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Este livro é um sonho que alimenta sonhos. Ele une ficção à realidade dos povos árabes e pretende ser instrumento de ativismo, além de um produto literário. É a junção de um trabalho jornalístico com romance; da realização do sonho de ser escritor e da ajuda Humanitária (visto que parte dos valores com a venda deste livro será revertida ao Povo Saharawi ). E é o sonho de ver a resistência saharawi pela desocupação de suas terras, pela reconquista de seus direitos se transformarem na implantação do maior dos seus sonhos, que é o de viverem em Paz na sua Pátria Livre, a República Árabe Saharawi Democrática (RASD). Agradecimentos a Antonio Velásquez, um cidadão do mundo, irmão saharawi. à representação das Relações Exteriores da República Árabe Saharawi Democrática para a América Latina. à Unión Nacional de Mujeres Saharauis Agradeço a Deus, meus pais, irmãs, meu filho e aos meus amigos que sempre acreditaram em mim e no meu trabalho. 11.177/2013 - Fundação Biblioteca Nacional

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Este livro é um sonho que alimenta sonhos.

Ele une ficção à realidade dos povos árabes e pretende ser

instrumento de ativismo, além de um produto literário. É a

junção de um trabalho jornalístico com romance; da realização

do sonho de ser escritor e da ajuda Humanitária (visto que parte

dos valores com a venda deste livro será revertida ao Povo

Saharawi ).

E é o sonho de ver a resistência saharawi pela desocupação de

suas terras, pela reconquista de seus direitos se transformarem

na implantação do maior dos seus sonhos, que é o de viverem

em Paz na sua Pátria Livre, a República Árabe Saharawi

Democrática (RASD).

Agradecimentos

a Antonio Velásquez, um cidadão do mundo, irmão saharawi.

à representação das Relações Exteriores da República Árabe

Saharawi Democrática para a América Latina.

à Unión Nacional de Mujeres Saharauis

Agradeço a Deus, meus pais, irmãs, meu filho e aos meus

amigos que sempre acreditaram em mim e no meu trabalho.

11.177/2013 - Fundação Biblioteca Nacional

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Semente da Primavera – A Revolta Saharawi que inspirou o Mundo Árabe

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Índice

Apresentação

Introdução

Rumo ao Marrocos

O beduíno e o Sahara

Meu coração saharawi

Madunta fy almagreb fala tastagreb

Revolução das Acácias: O levante nas terras saharawis

O jornalista saharawi volta para ajudar

Acampamento em terras invadidas

O despertar da Primavera

A thawra de todos os saharawis

Marrocos e as riquezas saharawis

A luta e a Berma

Plano de fuga do Sahara Ocidental

Revolução Saharawi nas bancas

Gdeim Izik repercute pelo mundo

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Semente da Primavera – A Revolta Saharawi que inspirou o Mundo Árabe

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O Rei sente as pressões internacionais

Bouazizi desperta o Jasmim

Um ato de desespero

O sonho que virou Primavera

Sapatos femininos pelo caminho

Semeando o Jasmim

Nasce a “Revolução do Jasmim”

Tiros contra manifestantes desarmados

“Eco das Ruas” começa a ser silenciado

O fim do jornal. O sonho acabou!

Transferência de Bouazizi vira notícia na Europa

Bouazizi é levado para Ben Arous

O presidente ‘bom moço’ não convence a Tunísia

O Jasmim ultrapassa fronteiras

As flores que florescem a Primavera

Primavera sem fronteiras

Por que Primavera Árabe?

O ditador ainda se debate

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Yezzi Fock – Já tivemos o bastante

A Resistência no ‘berço’ da Primavera

Yezzi Fock! e a hogra

O pão que alimenta o Jasmim

O Novo Jasmim ainda luta para existir!

