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351 UMA ANÁLISE DO MONÓLOGO E SOLILÓQUIO NAS TIRAS CÔMICAS 94 Caroline Molinari Andrade (Letras-português, UEL) Maria Isabel Borges (Letras-português, UEL) Esméri Malagute Pereira (Letras-português, UEL) RESUMO: As falas das personagens nas tiras cômicas tradicionalmente são representadas na forma de balões cujo traçado é contínuo, reto ou curvilíneo (RAMOS, 2010). Porém, há momentos em que as personagens, às vezes, entram em crise; outras vezes, questionam o cotidiano ou sua própria condição existencial. Neste momento, a representação do pensamento ou da reflexão é feita ora na forma de monólogo, ora na de solilóquio. Em linhas gerais, o monólogo é representado na forma de balões de pensamento, à medida que o solilóquio é retratado na forma de balões de fala. Neste caso, o interlocutor é a própria personagem. A partir disso, o objetivo principal é caracterizar a representação das falas nas formas de monólogo e de solilóquio em seis tiras cômicas (duas de cada série) dos cartunistas Orlandeli (séries “Sic” e “Grump”) e Bill Watterson (série “Calvin e Haroldo”). Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Gramática, pragmática e tiras: em busca da organização gramatical de fato e valor”, coordenado pela professora Maria Isabel Borges. PALAVRAS-CHAVE: Texto. Tiras cômicas. Monólogo e solilóquio. 94 Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Gramática, pragmática e tiras: em busca da organização gramatical de fato e valor”, coordenado pela professora Dra. Maria Isabel Borges.

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UMA ANÁLISE DO MONÓLOGO E SOLILÓQUIO NAS TIRAS CÔMICAS94

Caroline Molinari Andrade (Letras-português, UEL) Maria Isabel Borges (Letras-português, UEL)

Esméri Malagute Pereira (Letras-português, UEL) RESUMO: As falas das personagens nas tiras cômicas tradicionalmente são representadas na forma de balões cujo traçado é contínuo, reto ou curvilíneo (RAMOS, 2010). Porém, há momentos em que as personagens, às vezes, entram em crise; outras vezes, questionam o cotidiano ou sua própria condição existencial. Neste momento, a representação do pensamento ou da reflexão é feita ora na forma de monólogo, ora na de solilóquio. Em linhas gerais, o monólogo é representado na forma de balões de pensamento, à medida que o solilóquio é retratado na forma de balões de fala. Neste caso, o interlocutor é a própria personagem. A partir disso, o objetivo principal é caracterizar a representação das falas nas formas de monólogo e de solilóquio em seis tiras cômicas (duas de cada série) dos cartunistas Orlandeli (séries “Sic” e “Grump”) e Bill Watterson (série “Calvin e Haroldo”). Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Gramática, pragmática e tiras: em busca da organização gramatical de fato e valor”, coordenado pela professora Maria Isabel Borges. PALAVRAS-CHAVE: Texto. Tiras cômicas. Monólogo e solilóquio.

94 Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Gramática, pragmática e tiras: em busca da

organização gramatical de fato e valor”, coordenado pela professora Dra. Maria Isabel Borges.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A presença dos quadrinhos na sala de aula, principalmente nas aulas

de língua portuguesa, nos dias de hoje se dá basicamente por dois motivos: 1) a política

educacional implantada com os PCNs (BRASIL, 1998) propõe o estudo de textos

pertencentes a gêneros discursivos diversos; 2) a presença dos quadrinhos em exames de

vestibulares. O vestibular da Unicamp foi o primeiro, em 1990, a usar uma tira cômica,

um gênero discursivo pertencente ao hipergênero “quadrinhos”. (RAMOS, 2007; 2010;

VERGUEIRO, 2004a; 2004b).

O retorno dos quadrinhos à sala de aula também traz à tona uma

urgência na compreensão de sua linguagem híbrida, como destacam Vergueiro (2004a;

2004b), Rama e Vergueiro (2004) e Ramos (2007; 2010). Com o propósito de contribuir

para tal compreensão, neste trabalho, nossa proposta é caracterizar a representação das

falas nas formas de monólogo e de solilóquio em seis tiras cômicas (duas de cada série)

dos cartunistas Orlandeli (séries “Sic” e “Grump”) e Bill Watterson (série “Calvin e

Haroldo”). É claro que se trata de um recorte das diversas possibilidades de

representação das falas nos quadrinhos.

