Estranha de Mim Mesma

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Uma escrita que investigue como aproximar forças opostas: a introspecção em uma narrativa lírica, comprometida com o mergulho no eu, seja lá quem ou o que isso seja; ao mesmo tempo em que a palavra é lançada ao espectador num movimento de convite à relação, a negociação de uma troca, a construção de um espaço-tempo de convívio. Uma dramaturgia lírico-convivial. Como esse eu, estranho em mim mesma, comunica-se com o outro exterior? Que voz é essa que media o dentro e o fora? Como ela se posiciona no espaço, como ela ganha corpo, como ela afeta o outro? Como ela afeta o autor e o ator? O espectador pode refletir-se e estranhar-se também, pelo impulso de uma dramaturgia? Eis um projeto de escrita. Hoje (título provisório). Aos espectadores, é pedido que tragam peças de roupas impregnadas de memórias, suas ou alheias. Serão devolvidas ao fim do encontro. Ao entrar no espaço do teatro, a cada espectador será sugerido que escolha um lugar nos varais (onde outras peças de roupa jaziam previamente) que atravessam o palco para pendurar sua peça-memória. Ali permanecerá ao longo da apresentação. A atriz poderá usá-la, caso queira. CENA 1 Atriz entra pela plateia, parece desnorteada, estranha o público, parece cogitar se deve sentar-se entre eles, olha o palco, atravessado pelos varais com roupas, aproxima-se e ocupa um lugar diante da plateia. Eu vim aqui... eu não sei como eu vim parar aqui. Até há pouco, eu... eu caminha e vi aquela porta, eu vi aquela porta e entrei. Desculpem. Não sou o que vocês esperavam. Não, não é isso... (pausa longa). Não sou o que eu esperava, acho que é isso... Eu estava no meio da cidade, no meio dos carros, no meio das pessoas, e me perdi no meio de todos aqueles... ruídos, todas aquelas luzes. Súbito uma escuridão me... Não fui mais eu. Eu... era... Atriz se dá conta de que há um espelho no palco. Nos varais, tem à sua disposição saias curtas e compridas, blusas, calças sociais, vestidos, lingerie, terno e burca. Ela deve provar as roupas e escolher – ali – o que deseja usar. Ela pode escolher ficar nua. Antes, ainda antes, eu nem ao menos era. Havia talvez algumas células desorganizadas, provavelmente tão desorganizadas eu

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Work in progress da peça Estranha de mim mesma.

Transcript of Estranha de Mim Mesma

Uma escrita que investigue como aproximar forças opostas: a introspecção em uma narrativa lírica, comprometida com o mergulho no eu, seja lá quem ou o que isso seja; ao mesmo tempo em que a palavra é lançada ao espectador num movimento de convite à relação, a negociação de uma troca, a construção de um espaço-tempo de convívio. Uma dramaturgia lírico-convivial. Como esse eu, estranho em mim mesma, comunica-se com o outro exterior? Que voz é essa que media o dentro e o fora? Como ela se posiciona no espaço, como ela ganha corpo, como ela afeta o outro? Como ela afeta o autor e o ator? O espectador pode refletir-se e estranhar-se também, pelo impulso de uma dramaturgia? Eis um projeto de escrita.

Hoje (título provisório).

Aos espectadores, é pedido que tragam peças de roupas impregnadas de memórias, suas ou alheias. Serão devolvidas ao fim do encontro.

Ao entrar no espaço do teatro, a cada espectador será sugerido que escolha um lugar nos varais (onde outras peças de roupa jaziam previamente) que atravessam o palco para pendurar sua peça-memória. Ali permanecerá ao longo da apresentação. A atriz poderá usá-la, caso queira.

CENA 1

Atriz entra pela plateia, parece desnorteada, estranha o público, parece cogitar se deve sentar-se entre eles, olha o palco, atravessado pelos varais com roupas, aproxima-se e ocupa um lugar diante da plateia.

Eu vim aqui... eu não sei como eu vim parar aqui. Até há pouco, eu... eu caminha e vi aquela porta, eu vi aquela porta e entrei. Desculpem. Não sou o que vocês esperavam. Não, não é isso... (pausa longa). Não sou o que eu esperava, acho que é isso...

Eu estava no meio da cidade, no meio dos carros, no meio das pessoas, e me perdi no meio de todos aqueles... ruídos, todas aquelas luzes. Súbito uma escuridão me... Não fui mais eu. Eu... era...

Atriz se dá conta de que há um espelho no palco. Nos varais, tem à sua disposição saias curtas e compridas, blusas, calças sociais, vestidos, lingerie, terno e burca. Ela deve provar as roupas e escolher – ali – o que deseja usar. Ela pode escolher ficar nua.

Antes, ainda antes, eu nem ao menos era. Havia talvez algumas células desorganizadas, provavelmente tão desorganizadas eu deixo meu quarto durante a semana (olha a desordem dos varais). Meu...!?

Eu estou aqui.