Nasce no Novo Jasmim

O povo e os interesses externos

Do Jasmim ao Lótus, a segunda flor da Primavera

Revolução do Lótus

Apresentação

“Semente da Primavera! – A Revolta Saharawi que

inspirou o Mundo Árabe” é o primeiro capítulo de uma trilogia

nascida na cela de uma prisão, em território incerto, que eu

acreditava ficar entre o Egito e o Iêmen, num período

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conturbado, em plena Primavera Árabe. No cárcere, eu, Oiram

Rasec, um jornalista saharawi, divido a cela com um idoso, que

se diz surdo e mudo, vítima dos horrores da guerra, e que

cumpre pena, totalmente incomunicável, há mais de 30 anos.

Preso, por duas semanas, atendo aos pedidos do companheiro,

que quer saber o que aconteceu lá fora, nestes últimos anos. Em

folhas de papel, conto a ele minha história. Desde o rebelde

adolescente que deixa a “Revolução das Acácias” em seu país,

no ano 2000, até os registros jornalísticos do nascimento da

“Revolução do Jasmim”, na Tunísia, em 2010.

Ao ser salvo, num resgate promovido por uma Missão

Saharawi, descubro que meus relatos nada mais eram que

confissões de um preso condenado à morte. Tudo que escrevi

seria usado contra mim, num julgamento marroquino, com o

apoio daquele senhor que era, na verdade, um agente a serviço

do Rei. Em liberdade e enfurecido por ter virado um alvo da

Monarquia invasora, decidi transformar meus escritos em mais

uma voz para meu povo, que resiste sozinho, sem apoio da

opinião pública internacional, na luta para recuperar nossas

terras invadidas por Marrocos.

“Semente da Primavera – A Revolta Saharawi que

inspirou o Mundo Árabe” tem origem neste conflito histórico

de quatro décadas, ainda pouco conhecido pelas nações

ocidentais. Chamo a luta de meu povo de Revolução das

Acácias (por causa das árvores destas flores que resistem no

deserto de meu território saharawi). A primeira oportunidade de

ajudar meu povo acontece em Novembro de 2010. Atuando

como jornalista, acompanho de perto os confrontos envolvendo

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saharawis e o Exército do Marrocos, no acampamento de

protesto de Gdeim Izik, na cidade de El-Aaiún, capital do

Sahara Ocidental. Considero este embate, um marco nos

últimos 40 anos de luta de meu povo, na “Revolução das

Acácias”. Alguns estudiosos concordam que os combates em

Gdeim Izik deram início à Primavera Árabe, enquanto outros

defendem que ela tenha começado, oficialmente, apenas um

mês depois, com a “Revolução do Jasmim”, na Tunísia, a partir

da autoimolação de Muhammad Bouazizi, na pequena cidade

interiorana de Sidi Bouzid.

Sem nenhuma preocupação em impor datas para um

início, acredito que os conflitos atuais, na verdade, apenas

devam ser incluídos numa lista de episódios dos últimos

séculos, onde o povo árabe luta por seus direitos e por uma Paz

duradoura. A própria “Revolução das Acácias” é uma prova

disso, visto que se estender por mais de 40 anos.

Para meu espanto, ao concluir esta obra, me deparei

com um livro de mil páginas que se tornou uma “Trilogia das

Flores”: as acácias do deserto saharawi, o jasmim da Tunísia e o

caminho aberto para a Flor do Lótus, símbolo do Egito.

Depois da “Revolução do Lótus”, a “Trilogia das

Flores” se transforma em Primavera Árabe, invade o Iêmen,

Líbia e Síria, e espalha todo um clima libertário que dá origem

aos demais levantes populares pelo Mundo Árabe.

Neste início de “Trilogia”, caminho entre os confrontos

da “Semente” Gdeim Izik, de 2010; e sigo para a Tunísia, onde

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um vendedor de frutas e legumes faz nascer a “Revolução do

Jasmim” que derruba, em apenas dois meses, o presidente

ditador Ben Ali.

“Semente da Primavera – A Revolta Saharawi que

inspirou o Mundo Árabe” se revela uma prova de que a

resistência árabe pelos seus direitos está viva.

Em “Primavera sem fronteiras – Da Trilogia das Flores

aos Mantos Brilhantes”, o segundo livro, eu acompanho o

florescer da “Revolução do Lótus”, que destrona o “faraó”

Hosni Mubarak, e descrevo com mais detalhes o sequestro

ocorrido quando me preparava para chegar ao Iêmen.