A TIRA CÔMICA COMO GÊNERO DO DISCURSO

A tira cômica é um dos gêneros discursivos pertencentes ao

hipergênero “quadrinhos”. Com base nos estudos de Maingueneau (2004; 2005; 2006),

trata-se de um rótulo, um guarda-chuva que abriga: as tiras (cômicas, cômicas seriadas e

seriadas), as charges, os cartuns e as histórias em quadrinhos. A narratividade apoiada

em aspectos temporais e espaciais são alguns dos aspectos que unem tais gêneros

discursivos. As ações são desenroladas por personagens fixas ou não, que “... funcionam

como bússolas na trama: são a referência para orientar o leitor sobre o rumo da

história.” (RAMOS, 2007, capítulo 695). Segundo Teixeira (2005), a partir de um sujeito

real, constrói-se um sujeito fictício. As histórias em quadrinhos possuem sequências

95 Tese de doutorado na versão eletrônica, sem paginação. Nossa opção foi fazer referência por meio do número do capítulo.

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narrativas mais longas, podendo constituir álbuns autônomos, com personagens, na

maioria das vezes, fixas cujas características são reconhecidas pelo destinatário a cada

trama lida.

Nas tiras, as personagens podem ser fixas ou não. Porém, a sequência

narrativa é mais breve, com três ou quatro vinhetas, quando no formato clássico (um

retalho), como podemos observar nas tiras cômicas 2, 3 e 4 analisadas neste trabalho. É

comum uma flutuação terminológica — tirinha, tira de quadrinhos, tira em quadrinho

etc. Segundo Ramos (2010), muitas vezes, uma tira é confundida com uma charge ou

com uma história em quadrinhos. “Charge e tira cômica, por exemplo, são textos unidos

pelo humor, mas diferentes no tocante às características de produção. Para ficar em

apenas uma distinção: a charge aborda temas do noticiário e trabalha em geral com

figuras reais representadas de forma caricata, como os políticos; a tira mostra

personagens fictícios, em situações igualmente fictícias.” (RAMOS, 2010, p. 16) Na

verdade, as tiras podem ser cômicas, porque se pautam num final de tom humorado,

havendo uma proximidade com a piada. (RAMOS, 2007; 2010) Podem ser seriadas

quando a trama não se encerra em uma única tira. Neste caso, cada aspecto da trama é

apresentado em uma tira publicada em dias diferentes: um capítulo para cada dia,

aproximando-se de uma novela. Quando a tira seriada está associada ao humor, com um

desfecho inesperado, tem-se uma tira seriada cômica. Já quando o foco recai sobre as

ações, tem-se uma tira seriada, também chamada tira de aventuras.

A FALA NOS QUADRINHOS: OS BALÕES

Não há um consenso quanto à definição do balão de fala. De um modo

geral, é entendido como um recurso de extrema importância para a expressão das falas e

pensamentos das personagens. A palavra escrita tanto aparece na legenda — a visão do

narrador — quanto nas falas explícitas nas interações entre personagens, nas falas em

voz alta de uma personagem (o solilóquio) e na “fala pensada” (o monólogo), porém

não exteriorizada. (ECO, 1976/1993; RAMOS, 2007; 2010).

Para Ramos (2007, capítulo 7), “O balão é um elemento central. Por

mais diverso que seja seu uso, pode-se resumi-lo de duas maneiras. Há balões de

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pensamento, apresentados em geral com um contorno em forma de fumaça ou nuvem.

Os demais indicam fala de personagem.” O balão de fala é constituído de conteúdo

escrito — as falas expressas ou pensadas, também denominadas continente — e de um

rabicho, um elemento visual que sinaliza para o destinatário de quem é a fala. O rabicho

também é chamado de apêndice, ou ainda, pode estar ausente em algumas tiras, por

exemplo, nas tiras cômicas de Henfil e Orlandeli.

Dentre as representações do pensamento das personagens, dois

conceitos devem ser destacados: o do monólogo e o do solilóquio. Ambos seriam

formas de explicitar o que as personagens pensam. Contudo, cada um tem sua forma

própria.

