a si prpria democraticamente, pois todos os seus membros tinham direito a voto, seu governo sobre a massa trabalhadora excluda do processo eleitoral seria sempre uma ditadura.

Figura 3: Locomotiva utilizada no sculo XVIII Fonte:

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Quanto ao padro tecnolgico vigente no tempo de Marx, conforme Figura 3, esse era ainda o mesmo da primeira Revoluo Industrial, iniciada nas ltimas dcadas do sculo XVIII e baseado na mquina a vapor como motor propulsor dos engenhos fabris, navios e locomotivas, no carvo como combustvel e nas ferrovias como principal meio de transporte terrestre. Essa tecnologia empregava intensivamente mo de obra, o que implicava no aumento constante do contingente de trabalhadores industriais embora Marx j houvesse observado a tendncia de substituio do trabalho humano pelo das mquinas. Em relao dinmica do mercado e gesto dos negcios, as empresas interagiam em um mercado livre, desregulado e competitivo, eram majoritariamente de propriedade individual ou familiar, e dirigidas diretamente pelos seus prprios donos. Seria a partir da observao dessa realidade e das tendncias nela identificadas que Marx iria formular os seus prognsticos sobre o futuro do capitalismo. O uso intensivo de mo de obra sobre o qual se baseava a acumulao e expanso capitalista levou-o a imaginar que as demais classes sociais existentes como a pequena burguesia e o campesinato tenderiam a desaparecer com a absoro dos seus membros pelas classes fundamentais: a burguesia cada vez menor e mais rica; e o proletariado cada vez mais numeroso e tendendo a se tornar majoritrio na sociedade. Nesse cenrio, a polarizao e a luta de classes lhe pareceriam inevitveis. Dado o controle familiar dos meios de produo e a crescente desigualdade de riqueza entre as classes, os membros da burguesia seriam facilmente identificveis, no s pelo seu nome e sobrenome, mas tambm pelo seu estilo de vida, cada vez mais opulento e contrastante com o dos trabalhadores. Essa situao iria mudar substantivamente aps a morte de Marx. Com o surgimento da democracia, iria se abrir aos operrios industriais a oportunidade de participar do processo poltico, elegendo seus representantes, influenciando a ao do Estado de dentro do parlamento e, eventualmente, chegando ao poder pela via eleitoral. Assim, a escolha crucial [que se ps para as organizaes dos trabalhadores] foi entre participar ou no [do

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