Duas semanas depois do sequestro e resgate pela

missão saharawi, consigo chegar ao Iêmen; o país onde o uso de

mantos brilhantes é um costume tão tradicional nas festas

populares, que consta como símbolo da alegria iemenita até na

letra do Hino Nacional do país. Queria estar entre o povo do

Iêmen para divulgar ao Mundo os momentos de tensão ainda

maiores que os registrados no Egito. Os iemenitas estavam

decididos a também derrubar seu presidente ditador Abdullah

Saleh.

Entre os cidadãos iemenitas dou prosseguimento à

cobertura jornalística dos confrontos dessa luta por direitos e

liberdades e continuo a escrever os capítulos dessa “Trilogia”.

Em “Primavera sem fronteiras – Da Trilogia das flores

aos mantos brilhantes” relato os confrontos no Egito, os dias na

prisão, os combates no Iêmen e a renúncia de Abdullah Saleh.

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Encantado pelo clima de luta por seus direitos, vindos

de um povo calado há anos, diante dos desmandos dos ditadores

da região, não consigo mais largar os rastros dessa Primavera

Árabe. Deixo o povo do Iêmen, feliz em busca de suas

conquistas no “país dos mantos brilhantes”, e vou para Trípoli

cobrir a Primavera que chegava à Líbia.

Cada país, uma realidade. Cada nação com sua

Primavera. Entre o povo líbio, acompanho a decorrocada de

Muammar Khadafi junto de seu Livro Verde. Um manual,

escrito pelo ditador, que determinava sua versão de Democracia

e filosofia política como uma Constituição imposta ao país.

Registro os acontecimentos em Trípoli, Benghazi e a caçada

implacável que só chega ao fim com a morte do Coronel

Khadafi.

Mesmo diante de instabilidades políticas na Líbia,

quando grupos paramilitares de mobilizam na disputam pelo

poder, a queda de Khadafi representa, pra mim, uma

possibilidade de recomeço aos líbios, com o fim dos 42 anos da

Era Khadafi. Por isso, em seguida à sua queda, desembarco

como clandestino pelas fronteiras da Síria, no momento em que

o país se afoga na disputa violenta dos sonhos de liberdade e

direitos do povo a resistência do ditador Bashar al-Assad para

não perder o poder.

Ao chegar aos destroços em que foi transformada a

cidade de Homs, me deparo com a Bandeira Nacional da Síria e

suas duas estrelas verdes, que se referem à tentativa antiga da

criação da República Árabe Unida, que não vingou. As estrelas

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representam Síria e Egito. Neste momento, uma referência

pouco interessante ao ditador Bashar al-Assad, afinal, não quer

ter o mesmo fim de seu vizinho e amigo Hosni Mubarak.

Por se agarrar ao poder, acusando seus opositores de

terroristas, Bashar al-Assad já caminha, a passos largos, para

incorporar a Síria à lista das maiores atrocidades cometidas

contra um povo na História da Humanidade. O bombardeio a

um grupo de jornalistas, na cidade de Homs, destruída pelo

Exército do ditador, transforma-se no fim de muitos relatos e de

seus relatores.

Esta terceira obra, chamei de “Flores de Sangue – A

Primavera num livro de estrelas verdes”. Neste fim de trilogia,

detalho as ações dos opositores de Khadafi, a interferência do

Ocidente na Líbia, em contraste à falta de uma ação diplomática

na Síria. Assim como a ação internacional foi catastrófica para

a violência na Líbia, a ausência dela acabou por transformar a

Síria num inferno, mesmo os protestos tendo origem nas

manifestações pacíficas do povo sírio.

Na Primavera sangrenta da Síria, os militares,

fortemente armados, investiram contra mulheres, idosos e

crianças, da mesma maneira que avançaram sobre profissionais

armados de microfones, câmeras fotográficas, câmeras de vídeo

e canetas. Tudo para cumprir a ordem de não deixar que os

massacres diários, patrocinados pelo ditador, se transformassem

em notícia pelo mundo. Sob a alegação de que não tinham

autorização para trabalhar no país, os “invasores” jornalistas

passaram a ser mortos.