Havia essas células, em desordem, e alguém... não alguém, uma voz... uma voz chamou aquilo de vida. E essas células foram se multiplicando e ficando mais complexas até que alguém chamou aquela desordem, muito pior do que a de antes, de feto. Um bebê. E, então, dizem, eu nasci.

Eu, não. Aquele amontoado cada vez mais desordenado e complexo de células saiu por um canal, que é outro amontoado complexo e desordenado de células, ao qual se deu um nome. E aquilo... aquele amontoado desordenado de células, recém- saído do canal, onde poderia

continuar alheio ao fato de ser qualquer coisa mais que um amontoado desordenado de células, foi olhado pela primeira vez.

Atriz encara o público.

Eu não vim aqui para morrer hoje. Hoje, não.

Ao espelho.

Eu me pareço muito pouco comigo mesma. Não acham? (Olha a reação dos espectadores).

Não?! (rindo)

Atriz se aproxima dos espectadores. Mostra-se. Olha-os. Ansiosa.

Eu preciso sair... de novo. Tomar um ar. Uma bebida. Uma, algumas doses. Tomar um barco, sair sem rumo... Eu sou de Áries. Ascendente em escorpião e lua em peixes. 9 na numerologia. 4 no eneagrama. Meu pai, acho que era 6. Contrafóbico. Pisciano. Era – é possível ser sem estar?

Atriz experimenta outros trajes, tenta outras combinações.

Eu não gosto de meias, nunca gostei. Costumo tirá-las no meio da noite, mesmo nos dias mais frios lá do sul. Elas sufocam meus pés.

Atriz recusa todas as combinações de roupa que experimenta. Não se satisfaz. Parece desconfortável na própria pele.

Ando pensando em trocar meu nome. O que tenha perdeu o sentido. De quem falam, quando me chamam? Lavínia. Joana. Teresa. Alguém tem um nome? (à plateia:) Você? Você? Ninguém trocaria de nome comigo. Eu me pergunto, o que diz um nome sobre nós?

Atriz observa o corpo despindo-se e a imagem do corpo semidespido na superfície do espelho. Tateia-se, como quem busca seus órgãos internos. Pega uma caneta e esboça desenhos dos órgãos sobre a pele. Seus desenhos são como células desordenadas.

Quem garante que eu tenha dois rins? Dois pulmões aqui? Hummm.... apêndice, vesícula? E o cumprimento das minhas tripas? Das minhas veias? A largura das minhas artérias? Um só rasgo em um artéria e...

(Atriz aproxima-se de espectador, quase a ponto de tocá-lo. Mas não.)

Te incomoda me ver nua?

E se eu for homem, incomoda mais?

E se eu for criança?

E se eu for gorda? Ou esquelética? Se eu não tiver um membro, uma perna? E se eu sangrar? Todo mês?

Eu estou aqui, sim. Não vim para morrer hoje.

E se eu estiver vestida, bem vestida? Te incomoda se eu estiver bem vestida, bem aqui?

Eu não vou ficar nua. Hoje não.

Então, o que devo usar? A burca ou o biquíni? Qual cor? E o tecido? Qual trama eu escolho para hoje? Esta? Esta?

E se eu escolher mostrar meus órgãos internos? Quais vocês preferem ver? As tripas? Coração, não. Ovários?

Dizem que eu tenho ovários. Dizem que eu sou mulher. Quem diz? Aquele primeiro olhar – o olhar que prendeu o amontoado desordenado de células em sua primeira carapuça. O olhar que ordena e define.

Não mais um amontoado de células, desordenado. Um bebê. Humano. Menina.

Branca. Alta. Ocidental. Nem gorda nem magra. Nariguda. Inteligente. Responsável. Séria. Peituda. Brava. Ansiosa. Impulsiva. Chata. Carinhosa.

Quem?!?

Carapuças. Vocês sabem do que eu estou falando? Vocês... estão me olhando agora. Vocês...veem!?

Cada par de olhos pousa uma imagem sobre mim. Uma imagem de mim que eu intuo e me conforma. Vocês... veem?! “Eu” só existe em reação ao olhar pousado por vocês.

Se não houvesse esses olhos, esses olhos de vocês sobre mim, agora, se nunca tivessem havido...

Eu vim aqui e eu me dei conta. Eu, não. Esse amontoado desordenado de células. Isso que sou e que é anterior à minha imagem de mim. Vocês veem? Quando vocês veem, eu vejo.

Mas no escuro de mim, nada me diz: mulher. Nada me diz.

No escuro de mim, nada me diz: feia bonita raivosa feliz. Nada me diz.

O escuro de mim é lava.

(Atriz desenha sobre sua pele um amontoado desordenado de células, em ritmo crescente até que seja frenético. A luz oscila com ela na parte final, em mínimas explosões).

Eu caminhava. Eu vim parar aqui, agora, eu entrei por aquela porta, eu me pus aqui sob os olhos de vocês. Mas o que vocês veem, não sou eu.