Em meio à teoria literária, o monólogo e o solilóquio, segundo Moisés

(1977), são recursos narrativos essenciais para exprimir os aspectos relacionados ao

ponto de vista96 ou ao foco narrativo. Nas tiras cômicas, esse aspecto mostra-se

presente, atribuindo, na maioria dos casos, o ponto de vista expresso pela primeira

pessoa do discurso (eu). Contudo, nada impede que, em uma mesma tira, haja dois

pontos de vista distintos, ou apenas o expresso na terceira pessoa, como em muitas

obras literárias. Ainda de acordo com o autor, os recursos narrativos presentes em uma

obra de ficção seriam “o diálogo, a descrição, narração e dissertação” (MOISÉS, 1977,

p. 114). O primeiro é o que nos interessa no momento. Para Moisés (1977), o diálogo

narrativo é entendido como a fala das personagens, podendo dividir-se da seguinte

forma: diálogo direto, diálogo indireto97, monólogo interior direto, monólogo interior

indireto e solilóquio. As duas primeiras formas ocorrem com menos frequência dentro

dos quadrinhos. Isto posto, nosso enfoque será sobre as outras três formas. Assim como

foi relatado anteriormente, os conceitos de monólogo e solilóquio possuem uma

96 De acordo com Massaud Moisés (1977, p. 113), “por ponto de vista, ou foco narrativo, se entende a posição em que se coloca o escritor para contar a história, ou seja, qual a pessoa verbal que narra, a primeira ou a terceira?”. 97 A diferença entre o diálogo direto e o indireto define-se da seguinte forma: o primeiro utiliza-se de recursos gráficos, como travessões e aspas, para expressar a fala das personagens; o segundo é expresso pelo próprio narrador, que se utiliza de verbos como “... ele disse que”, para representação da fala das personagens dentro da narrativa. (MOISÉS, 1977)

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pequena diferença, quando inseridos no meio literário. De acordo com Moisés (1977, p.

114-115),

... ainda pertencem à esfera do diálogo o 1) monólogo interior direto, em que a fala mental da personagem semelha dirige-se diretamente ao leitor, o monólogo interior indireto, que se transmite com a participação do escritor; e 2) o solilóquio, em que a personagem fala sozinha, sem interlocutor, nem mesmo o escritor (aparentemente).

Mesmo tendo sido apontada uma diferenciação, percebe-se que

existem alguns pontos semelhantes entre os conceitos apresentados por Ramos (2007;

2010) e Moisés (1977). Podemos afirmar que tanto o monólogo quanto o solilóquio são

formas de representar a fala mental, ou o pensamento, das personagens dentro de um

dado contexto textual. Quando ambos os autores referem-se ao termo “monólogo”, eles

concordam que essa forma de expressão da fala não depende de um interlocutor, pois se

passa na mente da personagem. Por um lado, Moisés (1977) assume que o monólogo

interior indireto, assim como no discurso indireto, há o auxílio do narrador, quem

participa da transmissão dessa fala ao leitor como uma espécie de mediador. Por outro

lado, enquanto que, para Ramos (2007; 2010), durante o solilóquio, o interlocutor da

personagem seja ela própria, para Moisés (1977), não há nenhum interlocutor, nem

mesmo o narrador. Tais pontos, em linhas gerais, demonstram certa distinção entre estes

conceitos que, apesar de utilizados em contextos diferentes, possuem uma inter-relação

importante, já que tiveram uma origem comum, pautada na teoria literária.

Segundo Ramos (2007; 2010), o monólogo seria uma representação

escrita do pensamento ou reflexão de uma personagem, indicado pela forma do balão de

pensamento, sem haver um interlocutor; já no solilóquio, um discurso expresso em voz

alta e representado pela forma do balão de fala, a personagem discursa para si mesma,

constituindo-se seu próprio interlocutor. Para o autor (2010, p. 33), essa “distinção é

muito pertinente. Pensar algo é bem diferente de ficar falando sozinho em voz alta”.

Além disso, outra distinção apontada por ele está ligada às diferentes formas dos balões,

sendo que em um se usa o de fala; e no outro, o de pensamento. Vale ressaltar que o

monólogo e o solilóquio podem, dentro de uma tira, ocorrer isoladamente ou ao mesmo

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tempo. Isso também ocorre com os vários tipos de balões, que podem coexistir com

outros.

UMA ANÁLISE

Como objeto de análise, foram escolhidas seis tiras dos seguintes

cartunistas: Orlandeli (séries “Sic” e “Grump”) e Bill Watterson (série “Calvin e

Haroldo”). Cada uma das tiras selecionadas será analisada a partir da identificação das

estruturas monólogo e solilóquio. Juntamente a isso, pretendemos demonstrar que a

falta de recursos gráficos para a representação do pensamento das personagens pode

levar a uma leitura mais aberta, impelindo os leitores a terem, no mínimo, duas leituras.