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Após o bombardeio sírio aos profissionais de Imprensa,

em Homs, constatei a impossibilidade de continuar meu

trabalho. Novamente salvo por uma operação de resgate, junto

com os demais jornalistas sobreviventes, fui parar na Europa,

lamentando ter de deixar a Síria e seu povo em meio aos Crimes

contra a Humanidade. A fuga acontece pela fronteira com o

Líbano, chegando a Paris.

Assim é a “Trilogia das Flores” que desembarca na

Primavera Árabe. No decorrer dela, reforço o pedido aos

saharawis, aos sírios, e demais árabes, que continuem sua luta

pela liberdade, que não desanimem. Aos saharawis e aos sírios

deixo o recado de que eles não estão sozinhos em seu sonho.

Que esta obra deseja alimentar e divulgar essa resistência e

sensibilizar outros povos a auxiliá-los na reconquista de seus

territórios e sua Paz.

Como um saharawi, o recado aos meus irmãos é para

que nunca abandonem o sonho porque eu acredito, assim como

eles, na instalação pacifica da nossa pátria livre, a República

Árabe Saharawi Democrática (RASD).

Simploriamente, através desta ficção, em forma de

“Trilogia”, falo dos últimos 30/40 anos que fizeram com que os

ditadores agora estejam por um fio, diante da ira dos povos

árabes. Uma luta comparada aos levantes populares de 1848 na

Europa, reconhecidos como Primavera dos Povos, e que agora

se repetem no Norte da África. Os levantes nestes tempos

modernos são ainda mais veementes e tecnológicos. A

informação e as redes sociais se aliam ao poder do povo nas

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manifestações das ruas e são chamados de Primavera dos Povos

Árabes; expressão sintetizada, que passa a ser chamada de

Primavera Árabe. Um registro histórico, de consequências e

formas inimagináveis, na busca pelo direito à vida, a um lar, à

opinião e à Paz.

Introdução

O dia do meu aniversário de 16 anos, em 17 de

dezembro do ano 2000, segue a mesma rotina dos dias,

semanas, meses anteriores. Amanhece ensolarado, como

sempre acontece no Deserto do Sahara e, depois do almoço,

enquanto cuido das ovelhas, cabras e vacas, tudo transcorre

monotonamente. Aquele que parecia um dia normal sem

nenhuma comemoração de aniversário para um beduíno no

Sahara, se transforma rapidamente. Recebo um dos presentes

mais indesejáveis para um saharawi. O Exército do Marrocos

nos ataca mais uma vez. Não é algo comum, porém, não há

surpresas. A prática de invasões e agressões contra os saharawis

se repetem nos últimos 40 anos. O início de tarde tranquilo no

Sahara se transforma num marco para a minha vida saharawi.

Neste dia, resolvo deixar de ser mais uma vítima dos invasores

e começo minha nova história.

Lembro meu pai, aos gritos, correndo em direção ao

nosso acampamento, pedindo para que as mulheres fujam,

levando as crianças. Os soldados dão tiros para o alto e, com

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seus camelos, começam a destruir nossas khaimas (tendas

tradicionais saharawis). Estava interrompido o dia tranquilo,

que deveria ser de festa e paz.

Papai recebe um golpe de cassetete, pelas costas, antes

de chegar à primeira barraca. Apenas uma pancada na cabeça e

ele cai desacordado, sangrando. Corro em sua direção para

tentar evitar novos golpes, mas também sou atingido. Mesmo

ferido, minha ira é tanta, que derrubo o invasor e, com um

pedaço de pau, o faço sangrar da mesma forma que fez ao meu

pai. O soldado tenta se levantar e quando me preparo para um

novo golpe, outro soldado do Rei, covardemente como seu

monarca, me acerta, derruba e me prende. Meu pai continua

ensanguentado e caído ao chão, sem poder ser socorrido.