E o que eu vejo? (olha individualmente espectadores e rotula o que vê). Gordo, alto, baixo, magro, mulher, homem, séria, cético... Não. Não são vocês.

Amontoado desordenado de células sobre o qual nenhum olhar nunca pousou.

(Blackout)

CENA 2

(Clarão. Palco vazio).

(Breu. Como numa dança, entra mulher seminua arrastando o corpo de um homem cujo tronco pesa sobre seus braços. Leva-o ao centro do palco e o deita no chão. Vela-o num murmúrio de quase silêncio. Alisa-lhe os cabelos, retraça seus contornos com os dedos, cobre-lhe as bochechas com as mãos espalmadas. Contempla-o. Deita-se sobre ele, como morta. Enquanto a música lamenta, repete o traçado dos dedos sobre seus próprios rostos).

CENA 3

(Black out)

OFF: Perdido, perdido... Mas se eu fecho os olhos, sou capaz de voltar lá. Sou capaz de sentir.

Sou capaz de sentir o sofá, deitar minha pele sobre o tecido rugoso e encostar o meu corpo no seu corpo, ao seu lado, ao seu lado, pai. Deitar a cabeça no seu peito, pai, e ver os poucos pelos fincados na pele muito clara, as manchinhas vermelhas como bolhas. Sou capaz de sentir o ar quente sair do seu nariz, pai. O peito inflar e desinflar. O ar entrar e sair. Seu coração bater, pai. Bater, bater, bater. Sou capaz de voltar, pai, você é capaz de voltar.

Dura um segundo. Um mundo.

(Luz)

(Atriz volta). Pai, você está aí?

Sabe que eu não carrego mais nenhuma 3x4 dele na carteira? Nem minha. Nenhuma.

Também, o que eu estou dizendo!? Ninguém mais carrega foto em carteira. Fica tudo no cartão de memórias...

Mas hoje eu estou anacrônica. Olha o que tenho aqui: uma polaroide!

(A um espectador). Você pode tirar uma foto minha?

Obrigada.

Deixa eu ver como ficou...

(Atriz comenta realmente os resultados). Nunca me vi assim antes. Nunca me vi pelos seus olhos antes.

Posso tirar uma foto sua? (a outro espectador). Assim. Um minuto... está ótima. (A outro espectador).

Você o conhece? Não? Então, toma, a foto dele é sua. Posso tirar outra sua também?

Pronto. Esta vou dar...

...a ela.

(atriz tira foto de mais espectadores e distribui a outros deles. Esse é um momento mais aberto a improvisos, a uma troca direta com a plateia).

Vamos levar essas fotos para casa. Daqui a cinco, dez anos, podemos achá- las em uma gaveta e pensar: mas quem era esse mesmo? Quem era eu?

Ah! E aquele!... O que terá acontecido? Será que teve filhos, envelheceu, mudou, morreu? Será meu vizinho?

Você! Tira outra foto minha? Deixa só eu me preparar... (atriz assume uma expressão soturna, deixa cair os ombros, incorpora uma tragédia). Pode tirar... Deixa eu ver como ficou? Não! Por que você tirou essa foto? Esse não foi um dia bom, não, esse foi um dia horrível, esse foi o dia em que... foi o dia... horrível! Não quero um registro desse dia, pode rasgar, rasgue agora, por favor, agora!

(Se o espectador não rasgar, ela mesma rasga)

Quem vai olhar nossas fotos quando morrermos? Quando já estivermos mortos? Eu ainda não morri, não hoje.

Vamos tirar uma foto todos juntos? Somos nós, aqui, só hoje, só nós. Acho que a polaroide não vai dar conta. Deixe eu procurar... (atriz vasculha uma caixa sob a arara de roupas, pega uma câmera digital e um tripé). Olha o que eu achei! (Atriz monta o tripé de frente para a plateia e programa a máquina para fotografar, depois se posiciona com a plateia para a foto). Eu quero aparecer também! (Flash). (A fotografia aparece projetada num telão ao fundo do palco, como uma polaroide gigante. Atriz desarma o tripé. Olha para a imagem projetada, silencia um instante).

Vocês se lembram desse momento? Do instante do flash? Faz muito ou pouco tempo? Faz cada vez mais tempo! Vocês se reconhecem? Olhem direito, olhem bem. Se reconhecem? Daqui, de onde eu vejo, parece mesmo com vocês. Mas, no íntimo, você se reconhece quando se vê?

Aqui. Quantas vezes vocês já estiveram aqui? Quantas vezes falaram: agora? Pensaram: agora? Viveram: agora? E quiseram voltar?

Taí: o registro de quem a gente era.

(telão se apaga).

CENA 4

(Atriz pega um terno ou casaco masculino. Dirige-se aos espectadores. Saca a arma do bolso, mas a mantém suspensa, para baixo).

Eu estou aqui diante de vocês – e eu não atiro.

Nada me impede... Meus dedos são capazes de empunhar essa arma e de apertar o gatilho, como eles apertam o botão da máquina. Clic. Meus olhos identificam o alvo (tempo do olhar sobre os espectadores). E não falta raiva... nunca faltou. Faltou?

