estilo [estilo] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design...

4
48 [ ] [ estilo ] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design pela PUC-Rio. Professora e autora de vários livros, entre os quais se destacam Todos os caminhos da moda (Rio de Janeiro, Rocco, 1997) e Fio a Fio – tecidos, moda e linguagem (São Paulo, Estação das Letras, 2007). E-mail: [email protected]

Transcript of estilo [estilo] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design...

Page 1: estilo [estilo] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design pela PUC-Rio. Professora e autora de vários livros, entre os quais se destacam Todos

48[ ]

[estilo][ GILDA CHATAIGNIER ]

Graduada em Jornalismo pela UFRJ e

Mestre em Artes e Design pela PUC-Rio.

Professora e autora de vários livros,

entre os quais se destacam Todos os caminhos da moda (Rio de Janeiro, Rocco, 1997) e Fio a Fio – tecidos, moda e linguagem (São Paulo, Estação das

Letras, 2007).

E-mail: [email protected]

Page 2: estilo [estilo] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design pela PUC-Rio. Professora e autora de vários livros, entre os quais se destacam Todos

49[ ]

Resgate de memórias costuradas

As garotas de Ipanema ainda não conheciam o biquíni e nem sonhavam com a poesia apaixonada de Vinícius de Morais. Mas gostavam mesmo das Garotas desenhadas por Alceu Penna nas páginas da revista semanal O Cruzeiro. Lançadoras de moda, essas perso-nagens exibiam modernidade com óculos de gatinho, vestidos de baile e outras criações do seu autor, mineiro de Curvelo. Da mesma cidade veio para o Rio de Janeiro, em 1947, a costureira Zuzu Angel, que deixou seu regis-tro de moda e dor entre nós.

A tagarelice carioca, ainda mais quando o assunto era moda, espalhou-se logo. “Tem uma costureira nova aqui na rua!”, era o brado de guerra das antepassadas da garota de Ipanema para bisbilhotar novidades, ainda mais que a novata era especialista em saias. Mas não eram quaisquer saias. Eram saias com o corte godê – o verdadeiro, o godê completo ou godê guarda-chuva – muito divulgado a partir de Dior, no mesmo ano em que criara o New Look. Sob medida ou prontinhas-para-u-sar, as caprichosas saias foram um sucesso que rendeu a Zuzu a continuidade da carreira. Os tecidos? Da fábri-ca Bangu, com seus chintz lustrosos, cetins de algodão festivos, popelines em cores vibrantes, organdi armado ou organza com perfume francês, enfim, sedução com trama de algodão, algo realmente novo.

Só quase 20 anos depois é que conheci a autora do nosso novo olhar: Zuleika Angel Jones, a Zuzu de Ipa-nema. Já editora de moda do Jornal do Brasil, ainda que meninota, cursando jornalismo na UFRJ, fui entrevistar Ethel Moura Costa, a primeira designer contemporânea de bijuterias do Rio. Ela acabara de ter um bebê, Sabri-na, e me atendeu no resguardo do leito. Fiquei louca por suas propostas arrojadas, nas quais misturava clássicas pérolas com modernos cristais, flores de plástico com madeira e bambu e outros materiais. Era o início da gri-fe Bijou-Box, que ainda é uma referência carioca. Ethel mostrou-me também bordados que ornariam vestidos de luxo de grandes costureiros da época, como Jérson (com j, como ele gosta de frisar), Guilherme Guimarães e de “uma costureira original, mineira, que cria peças diferentes”.

Page 3: estilo [estilo] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design pela PUC-Rio. Professora e autora de vários livros, entre os quais se destacam Todos

50[ ]

[ estilo | GILDA CHATAIGNIER ]

Depois desse episódio fui bater à porta de Zuzu, cuja casa era colada muro a muro com a de Ethel, à rua Nascimento Silva. Antes Zuzu morava em uma rua próxima, a Barão da Torre. Em ambas as casas, seu ateliê ficava sempre nos fundos das moradias. Uma versão do que se faz hoje, com meninas de sobrenome ou egressas de escolas de moda. Com espaços generosos, confortáveis mais sem luxos, Zuzu recebeu-me com gentileza, mas com um olhar um tanto desconfiado. Entre bolinhos e biscoitinhos, aquela hospitalidade que hoje em dia só tem as regras das etiquetas do marketing, foi contando sua história e desfiando suas idéias.

Fiquei sabendo de suas incursões na Bahia, o namoro que teve à primeira vista com aquele universo que cativara tantos viajantes europeus, os coloridos e as es-tampas que imaginara ao sentir com arrepios os atabaques, os perfumes selvagens que inspiraram florões do país das fantasias, as rendas brancas que ornavam as vestes das negras elegantes tanto nos rituais africanos, como quituteiras nas es-quinas. Os aviamentos, em especial rendas de bilro, sianinhas, galões de algodão, passamanarias, “coisas de mineiro e de baiano, sem querer ofender o resto do pesso-al”, dizia com orgulho Zuzu, que fez desses detalhes sua fonte inspiratória forever. E o algodão, o tecido eleito. Zuarte, pano de colchão (listras largas e finas formando barrados verticais com pássaros e flores, lembrando o exótico do século XVIII), brim de garrafeiro (tecido encorpado preto com listras finas brancas, semelhante ao ris-ca-de-giz contemporâneo) começaram a parecer timidamente na mídia do início dos anos 1960. Quando podia dava uma passadinha pela casa dela, que espalhava sobre a mesa estilo colonial – sua sala era protegida por imagens de santos barrocos – as amostras dos tecidos da vez.