Golpes de cassetetes, tapas no rosto e chutes pelo

corpo. Vários pais de família, trabalhadores, jogados na areia do

deserto, pisados pelas botas dos soldados, pisoteados pelos

camelos. Manchas de sangue espalhadas pelo acampamento.

Subjugados, homens e adolescentes apresentam olhos inchados

e hematomas pelo corpo. Meu pai ainda sangra, porém, já está

consciente. De joelhos na areia, enfileirados com as mãos na

cabeça, somos levados para interrogatório.

No meio da bagunça, as mulheres correm em direção à

fronteira com a Mauritânia, levando bebês no colo e arrastando

as crianças pequenas pelas mãos. Nossas mulheres pedem

socorro aos soldados do posto de fronteira, que fica próximo.

As crianças choram assustadas. Desesperadas mulheres e

crianças conseguem abrigo nas dependências da unidade de

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controle mauritana, de onde assistem às humilhações que

passamos nas mãos dos soldados do Rei.

Cresci vendo este Exército praticar violência contra o

meu povo. A diferença é que agora não sou mais poupado. Para

estes militares, 16 anos é uma idade que me eleva à categoria de

homem saharawi e, portanto, apto para sofrer as mesmas

sessões de espancamento e tortura.

Os soldados buscam informações sobre um grupo, de

aproximadamente 50 homens, que passou por nosso

acampamento logo pela manhã. Mesmo garantindo que nada

sabemos sobre aqueles homens, eles prosseguem com as

agressões. Durante horas, os soldados fazem as mesmas

perguntas acompanhadas de socos, pontapés e golpes de bastão.

Sem as informações desejadas, amarram alguns homens, pelos

pés ou pelas mãos, e os arrastam com seus camelos. Corpos

frágeis, esfolados pelas areias do deserto, chegam de volta. É

assim que os soldados do Rei tentam nos intimidar para obter

respostas às suas perguntas.

Sabemos que os soldados fazem isso apenas por prazer.

Conhecem o pacto que existe entre nós, saharawis. Nunca

cedemos aos soldados do Rei. E mesmo cientes do nosso

corriqueiro silêncio, os militares satisfazem doentiamente seus

desejos sádicos com agressões, humilhações e depois nos

largam em pleno deserto, sem cuidados médicos, num

acampamento destruído. Dessa vez, antes de irem embora,

atiram nas pernas de dois homens, e como se nada tivesse

acontecido, seguem viagem. Acreditam estar no encalço de seus

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inimigos, mesmo indo no sentido contrário ao dos homens que

estiveram no acampamento.

Apesar de toda esta violência dos soldados do

Marrocos, estamos felizes. Continuamos vivos e certos de que

vencemos mais uma batalha contra aqueles que creem mais na

força, que no uso das palavras. Os vemos seguirem perdidos

pelo Sahara, crendo estarem no rastro do grupo de homens que

acampou ali pela manhã.

Estamos acostumados a viver uma vida de dias iguais.

Hoje, como sempre, o sol caminhava tranquilamente entre o

leste e o oeste, e nossas vidas prosseguiam harmoniosas neste

cantinho do deserto, na cidade de Bir Lahlou (do árabe “Água

bem doce”), divisa do Sahara Ocidental com a Mauritânia.

Nossa cidadezinha tem uma farmácia, de poucos

recursos, e mulheres que se esforçam para nos trazer os

primeiros ensinamentos; um pouco de árabe e de espanhol.

Somente anos depois, uma pequena escola foi inaugurada na

região. Escola batizada com o nome de "José Ramón Diego

Aguirre" (um coronel espanhol, historiador e amigo do povo

saharawi, que foi o primeiro estrangeiro a receber a

nacionalidade Saharawi, como prêmio honorário). Apesar da

pouca estrutura, Bir Lahlou é um lugar tranquilo e de muitas

paragens.