Na verdade, nada me impede de romper com essa encenação aqui, agora. Ninguém assinou contrato de representação ilusória de nada. E mesmo se houvesse registro em cartório, em três vias protocoladas... Eu estou aqui, de verdade, vocês estão aqui, de verdade, e se o meu tiro acertar a artéria no seu abdômen, em 15 minutos você morre. Não vai ver, nem sentir mais nada, para sempre. Esse corpo vai ficar desabitado e não vai demorar a feder.

Eu não atiro porque–

(Disparo de flash, clarão e ruído, como um tiro. Atriz sente o golpe).

CENA 5

Off: VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Crime nº 465.330-9, de Umuarama, 1ª Vara Criminal, em que são Apelantes: Ministério Público de Neverland e Capitão Gancho, sendo Apelados: os mesmos. I. Capitão Gancho foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri da Comarca de Neverland que, reconhecendo excesso culposo na legítima defesa, rejeitou a imputação inicial (art. 121, caput, CP) e o condenou (f. 1731/1740) às penas de 3 anos e 6 meses de reclusão e 2 anos e 2 meses de detenção (em regime semi-aberto), mais 130 dias-

multa, incurso nos arts. 121, § 3º e312, do Código Penal e art. 10 da Lei nº 9.437/97, pelos fatos assim descritos na denúncia:

Atriz, ainda de terno, diz com distanciamento:

1º Fato

No dia 23 do mês de maio do ano de 2003, por volta da 01:00 hora da madrugada, o denunciado Capitão Gancho, cessada já uma discussão travada com a vítima Peter Pan, no interior do Bar do Neverland Country Clube, nesta cidade, pela disputa de uma partida de baralho conhecida por 'tranca', dirigiu-se ao seu veículo GM/Vectra, estacionado no pátio daquele clube recreativo, e fazendo uso de uma pistola, marca Beretta, calibre 22, n. C54606, retirada por ele do interior daquele veículo pelo lado do motorista, sem registro e licença concedidos pela autoridade competente, a pretexto de agredir fisicamente de morte a vítima, Peter Pan, efetuou, naquele mesmo local, um disparo em direção ao chão, a fim de provocar uma possível agressão da vítima, Peter Pan, que na ocasião já se encontrava distante do denunciado e próximo ao seu veículo VW/Gol, de cor verde, que se achava também estacionado no pátio do Neverland Country Clube, se preparando, portanto, para ir embora daquele clube recreativo.

(Enquanto fala, atriz assume mais a postura de juiz, inabalável)

Na sequência, quando a vítima então passou a vir em sua direção, o denunciado Capitão Gancho, observando que a mesma já se encontrava próximo a ele, de acordo com o plano previamente arquitetado, dolosamente, efetuou um segundo disparo com a referida arma de fogo, em direção ao abdômen da vítima Peter Pan. Ato contínuo, na tentativa de retirar-lhe a arma de fogo das mãos, a vítima entrou em luta corporal com o denunciado Capitão Gancho, que, por sua vez, desferiu, dolosamente, mais outros disparos com aquela arma de fogo em sua direção, acabando, no entanto, um dos disparos efetuados pelo denunciado, por atingir o lado esquerdo do abdômen da vítima, CAUSANDO-LHE AS LESÕES CORPORAIS DESCRITAS no Laudo de Necropsia de fls. 151, as quais, entretanto, foram a causa eficiente de sua morte.

CENA 6

(Luz para começar nova narrativa. Atriz retira o casaco masculino. Fica nua ou de vestido. Pega banco e leva ao meio do palco).

Já reparou como sempre que uma atriz quer discursar sobre a liberdade feminina no teatro ela fica nua? Fica toda nua e senta assim (cruza as pernas), meio de ladinho até, para esconder bem o que tem no meio das pernas. Do meio das pernas de onde brota o mundo. Todo mundo.

Deve se sentir tão livre assim, cruzada.

Eu posso tirar a roupa diante de vocês e voilá. Mas não faço.

Um amigo sempre me pede que eu lhe recomende peças com peitinhos. Ele não escolhe pelas celebridades no elenco, nem pela história ou pela reputação do diretor, ele só quer peitinhos. E eu só queria que um dia, um dia qualquer, alguém olhasse para o pintinho dele com aquele olhar invasivo com que olham pros meus peitos. E que faz com que eu não tire a camisa nem debaixo de um sol de 50 graus.

(Rapidamente, entra luz direta sobre os olhos dela, que a cega como um sol, possível referência a O Estrangeiro, do Camus).

Na vida imaginária é tão fácil matar. Eu ouvi dizer isso. Na verdade, eu li isso no livro de uma escritora norte- americana, dessas que destrincham o coração e não têm medo de tingir as casas de sangue. Ela dizia que é mais fácil matar quando não se sabe bem distinguir ficção de realidade. Ou foi isso que eu entendi. Sabe quando a vida fica meio nebulosa?