Na tira cômica “Grump” do cartunista Orlandeli98, é possível perceber

que a fala da personagem, denominada Vândalo, é representada por um balão de

pensamento. Levando isso em conta, supomos que não existe nenhum interlocutor, uma

vez que nenhuma palavra foi expressa pela personagem. Logo, podemos afirmar que a

forma utilizada para representar seu pensamento foi a do monólogo. Além disso, na tira

1, o formato do balão de pensamento utilizado é diferente do proposto pela tradição

(fumaça ou nuvem) (CAGNIN, 1975; RAMOS, 2007; 2010). A escolha de um balão de

pensamento quadrado pode ser relacionada ao estilo adotado pelo cartunista.

Tira 1: “Uma rima...”, publicada no dia 22 de janeiro de 2014.

98 O cartunista e ilustrador Walmir Américo Orlandeli, formado em Publicidade e Propaganda, atua na área do cartum desde 1994. É autor das revistas “Sic” e “Grump”, além de outas. Ele teve vários de seus trabalhos selecionados para salões nacionais e internacionais. Ganhou o “Troféu HQ Mix”, em 2002, como a melhor revista de humor de 2002, com a revista “Grump”.

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Fonte: disponível em <http://ultimaquimera.com.br/category/grump>. Acesso em: 01

maio 2014.

Na segunda tira, também da série “Grump”, há a exemplificação da

representação do pensamento por meio do solilóquio, presente na primeira e na segunda

vinhetas. Nelas, Grump começa a refletir sobre o paradeiro de seu possível amigo, São

Judas. Nos dois momentos, exterioriza o que está pensando, tendo como interlocutor si

mesmo. Além disso, o caráter cômico da tira está no fato de São Judas, ícone religioso,

tê-lo traído, fazendo uma intertextualidade com o texto bíblico.

Tira 2: “Aí eu falei...”, publicada em 30 de julho de 2013.

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Fonte: disponível em <http://ultimaquimera.com.br/category/grump/page/3>. Acesso

em: 01 maio 2014.

Outro cartunista que pode exemplificar o uso do monólogo e do

solilóquio é Bill Watterson99, com as tiras “Calvin e Haroldo”.

Tira 3: “Marcação”100.

Fonte: Watterson (2010, p. 15)

Nas três primeiras vinhetas (tira 3), a fala das personagens é

caracterizada como um diálogo, pois há a interação face a face. Já na última vinheta,

Calvin se utiliza do monólogo para expressar-se. Isso é percebido pelo uso do balão de

pensamento, representado pelo formato tradicional de nuvem. (CAGNIN, 1975;

RAMOS, 2007; 2010).

Tira 4: “Vai que dá certo!”.

99 Cartunista norte-americano e bacharel em Artes com ênfase em Ciências Políticas. A primeira tira cômica “Calvin e Haroldo” foi publicada em 18 de novembro de 1985. Foi influenciado por Charles Schulz, criador do Snoopy e de outros membros da turma de Charlie Brown. A última tira cômica de “Calvin e Haroldo” data de 31 de dezembro de 1995. (Disponível em: <http://depositodocalvin.blogspot.com.br/2009/04/biografia-de-bill-watterson.html>. Acesso em: 11 maio 2014.) 100 Originalmente, as tiras “Calvin e Haroldo” não são nomeadas. Os títulos visam facilitar a análise.

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Fonte: Watterson (2010, p. 28)

Em outra tira (tira 4), há a combinação entre o monólogo e o

solilóquio. Na segunda vinheta, apesar de não haver nenhuma marcação gráfica que

indique que Calvin esteja realmente pensando, podemos deduzir que o monólogo esteja

presente. Na última vinheta, a presença do solilóquio é evidente, uma vez que a

personagem se encontra sozinha e falando em voz alta. Apesar de serem aparentemente

fáceis de identificar, o monólogo e o solilóquio nem sempre são apresentados

exatamente como se supõe que sejam retratados: um pelo balão do pensamento; o outro

pelo de fala.

Um exemplo disso seria a tira da série “Sic” de Orlandeli.

Tira 5: “Estou atolado até o pescoço”, publicada em 10 de fevereiro de 2014.

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Fonte: disponível em <http://ultimaquimera.com.br/category/sic>. Acesso em: 01 maio

2014.

A falta de um recurso gráfico — signo de contorno ou balão — na

quinta tira, torna a leitura mais aberta, dando um efeito de duplicidade/ambivalência.