Somos uma tribo nômade, da etnia Maure, com cerca

de 150 pessoas, entre homens e mulheres, idosos e crianças. Por

causa da invasão de nossas terras pelo Reino do Marrocos, a

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prática da cultura nômade está restrita pela proibição de ir e vir

pelo Sahara. Há quase um ano vivemos acampados aqui, por

considerarmos um local seguro para nossas famílias. Estamos

bem próximo à fronteira com a Mauritânia, país que tem esse

nome por causa do nosso povo Maure. Temos acesso livre ao

seu território. Porém, nossa tribo em Bir Lahlou, mantém viva a

necessidade de combate constante para reconquistarmos nossas

terras ancestrais invadidas por Marrocos.

Os homens que passaram de manhã pelo vilarejo são

integrantes do nosso Exército. O grupo de ativistas da Frente

Popular de Libertação de Saguia-El-Hamra e Rio de Oro,

popularmente chamada Frente Polisário, é a força militar e

política saharawi. Foi criada em 1973 e, desde então, luta pela

independência dessa região ocidental do Sahara, invadida pela

Espanha e, mais recentemente, pela Monarquia do Marrocos.

Hoje eles chegaram por volta das seis horas. Apesar de

estarmos nas primeiras horas do dia, o sol forte do Sahara

beirava os 40 graus. Seguíamos a nossa rotina cuidando dos

animais, enquanto as mulheres alimentavam nossas crianças e

organizavam as khaimas. É comum nossos defensores armados,

montados em camelos, fazerem paradas nos acampamentos que

encontram pelo caminho. Procuram descanso e abrigo por

algumas horas.

Os revolucionários sempre repetem os procedimentos.

Com muito respeito, nos pedem um local, descansam, tomam

chá, cuidam de seus camelos e, ao final da manhã, continuam

viagem. As paragens dos combatentes da Frente Polisário em

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nada interferem na vida simples que levamos, de cuidar de

nossas crianças, tratar dos animais e mantermos vivo o sonho

de uma vida melhor em nosso próprio país, a República Árabe

Saharawi Democrática. Muito pelo contrário, os revolucionários

da “Frente” são orgulho e alimento para esta esperança.

Há muito tempo o Exército do Rei Mohammed VI não

atacava o povo saharawi nessa região. Entretanto, desta vez, os

militares agiram com muito mais crueldade. E depois deste

ataque, decidi que era a hora de ir embora. Esta seria a primeira

e última vez que viveria a humilhação dos soldados do Rei.

Chego à conclusão de que permanecendo no meu vilarejo, não

vou poder ajudar a realizar o sonho do meu povo. Preciso ir.

Buscar um futuro.

Nem repenso minha decisão. Rapidamente pego uma

mochila com algumas poucas coisas e, sem muitas despedidas,

beijo e peço proteção aos meus pais, abraço parentes e irmãos

de tribo e sigo em meu camelo, firme, sem lágrimas, rumo ao

deserto.

“Rumo ao Marrocos”

Sigo pelas areias do Sahara, com destino a Rabat,

capital marroquina e só agora, distante da minha tribo, entrego-

me ao choro. Lágrimas que se misturam às tempestades de

areia, numa obcecada busca por liberdade e independência. Não

queria ter saído da minha tribo assim, de uma hora pra outra,

mas não tive escolha. Solitário e triste, as dunas confortam

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meus pensamentos e certezas de que um dia eu volto, após

conquistar meus objetivos.

Deixo pra trás crianças sorridentes com seus brinquedos

improvisados; mulheres felizes que se dedicam aos cuidados de

suas tendas e maridos. E levo na memória, com orgulho,

lembranças dos homens guerreiros e honestos, que buscam a

Paz e uma vida melhor para as suas famílias. Este dia tornou-se

inesquecível pra mim.

Pelo caminho, em meus pensamentos, chego a concluir

que este é meu Maktub. O destino de alguém nascido em 1984,

em plena disputa de territórios no Sahara Ocidental, entre o

povo Saharawi e sua Frente Polisário que resistem para instalar

a República Árabe Saharawi Democrática (RASD); e o Reino

do Marrocos, que ocupa nosso país desde os anos 70. Sinto-me

vítima direta destes confrontos, pela primeira vez. No entanto,

estou decidido a mudar minha própria história e a vida do meu

povo. Batizo a minha luta e do meu povo de “Revolução das

Acácias”, afinal, somos tão resistentes como aquelas espinhosas

e mimosas árvores que nos dão flores e a cola para exportação,

nas areias saharawis.