Quando eu já era desse tamanho (indica com gesto), eu li outro livro, aquele da filosofia pra pré-adolescentes, leram também? Fiquei fascinada por um pensador que dizia que não se pode distinguir realidade de imaginação. Ele falava: quem garante que essa cadeira exista? Meu sentido da visão, tato, olfato, paladar? Lamber a cadeira pode ser meio ridículo... Mas quem garante que os meus sentidos sentem a realidade, se eles são diferentes dos seus... (soa um trovão falso) Isso soa ingênuo, eu sei.

Na noite em que eu li essas ideias, eu acordei de madrugada com a sensação de que o mundo tinha perdido sua densidade material, e que eu talvez não existisse ou minha mão e minha mãe não existissem. (Off de voz infantilizada gritando de longe, da cama: Manheeeeeeeeeeeeeeeeeeeê).

Teria sido mais fácil matar alguém naquela madrugada? Não sei. Distraí o abismo ligando a TV em um canal de videoclipes, que já nem existe mais.

A um espectador – Me ajuda a representar uma cena? Faz cara de assassino de aluguel! Não, olha o clichê... Faz cara de alguém que mata e já se acostumou com isso. Eu vou fazer uma garota sofrendo porque o pai morreu assassinado. Não por você, por outro homem.

Entra subitamente áudio de ator, atriz age como se o esperasse ou como se o imaginasse.

Ele – Aí é bem mais fácil.

Ela – Mais fácil por quê?

Ele – Porque você não precisa ser atriz, essa é a sua história.

Ela – E isso torna algo mais fácil?

Ele – Deixa que eu faço esse “assassino de aluguel”.

Ela – Eu não preciso de você.

Ele, já no personagem – Então a senhorita está querendo se vingar do assassino do seu pai?

Ela – Quero.

Ele (com sadismo, empolando as palavras) – Fácil. É questão de método. Pra uma senhorita delicada, assim, não recomendo a faca, que degola num esguicho de dar dó! Nem a forca, uma brutalidade demasiada... um incêndio, imagino que lhe cause calafrios! O corpo estalando no fogo, retorcido em si mesmo... Um tiro, rápido e definitivo.

Ela – Não!

Ele – Mas, senhorita, quer ou não vingar o homem que matou seu pai?

Ela – Quero.

Ele – Um tiro!

Ela – Tiro não. Nem tiro nem faca nem forca. Tiro não. É só... É só pegar esse homem, amarrá-lo ou dopá-lo, você escolhe. Mas não mata! Pega o homem e enterra ele na cova do meu pai, no caixão do meu pai. Enterra ele, vivo, ao lado do meu pai, morto. Vivo ao lado do corpo do meu pai morto e apodrecido, que é pra ele acertar as contas com o cadáver que criou e com os vermes que dele se alimentam.

Ela – Sabe que no velório eu passei a noite com a minha mão assim, espalmada na bochecha dele? Era o único jeito de abrandar o frio da pele e de ela amolecer de novo. Não era mais pele de gente. Era dura e fria. Mas quando eu colocava minha mão, transferia o calor pra bochecha dele. E eu sentia o meu pai no meu toque de novo. Depois, eu passei um tempo sem conseguir tocar assim a bochecha de nenhum homem, porque logo o imaginava duro e frio e morto.

Ele – Você vai morrer também.

Ela silencia.

Ele – Eu sonhei com isso. Sonhei que você tinha um filho meu e então me dizia: eu não preciso mais de você. Eu já tenho o meu filho. Eu vou embora.

Ela – Eu não preciso mais de você. Eu já tenho o meu filho, o meu trabalho, o meu apartamento e a minha solidão. Eu vou embora.

Ele – Eu não matei o seu pai!

Ela – Um homem o matou. E você é um homem.

Ele – O seu filho é um homem.

Ela – E será morto como o pai e o avô. Uma família de suicidas! A coragem dos kamikazes, em nome de um ideal de justiça falido! Vão pra frente de batalha sem escudo e estufam o peito pra receber a rajada de balas. Meu filho talvez seja igual. Vai só cumprir o destino do avô e do bisavô. Já eu nasci mulher, e minha coragem me fere, mas não de sangue e de morte. Não hoje.

Ele – Seu pai foi um grande homem?

Ela –1,80 metro. Dez centímetros mais que o assassino. E dez centímetros impressionam um júri! (olha o público provocativamente, como quem olha o júri). Um defensor dizer que se fosse tiro de escopeta ou de canhão ainda seria legítima defesa, também impressiona. Mesmo contra um homem desarmado. Não havia grandes homens no julgamento. Meu pai já estava morto.

Ele – E o outro homem?

Ela - Só mais um homem. Um homem que matou mais um homem e nem leva as mãos manchadas. Circula pelas ruas, pode estar aqui, agora, quem sabe? (Inquire a plateia).

Ela, alterada.