Esse efeito, que de início poderia tornar a leitura um pouco confusa, acaba gerando uma

produtividade semântica, quando relacionada à interpretação que o sujeito faz da tira: é

o narrador que fala ao leitor ou é a personagem que está falando para o leitor, tratando-

se de um solilóquio?

Em um primeiro momento, a ausência de um balão que recrie a fala da

personagem e, até mesmo, de um apêndice que indique o produtor das frases expostas

podem deixar o leitor “perdido” (sem referências). Além disso, a falta de balões

dificulta a definição de monólogo e solilóquio, pois precisam desse recurso para que

possam ser diferenciados. Mas, nada impede que um leitor deduza que a personagem

esteja conversando com um interlocutor que não seja ela mesma. Alguns recursos

linguísticos podem auxiliar nessa leitura, como a frase presente na segunda vinheta:

“Situação tá feia. Estamos literalmente no vermelho”. A marca de plural no verbo

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“estar” indica que a personagem poderia estar interagindo com outro sujeito. Contudo,

com base nas ideias de Ramos (2007; 2010), esse interlocutor pode ser ela mesma. O

que pode estar acontecendo seria o seguinte: ela deve estar pensando que não é a única

pessoa em uma situação financeira ruim, por isso utiliza-se do verbo no plural,

incluindo-se e generalizando/estendendo a situação. Contudo, essa leitura não se torna

decisiva, muito menos a certa. O intuito, ao trazer a tira cômica, foi demonstrar que

várias leituras podem ser apresentadas, uma vez que nenhum signo de contorno foi

apresentado.

Em outra tira cômica da série “Sic” (tira 6), não há balões ou

apêndices que indiquem a fala da personagem. Entretanto, outros aspectos — assim

como foi explicado anteriormente — tornam possível a caracterização dessa fala.

Tira 6: “Opte por aquilo que faz seu coração vibrar”, publicada em 23 de dezembro de

2013.

Fonte: disponível em <http://ultimaquimera.com.br/category/sic/page/2>. Acesso em:

01 maio 2014.

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A linguagem utilizada na sexta tira nos remete ao ato de narrar. É

como se a personagem narrasse o que aconteceu com ela, mas essa ação ocorre em sua

mente. Um fator que nos indica que a personagem está realmente pensando seria a frase

presente na quarta vinheta: “Nunca tinha parado para pensar dessa forma”. Mesmo não

havendo marcas gráficas que indiquem qual tipo de balão e, portanto, qual tipo de fala é

utilizado pela personagem, outros aspectos linguísticos podem auxiliar nessa leitura.

Mesmo assim, a falta do recurso gráfico — como na tira anterior — pode dar abertura

para mais de uma interpretação, levando o leitor a pensar que, ao invés de a personagem

estar utilizando-se do monólogo, ela esteja usando o solilóquio. Ou ainda, essa

personagem poderia empregar as duas formas de representação de fala ao mesmo

tempo, de modo que, da primeira à sexta vinheta, teríamos um monólogo à medida que,

na última, um solilóquio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base em Innocente (2005), a tira cômica está alicerçada no

humor, em recursos gráficos — o que instaura uma linguagem própria para o gênero do

discurso — e numa estrutura composicional de quatro movimentos:

1) apresentação do título e da autoria;

2) contextualização do tríada tema-personagens-trama, a composição do cenário da

história;

3) clímax, a construção de uma expectativa;

4) desfecho, a ruptura ou quebra da expectativa.

Juntamente com esses movimentos, o monólogo e o solilóquio

constituem duas formas particulares de representação das falas das personagens,

configurando, em parte, a linguagem dos quadrinhos. Tanto as falas expressas quanto os

pensamentos ou as reflexões são retratadas nos quadrinhos para que o leitor possa

construir um sentido possível. Em se tratando das tiras analisadas, também se observa

um afastamento da tradição quando não se usa o rabicho para vincular falas expressas

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ou não ao seu produtor, bem como se opta por outro formato que não seja o de nuvem

ou fumaça para retratar uma fala não expressa.

O mais interessante de tudo isso é diferenciar quando uma

personagem está em interação com outra e quando está se colocando como interlocutora

de si própria, de modo a contribuir com a construção dos sentidos possíveis das tiras

cômicas, gêneros do discurso pertencentes ao hipergênero quadrinhos. Os sentidos são

construídos diante da mobilização dos recursos específicos da linguagem dos

quadrinhos, uma relação híbrida entre a palavra escrita e o desenho.

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