Num camelo, viajando pela “minha casa”, meus

pensamentos são intensos. Vejo o acampamento desaparecer

aos olhos, enquanto as imagens do terror que vivi antes de sair,

ainda são marcantes e insistem em não cair no esquecimento.

Os sentimentos se confundem com as dunas,

tempestades e vilarejos que atravesso como um andarilho. Às

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vezes, me acho um fugitivo da minha própria história, mas

também carrego a determinação de, em breve, retornar para

concretizar o grande sonho saharawi.

Meu povo habita a região ocidental do Sahara há

séculos. Porém, temos uma história conturbada desde as

primeiras invasões, até nos limitarem nesta parte minúscula do

Sahara. Apesar de sermos a origem do povo marroquino, somos

ultrajados pela Monarquia desde a invasão dos nossos

territórios. Sempre estivemos sob a tirania de colonizadores.

Primeiro vieram os berberes, depois o Império Romano,

Portugal e, por último, Espanha e França. Todos com o mesmo

propósito de explorar nossas riquezas e nos expulsar das nossas

terras. No século XIX, foram os franceses e os espanhóis que

dividiram a área. Nossa parte Ocidental sob o domínio espanhol

e o Marrocos com os franceses. Tentamos resistir em batalhas

ferozes, porém, os exércitos da França e Espanha atuaram

juntos e conseguiram o domínio. Quando veio a Segunda

Guerra Mundial, meu povo aproveitou a fraqueza das duas

potências para agir e achamos que estávamos livres dos

invasores. Em 1956, o Marrocos conquistou sua independência

dos franceses, recolocou a Monarquia de três séculos de volta

ao trono, e com certa resistência, deixou-nos com a nossa luta

particular ainda sob o domínio espanhol. Assim como os

marroquinos lutaram para se desvencilhar da França, nós,

saharawis, lutamos contra a Espanha.

A desistência marroquina por nossas terras, no entanto,

durou pouco. Até armas químicas, usadas em várias partes do

mundo, fizeram parte do arsenal marroquino em grandes

Page 19: Este livro é um sonho que alimenta sonhos. - perse.com.br · saharawis e o Exército do Marrocos, no acampamento de protesto de Gdeim Izik, na cidade de El-Aaiún, capital do Sahara

Semente da Primavera – A Revolta Saharawi que inspirou o Mundo Árabe

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operações de guerra contra o povo saharawi. Nossa luta

prosseguiu sem muita organização até a criação da Frente

Polisário, quando se fortaleceu. No entanto, em 1975, o

Marrocos sente a fragilidade espanhola e vislumbra a chance de

anexar nossos territórios. A Espanha demonstra pouca

resistência aos marroquinos. Ainda assim, o Rei do Marrocos

quer mais. Nossos pais relatam que, apesar do forte e suficiente

poderio bélico dos exércitos para nos expulsar, até gás napalm

usaram contra a população saharawi nesse período. Queriam

exterminar nosso povo, não apenas se apropriar de nossas

terras.

Ignorando os saharawis e visando desagradar a

Monarquia do Marrocos, os espanhóis assinam um acordo de

Paz, cedendo parte das nossas terras ao Rei e outra à

Mauritânia. Com isso, a Espanha paralisa todo o processo de

descolonização do nosso território saharawi e cria um

precedente histórico. Em vez de negociar com o povo local, ela

negocia com os países vizinhos, Marrocos e Mauritânia, se

desvencilhando de seus compromissos diplomáticos. A ONU,

que tentava fazer um referendo de autodeterminação, através de

seu Conselho de Segurança, paralisa suas ações e se limita a

manter uma Força de Paz na região para evitar o confronto

armado.

Em 27 de Fevereiro de 1976, quando as tropas da

Espanha deixam o Sahara Ocidental, a Frente Polisário

proclama a República Árabe Saharawi Democrática (RASD),

numa tentativa de se firmar em nossas terras ancestrais. Em

1979, após três anos de constante guerra, conseguimos que a