Um sentido de irrealidade. Vida e memórias, não as reconheço com minhas. Quem são essas pessoas: mãe, amor? O que me conecta a elas ainda? O que me conecta a mim? A foto de dez anos atrás traz outra. Guardo as memórias dela.

Uma mulher ruiva.

Uma mulher ruiva, de sobrancelhas claras, nariz reto, pássaros tatuados no quadril.

Quem é essa?

Quinze anos atrás. Um dia, sobressaltou-se ao perceber-se entre até pouco desconhecidos, num lugar inédito, e reconhecer tais rostos e contornos como rotina recém-adquirida. Quantas vezes depois não se repetiria o susto de se dar conta novamente de o tempo tê-la conduzido a novos desconhecidos e lugares improváveis que constituiriam sua vida presente?

As certezas morreram em junho passado, o que mais se foi? É sempre tempo de re-conhecer-se, agora mais. O que nos ata às pessoas e o que nos ata a nós mesmos é de uma fragilidade... “somos todos umas ligações descosidas”.

Sonhou que voltava à casa antiga, à casa antes do pai. A casa da qual nem lembrava a existência até pisar o pé. Havia ainda velhos armários, a mãe fazia o inventário das partes quebradas. Havia ainda um cachorro, um bebê beagle, a carinha esfolada, passava a pata pequena pelo focinho ferido. Dizia: “perdão, perdão, perdão”.

Vocês a conhecem?

(Entra um violino solitário, vacilante, longínquo. O violino continua a tocar num longo black out).

Eu só queria conhecer o último olhar do meu pai. O olhar do momento em que ouviu o tiro e sentiu a pele queimar. O olhar do momento em que soube que morreria. O olhar que se sabia o último olhar. E que nunca mais nos veria, nada veria.

(Flash! A imagem da atriz no palco naquele momento é projetada no telão ao fundo. A expressão é semelhante à da polaroide que ela renegou anteriormente. Soturna. Depois de um tempo, a imagem se estilhaça, gradativamente, até não ser mais do que um amontoado desordenado de múltiplos pedaços de si mesma).

Vesti verde e só meses depois me lembraria da cor oficial do luto. Nada mais encenado do que a elegância unânime em preto nos velórios e enterros. Cadê o desconcerto? Por acaso resta algum apuro estético ou discernimento ao tombar-se com o fim da existência de quem se ama? Curioso como o mundo parece mais real desde aquela madrugada. Ou foi a sensação sempre presente do absurdo que ganhou materialidade? Eu dormia. A voz de minha tia Marisa atravessou pastosa a escuridão. Parecia dor no estômago. Viria a ser no meu. Me enrolei um pouco mais no lençol e voltei a adormecer. Não sei quanto tempo depois, ouvi a voz trêmula de minha avó, imperativa a dizer meu nome.

Sentei na cama.

“Seu pai sofreu um acidente”. Nuvens de gelo no estômago e então a calma.

Senti pena dela, preocupada em não me ferir com a notícia de que algo de grave acontecera a meu pai a seiscentos quilômetros dali.

Imaginei meu pai, filho de italianos, hiperativo, o sorriso terno, revelador da sensibilidade carinhosa que se contrapõe à sua nervosa inquietação. Imaginei-o a viajar pelo interior com seu pequeno carro azul alface. Batida. Capotamento. Hospital. Ferimentos. Braço amputado, tubos, cadeira de rodas, cego. Em coma. Senti pena dele e o carinho me preencheu da perfeição de haver um pai e o amor dele e o meu por ele.

A avó ainda ali, ansiosa. Quis diminuir-lhe o impacto do que ainda hesitava em me contar. Essa insistente necessidade de manter o controle. Imaginei a pior das perguntas. Se eu cogitasse a pior das hipóteses, qualquer dano menor pareceria suportável, um “sim” salvaria a todos.

_ Ele está vivo?

(...)

Cortei com os dedos pequenas porções da fatia de pão puro. Mastigava devagar. Engolia devagar. O gosto do pão, primitivo. O gosto da farinha. As células do meu abdômen ainda tremiam. Sentir o sabor acentuado de qualquer alimento só faria aumentar a confusão interna. As lágrimas soltavam-se devagar e poucas, a comida entrava devagar e pouca.

Minha irmã me recebeu com um abraço e o aviso alentador: “Parece que ele está dormindo”. Um cadáver, meu pai. O primeiro que vi. Deitado no caixão com a expressão calma e doce, que me desperta uma vida de sensações de carinho, aconchego e amor. A pele fria, de textura alheia, como nunca havia sentido. Depois, teria pavor de tocar as bochechas de um homem vivo porque imediatamente o imaginava frio e morto.

As pálpebras fechadas escondiam o azul claro marítimo. As duas mãos gordinhas seguravam uma rosa vermelha. Vestia terno. As manchas roxas próximas às articulações da base dos dedos fundamentavam opiniões mal disfarçadas de que meu pai havia batido muito antes de levar o tiro no abdômen. Soube mais tarde que não passavam de tentativas de a enfermeira alcançar-lhe a veia com uma agulha nos minutos finais. Os minutos finais.