Depois das saias e outros complementos, a próxima linha que Zuleika criou foi a de alta-costura, sem deixar os mimos brasileiros na prateleira. O tempo da moda tinha um sopro oriental, e os caftãs tomaram o poder nas vestes de gala, nos casamentos e que tais. Coisa de Saint Laurent, o novo darling da época. A revista Jóia, publicação feminina da Bloch Editores, criou uma pauta sobre as editoras de moda do Rio e eu estava entre elas. Quando Zuzu soube da história, ofereceu-me emprestado um belo caftã de brocado bege com dourado, com o decote característico bordado com paetês e assinado por Ethel.

Nessa época, Zuzu fez diversos desfiles beneficentes em locais chiques, alguns deles no Copacabana Palace. Suas clientes eram mulheres influentes, tais como as primeiras damas Sara Kubistchek e Yolanda Costa e Silva, além das elegantes senhoras Teófilo de Azevedo, Negrão de Lima e várias outras, num trabalho criativo, mas despo-litizado, que nada tinha a ver com a ideologia libertária abraçada por seu filho Stuart, vítima do regime militar instaurado em 1964.

Page 4: estilo [estilo] [ GILDA CHATAIGNIER ] Graduada em Jornalismo pela UFRJ e Mestre em Artes e Design pela PUC-Rio. Professora e autora de vários livros, entre os quais se destacam Todos

51[ ]

A exploração de um estilo mais comercial aconteceu em 1967, já na loja que abriu entre o Leblon e Ipanema, que, depois de sua morte, deu espaço à loja Elle et Lui.

De outra feita, quando a Rainha Elizabeth II veio ao Rio de Janeiro (1968) em mis-são oficial para fechar acordos entre a Grã-Bretanha e o Brasil, a elite da alta-costura não teve mãos a medir. Jérson, Mary Angélica, José Ronaldo, Guilherme Guimarães, Ney Barrocas e Zuzu Angel eram os favoritos do high-society. Mas coube a ela a con-fecção de uma imponente capa de xantungue – que possuía como fechamento um broche da H. Stern – feita para a primeira-dama Yolanda Costa e Silva usar na festa em homenagem à rainha. Sobre a peça, Zuzu explicou-me que “era simples e podero-sa, uma capa simbólica para envolvê-la com signos brasileiros”.

Neste mesmo ano, 1968, Zuzu viajou para os Estados Unidos e foi a primeira estilista brasileira a divulgar nossa moda no exterior. Em 1970, a coleção Pastoral, na verdade inspirada em Lampião e Maria Bonita, foi totalmente vendida no Berg-dorf Goodman, templo do consumo refinado em Nova York. Aliás, não era qualquer costureiro que teria a sorte e o talento que fizeram de Zuzu um nome conhecido nos Estados Unidos. Segundo suas palavras em entrevista informal comigo, mencionou que seu estilo era “um libelo à liberdade: de se vestir, de descobrir o Brasil, de integrar o povo com sua arte à moda”.

O espaço que lhe reservou a mídia nacional em relação ao seu trabalho nesta época não foi dos mais generosos. Mas Zuzu não se incomodava com isso. Admitia que a razão desta sutil rejeição seria o estilo, que fugia dos cânones mais clássicos usados na década de 1960: coleções inspiradas nos trajes típicos gaúchos, nas muiês renderas e outras fontes, todas elas quase figurinos, atraentes como um musical da Broadway. Vendeu roupas para Joan Crawford (leia-se Pepsi-Cola), Kim Novak, Jean Shrimpton, Veruska, Liza Minelli, Margot Fonteyn e outras celebridades. Fez vários desfiles em Nova York, antes da fase de mater dolorosa, quando foi manchete nos jor-nais internacionais com suas peças-libelos como o vestido mortalha, as estampas com anjinhos, baionetas, canhões, balas, pombos negros estraçalhados, quepes, símbolos de uma época conhecida com os anos de chumbo.

Em entrevista para o Jornal do Brasil (14 de julho de 1968), Zuzu contou-me que se tornou notícia em Nova York quando souberam da encomenda de um vestido para Joan Crawford:

A secretária dela apareceu aqui em casa, e pediu-me para fazer um vestido para Joan, que estava no Rio. No dia seguinte mandei o vestido para o hotel. O melhor de tudo é que a peça ficou perfeita sem ela ter experimentado sequer uma vez. Isso foi o bastante para entusiasmá-la. E foi a partir daí que eu passei a costurar para ela, disto nascendo a nossa amizade.

Em 1976, tudo acabou. Numa curva do caminho em direção a sua casa, então na Barra da Tijuca, seu carro acidentou-se de modo provocador em São Conrado, e Zulei-ka de Souza Neto Angel Jones morreu na mesma hora. Um capítulo negro da história brasileira, que só foi esclarecido anos depois. O túnel no qual passava mereceu o seu nome, símbolo de uma tragédia encomendada.

Este fato sinistro que se abateu sobre a vida de Zuzu levou a uma mitologização de sua pessoa, incluindo também o seu trabalho na moda. Embora compreenda e seja solidária a sua dor e perdas, não posso deixar de admitir que esse processo levou a uma percepção distorcida da sua moda. Todo o seu trabalho anterior às coleções políticas, que talvez tenha sido a sua principal contribuição à moda no Brasil, ficou um pouco esquecido. Os pesquisadores de moda num futuro não muito distante terão a difícil tarefa de resgatar a sua face de fina modista, sem dúvida de grande valor e originalidade e que alargou as fronteiras da história da moda no Brasil.