Beijei a testa fria muitas vezes, mantive a mão sobre as bochechas para esquentá-las e abrandar sua rigidez. Tentei decorar cada traço do rosto, com pavor de esquecê-lo. A boca pequena. O nariz quebrado. A barba rasteira. O queixo tímido. A dor física no abdômen me habitou por três anos, já a sentia como um novo órgão à esquerda do baixo ventre. (Leva a mão ao ventre).

O que sucedeu nesses quatro anos foi neblina. Nada não mudou. E, entretanto, é difícil olhar para trás e distinguir os meses. Foram quatro anos de ar turvo e acinzentado recobrindo pupilas e narinas. A mente mais lenta e dopada. Me perdoem os que não o perceberam e sofreram. Eu não sofria, como se imagina o penar de gritos e correntezas. A dor que sentia era das caladas, graves, que comprimem as veias e artérias, estremecem os órgãos e nos atiram em um mundo paralelo muito semelhante a este, com os mesmos personagens e cenários, mas deslocado de seu eixo original. Como quem andasse sobre o precipício de pálpebras cerradas e só escapasse da queda pela cegueira da altura.

Quando despertei desse sonhambulismo, havia perdido tudo sem volta.

*

O meu chuveiro se amorna pelo aquecedor a gás. Nem todas as manhãs me lembro de desligar o mecanismo que produz a pequena chama. Mas, quando um pensamento me acomete, não esqueço. É quando imagino o incêndio.

Minha irmã sempre sonhava pesadelos com fogo. Hoje o meu pesadelo vem acordada. Imagino num repente a imensa labareda alaranjada a matar os móveis e as roupas, a matar tudo que tenho. Posse é coisa esquisita. Centenas (milhares?) de objetos que compõem a minha vida, em certa medida compõem até a minha identidade. São apenas objetos, separados do meu corpo, e, no entanto... Ninguém pensaria em ver tudo isso desmaterializado sem uma angústia profunda, uma sensação vertiginosa de perda.

Hoje, quando fecho a porta da casa, nos instantes em que giro a chave para a direita, quando dou as costas à porta e abandono todo meu abrigo, sei exatamente qual o único objeto essencial ali dentro. O pesadelo do fogo me aterroriza pela possibilidade de uma única perda, dilacerante. Houvesse um incêndio pronto a engolir tudo, uma fotografia do meu pai é o que eu salvaria.

*

O chão era de terra batida. A sepultura, de concreto. Não vi o caixão ser fechado, não vi meu pai ser aprisionado, seu corpo, no leito fúnebre. A última vez que voltei ao cemitério, gastei trinta minutos a procurar sua lápide. O chão já não era de terra, os jazigos já não estavam espaçados. Havia tantos, lado a lado, cobertos de mármores negros, acinzentados e esverdeados, tantos os mortos daquele mês, daquele ano, dos seguintes. E, entre todos, reconheci o do meu pai logo que me aproximei, sem ainda ter avistado a fotografia dele aos 30 anos, lindo, novo, esperançoso, candidato a deputado estadual, atrás dos passos de seu pai. Perderia a eleição, mas perpetuaria a trajetória do meu avô de outra maneira, por outra coincidência. Meu avô, a quem nunca conheci, assassinado sem explicações quando voltava de ônibus do Mato Grosso.

*

*

Prometeu não mais incomodá-los. Menti. Aqui estou.

Um grito. Vinha do interior da casa, turvo. “Sua irmã se queimou inteira com o aquecedor de gás!”.

Era a voz de minha mãe. Minha pequena, tão frágil e terrena mãe, aquela que nos deu consistência e chão firme contrastantes com a inconstância aerada de meu pai.

Sua voz foi uma onda fria que se espalhou de meu estômago para os membros, sem que um arrepio fosse visível na superfície.

A vida pode mudar em um minuto ou menos, lembrei. Essa consciência física é o que distancia alguém como eu dos outros. Eu sei. A minha vida mudou nesse passar de instante. No instante em que o dedo de um homem pressionou o gatilho do revólver que sustentava em sua mão. Outro dia, a caminho do trabalho, vi um daqueles pavorosos guardas uniformizados a apontar ora ao chão ora ao ar uma mais pavorosa arma de cano

longo. Saía de um carro-forte em direção a um banco. Cruzava a calçada à minha frente. Tentei não olhar para o objeto assassino. Dava ele o passo que o deixaria mais próximo de mim do que qualquer outro quando ouvi o ruído, o engatilhar, o som do pavor. O som que meu pai ouviu antes de morrer.

“Sua irmã se queimou inteira no acendedor de gás!”. A imagem que se desenhou em minha mente naquele momento era avermelhada, coberta por bolhas, disforme. Incompatível com a pele muito clara, de toque infantil, os olhos verdes discretamente raiados de amarelo, o corpo jovem e feminino.

Corri até o banheiro, tropeçando no braço do sofá azul escuro de estampa texturizada, mal alcançando com os pés o chão. Pouco antes de eu avistá-la, minha irmã pronunciou as palavras cicatrizantes: “Não foi nada”. Havia uma vermelhidão sobre a pele, decerto ardor, nada profundo. Nada definitivo.

Apenas o calafrio pelo corpo.

A memória física.

A possibilidade de reincidência.

O que diferencia alguém como eu dos outros são palavras. Simples assim. As palavras: o assassino do meu pai. Elas existem no vocabulário de qualquer falante do português. E, no entanto, elas não significam para qualquer falante do português. Não têm referencial real para qualquer falante do português, se me entendem.

Mas para mim, sim.

Ouvi de minha mãe a inocente pergunta: Você se lembra da voz do seu pai? O que diferencia alguém como eu dos outros são palavras. Frases como a de minha mãe fazerem sentido real. O assassino do meu pai. O assassinato do meu pai. A lembrança da voz do meu pai. A voz do meu pai morto. O meu pai morto.

*

Ela – Eu sei. Desculpe se só falo disso. Nunca escapo de mim mesma. Ele (carinhoso e irônico) – Às vezes, você é insuportável. (Ela se aproxima da plateia. Olha o público com constrangimento. Vira-se, isola-se num canto vazio do palco e inscreve seu corpo no espaço enquanto fala). Ela – Porque não existe amanhã nem hoje. Porque o único tempo presente é o passado, e se impõe sobre cada instante por vir. Porque sou toda ontem e anteontem e ainda antes, eu escrevo a você. Eu escrevo a você essas linhas. E se os seus olhos correrem pelas letras que meus dedos imprimem no papel, será um reencontro? Será passado. Eu escrevo a você porque não há outro, não poderia haver outro, somos nós, somos dois em sete bilhões, somente dois. Não houve um dia sequer, nem um dia sem que eu pensasse em você. Sempre um pensamento familiar. Amoroso, às vezes. Daquele que eu reconheço sobre todos os outros. E se neste país distante a todos eu estranho, com suas fisionomias às quais não me habituei ainda, os traços mestiços do umbigo do continente, peles de todas as tonalidades, olhos brutos, sombreados num rasgo descendente, e largas arcadas dentárias, é aos seus traços que recorro em mente para me distrair e me reconhecer. Você, que é tão diferente de mim. Eu amo você? Não houve entrega maior. Você mesmo disse: sinto falta do que

costumávamos ser um para o outro. Também sinto. E penso no seu colo como o único, além do de minha mãe, sobre o qual eu poderia deitar minha cabeça sem risco de degola. Quase me esqueço que era a sua cabeça que mais se amparava sobre o meu colo, e na sua fragilidade eu encontrava a minha força, no seu caos eu iludia o meu equilíbrio, na sua inércia minha vida amputada se sustentava, comparava e seguia. E de nos ampararmos, caímos os dois. Ele - Quando você escreveu isso, você se sentia assim?

(Ela, cortando o devaneio) – Parece que sim. Eu não me lembro bem. No instante exato eu me sentia assim, mas até terminar as frases, eu não tenho certeza. (Ela novamente se afasta e retoma a escrita corporal da cena anterior, agora modificada. No início, se dirige a ele, depois volta ao devaneio) – Você se lembra de quando eu lhe dizia que desejava o seu desejo? Ao dizê- lo, não sabia... Desde então busco aprisionar seu gozo. Dominá-lo. Antes fosse sádica. Desejava o desejo dele para mim. Todo meu. Daí a fantasia de vê-lo trepar com outra, outras. Sob o meu domínio, do meu olhar, da minha consciência. Não, o que eu desejava não era que ele gozasse, era que eu possuísse o seu gozo. Fui ofendida quando o esperma dele atingiu as entranhas da mulher mais velha e desejante. Sua língua umedeceu os contornos do sexo dela, percebendo as sutis ondulações da carne sem se importar com a idade de mãe nem com cicatrizes do parto de outro. Quando o sexo dele se armou contra o tecido que cobria a pudica garota do interior mineiro. Quando se enfiou entre as peles da outra e lamentou não ter lhe dado mais prazer... Preciso dilatar nossos espaços para continuar... Quem está presa sou eu? Ele (cortando bruscamente o devaneio) – Vamos fazer um filho? Ela – Você não me ama. Ele – Eu só quero fazer um filho. Ela – Eu não posso ter um filho com um homem que não vai criá-lo a meu lado até um de nós morrermos. Ele – Você sabe que pode. Você não é uma pós-feminista? Dessas que recusam bombons no 8 de março! E bradam contra as injustiças estéticas, econômicas e carnais do photoshop? Pra não falar da depilação à cera... Ela – Pois eu te digo que não sei se posso. Eu não sei como fazer isso. Ter um filho com você sem a garantia de nos amarmos para sempre. Ele – Você nunca terá esse filho... Ela – Então vamos fazer esse filho. Eu te amo agora. Depois, talvez quem vá embora seja eu.

FIM.